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1- ENCONTROS DO GT DE LITERATURA COMPARADA DA ANPOLL

2- TRABALHOS APRESENTADOS EM EVENTOS

1

Encontro de Salvador (1997) [topo da página]

Entre 28 e 30 de setembro de 1997, encontraram-se em Salvador 28 pesquisadores membros do GT de Literatura Comparada. O Encontro em Salvador foi uma profícua oportunidade de diálogo entre os pesquisadores membros do GT, suprindo a lacuna entre os grandes Encontros Nacionais da ANPOLL, bianuais. Além de uma definição mais nítida e da consolidação das linhas de pesquisa do GT, teve-se como objetivo do Encontro o debate sobre a diversidade atual dos focos de interesse dos pesquisadores em Literatura Comparada, discussão já em curso entre os comparatistas brasileiros, com previsíveis repercussões para uma política científica na área de Letras.

·          Dia 28/09/1997

18h00: Abertura

Prof. Luiz Felippe Perret Serpa, Reitor da UFBA.

Dr. Raúl Antelo (UFSC), Presidente da Associação Brasileira de Literatura

Comparada-ABRALIC

Dra. Eneida Maria de Souza (UFMG), Membro do Comitê Consultor do CNPq

20h00 - Lançamentos (Museu de Arte Sacra)

·          Dia 29/09/1997

09h00: Conferência (Instituto de Letras - Sala 8)

Influências recíprocas dos Estudos Culturais Estadunidenses e Latino Americanos

George Yudice, New York University

Debatedores:

Wander Melo Miranda (UFMG)

Eneida Leal Cunha (UFBA)

De 14h00 às 18h00: Reunião das Linhas de Pesquisa (Instituto de Letras)

Linha 1- Limiares críticos (LET, Sala 6)

Coordenadora: Tânia Franco Carvalhal (URGS)

Relatora: Evelina Hoisel (UFBA)

Linha 2- Literatura e memória cultural (LET, Sala 8)

Coordenadora: Eneida Maria de Souza(UFMG)

Relator: Wander Miranda (UFMG)

Linha 3 - Memória e representação literária na América Latina (LET, Sala 2)

Coordenador: Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP-Assis)

Relatora: Sílvia Maria Azevedo (UNESP-Assis)

Linha 4 - Relações Literárias Interamericanas (LET, Sala 2)

Coordenadora: Maria Consuelo Cunha Campos (UFF)

Relatora: Maria Cândida Almeida (UFMG)

Linha 5 - Formação crítica da modernidade a partir da cidade: poesia, prosa, ensaio (LET, Sala 3)

Coordenador: André Bueno (UFRJ)

Relator: Renato Cordeiro Gomes (PUC-RJ).

Focos da discussão: Quais as convergências entre as diferentes atuações em pesquisa que integram a Linha? Quais as articulações que podem viabilizar o trabalho integrado dos pesquisadores? Como definir programas de pesquisa para a Linha? Quais as temáticas prioritárias?

·          Dia 30/09/1997

De 09h00 às 12h00 - Reunião das Linhas de Pesquisa -cont. (Instituto de Letras)

Focos da discussão: A atividade de pesquisa: integração de projetos individuais e interinstitucionais, financiamentos, estratégias de divulgação de resultados.

De 14h00 às 18h00 - Reunião Geral do GT (Instituto de Letras, Sala 8)

Pauta:

Conclusões das reuniões por Linha de Pesquisa

Subsídios para uma política científica para a área de Letras

Preparação do XIII Encontro Nacional da ANPOLL (UNICAMP-SP, junho/98)

XIII Encontro Nacional da ANPOLL (1998) [topo da página]

Programação do GT de Literatura Comparada

·          Dia 10/06/1998

09h00: Mesa-Redonda I – Limiares críticos

Coordenação: Tânia Franco Carvalhal (UFRGS)

Participantes:

Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ)

Maria Luiza Berwanger da Silva (UFRGS)

Evelina Hoisel (UFBA)

Gustavo Krause (UERJ)

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFMS)

10h30: Mesa-Redonda II – Processos de reconstrução cultural no quadro das relações entre o local e o global

Coordenação: Eneida Maria de Souza

Acervos, bibliotecas, coleções: estratégias de imaginação histórica

Reinaldo Martiniano Marques (UFMG)

Uma concepção diferencial de identidades culturais: as articulações entre nacionalidades, etnias, gêneros, classes

Ana Rosa Ramos (UFBA)

Configurações regionais dos processos de modernização

Marcos Falchero Falleiros (UFRN)

14h30: Mesa-Redonda III – Memória e representação literária na América Latina

Coordenação: Luiz Roberto Cairo

Releituras da história e gesto escritural: a guerra de Mario Vargas Llosa

Heloísa da Costa Milton (UNESP)

Lugares críticos

Ivete Camargo Walty (UFMG)

Martín García Merou e o Visconde de Taunay: considerações sobre um diálogo latino-americano

Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)

Cânon, gender, etnicidade: processos de representação literária do Outro em literatura canônica

Maria Consuelo Cunha Campos (UERJ)

Camões nas imagens gregorianas da cidade e do amor

Maria dos Prazeres Gomes (PUC-SP)

Os diálogos brasileiros latino-americanos em torno de alguns projetos de história literária

Sílvia Maria Azevedo (UNESP)

16h00: Mesa-Redonda IV – Questões identitárias nas literaturas nas três Américas

Coordenação: Zilá Bernd (UFRGS)

Identidades compósitas: culturas híbridas

Zilá Bernd (UFRGS) e Maria Nazareth Fonseca (UFMG)

Gênero e etnia no Brasil e nos EUA

Consuelo Cunha Campos (UERJ)

Fronteiras, passagens e paisagens no espaço americano

Maria Bernadete Veloso Porto (UFRJ) e Vera Lúcia Reis (UFF)

·          Dia 11/06/1998

09h00: Reunião do GT: Avaliação e planejamento

10h30: Assembléia do GT

Encontro de Belo Horizonte (1999) [topo da página]
Realizado no período de 22 a 24 de setembro de 1999, na Faculdade de Letras da UFMG, o Encontro de Belo Horizonte do GT de Literatura Comparada da ANPOLL teve como seus principais objetivos: possibilitar o diálogo entre os pesquisadores-membros e as vertentes de trabalho de cada uma das linhas de pesquisa do GT, construindo-se um território teórico-crítico comum, capaz de ser compartilhado por todos os pesquisadores; fazer avançar a reflexão teórico da área, respondendo-se às críticas e aos desafios que atualmente se colocam aos estudos comparatistas literários e culturais; colaborar com a definição de uma política científica para a área, seja em sentido largo (Ciência Humanas) seja em sentido estrito (Letras), visando adequá-la a parâmetros e demandas contemporâneos da produção e reprodução do conhecimento e considerando as peculiaridades da realidade sócio-cultural brasileira.

Programação

·          Dia 22/09/1999

19h30: Sessão de Abertura – Literatura Comparada: perspectivas institucionais

Evelina Hoisel (Presidente da ABRALIC)

Laura Cavalcante Padilha (Presidente da ANPOLL)

Eliana Amarante de Mendonça Mendes (Diretoria da FALE-UFMG)

Reinaldo Martiniano Marques (Coordenador do GT de Literatura Comparada

A seguir: Comemoração dos 10 anos do Centro de Estudos Literários da FALE-UFMG, coquetel e lançamento de livros da Livraria da UFMG.

·          Dia 23/09/1999

De 09h30 às 12h00: Literatura Comparada: reconfigurações teóricos críticas

            Conferencista convidado: Hugo Achugar (Universidad de la República del Uruguay)

            Debatedoras:

            Eneida Maria de Souza

            Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC)

            Coordenadora: Maria do Carmo Lanna Figueiredo (PUC-Minas)

            De 14h00 às 18h00: Reunião por linha de pesquisa

            Linha 1: Limiares críticos

            Coordenadora: Tânia Franco Carvalhal (UFRGS)

            Relator: Gustavo Bernardo Krause (UERJ)

            Linha 2: Literatura e memória cultural

            Coordenadora: Rachel Esteves Lima (UFJF)

            Relatora: Ana Rosa Neve Ramos (UFBA)

            Linha 3: Memória e representação literária na América Latina

            Coordenador: Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)

            Relatora: Ivete Lara Camargos Walty (PUC-Minas)

                       

            Linha 4: Relações literárias interamericanas

            Coordenadora: Zilá Bernd (UFRGS)

            Relatora: Maria Bernadette Thereza V. Porto (UFRJ)

            Linha 5: Formação crítica da modernidade a partir da cidade: poesia, prosa, ensaio

            Coordenador: André Bueno (UFRJ)

            Relatora: Mirella Márcia L. Vieira Lima (UFBA)

·          Dia 24/09/1999

De 09h00 às 12h00: Reunião Plenária do GT

Relatos das discussões de cada linha

Debates

De 14h00 às 15h00: Visita ao Acervo de Escritores Mineiros

De 15h30 às 19h00: Reunião Plenária do GT

Pauta:

Consolidação das conclusões das reuniões por linha de pesquisa

Encaminhamento de propostas

Preparação do XV Encontro Nacional da ANPOLL

Subsídios para uma política científica para a área de Letras

Encontro Intermediário do GT (Porto Alegre, 2001)  [topo da página]
Nos dias 8, 9 e 10 de outubro de 2001, realizou-se em Porto Alegre, RS, o I Colóquio Sul de Literatura Comparada e Encontro do GT de Literatura Comparada da ANPOLL, cujo tema motivador foi "Trans/Versões Comparatistas". Fez-se presente às atividades um total de cento e onze pessoas, entre conferencistas, membros de Mesas-Redondas, apresentadores de comunicações, coordenadores de mesas e participantes ouvintes. O evento atingiu plenamente os objetivos propostos, pois propiciou a revisão e a atualização dos estudos do Comparatismo Literário e apontou os novos rumos das pesquisas no âmbito do GT, viabilizando a interlocução entre os membros das diferentes linhas de pesquisas que hoje fazem parte do mesmo. Além da apresentação das pesquisas desenvolvidas, foi feita uma avaliação do seu atual desenho e funcionamento, assim como foram pensadas estratégias para o Encontro da ANPOLL de junho de 2002. Outro objetivo atingido foi o de divulgar os projetos de Doutorado atualmente em curso no PPG/Letras- Área de Literatura Comparada, da UFRGS, na medida em que praticamente todos os doutorandos matriculados participaram de Mesas Redondas apresentando os seus projetos. Com isso, foi alcançado um outro objetivo do projeto que era o de realimentar as reflexões comparatistas em diferentes níveis, ampliando o espectro de ação da Literatura Comparada, pois participaram do Colóquio professores universitários de vários pontos do país, alunos de pós-graduação em nível de mestrado e de doutorado, bem como alunos de graduação.

Programação

·          Dia 8/10/2001
9 horas: Sessão de abertura
9h30 min: Conferência de abertura com o Prof. Dr. Noé Jitrik (UNBA) Comentadores: Profa.Dra. Tania Franco Carvalhal (UFRGS - AILC), Profa. Dra. Rita Schmidt (UFRGS)
11 horas: Intervalo
11h15min: Mesas-redondas
Nº 1: Memória e Representação Literária na América Latina - Coordenação Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)
Nº 2: Coordenação: Profa. Dra. Ivete Camargos Walty (PUC/MG) 12:00: Intervalo
14 horas: Sessões de Comunicações
15h20min: Intervalo
15h30min: Sessões de Comunicações
17 horas: Sessões de Comunicações

·          Dia 9/10/2001
9 horas: Conferência com o Prof. Dr. Eduardo Coutinho (UFRJ)
Comentadora: Profa. Dra. Léa Masina (UFRGS)
10h30min: Intervalo
11 horas: Mesa-redonda: Literatura e Memória Cultural
Coordenadoras: Profa. Dra. Eneida Maria de Souza (UFMG) e Profa. Dra. Rachel Esteves Lima (UFJF)
14 horas: A Literatura Comparada no PPG/Letras da UFRGS: Exposição e avaliação das linhas de pesquisa.
Apresentação: Profa. Dra. Patrícia L. Flores da Cunha (UFRGS)
Mesas-redondas: Doutorandos da UFRGS
Apresentação de projetos em andamento
Coordenação: Profa. Dra. Gilda Bittencourt (UFRGS) e Profa. Dra.Maria Luíza B. da Silva (UFRGS)
15h30min: Intervalo
15h45min: Sessões de Comunicações
16h30min: Sessões de Comunicações
20h30min: Jantar de Adesão

·          Dia 10/10/2001
9 horas: Mesa-redonda: Limiares Críticos
Coord. Prof. Rildo Cosson (UFPEL)
10h30min: Intervalo
11 horas: Conferência: Profa. Dra. Maria Antonieta Pereira (UFMG)
Comentador: Prof. Dr. Reinaldo M. Marques (ABRALIC)
14 - 18 horas: Reunião do GT de Literatura Comparada da ANPOLL

XVII Encontro Nacional da ANPOLL (Gramado, 2002) [topo da página]


Programação do GT de Literatura Comparada

·          Dia 26/06/2002

14h00: Abertura – Situação do GT

14h30: Apresentação das Linhas de Pesquisa do GT pelos Coordenadores:

            Rildo Cosson (UFPel)

            Rachel Esteves Lima (UCB)

            Maria Antonieta Pereira (UFMG)

16h30: Apresentação do Projeto do Centro de Documentação e Pesquisa Memória ABRALIC

            Sara Viola Rodrigues (UFRGS)

·          Dia 27/06/2002

Discussão e apresentação de trabalhos e projetos em desenvolvimento nas Linhas de Pesquisa do GT

08h30 às 10h30: Linha 1 – Limiares Críticos

Tópico A: A Representação como mediação

Gênero e representação

Rildo Cosson (UFPel)

O documentário como forma de representação

Anelise Corseuil (UFSC)

A literatura e a representação da história

Eneida Menna Barreto (UFRGS)

A representação da experiência do autoritarismo

Rosani Umbach (UFSM)

Margem de papel ou corpo despedaçado do texto

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFMS)

Fronteiras do conto como gênero e representação

Gilda Bittencourt (UFRGS)

Representações do intelectual no início do século XX

Maria Isabel Edom Pires (UnB)

10h30 às 12h00: Linha 1 – Limiares Críticos

Tópico B: Passagens entre discursos

Ficção e filosofia

Gustavo Bernardo (UERJ)

A fronteira dos gêneros e os gêneros como fronteiras

Rildo Cosson (UFPel)

O gênero como categoria retórica

Rosana C. Zanelatto Santos (UFMS)

Tópico C: A construção do discurso teórico-crítico latino-americano

Literatura Comparada no Cone Sul: Contribuições para novos paradigmas

Tânia Carvalhal (UFRGS)

Intertextualidade interna no ensaio uruguaio do século XX

Cláudia González (URU)

Revisão crítica dos estudos sobre a Paisagem com base no diálogo do crítico francês Michel Collor com o latino-americano Saul Yurkievich: o caso exemplar de Tristes trópicos, de Lévi-Strauss

Maria Luísa Berwanger (UFRGS)

Machado de Assis e as teorias do comparativismo

Eliane Ferreira (UCB)

Sintetizadora: Maria Luísa Berwanger (UFRGS)

Tópico D: Literatura Comparada e Tradução: a prática da diferença

Sara Viola Rodrigues (UFRGS)

Patrícia Lessa Flores da Cunha (UFRGS)

Neusa da Silva Matte (UFRGS)

Sintetizadora: Patrícia Flores da Cunha (UFRGS)

·          Dia 27/06/2002

14h00 às 15h30: Linha 1 – Limiares Críticos

Tópico E: Estudos literários/Criação literária/Docência

Lígia Telles (UFBA)

Evelina Hoisel (UFBA)

Antonia Herrera (UFBA)

Sintetizadora: Antonia Herrera (UFBA)

Tópico F: Novos

A narrativa ficcional de Jorge de Lima e o regionalismo de 30: Calunga e o romance utópico

José Niraldo de Farias (UFAL)

A re-presentação da Amazônia em Milton Hatoum

Patrícia I. Garcia de Souza (UNICAMP)

Representante: José Niraldo de Farias (UFAL)

16h00 às 18h00: Projeto Integrado – discussão e elaboração

                        Encontro de Abril

Linha 2: Literatura e memória cultural

Memória de experiências-limite

Ana Cristina Chiara (UERJ)

Imagens/ficções da crueldade contemporânea

Ângela Maria Dias (UFF)

Do diário em retalhos às ruínas da tradição: arquivo, memória, literatura

Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo (UERJ)

A representação do regional na obra de José Clemente Pozenato

Ilva Maria Boniatti (UCS)

Memória e periodismo cultural: o projeto “Poéticas Contemporâneas” – questões de método

Maria Lúcia Barros Camargo (UFSC)

Memória da crítica

Rachel Esteves Lima (UCB)

A paisagem cultural e a reconfiguração conceitual do entre-lugar

Renato Cordeiro Gomes (PUC-Rio)

Literatura Comparada, valores e mediações culturais

Reinaldo Martiniano Marques (UFMG)

Linha 3: Memória e representação literária na América Latina

Representação simbólica no regionalismo modernista

Helena Tornquist (UFSC)

De lixo e bricolagem

Ivete Walty (PUC-Minas)

As fronteiras da épica em tempos de diferença

Léa Masina (UFRGS)

Martín García Merou, leitor de poetas brasileiros do século XIX

Luiz Roberto Cairo (UNESP)

O corpo e o arquivo: Jorge Luis Borges e Moacyr Scliar

Lyslei de Souza Nascimento (UFMG)

Entre-lugar: as picadas do discurso latino-americano

Maria Antonieta Pereira (UFMG)

O escritor latino-americano como mediador cultural

Miriam Volpe (UFJF)

Para uma teoria da identidade

Sara Almarza (UnB)

Arquivos do exílio/no exílio, projetos de nacionalidade: leituras de “A confederação dos Tamoios”

Sílvia Azevedo (UNESP)

·          Dia 28/06/2002

08h30: Reunião Geral do GT

            Apresentação dos resultados das discussões das linhas de pesquisa

            Deliberações gerais do GT

            Aprovação do Relatório da coordenação (biênio 2000-2002) e dos novos membros do GT

10h00: Intervalo

10h30: Assembléia de eleição dos novos coordenador e vice-coordenador do GT para o biênio 2002-2004.

Encontro Intermediário do GT (Dourados, 2003) [topo da página]

Colóquio Divergências e Convergências em Literatura Comparada Hoje, realizado nos dias 15, 16 e 17 de outubro de 2003, no Campus de Dourados/UFMS. Constitui programação do X Ciclo de Literatura e do Encontro Nacional do GT de Literatura Comparada da ANPOLL – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística. Sob esse tema, o Colóquio propôs-se a discutir os vetores que concedem à Literatura Comparada, como ciência humana, o poder de relacionar o fato e o texto literários em suas variáveis dimensões epistemológicas - movidas pelo olhar atento e renovado que caracteriza o pesquisador do comparatismo literário. Hoje, os estudos acerca da problemática do literário têm-se colocado como uma das questões mais palpitantes para os cientistas da literatura, que são obrigados a rever seus pressupostos já a partir da pergunta o que é literatura?. Isso exprime o sentido de clivagem e oferece margem às reflexões sobre as convergências e as divergências que atravessam o próprio campo do comparativismo. Ao se reconhecer na Literatura Comparada um locus específico para a análise das interseções entre objetos e fenômenos culturais, compartilham-se naturezas que são, antes de tudo, compartilhadas, operando por aproximação, e nela convergindo todo um saber a respeito de literatura. Como método de trabalho, aponta também para as divergências, na medida em que se autoquestiona na prática de comparar a(s) literatura(s) comparada(s).

Programação

·          Dia 15/10/2003

18h30 – Inscrições e entrega do material

19h30 – Sessão de abertura, com a presença de autoridades da UFMS e exposição de artistas plásticos douradenses

20h00 – Conferência Cunhataí – Um romance da Guerra do Paraguai

            Escritora Maria Filomena  Bouissou Lepecki

·          Dia 16/10/2003

13h00 às 17h00 – Sessões de Comunicações Coordenadas

19h00 às 22h30 – Mesa-Redonda I

Coordenação: Paulo Sérgio Nolasco (UFMS)

Interferências poéticas

Douglas Diegues

O declínio da cidade letrada

Eneida Maria de Souza (UFMG)

Construções utópicas na narrativa brasileira contemporânea

José Niraldo de Farias (UFAL)

Por uma teoria da ficção em perspectiva crítica

Gustavo Bernardo Krause (UERJ)

Vanguardismo, postvanguardismo y modernidad em la poesia paraguaya

Miguel Angel Fernández (Universidade Nacional de Asunción)

·          Dia 17/10/2003

13h00 às 15h00 – Sessões de Comunicações Coordenadas

Sessão I: Estudos de tradução – tensões teórico-práticas

Coordenação: Eliane Fernanda Cunha Ferreira (UFMS)

Literatura Comparada e tradução cultural: processos de hermenêutica e crítica

Patrícia Lessa Flores da Cunha (UFRGS)

A evolução do conceito de equivalência nos estudos de tradução: da fidelidade à recriação

Sara Viola Rodrigues (UFRGS)

            Contradições tradutológicas: o caso Machado de Assis

            Eliane Fernanda Cunha Ferreira (UFMS)

            Um poema brasileiro: o encontro entre Brasil e Argentina

            Sílvia Maria Azevedo (UNESP-Assis)

            Nas fronteiras da ficção: a metaficção em André Gide

            Zênia de Faria (UFG)

            15h00 às 17h30 – Reunião Geral do GT de Literatura Comparada da ANPOLL

                                       Fórum de Estudantes de Pós-Graduação em Letras do Centro-Oeste

                                      Coordenação: Rildo Cosson

            19h00 às 23h00 – Mesa-Redonda II

            Coordenação: Patrícia Lessa Cunha Flores (UFRGS)

            Narrativas do quotidiano

            Ivete Walty (PUC-Minas)

            Literatura Comparada, Guimarães Rosa e tradução literária: metatextos críticos ou estudos de recepção cultural?

            Marcelo Marinho (Universidade Eötvös Loránd de Budapeste/UCDB)

            Representatividade e ficcionalidade: as crônicas de José Clemente Pozenato e o espaço regional

            Ilva Maria Boniatti (Universidade de Caxias do Sul)

            O “Novo” documentário canadense: inovação e problematização da representação

            Anelise R. Corseuil (UFSC)

XIX Encontro Nacional da ANPOLL (Maceió, 2004) [topo da página]

Programação do GT de Literatura Comparada

·          Dia 30 de junho de 2004

11h00: Sessão 01: Abertura

Situação do GT; novos membros.

Apresentação das linhas de pesquisa do GT, por representantes das três linhas, com exposição da síntese da sua evolução teórica, ou um comentário sobre o tópico específico trabalhado pela linha.

            14h00 às 18h00: Mesas-redondas

Sessão 02: Mesa-Redonda I -Limiares críticos

            Literatura Comparada e auto-referencialidade

            Maria Luíza Berwanger da Silva (UFRGS)

            Viagem ao Paraguai: Lídia Baís e Josefina Plá

            Paulo Sérgio Nolasco (UFMS)

            Construções utópicas na narrativa brasileira contemporânea

            Sara Viola (UFRGS) e José Niraldo de Farias (UFAL)

           

            Sessão 03: Mesa-Redonda II – Arquivos latino-americanos

            Rui Barbosa, um intelectual brasileiro, sob o olhar portenho de Martin García Merou

            Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)

            A composição do relato: metonímias textuais e territoriais

            Ivete Lara Camargos Walty (PUC-Minas)

            Representação e alteridade em literaturas de fronteira

            Helena Heloísa Fava Tornquist (UFSC)

            Literatura, rede e saber no Brasil contemporâneo

            Maria Antonieta Pereira

            Sessão 04: Mesa-Redonda III – Literatura e memória cultural

            A publicidade das Letras

            Rachel Esteves Lima (UFBA)

            Letras vazadas

            Ana Cristina de Rezende Chiara (UERJ)

            Representações contemporâneas da crueldade

            Ângela Maria Dias de Britto Gomes

            Regionalismo na literatura e suas reconversões

            Ilva Maria Boniatti (UCS)

           

·          Dia 01 de julho de 2004

Sessão 05: Reunião das linhas de pesquisa

·          Dia 02 de julho de 2004

Sessão 06: Reunião Administrativa

V Encontro Intermediário do GT (Salvador, 2006) [topo da página]

Sob o tema Teorias/Críticas de Literatura Comparada na América Latina, o Encontro foi realizado de 26 a 28 de abril de 2006, na Universidade Federal da Bahia.  O evento foi organizado em torno de mesas-redondas abertas ao público e de reuniões com a participação exclusiva dos membros do Grupo. A programação iniciou-se com uma homenagem ao crítico e escritor Silviano Santiago, cujo trabalho ensaístico faz parte do corpus do projeto do GT, sobretudo no que diz respeito aos estudos latino-americanistas por ele produzidos. Em seguida, foi experimentado um novo formato de apresentação de trabalhos, que foram organizados em função da memória da crítica que se deseja construir. As comunicações tiveram como objetivo a discussão de alguns conceitos operatórios que fazem parte da pesquisa do GT, a partir de textos previamente escolhidos pela organização e colocados à disposição dos interessados para a leitura, de modo a fomentar o debate.

Programação

26 de Abril, de 18:30 às 20:30 h – Sessão de Abertura

Apresentação do projeto Teorias críticas de Literatura Comparada na América Latina: Rachel Esteves Lima (UFBA)

Homenagem a Silviano Santiago: A crítica literária e o potencial do neolatino- americanismo

Coordenadora: Célia Marques Telles (UFBA)

Depoimentos:

·         Eneida Maria de Souza (UFMG)

·         Eneida Leal Cunha (UFBA)

·         Evelina Hoisel (UFBA)

27 de Abril, de 09:00 às 12:00 h

Mesa-Redonda: Literatura Comparada/Estudos Culturais: Hostilidade / Hospitalidade

Coordenadora: Antonia Torreão Herrera (UFBA)

Expositores:

·         Reinaldo Marques (UFBA)

MOREIRAS, Alberto. Condições da crítica latino-americanista. In: A exaustão da diferença. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p.11-39.

·         Ângela Maria Dias (UFF)

DE LA CAMPA, Román. America Latina y el imperio de la inmanencia. Nuevo Texto crítico, Stanford, n. 25/28, Anyo XIII-XIV, p. 35-53.

27 de Abril, de 14:00 às 16:00 h

Mesa-Redonda: Astúcias da razão mestiça

Coordenadora: Florentina da Silva Souza (UFBA)

Expositores:

·         Gustavo Bernardo Krause (UERJ)

TAYLOR, Julie, YÚDICE, George. Mestizage and the inversion of social darwinism in Spanish American fiction. In: VALDÉS, Mario J., KADIR, Djelal (Ed.). Literary cultures of Latin America. New York: Oxford University Press, 2004. V.III: Latin American Literary Cultures: Subject to History, p.310-319.

·         Maria Cândida Almeida (UFBA)

CARRIZO, Silvina. Mestiçagem. In: FIGUEIREDO, Eurídice (Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005, p.261-288.

27 de Abril, de 16:30 às 18:30 h

Reunião dos membros do GT

28 de Abril, de 09:00 às 12:00 h

Mesa-Redonda: Estratégias de devoração cultural

Coordenadora: Eneida Leal Cunha (UFBA)

Expositores:

·         Luiz Roberto Veloso Cairo (UNESP-Araraquara)

SOUZA, Eneida Maria de. O discurso crítico brasileiro. In: Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002, p.47-66.

·         Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ)

TRIGO, Abril. De la transculturación (a/en) lo transnacional. In: MORAÑA, Mabel (Ed.). Ángel Rama y los estudios latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, Universidad de Pittsburgh, 1997, p.147-171.

·         Renato Cordeiro Gomes (PUC-Rio)

SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. In: O cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p.45-63.

28 de Abril, de 14:00 às 16:00 h

Reunião dos membros do GT

28 de Abril, de16:30 às 18:30 h

Reunião Plenária do GT

Pauta:

1.       Consolidação das conclusões dos debates;

2.       Encaminhamento de propostas

3.       Preparação do XXI Encontro Nacional da ANPOLL (julho/2006)

4.       Subsídios para uma política científica para a área de Letras.

 XXI Encontro Nacional da ANPOLL (São Paulo, 2006) [topo da página]

 Programação do GT de Literatura Comparada

·          Dia 19/07/2006

16h00: Apresentação das atividades no biênio 2004-2006

     Rachel Esteves Lima – Coordenadora do GT

                 

·          Dia 20/07/2006

09h00: Apresentação e discussão dos projetos de pesquisa

Ana Cristina de Rezende Chiara (UERJ)

Ana Lúcia Machado de Oliveira (UERJ)

Ângela Maria Dias (UFF)

Édgar Cézar Nolasco (UFMS)

11h00: Apresentação e discussão dos projetos de pesquisa

Evelina de Carvalho Sá Hoisel (UFBA)

Gilda Neves da Silva Bittencourt (UFRGS)

Ilva Maria Boniatti (UCS)

Jaime Ginzburg (USP)

14h 00: Apresentação e discussão dos projetos de pesquisa

José Niraldo de Farias (UFAL)

Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)

Maria Adélia Menegazzo (UFMS)

Maria Cândida Ferreira de Almeida (UFBA)

16h00: Apresentação e discussão dos projetos de pesquisa

Míriam Lídia Volpe (UFJF)

Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFMS)

Rachel Esteves Lima (UFBA)

Rosani Úrsula Ketzer Umbach (UFSM)

·          Dia 21/07/2006

09h00: Reunião Administrativa do GT

Pauta:

Consolidação das conclusões dos debates

Encaminhamento de propostas

Escolha da nova Coordenação

2

Trabalhos Apresentados em eventos

XXI Encontro Nacional da ANPOLL (São Paulo, 2006)

V "Encontro Intermediário do GT (Salvador, 2006)

XIX Encontro Nacional da ANPOLL (Maceió, 2004)


Encontro Intermediário do GT (Dourados, 2003)

XVII Encontro Nacional da ANPOLL (Gramado, 2002)

I Colóquio Sul de Literatura Comparada e Encontro do GT (Porto Alegre, 2001)

XV Encontro Nacional da ANPOLL (Niterói, 2000)

Encontro de Belo Horizonte (1999)

XIII Encontro Nacional da ANPOLL (Campinas, 1998)

Encontro de Salvador (1997)

 

 

 

 

 

V Encontro Intermediário do GT de Literatura Comparada da Anpoll – Salvador 2006  [topo da página]

·          Ângela Maria Dias – Os Estudos Culturais e a deriva dos conceitos

·          Eduardo F. Coutinho – Leituras sobre a transculturação: a proposta de Abril Trigo

·          Eneida Leal Cunha – O intelectual astucioso

·          Eneida Maria de Souza – A crítica literária e o neolatino-americanismo

·          Evelina Hoisel – Migrações: as estratégias de atuação de um intelectual periférico

·          Gustavo Bernardo – Breve leitura do conceito de mestiçagem

·          Luiz Roberto Cairo – Eneida Maria de Souza e o discurso crítico brasileiro

·          Maria Cândida Ferreira de AlmeidaAstúcias e dilemas da mestiçagem: a “raça infeliz” como incômodo

·          Rachel Esteves Lima – Narrativas da crítica latino-americana: Esboço de genealogia dos conceitos

·          Reinaldo Marques – O pensamento crítico latino-americano e seus impasses

·          Renato Cordeiro Gomes – Os cosmopolitismos em Silviano Santiago

XVII Encontro Nacional da Anpoll - Gramado 2002  

[topo da página]

·          Anelise Reich Corseiul - O Documentário como Forma de Representação: Entre o Real e o Exótico

·          Ângela Dias - Imagens/Ficções da crueldade contemporânea

·          Eliane Ferreira - Machado de Assis e as teorias do comparatismo na América Latina

·          Eneida Menna Barreto - A Literatura como representação da História

·          Gilda Bittencourt - Fronteiras do Conto como Gênero e Representação

·          Gustavo Bernardo - A fronteira da palavra

·          Helena Tornquist - Representação simbólica no regionalismo modernista

·          Ilva Maria Boniatti - A representação do regional na obra de José Clemente Pozenato

·          Lea Masina - Mediações de um tema: A violência da voz nas literaturas de fronteira

·          Lyslei Nascimento - O corpo, a tradição e o arquivo: Jorge Luis Borges e Moacyr Scliar

·          Maria Antonieta Pereira - Entre-lugar e ex-tradição – as picadas do discurso latino-americano

·          Maria Luiza Berwanger da Silva - Paisagens poéticas compartilhadas em tristes trópicos de Claude Lévi-Strauss

·          Miriam Volpe - O papel mediador do intelectual latino-americano

·          Patrícia Flores da Cunha & Sara Viola Rodrigues - Literatura Comparada e Tradução: A Prática da Diferença

·          Paulo Nolasco - Margem de papel ou corpo despedaçado do texto

·          Rachel Esteves Lima - Memória da crítica

·          Rildo Cosson - Gênero e Representação

·          Rosani Umbach - A representação da experiência de autoritarismo

XV Encontro Nacional da Anpoll - Niterói 2000   [topo da página]

·          Ana Rosa Neves Ramos - Identidades, Cidadania e Mass Media

·          André Bueno - As formas da crise (relatos e retratos do mal-estar no capitalismo avançado)

·          Antonio Eduardo de Oliveira - Cartografias poéticas:cinema, narração e subjetividade em Caio Fernando Abreu

·          Arnaldo Rosa Vianna - Pluralização da diferença na reinvenção da cotidianidade: tradução, movência e memória na construção de identidades americanas

·          Cíntia Schwantes - Autores Pelotenses: quem fomos nós ontem e anteontem?

·          Eloína Santos - Teorias Pós-Coloniais e a Literatura Das Américas: O Refuncionamento das Formas Narrativas e a Ficção Ameríndia Contemporânea no Brasil, Estados Unidos e Canadá

·          Eneida Maria de Souza - Grafias de arquivo

·          Eneida Menna Barreto - Relação Literatura e História: uma leitura à sombra de videiras

·          Gilda Neves da Silva Bittencourt - Diálogos sobre a Teoria do Conto

·          Gustavo Bernardo - O valor do ensaio

·          Ilva Maria Boniatti - A institucionalização da Literatura Comparada na Universidade de Caxias do Sul

·          Ilza Matias de Sousa - Narrativa brasileira dos anos 70 e 80: ficção, alegoria, nação

·          Ivete Walty - Alegorias do cotidiano

·          Léa Masina - Martín Fierro na Literatura Brasileira: os rastros de um percurso

·          Lúcia Castello Branco - Nossa Senhora dos Tormentos

·          Luciana Ferrari Montemezzo - A representação do golpe militar em “A casa dos espíritos”

·          Luiz Roberto Velloso Cairo - Anotações sobre El Brasil intelectual, de Martín García Merou

·          Magdala França Vianna - Convergências e diferenças culturais nas sociedades pluriétnicas em situação pós-colonial

·          Marcos Falchero Falleiros - Ingenuidade e brasileirismo em Manuel Bandeira

·          Maria Antonieta Pereira - Narrativas do Cone Sul

·          Maria Bernadette Porto - Babel revisitada: a construção de uma poética das línguas nas Américas

·          Maria Luiza Berwanger da Silva - Poesia e alteridade: Mário de Andrade, Augusto Meyer e a paisagem das “múltiplas moradas”

·          Marli Fantini Scarpelli - Cartografias móveis: a poética de fronteiras em Guimarães Rosa

·          Paulo Sérgio Nolasco dos Santos - Lobivar Matos: Um clássico desconhecido

·          Rachel Esteves Lima - Identidades tropicais: o latino-americanismo dos anos 60

·         Rildo Cosson - O romance-reportagem depois dos anos 70

·          Rosana Cristina Zanelatto Santos - Representações da mulher em narrativas literárias e históricas

·          Rosani U. Ketzer - Representações de autoritarismo em obras da literatura contemporânea na RDA

·          Sara Viola Rodrigues - Semanálise e tradução

·          Sébastien Joachim - Desconstrução da escrita, da identidade cultural, no tempo da cybercultura

·          Sílvia Maria Azevedo - O Brasil romântico visita a Europa

·          Vera Lucia Soares - Movências Identitárias

·          Zilá Bernd - As relações literárias interamericanas

 XV Encontro Nacional da Anpoll - Niterói 2000   [topo da página]

# Ana Rosa Neves Ramos - Identidades, Cidadania e Mass Media
As relações existentes entre migrações (internas e externas), (re)invenções de Nação e reconfigurações de identidade cultural refletem as contradições e tensões que permeiam o processo de globalização. Assinalam diversos autores que o capitalismo, na sua atual configuração, apresenta uma ordem social que é atravessada pelas tecnologias de informação e de comunicação. Essa nova base tecnológica permite e acelera a consolidação do que Castells:1999 vem denominando sociedade de rede. Ele é, também, peça fundamental do processo que Appadurai:1990 chama disjunção entre as várias esferas da vida social (economia, política, socialidades, produção simbólica). Na assim chamada ordem informacional o tempo/espaço da interação face a face entrecruza-se com parâmetros e marcos simbólicos de um tempo espaço/virtual. Relações, tradições e identidades localizadas negociam com identificações, alianças e processos de legitimação construídos à distância, num complexo movimento que, ao mesmo tempo, descentra-se e des-loca, reforça e reconfigura as identidades sociais, o sentido de lugar e o sentimento de pertença.

Tendo como cenário essa relação dialética entre globalização, (re)invenção de Nação (portanto, o poder de negociação do Estado-Nação) e produções culturais diferenciadas, o presente projeto tem como objetivo analisar como se processa o questionamento identitário (individual e social), via uma região específica, e como ele se (re)configura no cenário atual

Tendo como referência a sociedade baiana, procuraremos entender essas dilemáticas através de abordagens que estimulem a visualização dos seus efeitos – produções simbólicas que veiculem a reformulação dos imaginários – entendido aqui o imaginário como o lugar de produção de sentidos e significados, inscrição incessantemente ativada e ativadora de valores(Castoriadis:1982). Nesta perspectiva tentaremos analisar as contradições e ambigüidades que permeiam tanto os embates e as (re)configurações de identidade cultural na Bahia, no que se refere à noções de cidadania, etnicidade, raça, classe e nacionalidade, quanto os processos hegemônicos e as relações de poder em relação a cultura nacional e a transnacionalização, ou seja, o trânsito dessa cultura, dos capitais, dos bens de consumo e dos bens simbólicos para outras sociedades, que vêm produzindo reconfigurações de identidades locais, face aos processos hegemônicos de identidade nacional. (Giddens:1990)

Estudar o modo como estão sendo produzidas as relações de continuidade, ruptura e hibridização entre sistemas locais e globais, tradicionais e ultramodernos do desenvolvimento cultural é, hoje, um dos maiores desafios para se pensar a identidade e a cidadania (Canclini:1995). Segundo o autor, não há apenas co-produção mas também conflitos pela coexistência de etnias e nacionalidades nos cenários de trabalho e de consumo; daí as categorias de hegemonia e resistência continuarem sendo úteis. Porém, a complexidade dos matizes dessas interações demanda também um estudo das identidades como processos de negociação, na medida em que são híbridas, dúcteis e múltiplas. Ainda segundo Canclini, as teorias de contato cultural têm estudado quase sempre os contrastes entre os grupos apenas pelo que os diferencia.  [topo da página]

Continua...

# André Bueno - As formas da crise ( Relatos e retratos do mal-estar no capitalismo avançado )
“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)

Continuo com José Saramago - português da Azinhaga, filho de camponeses pobres, tipógrafo, jornalista, militante comunista, que começa a produzir o mais importante de sua obra já beirando os cinquenta anos - e dele escolho três narrativas : uma mais antiga, situada na tradição realista, ligada ao mundo rural e camponês - Levantado do chão- e as duas mais recentes - Todos os nomes e Ensaio sobre a cegueira - dando forma crítica à cegueira e à barbárie da caverna pós-moderna na qual estamos mergulhados, em escala global. Narrativas situadas em plena crise do presente, para além do limite explorado por Cortázar. Ou seja, no centro mesmo da crise, com o horizonte histórico apequenado e muito diminuídas as chances de mudar a vida ou mudar o mundo. Cruzando a longa e a curta duração histórica, narrativas que aprofundam, pela via da forma artística, a dimensão do mal-estar e da alienação que caracterizam nossa época : uns seres anônimos, solitários, opacos, circulando por cidades que poderiam ser qualquer cidade de nossa época, isolado e disponíveis, quer para uns pequenos acasos que mexam na ordem e desordem do mundo, quer para o confinamento e a exclusão, ao modo concentracionário tão típico do século XX. Com isso, Saramago avança para além da fase em que fez revisão histórica, centrada em Portugal, e dá um mergulho na crise que é, por certo, profunda e histórica. Mudam o modo de narrar, o ponto de vista do narrador, a relação com a matéria narrada ? É assunto para pesquisa, e virá em seguida.

E chego a Sebastião Salgado - brasileiro, nascido no interior do Espírito Santo, estudante de economia, como economista exilando-se em Paris, para então tornar-se fotógrafo e, a meu ver, talvez o mais importante dos nossos artistas vivos - que entra na pesquisa com seus retratos muito elaborados, resultado de anos de pesquisa, de trabalho e de risco, reunidos nos álbuns Outras Américas, Terra, Trabalhadores, Êxodos e Retratos de crianças do Êxodo. Saindo do mundo verbal para o visual, a pesquisa encaminha outras perguntas, que dizem respeito a essa linguagem universal, registrando e dando forma às mutações da sociedade industria, sua arqueologia , seus pontos avançados, seus êxodos e deslocamentos de populações, como um campo articulado de crítica e conhecimento da realidade. São retratos de jornalista, ou arte ? São registros momentâneos e fugazes, ou dão forma a uma percepção mais funda da época ? Se forem arte mesmo, como se dá a aproximação com os modos de compor da pintura, já que os retratos lembram muitas vezes a arte clássica ? Qual é o ponto de vista do narrador nesses retratos ? De alguém que folcloriza a miséria, que dela faz alarde oportunista, glamourizando e estetizando a violência, vendendo-a como exotismo ? Mais que isso, coloca-se para a pesquisa a pergunta inevitável : é possível superar o momento afirmativo da forma artística, que possibilita a fruição estética da mais degradante e abjeta miséria?

A seu modo, os retratos de Sebastião Salgado, reconhecidos e premiados, narram uma certa experiência crítica do mal-estar no capitalismo avançado. Como contraponto, que se percebe sem maior esforço, às imagens da sociedade do espetáculo, das imagens cansadas e repetidas, eufóricas e depressivas, coladas na mitologia do progresso, do sucesso, da competição individual, do corpo bonito e sadio, dos psicofármacos como panacéia para todos os males e limites da condição humana.  [topo da página]

Continua...

# Antonio Eduardo de Oliveira - Cartografias poéticas: cinema, narração e subjetividade em Caio Fernando Abreu
Na obra do escritor brasileiro Caio Fernando Abreu (1948 – 1996) o imaginário de seus personagens se constitui através de um processo de lembranças fragmentadas composto por referências e citações literárias, musicais e cinematográficas. Estes elementos se inserem numa poética da urbe contemporânea. Meu objetivo neste trabalho é analisar o intertexto fílmico contínuo na obra de Caio Fernando Abreu. Assim fazendo, aponto para a presença de uma cidade subjetiva criada por alusões cinematográficas da narrativa. Este recurso revela um diálogo constante entre literatura e cinema. Destaque é dado para indivíduos solitários, principalmente gays expressando memórias e afetividades.

É ampla e constante a marca do cinema na obra de Caio Fernando Abreu. Ela aparece em contos de Os Dragões não Conhecem o Paraíso (1989), Morangos Mofados (1982), Estranhos Estrangeiros (1996) e no romance Onde Andará Dulce Veiga?(1990). Este último que pode se equiparar a um “film noir” tropical.

“Pela Noite”, um texto muito rico em citações de nomes de estrelas de cinema e referências coloquiais da narrativa à técnicas cinematográficas, é o texto escolhido para o argumento do meu trabalho. Esta novela foi publicada inicialmente em Triângulo das Águas (1983) e depois no volume póstumo Estranhos Estrangeiros (1996).

O enredo se desenvolve em torno do encontro casual, numa sauna masculina da metrópole, de dois amigos que vêm de uma cidade do interior, Passo de Guanxuma e que não se encontravam a anos. A partir daí a narrativa descreve o jogo de sedução entre os dois rapazes, explorando suas carências afetivas e sexuais. Neste empenho o narrador destaca a grande solidão dos dois amigos imersos no ambiente urbano. A novela dramatiza a dificuldade dos personagens de expressar o afeto de um pelo outro. Ao iniciarem um jogo mútuo de sedução eles se denominam Pérsio e Santiago. Isto demonstra a disposição deles de encenar papéis como uma forma de mascaramento até o final da narrativa quando a entrega emotiva acontece.

O desencadeamento do imaginário fílmico de Pérsio que o faz ver e ler o mundo é uma maneira encontrada de proteger-se e compensar-se contra o isolamento. É o que se percebe quando ele declara para Santiago:

Quase não vejo ninguém, quase não saio mais. Dou aquelas aulas, volto para casa. Aí fico lendo ou vou ao cinema. Vou ao cinema quase todo dia. Ou vejo uns dois filmes na televisão cada noite. Já ando vendo as coisas, as coisas todas como. Como se meus olhos fossem lentes. Dessas de cinema, um “close”, pá, vejo mais perto. Um “zoom”, pá vou afastando. (ABREU, 1983, p. 162)

Imersos num processo cinemático interior Pérsio e Santiago exibem para o leitor filmes interiores que nos falam da vida e da morte. Estes olhares de câmara cinematográfica também são compartilhados, por vezes, com o campo de visão do narrador.

É o que se percebe, por exemplo, quando Pérsio e Santiago, com a janela do carro aberta, sobem a Consolação:

Santiago pôde ver primeiro a silhueta irregular dos edifícios, algum ponto de ônibus com pessoas encolhidas, amontoadas em baixo dos marquises, batidas pela garoa fina, um OUTDOOR com dentes resplandecentes, outro com coxas morenas, volume saliente, cuecas, qualquer coisa, bares abertos, algumas putas, um travesti de saia de couro, (...) depois o início dos muros altos e brancos do cemitério, a massa sombria dos ciprestes. Seriam mesmo ciprestes? Ou pinheiros? (ABREU, 1983, p. 156).

Imagens repetidas do apartamento de Pérsio o tornam equiparável a uma sala de cinema onde se assiste ao filme da cidade. Assim quando ele e Santiago se preparam para sair pela noite são vistos “os dois estonteados numa onda nervosa de movimento, [enquanto] apagavam luzes, fechavam portas e janelas, esvaziavam cinzeiros. As luzes da cidade brilhavam através da cortina da sala” (ABREU, 1983, p. 151). O final deste trecho da narrativa evoca a imagem dos antigos cinemas que abrem suas cortinas no início da projeção do filme.

Os olhares de Pérsio e do narrador recorrem a detalhes e fragmentos típicos da urbe como ruídos de carros, reflexos de néons, visões da sarjeta transbordante de água suja dos bueiros, esgotos (ABREU, 1983, p. 157), garoa fina, para elaborar cenários e projeções de um filme repleto de subjetividades. E este método se efetua como se houvesse uma cadeia de telas de projeção. É como se uma sucessão de trechos fílmicos terminasse por compor vários curta-metragem.

Nestas telas de projeção vislumbradas da janela do apartamento de Pérsio o desejo é associado à cidade. Numa cena, ao mover-se até a janela, Santiago no escuro viu lá embaixo a cintilação dos faróis dos carros, anúncios luminosos, Minister, Melita Coca – Cola, fume, beba, compre, morra (...) nos edifícios, luzes às vezes vermelho quentes, íntimas como as das boates, vago erotismo nas silhuetas mal desenhadas nos interiores alheios,... gemidos roucos de prazer urbano. (ABREU, 1983, p. 128 – 129)

E aqui o narrador pensa no erotismo de sexualidades diversas no cenário urbano. Ele se refere a amantes que “beijavam-se talvez, acariciavam seios coxas dedos mergulhados em pelos umedecidos” (Op. cit, 1983, p. 128 – 129), mesmo quea presença do homoerotismo na narrativa seja um dos elementos mais definidores da poética do autor, esta não exclui a representação do desejo heterossexual. E esta poética do desejo também é relacionada à música, à literatura além das estrelas de narrativas fílmicas.

No conto Mel e Girassóis (ao som de Nara Leão) o jogo de sedução entre um homem e uma mulher faz o narrador de forma bastante irônica introduzir na narrativa outras possibilidades de manifestações de identidade e de sexualidade. Ao retratar o cenário do jantar dos dois namorados indecisos temos a seguinte descrição:

Como um filme meio B, até mesmo meio C, e de repente houvesse um número rápido com Carmem Miranda nas escadarias, não espantaria. Ela não se demorou urbana fiel ao preto, jogou a seda de uma blusa sobre o velho jeans meio arrebentado, e só entregou certa expectativa naquele momento, honestamente, nem ela saberia de quê – quando acrescentou um pequeno fio de pérolas, quase invisível. E jogou o cabelo comprido para o lado, num gesto rápido de mulher, tão de mulher que é desses preferidos pelos travestis. (ABREU, 1991, p. 101)

Imersos numa embriaguez cinemática Pérsio, Santiago e o narrador evocam nomes de estrelas, fornecem detalhes meticulosos delas num jogo de sensibilidades. Já Pérsio tem uma lagartixa de estimação chamada kay Kendall. Uma homenagem a atriz britânica que morreu jovem de leucemia e cuja imagem cênica evoca uma mistura curiosa do “glamour” e postura dos anos cinqüenta e um toque ecentrico das estrelas de cinema dos anos trinta.

Em determinado momento, enquanto Pérsio toma banho, Santiago ao fechar uma revista, encontra e lê um cartão postal de um antigo namorado de Pérsio. O narrador expressa a curiosidade e preocupação do protagonista que pensativo ficou olhando na capa os olhos de Luna Turner (ABREU, 1983, p. 140), o que sugere uma procura de solidariedade na imagem fotográfica ali disposta. São estes diálogos e evocações do imaginário fílmico de Pérsio e Santiago que garantem a perpetuação dos afetos a desejos da narrativa homoeróticos. O estar à margem dos valores tradicionais e sexuais impostos pela sociedade é um tema comum a vida gay e a existência de divas do cinema. E ainda reforçando a relação entre afetos, cidade, sugerindo sexualidade e erotismo, Santiago levanta-se para abrir a janela mas recua com o vento frio. Vê então o próprio rosto misturado às luzes da cidade, corado dando-lhe a aparência de um garoto surpreendido em meio a um ato obsceno (ABREU, 1983, p. 140). Ou seja, é como se a cidade pudesse oferecer uma visão panorâmica erotizada onde o predomínio do desejo e de práticas libidinosas inibem Santiago. Além disso esta cena nos traz à mente, a homofobia internalizada de Pérsio. Esta se contrapõe à proposta de Santiago de descoberta do cheiro do outro. Pérsio em sua fixação depreciativa do ânus espelha seu condicionamento à noções estereotipadas da divisão atividade/passividade (BESSA, 1997, p. 72). Seguindo a tradição subversiva da narrativa da modernidade que inclui no campo da representação material que incorpora os dissidentes sexuais (BOONE, 1998, p. 5) Caio Fernando Abreu esmiuça em detalhes o amor físico entre homens no desabafo de Pérsio que se contrapõe à atitude conciliadora com o afeto e amor físico de Santiago.

No “festival de afetos” estimulado pelos fragmentos cinemáticos, o poder visual da narrativa mapea um dos locais urbanos tradicionais de encontro das comunidades gays, a sauna. Evocada num flash back, através do olhar cinemático do narrador, enquanto Pérsio se apronta para sair pela noite com Santiago. Vemos Pérsio envolto no vapor do chuveiro morno lembrando do cenário de “machos em caça”. Semelhante a uma seqüência em câmara lenta, a visão coletiva do desejo é “fotografada” de modo fragmentado. Parece a própria representação da cidade mostrada na narrativa. Vemos então nas projeções do filme interior do protagonista homens nus dispostos feito estátuas nos bancos de azulejos, entre o vapor um músculo mais nítido, relance, coxa, braço, bunda (ABREU, 1983, p.142).

A sauna, lugar de propagação de encontros tanto anônimos quanto furtivos, da cidade é equiparada à sala de espera de um cinema, sessão anônima de Domingo (ABREU, 1983, p. 143).

Rompendo com a herança logocêntrica da modernidade, da literatura sempre se explicando a si mesma, a narrativa de Caio Fernando Abreu abarca outros campos extra literários, tornando-se receptiva à entrada de outros elementos como o intertexto fílmico aqui abordado. Além de acentuar afetos e desejos homoeróticos, a presença do mundo cinemático no texto envolve pelo menos três aspectos importantes: a projeção do biográfico, deste no literário e deles todos para a crítica. Isto aponta para os rumos de uma crítica libidinal como o faz Joseph Boone ao estudar a narrativa ficcional da sexualidade no modernismo na literatura inglesa e americana. Boone enfatiza o fato de que

It is no news that on the level of content, sexuality has played an important role in shaping the reputation and reception of modern fiction – a fact to which the supression of sexually scandalous fictions by Chopin, Lawrence, Joyce, Radcliffe Hall, Henry Miller and others bear testimony (BOONE, 1998, p. 3)

Por sua vez “Pela Noite” é um texto que oferece um enfoque mais atualizado da representação da homossexualidade na literatura brasileira contemporânea. Esta temática tem sido apenas tradicionalmente apontada, e de modo tímido pela crítica, na nossa literatura, nas obras Bom Criolo (1895) de Adolfo Caminha e O Ateneu (1888) de Raul Pompéia. Sendo importante salientar que o primeiro romance é tido no Brasil como precussor e no exterior, apesar de ter aparecido num momento em que a constituição da homossexualidade era vista como doença e crime, nos discursos jurídicos e médicos não há uma afirmação unívoca desse discurso (Lopes, 6). Isto porque mesmo sendo o romance marcado pelo naturalismo, o discurso amoroso transita da fúria erótica, apresentada por metáforas animalescas (...) a uma representação mais próxima do Romantismo expressada na devoção de Amaro por Aleixo e que conclui com o final trágico dos grandes estórias de amor (Lopes, 6). Já o romance O Ateneu escrito e publicado antes de Bom Criolo a questão da sexualidade é apresentada dentro de um sistema divisor entre fortes e fracos, “nitidamente homofóbica”.  [topo da página]

# Gustavo Bernardo - O valor do ensaio
Albert Camus comentava que os filósofos antigos refletiam bem mais do que liam. Graças à tipografia, os filósofos teriam passado a ler mais do que a refletir: antes de filosofias, teríamos comentários (em Costa Pinto, 1998, 15).

Se essa circunstância implica ganho de modéstia, implica também perda de potência. Camus desconfia que a modéstia que se ganha é antes um engodo, desresponsabilizando o pensador de, justamente, pensar com autonomia. Livros de pensadores que não se apóiam em autoridades, citações, comentários e conceitos alheios passam a não ser levados a sério. Incomodava ao autor de O homem revoltado o pensamento filosófico hegemônico se constituindo a reboque de determinado horizonte epistemológico que tornaria cada filósofo, obrigatoriamente, um historiador da filosofia, e faria de cada conceito a retomada, o desdobramento ou a negação de outras redes conceituais.

Camus procurava recuperar, tanto na sua filosofia quanto na sua ficção, a herança de Montaigne, consciente de que o processo de redação de um ensaio o aproximava do processo literário de criação de um universo ficcional, assumindo a forma ensaística como gênero limítrofe entre a literatura e a filosofia. A forma do seu pensamento, em decorrência, se queria um pensamento pela forma. A formulação socrática, “só sei que nada sei”, adquiria a entonação retoricamente interrogativa de Montaigne, que sais-je?. Camus preconiza, no seu Mito de Sísifo, caminho inverso ao platônico, advogando, para o pensamento, a carne (Camus, sd, 125):

Hoje, que o pensamento já não aspira ao universal, que a sua melhor história seria a dos seus arrependimentos, sabemos que o sistema, quando é válido, não se separa do seu autor. A própria Ética, sob um dos seus aspectos, não é mais do que uma longa e rigorosa confidência. O pensamento abstrato reúne-se enfim ao seu suporte de carne. Do mesmo modo, os jogos romanescos do corpo e das paixões se ordenam um pouco mais segundo as exigências de uma visão do mundo. Já não se contam “histórias”, cria-se o próprio universo. Os grandes romancistas são romancistas filosóficos, quer dizer, o contrário de escritores de tese. Tais Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievsky, Proust, Malraux, Kafka, para só citar alguns.

A crítica que se poderia fazer a Camus, e que de fato Sartre fez, foi a de que a desconfiança legítima em relação aos sistemas totalizantes acabava por gerar o seu oposto, afirmando o primado da ilusão – o que não deixava de significar uma nova totalização, em que o mundo visto como aparência só deixaria lugar para o pensamento voluntarista. Essa crítica permitia caracterizar o ensaísmo, em particular o francês, como moralista. A ausência de âncoras e de referências não implicaria automaticamente liberdade, mas antes novas sujeições, possivelmente tão próximas da arrogância quanto as anteriores.

A despeito da restrição de Sartre, Adorno entende que o ensaio, recusando a certeza, desconfiando da abstração e, no limite, duvidando do próprio conhecimento, deseja ressensualizar a razão, aproximando-a do universo estético. Deste modo, desafia-se o ideal da clara et distincta perceptio (em Costa Pinto, 1998, 30-7). Como queria Montaigne, não se pinta o ser: pinta-se a passagem, o movimento, o intervalo, em suma, o que escapa e, de certo modo, não há.

O filósofo Vilém Flusser, cuja obra é no momento a minha obsessão, cita muito pouca gente em seus livros, mas se refere várias vezes a Albert Camus, em especial à sua teoria do absurdo – talvez porque ambos tenham evitado soberanamente notas de rodapé e mesmo referências bibliográficas, pondo-as na conta de um ritual acadêmico que, a pretexto de honestidade intelectual, produzia uma retórica da sujeição, sujeitando simultaneamente autor e leitor ao rodapé do pensamento. Apenas no seu primeiro livro, Língua e realidade, Flusser elenca os livros que informaram o seu trabalho, sem entretanto preocupar-se em marcar escrupulosamente as páginas consultadas. A partir do seu segundo livro, ele não se preocupa mais com isso, referindo-se aos autores que teria lido às vezes e en passant, pressupondo que interessasse a seu leitor as idéias, e não o histórico impossível de cada idéia.

Inspirava-o, muito provavelmente, também Wittgenstein, que no Tratactus se abstém de julgar o quanto os seus esforços coincidiriam com os de outros filósofos, razão pela qual não indica fontes, se lhe é “indiferente que alguém mais já tenha, antes de mim, pensado o que pensei” (Wittgenstein, 1994, 131). A opção pelo ensaio ou, mais radicalmente, pelo que chamou de “ficção filosófica”, justificava e dava coerência à ausência de bibliografias e de notas ao pé das folhas, conduzindo o leitor a uma leitura muito mais fluente do que o usual. Essa leitura se queria, assumidamente, encantadora e encantatória.

Como fica a fidelidade ao texto, ao autor estudado? Fica, sem dúvida, perigosamente relativizada. No artigo “Breve relato de um encontro em Platão”, publicado na Revista do Instituto Brasileiro de filosofia, Flusser comenta à sua maneira uma passagem dos Diálogos:

Sócrates acaba de contar a Fedro uma história egípcia sobre a descoberta da escrita. E Fedro responde: Tens um jeito, Sócrates, de inventar com facilidade estórias egípcias, ou de não importa que outra terra. Sócrates: Havia uma tradição no templo de Dodona de que as primeiras profecias foram articuladas por carvalhos. Os primitivos, tão diferentes no seu subdesenvolvimento mental do academicismo atual, eram de opinião que o que importa é ouvir a verdade, venha ela de onde quiser, e que seja de carvalhos ou rochas. Tu, no entanto, pareces interessado não na verdade de uma proposição, mas na fonte da qual surgiu e no contexto no qual se deu.

O texto dispensa comentários na sua simplicidade cristalina. Fedro critica Sócrates por sua irresponsabilidade intelectual em não manter fidelidade a fontes e em cometer inautenticidades históricas. Sócrates responde ironicamente, mostrando que o interesse por explicações diacrônicas (historicistas) encobre o fenômeno a ser explicado. Sócrates põe a nu, na sua resposta, a atitude de Fedro como tentativa de relegar a discussão do mérito da questão às calendas gregas. Mostra, com efeito, que explicações históricas têm a virtude de desviarem a atenção do assunto, de serem um explaining away, uma desconversa. Que assumem ares de preciosismo acadêmico para evitar o confronto existencial com o fenômeno a ser considerado.

O filósofo assume, entretanto, com honestidade, a sua “desonestidade”:

Admito de bom grado que nesta reflexão husserlizei Platão, talvez demasiadamente. Mas não importa se inventei o meu Fedro, ou se relatei um Fedro socrático, platônico, ou um Fedro de outro contexto. Importa, isto sim, se o que eu digo (ou o que Sócrates, ou Platão, ou Husserl dizem) é ou não é verdade. É neste sentido que a leitura dos Diálogos provoca sempre novos enfoques sobre a nossa situação e os nossos problemas. E é neste sentido que não se pode falar em “história da filosofia” como processo evolutivo.

Importa menos a fidelidade ou a infidelidade ao pensamento alheio do que a verdade e a autenticidade do pensamento que se assina e que se assume. Esta concepção nos motiva a aplaudirmos a sua coragem, mas igualmente provoca uma outra preocupação, ao levantar as âncoras da Academia que permitiriam uma avaliação mais confortável. O valor deste pensamento desancorado deve ser procurado nos seus próprios critérios, o que, todavia, facilita que ele nos seduza nos dois sentidos da sedução: apaixonar e enganar.

Criticar a Academia é relativamente fácil; o discurso acadêmico tem muitos buracos, tantos mais quanto mais finge que não os tem. Mas criticar a Academia já se tornou um outro conjunto de clichês esclerosados. O grande desafio do ensaio não se encontra no combate contra os tratados, até porque os ensaístas precisam ler, e lêem, os tratados. O grande desafio do ensaio é então semelhante ao desafio da ficção, a saber: disfarçar, pelo humor e, principalmente, pela ironia, o je, de tal modo que ele possa se tornar, verdadeiramente, un autre, na conhecida expressão de Rimbaud; de tal modo que se possa dar, verdadeiramente, a perspectivização do conhecimento.

Pensando na perspectiva do professor, o ensaio como solução didática e como opção de investigação discente se mostra igualmente problemático. A exigência do rigor acadêmico acompanha tanto o tratado quanto o ensaio, mas é bem mais difícil identificá-lo, persegui-lo e avaliá-lo nesse último.

Em conseqüência, a opção pelo ensaio, no lugar da monografia, versão reduzida do tratado, facilita a geração de trabalhos confusos que se imaginam criativos, ou de trabalhos arrogantes que se imaginam pessoais. Em conseqüência, há quem defenda que a universidade deveria exigir dos alunos tão-somente monografias e tratados rigorosos porque, da mesma forma que “samba não se aprende na escola”, a prática literária stricto sensu e a prática do ensaio não se aprenderiam na Academia, envolvendo a construção pessoal e intransferível de um estilo.

O argumento é bastante pertinente, mas colide com o fato de os alunos lerem cada vez mais ensaios, e não tratados, aumentando a dificuldade de levá-los a escrever monografias de modo autêntico, e não burocrático. Os clássicos e alentados tratados de teoria da literatura ocupam as estantes das obras de referência, mas saem de lá cada vez menos. Os grandes scholars mostram-se, esses sim, de leitura obrigatória – mas com todo o peso negativo que a determinação “obrigatória” carrega: são aqueles autores que “temos de ler”, sem que necessariamente gostemos de os ler. Em contrapartida, se gostamos de ler os ensaístas de melhor estilo, aqueles que escrevem tão bem quanto os escritores de ficção, sua leitura parece sempre estimulante mas, algumas vezes, não faculta sínteses fecundas, deixando o leitor preso no travo da dúvida estetizante – passo seguro para o ceticismo estéril.

Em artigo publicado n’O Estado de São Paulo de 19 de agosto de 1967, Vilém Flusser já opunha o ensaio ao tratado, com a seguinte pergunta: “devo formular meus pensamentos em estilo acadêmico (isto é, despersonalizado), ou devo recorrer a um estilo vivo (isto é, meu)?” A pergunta claramente capciosa opõe a suposta vida do ensaio à morte implícita contida no tratado. Para ele, o estilo acadêmico reúne honestidade intelectual com desonestidade existencial, “já que quem a ele recorre empenha o intelecto e tira o corpo”: evita o uso da primeira pessoa do singular, substituindo-a pela bombástica primeira pessoa do plural ou pela indeterminação do “se”, que não compromete.

Flusser reconhece, no estilo acadêmico, a beleza do rigor, mas afirma que esse estilo é uma pose: ninguém pensa academicamente, faz de conta que assim pensa. Escolher a forma do tratado implica pensar o assunto e informar o que se pensou para os outros, tendo todo o cuidado de informar também, ou primeiro, o que outrem teria pensado a respeito. Escolher a forma do ensaio implica viver e dialogar a respeito com os outros, tendo todo o cuidado de provocar esse diálogo. No tratado o assunto interessa, enquanto que, no ensaio, “intersou e intersomos no assunto”. A decisão pelo tratado seria desexistencializante, como decisão em prol do “se”, do público, do objetivo – logo, a decisão pelo ensaio “é aquela que deve ser contemplada”.

O ensaio não resolve nem explica o seu assunto, como sempre deseja fazer o tratado, porque antes transforma o seu assunto em enigma: implica-se no assunto e nele implica os seus leitores. Entretanto, ainda que a argumentação de Flusser penda inteiramente para o lado do ensaio, o filósofo não joga fora o tratado. Reconhecendo que nas universidades predomine o academicismo como reação provável à tradição ensaística do pensamento brasileiro, entende que as universidades, como reza o seu nome, não devem ser unilaterais, construindo lugares geométricos “nos quais o desprezo do academicismo pelo ensaísmo e o nojo do ensaísmo pelo academicismo se superem mutuamente”.

Adolfo Bioy Casares também considera o ensaio gênero maior e por isso mesmo a exigir maior responsabilidade; afirma que a gratuidade e a informalidade fazem do ensaio opção de escritores maduros, e não, como se poderia pensar à primeira vista, de jovens e voluntariosos escribas: “com digressões, com trivialidades ocasionais e caprichos, somente um mestre forjará a obra de arte” (em Barbosa, 1999, 35). Somente um mestre pode escrever um texto que requeira do leitor equivalentes ensaios de leitura, isto é, leituras e releituras vagarosas e vagabundas, como teria desejado Montaigne. Sem mestria, a opção pelo ensaio pode ser tão arrogante quanto a opção do tratado pelo esgotamento do assunto. O ensaio nesse caso menos explora hipóteses e abre novas perspectivas do que serve a exibições narcisistas. Quando isso acontece, deixa de ser um ensaio do pensamento e passa a ser, tão-somente, uma (má) performance – outra pose, portanto.

É suposição básica desse pequeno artigo que se devem enfrentar os perigos do ensaio para superá-los e assim realizar um pensamento que não se cristalize e provoque outros – sempre tendo em mente que essa opção não é de modo algum a mais fácil.  [topo da página]

REFERÊNCIAS:
BARBOSA, João Alexandre. Entrelivros. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução de Urbano Tavares Rodrigues & Ana de Freitas. Lisboa: Livros do Brasil, sd.
COSTA PINTO, Manuel da. Albert Camus: um elogio do ensaio. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo: EdUSP, 1998.
______. Língua e realidade. São Paulo: Herder, 1963.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratactus logico-philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: EdUSP, 1994.

# Ilva Maria Boniatti - A institucionalização da Literatura Comparada na Universidade de Caxias do Sul
A pesquisa intitulada “Literatura Comparada no Brasil: representações institucionais”, que venho desenvolvendo na Universidade de Caxias do Sul, fundamenta as reflexões que trago a este encontro.

Presentemente, venho estudando a questão da institucionalização literária para relacioná-la com o objeto da pesquisa. Para tanto, parto de algumas colocações de Jacques Dubois a respeito da institucionalização da literatura, dentre as quais a distinção que este autor faz entre a questão social e a ideológica. O autor considera os textos literários como criações artísticas e a literatura como instituição. Embora os primeiros sejam a manifestação desta, com elas não se confundem, porquanto a literatura propõe escolhas que definem a trajetória de cada escritor.

Embora tangenciando os estudos de Sociologia, escolho orientar minhas investigações por algumas sugestões conceituais de Dubois porque considero a literatura comparada como um campo aberto ao investigador, uma vez que prevê a interdisciplinariedade como um de seus conceitos-chave.

Assim, retomando a questão do aporte comparatista e de sua importância numa universidade como a que pertenço, situada numa região brasileira de múltiplas culturas, cumpre lembrar, com Dubois, que l´analyse d`institution fai découvir qu´il n`y a pas la Littérature mais des pratiques spéciales, singulières, opérant à la fois sur le langage et sur l´imaginaire et dont l´unité ne se réalise quá certains niveaux de foncionnement et d´insertion dans la structure sociale. (DUBOIS, 1978, 11).

Essas práticas especiais e singulares são o objeto de minha investigação, uma vez que todo o texto refere uma circunstância, tradição ou norma. Essa tradição, do ponto de vista fático, inicia com a criação da ABRALIC. Cabe recuperar aqui o percurso histórico do Comparatismo no Brasil, uma vez que sua institucionalização legitima uma prática que, cada vez mais, mostra-se adequada à investigação das diferenças culturais.

Tem-se notícia que, em 1984, um grupo de professores já havia projetado a ABRALIC, em reunião de coordenadores de Pós-Graduação na CAPES - MEC. Em agosto de 1985, em Paris, realizou-se o XI Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, na Universidade de Sorbonne, por onde circulavam eminentes comparatistas, que constituem a própria história a Literatura Comparada.

Em agosto de 1985, na Place de la Sorbonne, elegeu-se Antonio Candido para o Comitê Executivo da AILC, vindo a ser o primeiro latino-americano a integrá-lo. Os brasileiros presentes neste Congresso, Eduardo Coutinho, Idelette Muzart Fonseca dos Santos, Neide de Faria, Tânia Franco Carvalhal e Antonio Manuel dos Santos Silva, decidiram fundar a Associação Brasileira de Literatura Comparada, que teria por sede a cidade de Brasília. Ao chegar ao Brasil, no entanto, a realização do I Seminário de Literatura Latino-Americana define o local em que será, primeiramente, sediada a Associação. Esta concretiza-se, pois, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, sendo sua primeira presidente a professora Tania Franco Carvalhal, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Surge assim a Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) em 9 de setembro de 1986, no âmbito do 1º Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada, realizado de 8 a 10 de setembro na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com a participação de comparatistas europeus e estudiosos latino-americanos.

Uma vez concretizada a sua existência, a ABRALIC passa a definir seus compromissos para com a literatura nacional e internacional, promovendo congressos bianuais, cuja temática será definida dentre as questões institucionalizadas para os estudos comparatistas. Sendo a ABRALIC uma associação de natureza acadêmica não pode deixar de assegurar o papel da Literatura Comparada na pesquisa universitária e no ensino superior.

Assim, conforme registra Neide de Faria nos Anais do I Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada (1986,p.97) a ABRALIC comprometia-se implicitamente com os estudos da Literatura Brasileira e com as relações desta com as outras literaturas. Nesse sentido, configuram-se no âmbito da ABRALIC as seguintes relações:

- com as literaturas de sua área geográfica natural - a América Latina;

- com as literaturas-chave da tradição ocidental européia, às quais o Brasil está histórica e umbilicalmente ligado;

- com as literaturas americanas em geral, com as quais divide uma série de problemas comuns de literaturas de países do "novo mundo" de colonização européia;

- com as literaturas emergentes, a africana principalmente, por razões óbvias;

- com literaturas mais consolidadas de países diversos, de línguas menos conhecidas, com as quais tem muita reflexão a compartilhar, para repensar sua condição de literatura "menor", "marginalizada", "periférica", "dependente";

- com todas as literaturas.

Neide de Faria faz, de imediato, uma advertência sob o rótulo de Literatura Comparada no Brasil:

“ (...) que certamente poderá ser considerada polêmica por alguns ou por muitos – com relação a um certo posicionamento teórico extremista, entre os pólos nacionalismo x cosmopolitismo, que poderia levar os trabalhos da Associação para os caminhos radicais do chauvinismo provinciano, do ufanismo nacionalista, ou do xenofobismo, caminhos pobres ou pretensiosos, estéreis e vazios” . (1986, p. 98)

Segundo Sandra Nitrini (1997:283), os congressos bienais da ABRALIC apresentam-se até o presente com uma dupla face: de um lado, estudos literários; de outro, e em menor extensão, estudos comparativos sistematizados e devidamente fundamentados."

Dando prosseguimento às reflexões sobre o conceito de Literatura Comparada e o complexo do "colonizado cultural", Neide de Faria repensa institucionalmente a literatura brasileira que, até então, consagrava o constructo teórico de "literatura nacional" , examinando suas relações e seus diálogos entre culturas. Seu aporte enfatiza as noções de contraste e diferença, além de dar continuidade às categorias de semelhança cultural.

Os estudos literários que se contaminam pelas idéias de globalização, democratização e contextualização, nos anos 80 e 90, não deixam de ser uma proposta de renovação em consonância com o contexto econômico, político, cultural e global contemporâneo. Isso porque os Cultural Studies invadem a área de estudos tradicionalmente reservados à literatura, obrigando os comparatistas a repensar os seus objetivos e métodos.

Assim, rastreando o conceito de Literatura Comparada referido pelos críticos brasileiros e caminhando, desde 1986, impõe-se examinar a designação de Literatura Comparada que Tânia Carvalhal define "como uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas (1986:5)”. Nessa mesma perspectiva, partindo-se das comunicações apresentadas nos congressos da ABRALIC, Neide de Faria propõe repensar a literatura brasileira em suas relações de "diálogo", "consenso" ou "confronto" com as literaturas do mundo todo; ou seja, relacionando esta noção com a instituição literária, tem-se que essa rede de instâncias e mecanismos de reprodução que a constitui define um sistema. Este, no caso da literatura comparada, tem a ver com sua institucionalização a partir de associações e grupos de pesquisa.

Na seqüência entre os vários estudos comparatistas, apresentados na ABRALIC, destacam-se a contribuição de Eduardo Coutinho (1996:25). Ele observa que a Literatura Comparada, como disciplina acadêmica, registra "a passagem de um discurso coeso e unânime, com forte propensão universalizante, para outro plural e descentrado, situado historicamente, e consciente das diferenças que identificam cada corpus literário envolvido no processo da comparação.”

A professora e ensaísta Eneida Maria de Souza (1994:20) amplia a relação para o entendimento do comércio interdisciplinar, igualmente espontâneo e informal, que orientava as pesquisas realizadas no interior das Ciências Humanas. Reforça ainda a ensaísta que o apoio instrumental teórico é mais sistematizado, apagando-se a separação das áreas, a divisão de domínios, a criação de fronteiras e portas disciplinares. Assim, na ampliação deste espaço, retoma-se a interdisciplinaridade. Relacionando com a pesquisa que desenvolvo, isso leva a constatar que a proximidade interdisciplinar, por exemplo, entre História e Sociologia, fornece subsídios importantes para o estudo da institucionalização do comparatismo e seu influxo na definição de cultura.

Como se pode ler em diversos ensaios, a voz de Eneida de Souza indica a abordagem intercultural revitalizada pelos comparatistas diante da possibilidade de repensar as origens e modelos.

Nos congressos mais recentes, cujos resultados são publicados nos Anais da ABRALIC e em revistas especializadas, pode-se inferir que a perspectiva pós-modernista tende a ser dominante na década de 1990.

Os efeitos da globalização, democratização e contextualização, manifestados nas diferentes posturas dos comparatistas brasileiros, constituem um marco na história da institucionalização da Literatura Comparada. A abertura conquistada pela dissolução das fronteiras não se limita, pois, ao limite dos textos: a perspectiva comparatista amplia-se e transforma as instituições em fontes de produção do conhecimento e em local de trocas substantivas.

Apesar de os estudos literários modernos terem-se voltado para a valorização sistemática do caráter intrínseco e imanente da obra literária, os estudos contemporâneos objetivam a ampliação desses limites. A inclusão do contexto, construído nas dobras dos textos já consagrados, permitem uma leitura capaz de preservar e tornar acessível o leque de acervos dos escritores e críticos literários.

Nesse sentido, a relação entre o conceito de Literatura Comparada e os estudos literários concretizaram-se pelo desbravamento da Literatura Comparada, desde o século XIX, quando a “migração de um elemento literário de um campo literário a outro, atravessando as fronteiras” (Carvalhal, 1991:9) passou a ser considerado como um dado importante para avaliar as trocas culturais. Hoje, para compreender as alterações por que passa a Literatura Comparada no século XX, é necessário levar em conta a composição das diferentes disciplinas que compreendem o domínio das Ciências Humanas. A questão da interdisciplinaridade, pois, deve ser considerada como a responsável pela diluição dos limites metodológicos, contribuindo para o alargamento das fronteiras e para a compreensão dos fenômenos culturais.

O que se percebe, pois, nos estudos literários contemporâneos, é exatamente o sentido de investigação, de revisão e de questionamento não só dos elementos tradicionalmente visíveis, como o literário, o artístico, mas sobretudo dos elementos excluídos pelas leituras tradicionais. Os estudos literários voltam-se, portanto, para amparar esses elementos no campo da ciência cultural e social, redefinindo o valor do contexto e ampliando sua leitura pelo eixo interdisciplinar.

A relação entre o conceito de Literatura Comparada e os estudos literários atuais constitui uma maneira específica de dialogar entre os textos literários, não visualizando-os como sistemas fechados em si mesmos, mas interligando-os a outros contextos de significação.

Por força natural de expansão e ousadia se a literatura comparada podeatuar entre várias áreas, apropriando-se de diversos métodos, próprios aos objetos que ela coloca em relação (JOBIM, 1994, 75), a força desta interdisciplinaridade da literatura comparada e a teoria literária, ocorre a sua institucionalização.

Sabe-se que a Literatura Comparada colabora para o entendimento indispensável de integração cultural. A importância da implantação dos estudos comparatistas, em cada país, e, em especial nas Universidades, sua institucionalização como disciplina acadêmica, os textos se efetivam como leitura do passado, estimulando a reflexão sobre as fronteiras dos campos teóricos, literários. Referenciar os esforços dos fundadores da Literatura Comparada no Rio Grande do Sul, não é demais citar as palavras de Tânia Carvalhal (1997:9) quando diz que “reconhecer que a literatura comparada é hoje plural; que assume formas distintas, estreitamente relacionadas não apenas com os conceitos teóricos que validam as metodologias adotadas mas também com os locais onde é praticada. E é precisamente a diversidade das práticas que permite converter seu conjunto em objeto de comparação, pois não se pode comparar o que é totalmente idêntico.” Cabe ressaltar a necessidade de estudos comparatistas na Universidade de Caxias do Sul que, pelo grau de migração e emigração dos estudos culturais da serra, ensejam a interdisciplinaridade.

Ignorar os fundamentos históricos e literários dessas migrações é descomprometer-se com o social e o cultural que a Literatura Comparada poderá desvelar.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
CARVALHAL, Tania Franco. Série Princípios: Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986.
CARVALHAL. Tania Franco. Literatura Comparada: a estratégia interdisciplinar. Revista de literatura comparada, 1: 9 – 21(1991). ABRALIC.
CARVALHAL, Tania Franco. (org.). Literatura Comparada no Mundo: questões e métodos. Porto Alegre: L&PM/VITAE/AILC, 1997.
DUBOIS, Jacques. L´institution de la littérature: Introduction a une sociologie. Brussels: Labor, 1978.
GRASSIN, Jean-Marie. Littératures émergentes. Bern: Lang. 1996.
GRAWUNDER, Maria Zenilda. Instituição literária:análise da legitimação da obra de Dyonelio Machado. Porto Alegre: EDIPUCRS/IEL, 1997.
JOBIM, José Luis. A crítica da teoria: uma análise institucional. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada. São Paulo: ABRALIC, maio, 1994, v. 2. p. 73.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP, 1997.
SOUZA, Eneida Maria de. Literatura Comparada: o espaço nômade do Saber. RevistaBrasileira de Literatura Comparada. São Paulo, v. 2, p. 19 – 24, maio 1994.
I SEMINÁRIO LATINO – AMERICANO DE LITERATURA COMPARADA, 1986, Porto Alegre. Anais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 97, 1986. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Filosofia. Instituto de Letras. ORGANON/ UFRGS, v.1, n. 1, Porto Alegre: 1996. 
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# Ilza Matias de Sousa - Narrativa brasileira dos anos 70 e 80: ficção, alegoria, nação
Esta pesquisa impõe-se e justifica-se no âmbito de uma narratologia literária brasileira. Interessa-nos apreender e estabelecer o horizonte de uma “nova narração” em textos produzidos, no Brasil, entre as décadas de 70 e 80. Essa “nova narração” se prende à (des)construção da nação como problemática do ato narrativo. O que isso provoca, em face de uma literatura canônica e do discurso colonial fundador, pode configurar-se em operações autorais, textuais e narrativas cujos efeitos comporiam uma “narrática” da nação. Compreendemos que a narração age sobre aquilo próprio que narra, entrelaça-se nas tramas simbólicas, nas economias imaginárias, e mostra um sujeito movente na busca dos vínculos de pertinência no mundo e na elaboração dos processos identitários e das diferenças culturais inscritos nas referências simbólicas da nação, país, família. Sabemos que esses aspectos representam verdadeiros dilemas na cultura e na sociedade contemporânea local e global. As pesquisas em literatura comparada demonstram a importância dessas discussões que passam a gravitar em torno da ficção e da narração literária, tomada esta como um outro modo de trabalhar a razão narrativa – que não a História – de projetos de escrever a nação para além de instinto de nacionalidade.

Este trabalho quer juntar-se a essas reflexões que ocupam o espaço acadêmico hoje, para interpelar tal razão narrativa, e guiada pelos “perplexos” das mencionadas décadas de 70 e 80 – Sérgio Sant’Anna, Osman Lins, João Ubaldo Ribeiro, Silviano Santiago, Clarice Lispector, Lya Luft (e outros autores a pesquisar) – seguir rumo a uma narrática da nação na literatura brasileira contemporânea, reconhecendo o desdobramento estilhaçado dos fragmentos, expondo um espaço crítico, superposto, embaralhado, uma narração ativa e faces narráticas que fazem das poéticas mais do que categorias convencionais e códigos fixados academicamente.

A narrativa brasileira produzida nas décadas de 70 e 80, com o estrangulamento das formas democráticas, pela ditadura militar, então instalada, parece-nos o cenário favorável e fecundo para se reinvestir na discussão da identidade nacional, na construção de significados de nacionalidade e na crise interpretativa que se sucede nos palcos e bastidores sócio-políticos e culturais do país. Crise que o contexto da globalização acirra e que se deriva da chamada falência das grandes narrativas de finalidades universalistas.

A interpretação do mundo homogênea e totalizadora não consegue encobrir os conflitos, a fluidez dos processos de identidade cultural e nacionalidade, que atravessam as simbologias, as construções de mitos, cujos sentidos são interpretados pela própria nação, pela língua e pela variação de falares. Trata-se, nesse aspecto, da necessidade de ser desconstituir o culto mesmo da nação. Indagá-la, colocando-se numa perspectiva em que os conceitos de modernismo, moderno, modernidade e pós-modernidade pós-moderno, pós-modernidade interagem, vinculam-se intimamente, dado que as profundas assimetrias na instauração dos projetos desses primeiros permitem assegurar que há expressões e feições que configuram modernidades tardias no Brasil ( Cf. SOUZA, Eneida Maria de. (org. 1998).

Isso significa introduzir o reinvestimento do discurso da nação numa concepção que supõe tempos diversos e simultâneos e espaços sociais liminares. Estou acompanhando-me das reflexões desenvolvidas por Bhabha (1998: 198 a 238) a respeito da disseminação, criando ele no próprio termo sua constituição alegórica (letras maiúsculas finais), como um ato performativo de narrar a nação, interpelando-se o conceito pedagógico que a institucionaliza, sendo nesta instância, uma orientação temporal do espaço, uma organização temporal da identidade que busca reconstruir uma contínua descontinuidade.

O “corpus” analisado constante de 10 (dez) livros de autores de autores brasileiros, deve fazer aparecer o não-hegemônico[1]. Dessa maneira, reflete situações e problemas de margens, considerando que a liminaridade é a condição emergencial daquilo que está encoberto nas narrativas (as grandes narrativas/ centralistas redentoras), que procuram construir a uniformidade, o caráter “central” da Nação.

As narrativas da nação e da identidade nacional em foco levam-nos a deparar com questionamentos apresentados por HOBSBAWM (1990): a nação é uma imagem fictícia de nossa era? Ou uma “criatura fictícia“? ALBROW (1999: 21). Numa leitura diacrônica, a nação é um fenômeno moderno, resposta do etnocentrismo comprometido com um único conhecimento da realidade social. Construção, realidade , ou ficção, a nação é contada pela narrativa histórica como uma ancoragem referencial. Tal registro aponta e alerta para os múltiplos usos da linguagem da nacionalidade e da representação da nação (ALBROW, 1999 : 27) – do discurso mais “neutro”, objetivo, aos discursos de subjetividade, biografias e autobiografias, por exemplo. Entidade simbólica complexa, a nação proporciona-nos inclusive um “modo de associar discursos especiais e pequenas narrativas em algo maior“ ( ALBROW, ib : 36 ).

Tomo como ensejo essa afirmação para passar ao questionamento de que os textos da literatura brasileira das décadas de 70 e 80 – marco de referência deste projeto – devam ser lidos como alegorias nacionais. Em outras palavras, que a nação seja origem da narratividade, diante dos fenômenos de dispersão e desterritorialização culturais contemporâneos.

Flora Süssekind em seu livro Tal Brasil, qual romance estabelece essa associação na esteira da teoria da alegoria que é concebida por Jameson (1995), fazendo disso um traço de menos valia na análise do que ela denomina por “romance-reportagem“, ou “romance-alegórico” na produção dessas décadas no Brasil. Efetivamente, nesse período a nação tornou-se uma representação fendida. Por entre fendas, apareciam locais “críticos” de cultura nacional: o do imigrante, o dos velhos, o dos negros, o da mulher, entre outros. E identidades parciais e plurais penetram, então, na “casa da arte e da ficção“ ( Bhabha ).

O estudo de Flora Süssekind apresenta o romance-alegórico implicado na repetição da estética realista/naturalista do século XIX, como um atraso, em face a práticas literárias nacionais (internacionais) que se afirmavam pelo jogo hedonístico do significante, dissociando, portanto, formações ideológicas, de formas narrativas.

O que aquela autora não percebeu, a meu ver, é que o realismo/naturalismo, se presente, opera a inclusão (como um dispositivo) dos textos ficcionais de 70 e 80 na dimensão vernacular, na dimensão “indigenous”[2] da narrativa brasileira. Está-se diante de construções vernaculares, i. é. , construções “que pertencem a um tipo que é comum numa dada área em uma dada época“ (Ef. RABINOVICH, 1997:6). A operação confere um efeito “naturalístico” que evidencia o confronto, ou a mistura dessa dimensão indigenous, original, em direção às versões da nação, às transformações temporais e espaciais da narrativa da nação, à reciclagem daquilo que parece a sua natureza realista/naturalista.

Intelectuais, artistas, poetas, escritores enfrentam uma situação catastrófica, de censura e cortes à “livre expressão”. Debruçam-se, falando benjaminianamente, sobre as ruínas da história. O tempo fecha. A pós- modernidade brasileira vive o seu luto pela perda da pátria amada, idolatrada, berço esplêndido, imagem adorável, mas pura abstração.

A produção ficcional de 70 e 80 experimenta o desânimo, a errância, o “exílio”. Inscreve-se como algo da ordem da melancolia na sua edição pós-moderna. Perdida a letra da nação, a ficção brasileira dos anos 70 e 80 torna-se pós-significante. A narrativa vai-se desenrolar sem dar margem a que o significante da falta inscreva-se nos “corpus escritos”. Disso surge o investimento alegórico. Aí, faço a inserção da narrativa desse momento histórico – 70/80 – na alegoria, entendida como categoria fundamental da cultura contemporânea (Walter Benjamin, 1984).

Desse modo, o narrador ficcional das décadas de 70 e 80 comporta-se como um alegorista. Busca criar novos significados mediante um ato simultaneamente descontextualizador e recontextualizador. O procedimento alegórico instaura-se a partir do choque sócio-político, cultural e do que isso afeta na produção das subjetividades.

Alegorizar a nação é uma saída criadora. Abre vias de acesso à “maturidade” do narrador que, por amor, e na falta de utopias, narrativas salvacionistas, introjeta o conceito de nação para compreendê-lo. Volta-se para o que esteve sempre às margens, para o malogrado, o sofredor, o oprimido, o fracassado. A representação alegórica da nação procede, assim, de afinidades eletivas. O narrador elege a alegoria como forma de dizer o outro. Alegorizar a nação é a forma que o narrador encontra de “salvar” a coisa amada, reconstruí-la “com amor na própria língua”. Das ruínas do discurso da nação emerge o que estava em jogo no projeto coletivo dos modernistas: o ser nacional por abstração (SOUZA, 1999:129–142 ).

Narrar a nação passa a ser narrar o seu caráter efêmero, transitório. Narrar a nação significará narrar um enigma de múltiplas faces. O alegórico vive nas abstrações. Será o vivente narrático a disseMINAR sentidos de nação. O narrador brasileiro cumpre o seu destino de tra(duz)ir a nação, fiel ao seu mister de tecer sentidos.

A alegoria coloca em discurso políticas da escrita. Posições de leitor, autor, atos de intervenção crítica na constituição estética da comunidade (RANCIÈRE:1995). Suas experiências de tempo e espaço. Uma narrativa pensada a partir do propósito fundante da razão colonial. A alegoria dá margem a se desvendar as histórias/estórias ocultadas pelo esquecimento. A narrativa das décadas de 70/80 procura unir-se numa comunidade de “destino”, enlaçada pelo fio do sentimento da fraqueza dos oprimidos. Na pluralidade das versões, das desconstruções e construções, nas diversas escritas brasileiras e nas diversas leituras.

[1] Os livros escolhidos observam os seguintes critérios:

Produções dos anos 70/80 – narrativa brasileira, alegoria da nação.

Narrativa pós- moderna e pós-significante: narrador alegorista cujo papel se assemelha ao de um semanticista buscando criar novos significados para o objeto alegórico – a nação.

Pequenas narrativas ou relatos fragmentos em confronto com as grandes narrativas redentoras universais

Identidades plurais do sujeito cultural: Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Amazonas, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo: são regiões de referência nas obras e/ou biografias dos autores.

Este é o “ corpus ” literário recortado a partir do ponto de vista do alegorista:

1. CALLADO, Antônio. A expedição Montaigne . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982 (copyright 1982)
2. BAGNO, Marcos. A invenção das horas . São Paulo: Scipione, 1988 (Copyright, 1988).
3. GUIMARÃES, Josué. Os tambores silenciosos . 14ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1997 (copyright 1986).
4. LINS, Osman. A rainha dos cárceres da Grécia . São Paulo: Melhoramentos, 1976 (copyright 1976).
5. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1977 (copyright 1977).
6. LUFT, Lya. A asa esquerda do anjo. 8ª ed. São Paulo: Siciliano, 1991 (copyright 1981).
7. MACHADO, Ana Maria . Tropical sol da liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988 (copyright 1988)
8. SANTIAGO, Silviano. Em liberdade: uma ficção de Silviano Santiago. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985 (copyright 1981)
9. SANT’ANNA, Sérgio. A tragédia brasileira. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987 (copyright 1987).
10. TORRES, Antônio. Essa terra. 11ª ed. São Paulo: Ática, 1999.

[2] “Indigenous” significando etimologicamente “ter nascido dentro”.  [topo da página]

# Ivete Walty - Alegorias do cotidiano
No texto “Modernização e controle social – planejamento, muro e controle espacial”, Renato Cordeiro Gomes (1999) discute a relação entre planejamento urbano e formas de controle, demonstrando que na cidade pós-moderna fica evidente a impossibilidade de contenção da diversificação, almejada pelo planejamento inerente à cidade moderna, que levava necessariamente ao controle e à exclusão. O autor cita aí Michel de Certeau: “ a vida urbana permite cada vez mais a re-emergência do elemento que o projeto urbanístico excluía” (De Certeau, apud. Gomes, 1999, p.210).

A leitura do próprio De Certeau, não apenas no artigo citado, mas também no livro A invenção do cotidiano (1994), sobretudo do volume 1, na parte intitulada “Práticas do espaço”, permitiu-nos caracterizar as intervenções do grupo de excluídos na paisagem cultural da cidade de Belo Horizonte. Isso porque, além de evidenciar que a organização da cidade exclui tudo aquilo que não pode controlar e que “esses detritos” voltam de alguma forma a fazer parte da rede citadina, o autor estabelece uma analogia entre a enunciação lingüística e o que chama de enunciação pedestre, descrevendo os movimentos dos pedestres, dos andarilhos e dos marginais pela cidade. Não é pois sem razão que De Certeau afirma que “os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode aí fabricar e fazer. São feituras de espaço” (De Certeau, 1994, p.207).

Como partimos, em nossa pesquisa, justamente dos conceitos de espaço e lugar de Lucrécia Ferrara (1993), é importante observar que De Certeau faz a mesma distinção, apenas invertendo a proposição de Ferrara, no que se refere aos dois termos. Para Ferrara, o espaço é mais abstrato e o lugar, mais concreto – o espaço informado; enquanto para De Certeau, “o espaço é o lugar praticado”. No material recolhido junto à população de rua, pudemos constatar que aos relatos propriamente ditos associam-se os deslocamentos espaciais, percebidos tanto aí como nos filmes e fotografias. As relações entre rua e casa, entre rua e instituição, entre real e imaginário, entre ordem e marginalidade, entre cópia ou transgressão do modelo social podem ser feitas desde a primeira leitura.

Os textos verbais ou fílmicos permitiram-nos esboçar trajetórias da população de rua de Belo Horizonte em seus deslocamentos pela cidade/sociedade. Tanto nos relatos das crianças/adolescentes que mal conseguem falar por cheirarem tinner durante todo o tempo em que se mantêm acordados como nos dos catadores de papel filiados à ASMARE em seu discurso mais politizado, podem-se perceber as estratégias de sobrevivência física e psico-existencial, através da linguagem, seja ela verbal ou imagética.

Nesse contexto, ao conceito de sucata como uma postura alternativa de produção do saber, discutido por De Certeau, pôde-se associar outro conceito importante: o de reciclagem cultural, veiculado a partir de Garcia Canclini (1990 e 1995)[1]. Pode-se investigar, pois, em que medida as pessoas desses segmentos sociais se fazem cidadãos, quais são as formas de atuação detectadas em seus textos, que produtos culturais consomem e constroem, como se conformam como sujeitos. Tudo isso, não deixando de refletir ainda sobre nosso lugar no processo.

Participando de um congresso dos catadores de papel em BH[2], pudemos colher mais elementos para incrementar essa discussão quando da análise dos depoimentos dos catadores. Veja-se, por exemplo, a atitude de D. Geralda, a líder dos catadores, que tem recebido prêmios internacionais por seu trabalho frente à cooperativa que dirige, a ASMARE. No mencionado congresso, ela fez questão de dizer que o carnaval dos catadores foi criado para que, através das fantasias, as pessoas pudessem prestar atenção nesse segmento social, que vive do lixo. E, nos depoimentos, outros frisam que eles que eram também vistos como lixo, agora sentem-se cidadãos, atuantes e participantes. Explicita-se, nessas falas, a questão da identidade, de construção dos sujeitos por meio de diferentes formas de reciclagem cultural.

Cumpre-nos verificar como se dão as intervenções dos diferentes grupos marginalizados no espaço da cidade, nas narrativas colhidas por nós. Tais narrativas marcam-se antes por histórias de vida que por aquelas dadas como ficcionais. A pequena presença de textos reconhecidamente como de ficção não nos autoriza a afirmar que tal tipo de produção cultural tenha sido extirpado dos segmentos da população em questão. O que se constata é que não houve disponibilidade do grupo para contar histórias, seja por sua desvalorização pelo grupo, seja por sua substituição por outro tipo de produção, como tentaremos mostrar, seja pela inadequação da abordagem ou mesmo por uma forma de resistência e proteção frente ao grupo de pesquisadores, tomado como invasor.

Em primeiro lugar, interessa-nos analisar três histórias, reconhecidamente ficcionais, usando-as alegoricamente para ler as outras histórias, os relatos de vida. São elas: “O coelho e o guará”, contada por R., uma senhora de 52 anos, dada como mãe de alguns meninos de rua; “O compadre rico e o compadre pobre”, contada por K., uma garota de 12 anos; e “O rabo da macaco”, contada por J., amiga de K, com 13 anos. Na história do coelho e do guará, como em muitas outras histórias populares, trava-se a luta entre o forte e o fraco, que busca superar sua fragilidade através da esperteza.

Era uma vez tinha um coeio e um guará... era tão amiguinho, né, mas o guará era o maió preguiçoso... só queria tudo na mão. Aí um dia o coeio falô assim: Vô mostrá esse guará...

O uso da força pelo guará para a exploração do mais fraco, com o objetivo de obter aquilo de que necessita, contrapõe-se à esperteza do coelho, na hora de enfrentar um inimigo maior, o dono da horta, que resolve agir quando se dá conta do roubo de verduras e cenouras em sua horta. É curioso verificar a presença na fala do dono da horta de expressões como “aumentar a produção”, que indicam o deslocamento da história para o contexto atual marcado pelo discurso econômico. No embate com o dono da horta, o coelho

Conversou... Aí fingiu... aí o coeio é mais esperto né... que o guará tava só vendo. Aí foi robô bastante ..., bastante mermo. Aí guardô... guardô dentro da toca... Aí o guará, tadinho, o guará não tinha nada prá comê. Ah...ah...ah..., o guará não tinha nada prá comê. Aí o coeio tá lá em cima da arvre. Aó o coeio grita o guará assim: - Ô guará... – O que que é? Ô guará? – O que que é? O guará num quer nada... Por que cê tá ai? Cê tá ficano bobado por caso de que cê num fez igual eu fiz?

Observe-se a ironia da narradora, quando se refere aos dois como “tão amiguinho” ou ao guará como “tadinho”, coitadinho. Ao usar tal ironia, a narradora parece compartilhar a alegria do coelho ao passar para trás o “amigo” que o explorava. Tanto que, ao final da história, a narradora e todos os presentes riem como o coelho: Ah, ah, ah! Como bem mostra Bergson (1978), as pessoas riem porque não se reconhecem no enganado, mas no enganador.

Depois do fim da história, a entrevistadora perguntou ao grupo quem era o coelho e quem era o guará. Depois de apontar para uns e outros, o grupo elegeu “a mãe” como o coelho, reforçando as palavras daquela que se declarou filha amorosa, reproduzindo um discurso ditado pelo senso-comum:

- O que não sai da minha cabeça? É minha mãe... Eu amo ela do fundo do meu coração... nunca esquecerei ela,, ela pode fazer o que for... pode batê... pode xingá... pode bebê... eu gosto dela muito ... minha mãe...

Nessa declaração de amor à mãe, D. aponta, embora pelo avesso, suas características dadas como negativas. A mãe, emocionada, diz:

É por caso que é a única fia guerreira que tem comigo. Entendeu? Que sofre como eu tô sofreno, porque todos os homens qu’eu arrumo não dão valor prá esses minino meu ... só me dá espancação... pegô minhas coisas ... jogô tudo fora ... isso que me dá revolta ... ´a única que caminha comigo, é só ela ... e que me ajuda mermo. É por isso qu’eu sinto, porque eu não tenho mãe e nem meu pai.

Observe-se que em seu relato “a mãe”, dada como o esperto coelho, revela-se à mercê de guarás, os homens que a exploram e a espancam. Ao descrever tal situação, ela passa do geral para o particular, quando deixa de usar os verbos no plural e no presente: “não dão valor...”, “só me dá espancação” – para usá-los no singular e no passado, referindo-se, talvez, ao último caso vivido: “pegô minhas coisas”, “jogô tudo fora”. O discurso do senso-comum se reforça na fala seguinte quando R. lamenta não ter dado um presente de quinze anos para a filha:

Eu não dei nada prá ela, mas o que eu tenho prá dá a ela é muito amor e muita felicidade e quero que ela seja uma moça muito estudiosa, porque eu não pude dá esse estudo porque eu não tenho condições, mas quero que não deixe ninguém judiá dela. Que deixa muita saúde prá ela. Com todo carinho te provo sua mãe do fundo do meu coração, D. te falo, te amo demais minha fia. Como amo você e como amo seus irmãos que tá fora de mim. Obrigada, viu fia.

As contradições presentes na fala apontam para os valores ditados pelo sistema e as condições de vida que impedem seu alcance. A oscilação entre aceitar ou não esse discurso fica expressa na mudança das pessoas, ora primeira, ora terceira, como se a enunciadora falasse de uma personagem. Registre-se que não há um falseamento do discurso, o que há é uma ambigüidade que expressa a contradição vivida por esses grupos, num espaço limiar, marginal, que não escapa às forças das engrenagens que o excluem. Haja vista, o episódio acontecido alguns dias após a entrevista: os jornais noticiaram que R., essa mulher dada como a mãe de todo o grupo, ateou fogo em dos meninos que dormiam perto do Estádio Mineirão. R. declarou que matou o menino por causa de comida. Veja-se que a história contada pode mesmo ser tomada como alegoria da vida vivida pelo grupo, que repete a luta do mais fraco contra o mais forte, numa corrente sucessiva onde esses papéis vão se intercambiando, só que dentro de um cerco bem determinado.

Essa mesma situação se repete na história do compadre rico e do compadre pobre. O pobre trabalha para o rico em troca de um pouco de comida. O trabalho é descrito pela ação sucessiva, evidenciada no uso reiterativo do gerúndio: “Aí eles tão guiando boi, tão guiando boi, tão guiando boi, tão guiando boi”. Além do trabalho suado, no momento da comida, o compadre rico não cumpre a promessa e só concede o alimento em troca da promessa do outro de que deixará que ele fure um de seus olhos. Vale lembrar que a expressão “furar o olho do outro” é bem conhecida entre nós e traduz, então, a exploração do pobre pelo rico. As ações se repetem da mesma forma - trabalho, comida e olho furado. Cego, o compadre pobre é jogado debaixo da ponte, como um objeto descartável, já usado. Depois disso, no entanto, numa ação aparentemente ilógica, cura-se com uma folha que esfrega nos olhos, mas volta a apanhar, dessa feita de um grupo de diabinhos.

Outra vez, usa a folha para curar-se e vai embora. Entra em jogo a barganha, quando, indo à casa de um fazendeiro, o compadre pobre recebe uma mala de dinheiro para fazer a filha do mesmo voltar a ver. Outra ação ilógica é descrita, quando o compadre pobre, depois de curar a moça cega, consegue fazer brotar água do chão em diversos pontos do terreno do fazendeiro e ganhar mais uma mala de dinheiro. Observe-se que, como os heróis míticos, o compadre pobre recebe ajuda de entes sobrenaturais através de objetos mágicos. Inverte-se, pois, a situação, “o cumpade que era rico ficou pobre e o que era pobre ficou rico e o que era rico foi na casa do cumpade pobre pedir banana verde pra dar pros meninos porque ele não tinha nada o que comer”.

Não se tem uma explicação para o fato de o primeiro ter ficado pobre, sabe-se apenas que ele recebeu um castigo. Observe-se que aí se configura uma situação de vingança, já que aquele que fora pobre também recusa o alimento ao novo pobre. No plano do imaginário, pois, realiza-se maniqueisticamente a inversão de classes, numa visão moralista, ideológica, que concretiza a expressão “furar o olho” como marca das relações sociais.

Na terceira história, a do rabo do macaco, contada por J., uma menina de 13 anos, representa-se mais explicitamente o ato de barganha, iniciado com o rabo do macaco, cortado pelo trem. Registre-se a atualização da história pela referência ao metrô: “(...) o rabo do macaco passava em cima da linha ... aí veio o metrô ... aí o metrô foi passano...”.

O macaco, depois de deixar que o metrô passe sobre seu rabo, que diz estar velho e estragado, exige do motoneiro alguma coisa em troca. Assim só pára de gritar “eu quero meu rabo...”, quando recebe “uma banda do metrô”. E é essa parte do trem que ele oferece a um velhinho que estava cansado de tanto andar. Outra vez, desmerece aquilo que tem e, depois, exige algo em troca: quando o trem estraga, ele o cobra do velhinho. Recebe, então, um carrinho de mão, que oferece a uma mulher que carregava pães e os deixava cair na rua. Mais uma vez desmerece o que tem: “num tem problema não, o carrinho já tá veio, já tá todo estragado mesmo...”. Mas tudo se repete, quando o carrinho estraga, ele o quer de volta. A mulher lhe dá um pão, o qual ele oferece a um homem que “tava bebeno café e comeno carvão”. Como o rapaz não aceita o pão, a história se acaba.

Ô moço, come esse pão senão seu dente vai ficá cheio de carvão e vai ispodrecê, vai caí. Aí ele falô assim: não macaco se eu pegá seu pão pra podê comê, vou comê seu pão tudo. Aí o macaco falô assim: cê é bem guloso, heim? Aí cabô.

Veja-se que a história, contada de um só fôlego, sem pausas mais demoradas, não precisaria ter fim, já que sua estrutura permite a continuação infinita, como o processo da barganha, controlado pelo macaco. Mas a negativa do homem impediu a continuação da barganha e da história. Pode-se perguntar se haveria aí uma representação inconsciente das relações sociais em que se concede algo, mas sem perder o controle sobre o que é dado. Também numa referência a outro dito popular: se se dá a mão já se quer o braço, explicita-se a ideologia do poder monitorado pelos grupos mais fortes. Nesse sentido, a negativa do homem passaria por alguma consciência necessária à mudança do processo.

Depois de contar a história, J. fala de suas preferências na TV, declarando gostar da menina, personagem da novela “Sonho meu”, veiculada pela Globo, há algum tempo atrás. Importa lembrar que essa menina era pobre, órfã e, foi, depois de muito sofrimento, acolhida por uma família rica. A identificação com essa personagem é explicável e pode ser associada à aceitação da barganha do macaco, já que, ao se submeter ao sistema, mantém-se o processo do jogo controlado.

No entanto, ao inscrever sua fala entre outras, essas pessoas formariam seus relatos usando “cacos” de linguagem, no sentido utilizado por De Certeau, quando fala em “‘cacos’ de relatos plantados em torno dos limiares obscuros de nossas existências, esses fragmentos escondidos articulam inconscientemente a história ‘biográfica’ cujo espaço fundamentam”. (De Certeau, 1994, p.211)

Ora, nos textos recolhidos nessa pesquisa, podem-se verificar caminhos de mão dupla entre fato e ficção, entre relato biográfico e contos populares, em que se conta a história como se se contasse a vida, e a vida como uma história. Os relatos são mesmo feitos de fragmentos, de retalhos, como as casas que são construídas de material rejeitado, recolhido nas ruas ou nos lixões. A análise de algumas fotos parecem confirmar nossa hipótese, já que o modelo é o fornecido pela sociedade, mas o espaço e o material são “impróprios” para o uso. Nas fotos 1 e 2, a narradora da história 1 reúne sua “família” – 4 adolescentes, um cachorro e um gato - sobre um colchão, almofadas e alguns cobertores. Vale lembrar que alguns desses adolescentes não se separam de seus cobertores, nem quando o calor é muito forte. Um deles chegou a brigar com uma das entrevistadoras que ousou sugerir que ele o deixasse na kombi, durante o tempo de uma excursão à Lagoa do Nado. Vê-se no cobertor, mais do que um agasalho, um objeto transicional de identificação. Outra objeto fundamental da construção desse espaço, tanto o físico como o emocional, é o paninho de tinner. As crianças não o deixam também para nada; antes comprimem-no sobre o nariz e, em último caso, sobre o palato para aproveitar bem cada “molhada”, que custa CR$0,30.

Nas fotos 3 e 4, vê-se uma casa de rua, feita de lona preta, com pelo menos três cômodos. No filme, a mocinha entra para mostrar orgulhosamente o que seria o banheiro e seu quarto, em que uma caixa de papelão faz as vezes de armário. Em frente à casa o grupo/família se reúne, faz as refeições, prepara atividades de lazer, enfim vivenciam relações de afeto e trabalho.

Barracos de pedaços de lona e camas na calçada repetem os relatos de vida fragmentados/deslocados, feitos com a absorção de discursos variados, marcados pela violência: o discurso religioso das orações ao lado do rap, do grupo Racionais; o jargão da telenovela ao lado das referências científicas do discurso médico desfigurado, entre outros.

Se De Certeau elege a sinédoque e o assíndeto como as figuras por excelência de uma retórica do espaço, penso que a alegoria pode acolher bem essas duas figuras, porque ao mesmo tempo dá conta da parte pelo todo – o agrupamento que significa a família, a lona que significa a casa, por exemplo, – e da desconexão linguística, a diluição do que percebemos como coesão nos relatos. É que a alegoria conta uma história por outra. Essas três histórias aqui rapidamente analisadas dão conta de vidas esparsas, como se verá, em outro texto, com a análise mais detida dos relatos. Assim alegoria, embora não perca o sentido primeiro de histórias que contam outra história, passa a exibir a fratura dessa história, desvelando suas contradições.

Essa figuração fraturada remete-nos ao conceito benjaminiano de alegoria como uma “figura organizada em torno da morte ou de transformação do vivo no morto, donde a presença obsessiva da caveira e do fragmento ou ruína.” (CHAUÍ, 1993, p.7). Para Benjamin, a alegoria não quer simbolizar alguma coisa, mas significá-la e, para isso, arranca-a de seu contexto habitual. Ouso, pois, afirmar, que, ao se apropriar do espaço da rua para habitá-lo de forma diferenciada, que nos incomoda como sujeira, ou, ao usar a língua de forma diferente daquela que elegemos como correta, desarticulando-a, os habitantes de rua constroem uma alegoria de nossa sociedade, significando-a, deslocando-a, mostrando-a pelo seu avesso.

(OBSERVAÇÃO: O texto apresentado refere-se à parte da pesquisa em andamento como se pode ver na introdução, mais geral. As fotos não serão incluídas na Internet por questões éticas.)

Referências Bibliográficas
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.
CHAUÍ, Marilena. Alegoria no reino da mercadoria. Folha de S. Paulo, 05.09.1994, p. 6 -7 (Caderno Mais).
DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petropólis: Vozes, 1994.
FERRARA, Luciana D’Alessio. Olhar periférico. Informação, linguagem, percepção ambiental. São Paulo: EDUSP, 1993.
GOMES, Renato Cordeiro. Modernização e controle social – planejamento, muro e controle espacial. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.) Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 199 – 213.
MARQUES, Reinaldo M. Entre o global e o local: cultura do Vale do Jequitinhonha e reciclagens culturais. In: DAMASSO, Maria Teresa et al. Discursos de tradicíon y contemporaneidad. Córdoba: Centro de Estudios Avanzados, 1998, p.97-113.

Notas:
[1] A este respeito ver: MARQUES, Reinaldo M. Entre o global e o local: cultura do Vale do Jequitinhonha e reciclagens culturais. In: DAMASSO, Maria Teresa et al. Discursos de tradicíon y contemporaneidad. Córdoba: Centro de Estudios Avanzados, 1998, p.97-113. [2] 1º Encontro Nacional de catadores de papel e material reaproveitável. ONG’S, Poder público e Setor privado. Palestras, work shop, visita técnica. 20 a 22 de setembro de 1999, Belo Horizonte. 
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# Léa Masina - Martín Fierro na Literatura Brasileira: os rastros de um percurso
O trabalho que venho desenvolvendo, cujo foco é a recepção do poema Martín Fierro, de José Hernández, no Brasil, faz parte do projeto de pesquisa “Influxos platinos na literatura brasileira” que desenvolvo junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O relato que apresento ao XV ENCONTRO DA ANPOLL pretende registrar as marcas deixadas pelo Martín Fierro na literatura sul-rio-grandense, ao mesmo tempo que pretende contribuir para a valorização do influxo platino no sistema literário brasileiro. O influxo platino, visto com maus olhos pela crítica modernista, confere peculiaridade aos textos da literatura brasileira fronteiriça, eis que esta transfigura o fato histórico no literário, confundindo essas duas instâncias e possibilitando uma visão múltipla das culturas latino-americanas meridionais em diálogo.

Meu pai, gaúcho urbano, filho e neto de fazendeiros gaúchos, costumava citar, de memória, ditos e frases populares, originários do poema Martín Fierro. El diablo sabe por diablo pero más sabe por viejo era um desses. Na casa de minha avó circulavam histórias campeiras que se misturavam às lendas da Salamanca do Jarau e do Negrinho do Pastoreio. Algumas dessas passagens, marcadas pelo assombro, pela admiração e pelo medo, tumultuaram as minhas tardes na pacata Porto Alegre de pouco mais que meados do século, misturadas ao terror das degolas de 93.

O mais impressionante desses relatos dizia respeito à demonologia dos índios. Eles eram a encarnação do demônio; viviam num deserto, de onde saíam para matar e roubar gado, crianças e até as mulheres que habitavam as fazendas e os ranchos próximos às fronteiras platinas. Certa vez, após uma dessas invasões, capturaram uma mulher branca, torturaram-na e maltrataram-na cruelmente, terminando por amarrá-la com as tripinhas do filho, cujo corpo, destroçado, jazia a seus pés. Havia, também, a história de um jovem louro, com o olhar manso de ovelha, afogado aos poucos num regato, para acalmar a ira dos bárbaros que o julgavam mensageiro de desgraças.

Anos depois, encontrei essas histórias nas coplas do Martín Fierro. Elas eram contadas nos galpões e nas cozinhas das estâncias, confundindo-se com façanhas de guerra que a imaginação campeira ampliava e transformava, associando o dia a dia da campanha com o extraordinário e o sobrenatural.

Com isso, quero dizer que o Martín Fierro, no Brasil, propagou-se pela repetição, atravessando a fronteira meridional do país e ocupando um espaço real e imaginário que confundia, na reza e na crendice, a experiência vivida, a superstição religiosa e a imaginação. Essa carga mítica, comum aos textos fundadores, explica a capacidade de migração dos mitos de um sistema literário para outro, em momentos decisivos da formação das identidades culturais.

A despeito das incontáveis leituras que se possam fazer, hoje, do texto de Hernández e de seu cunho marcadamente racista e conservador, há que registrar como denominador comum às narrativas platinas o registro do acento cruel e sanguinário que a cultura fronteiriça ibérica gerou e que os textos literários multiplicaram.

O contrário ocorre com relação ao discurso histórico de XIX e primeira metade de XX : nessas narrativas, a violência das guerras internas e fronteiriças e o comportamento cruel de seus protagonistas sofrem um processo de abrandamento pois, ao ordenar os fatos com pretensa objetividade, esse discurso dissimula os pontos fulcrais - e incontroláveis - do seu conteúdo. Lêem-se hoje, nesses textos, as marcas do esforço positivista de adequar a realidade para torná-la digerível pela cultura urbana e civilizada, eis que a crueldade e a violência são execráveis porque rompem com a ordem e o progresso. Portanto, é preciso esquecer, sublimar, e excluir, para que tais elementos não deponham contra a civilização urbana e hegemônica.

No Martín Fierro, no entanto, sofrimento, violência e crueldade são vitais, o que talvez explique o interesse que o poema despertou nos leitores da campanha, que reconheciam como próprios as desditas, as fraquezas e os traços duvidosos e politicamente incorretos do caráter das personagens. A popularidade da obra é confirmada pelo registro, dentre outros, do crítico e historiador literário Ricardo Rojas, que refere a existência de mais de 40.000 folhetos e livros com o poema, que circularam de 1872 , ano da publicação de La Ida, a 1879, ano da publicação de La Vuelta.. Os textos críticos mais difundidos referem o fato de o Martín Fierro ser vendido em armazéns, ao lado de açúcar, cebolas e ramos de fumo em corda. Além disso, pode-se ler em carta de Hernández a referência a inúmeros periódicos argentinos e uruguaios que publicaram o poema na íntegra ou extensas partes dele, ampliando, desse modo, o número de seus leitores. Tanto assim que o próprio autor, em carta a seus editores, por ocasião do lançamento da oitava edição do poema, refere o interesse que a imprensa argentina e uruguaia demostravan por sua obra, rerproduzindo-a na íntegra ou em extensos fragmentos. Cita, dentre outros: “La Prensa”, “La República”, de Buenos Aires, “La Prensa de Belgrano”, “La Época” y “El Mercurio”, de Rosario, “El Noticiero”, de Corrientes, “La Libertad”, de Concordia, y otros periódicos cuyos nombres no recuerdo, o cuyos ejemplares ho he logrado obtener. Cita, também, periódicos uruguaios, dentre os quais “La Tribuyna” y “La Democracia”, de Montevideo, “ La Constitución” y “La Tribuna Oriental”, de Paysandú.

Como as fronteiras culturais são flexíveis e existem para serem transgredidas, tudo leva a crer que Hernández fosse lido nas cidades fronteiriças do Brasil, como era lido na Argentina e no Uruguai. Percebeu-o o crítico e historiador literário Guilhermino Cesar, ao trazer para suas aulas de Literatura Brasileira, Já na década de sessenta, o texto de Hernández e o ensaio El payador (1913), de Leopoldo Lugones, para ressaltar as diferenças entre a figura do gaúcho herói da pátria e o gaúcho sociológico estudado, dentre outros, por Madaline Wallis Nicholson em 1946. A figura do payador, que Lugones se encarregara de divulgar em conferências no Teatro Odéon, em Buenos Aires, pouco antes da eclosão da primeira guerra mundial, servira à composição mítica de uma canção de gesta, conciliando sob a feição do canto e da repetição das coplas, o ritmo choroso e nostálgico do pampa, tão a gosto da poética gauchesca. Não obstante, os ensaios de Lugones, embora fundamentais para a fortuna crítica do Martín Fierro, ao insistir no caráter nacional e patriótico do poema, subjugam questões essenciais.

Isso porque, deslocando a violência e a crueldade para a posição de fatos geradores da questão social, eles as estratificam, sem permitir que aflorem como denúncia de um estado de litígio permanente. Lugones minimiza-as também ao apresentar o poema como representação do épico, reduzindo a carga poética e literária do texto.

Dessas conferências, de 1913, resultou, portanto, o ensaio El Payador, que letigitmou o Martín Fierro na Argentina, elegendo o viés épico como dominante. Jorge Luis Borges, anos depois, opôs-se a essa leitura, sugerindo um movimento contrário: considerou o Facondo, de Sarmiento, mais adequado como representação da “argentinidade” porque sua tese de civilização versus barbárie corresponderia mais precisamente à verdadeira história do país. Quanto aoFierro, seria mais fácil recordar, pela memória, o episódio da morte do negro do que apreender as intenções políticas de Hernández. Como Borges irá reafirmar em entrevista concedida a Cesar Fernández Moreno, a importância do Martín Fierro resultou do caráter inventivo de sua história, de sua condição literária em tudo avessa à alegoria épica.

Antes, porém, de comentar o percurso de Fierro no Brasil, cabe uma digressão. Durante muito tempo, Hernández e Fierro confundiram-se na consciência dos leitores. Há registros de que o escritor fosse conhecido como o Senador Martín Fierro. Além disso, criou-se a hipótese de que o poema fosse a transcrição literária de um caso verídico, reproduzindo a vida de um gaúcho real, Melitón Fierro, cujo ciclo de aventuras servira de tema ao escritor, conforme o sustentou Rafael Velázquez (1972). A confusão entre o real vivido e o imaginado, tão perturbadora quando se trata de examinar questões como a da autoria da subjetividade e das projeções autobiográficas e, ainda mais, de relacionar os discursos histórico e literário. Ela mostra-se rentável, no entanto, para compreender a simbiose que consiste na participação do povo à criação dos mitos. Nesse sentido, o seqüestro de um campeiro pela milícia das fronteiras argentinas, por seu apelo sociológico e histórico, prolonga a visão de mundo do escritor que se expressa nas digressões filosóficas que encerram o poema. A partir desse tema, inúmeras leituras tornam-se possíveis: dentre elas, a épica, de valorização dos episódios da conquista do deserto; e , ainda, a social e causalista, com ênfase na denúncia do atraso, do genocídio e da escravidão do homem civil e pobre, males legitimados por uma civilização de bárbaros, para apreender numa síntese a dicotomia de Sarmiento.

Veja-se, pois, que apesar de o Martín Fierro ser uma réplica de Hernández às idéias conservadoras de Sarmiento, o poema supera a ideologia visível, enquanto articulação formal da inconformidade humana. Além disso, é preciso ter em conta a biografia do autor, que registra seu apreço pelo texto “La sabiduría popular de todas las naciones”, de Ferdinand Denis, o que o redime das acusações de federalista e cantor de valores superados, deslocando-o para o espaço do conhecimento e da cultura popular.

No Brasil, no entanto, a trajetória do Martín Fierro teve outro direcionamento. Este não foi determinado inicialmente pela crítica, mas pela leitura e pela transmissão oral, a partir das cidades da fronteira e, particularmente, por sua circulação nas estâncias e pequenos lugarejos interioranos. Até 1942, ano de sua primeira tradução no Brasil, pelo poeta J. Nogueira Leiria, o texto já fora incorporado aos imaginários fronteiriços, podendo ser relido como parte das obras mais representativas do Regionalismo literário. A já citada morte do Moreno, uma das coplas mais ressonantes do poema, estranha pela gratuidade de que se reveste a violência, excluindo qualquer motivação heróica, ressurge no conto O negro Bonifácio, de Simões Lopes Neto. A publicação dos Contos Gauchescos, em 1910, atesta a absorção do episódio. Nele Nadico, o noivo da Tudinha, ao sentir-se provocado pela desfaçatez do negro e por seu desrespeito para com ambos, transforma o fandango num campo de batalha. O conto termina com a morte dos homens e a manifestação do ciúme da Tudinha que, ajoelhada sobre o negro, dilacera-lhe o corpo a facadas. A intriga segue as coplas de Hernández, recheadas com os elementos da poética simoniana.

Também Alcides Maya foi leitor do Martín Fierro. A partir da fixação do espaço, transformado em cena e em clima narrativo, Maya reescreve o percurso do soldado que retorna para a querência e encontra a tapera, vinga-se quando expulso da terra, reage, deserta e foge. O “pampa histórico” a que Maya se refere, é o espaço idealizado ao qual se apega o payador, uma das facetas do “gaúcho antigo”. Mas, seguramente, o que Maya herda do Martín Fierro é a resistência muda, o desassossego e a descrença na autoridade e no futuro, o que leva as personagens a lastimarem as perdas passadas e a antecipar as vindouras, desenvolvendo um pessimismo letárgico e quase substancial. A decantada nostalgia campeira, tornada mais amarga pelos “horrores da chacina”, comuns em tempos de guerra, celebra, a seu modo, a violência do campo, temática dominante na literatura campagnard platina.

Há diferentes modos de ver o influxo do Martín Fierro na literatura gaúcha. Contrapondo-se à escassez de ensaios e textos críticos de brasileiros a respeito do poema, são inúmeras as obras literárias que trazem as marcas desse contágio: ele está, por exemplo, na sátira Antonio Chimango, de Amaro Juvenal; nos romances e poemas de Aureliano de Figueiredo Pinto, Aparicio Silva Rillo, Darcy Azambuja, Luis Carlos Barbosa Lessa e Cyro Martins. Mais recentemente, na paródia Martim Fera, de Donaldo Schuler, e nos contos contemporâneos, alguns inéditos, de José Blaya, cujo projeto literário inclui a releitura ficcional de coplas de Hernández. Isso reforça a certeza de que literatura se faz com literatura, uma vez que o texto literário, ao eleger sua forma, cria também uma tradição que pode ser seguida ou permanecer oculta, dando espaço, inclusive, para os avanços contradiscursivos.

Cabe, então, indagar porque o poema de Hernández, cujo herói é um renegado e um desertor, ladrão e assassino, contribui para fundar a tradição regionalista brasileira, trazendo o elemento de diferença e resistência ao modernismo e à avalanche globalizadora que se impõe à crítica literária brasileira a partir de então. As respostas podem ser buscadas na alternância dos discursos histórico e literário, sendo o segundo capaz de preencher as lacunas do primeiro, uma vez que narram os fatos como metáforas, possibilitando que neles se realizem as potencialidades paradoxalmente mais reais da linguagem literária.

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# Lúcia Castello Branco - Nossa Senhora dos Tormentos
"Estou me sentindo mal, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai ter um filho. E eu que pensava que estava morrendo , responderia a mulher. A alma deformada, crescendo, se avolumando, sem nem ao menos saber que aquilo é espera. Às vezes, ao que nasce morto, sabe-se que se esperava."[2]

Diante dos olhos do leitor, desenrola-se a cena: a mulher apresenta ao médico seu sintoma — "estou me sentindo mal " — e o médico apresenta à mulher, prontamente, um diagnóstico: gravidez. E antes que nos precipitemos com alegria em direção à boa nova que aí se anuncia, o texto nos adverte: "e eu que pensava que estava morrendo". Assim responderia a mulher, se lhe fosse dado responder. Assim responderia o leitor, talvez, se lhe fosse dado nomear sua agonia diante desse texto que não se resolve.

Para essa agonia, Clarice Lispector tinha um nome: escrever. O que, em grande parte das vezes, pode ser lido por um outro nome: esperar. "Sofrimento de esperar", diz-se lá em algumas regiões do interior das Minas. Sofrimento de esperar o que já nasce morto e só então se pode saber que aquilo é espera.

Diante dessa cena, a gravidez, com toda a aura milagrosa que a circunda, perde o seu véu de beleza: o filho — o texto — é esse natimorto que esperávamos sem saber. E a alma do escritor é esse volume disforme, crescendo, se avolumando.

Esse fragmento de Clarice, que justamente se intitula "Escrevendo", lançando-nos na agonia de um interminável gerúndio, lança-nos também no que ela chamaria de exercício de paciência — "cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor" — e abre-se, curiosamente, para um destino que poderíamos circunscrever, provisoriamente, como o "destino feliz" de alguns escritores —o silêncio:

Além da espera difícil, a paciência de recompor paulatinamente a visão que foi instantânea. E como se isso não bastasse, infelizmente não sei 'redigir', não consigo 'relatar' uma idéia, não sei 'vestir uma idéia com palavras'. O que vem à tona já vem com ou através de palavras, ou não existe. — Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis, não usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda."[3]

Esse "destino feliz", que não se distanciaria das "profundas decepções inconsoláveis" e do "tormento", Clarice o localiza como um "degrau acima" da escrita. Nesse degrau acima, do silêncio, lugar infinitamente mais ambicioso que o da escrita, situam-se aqueles que podem não escrever: "Até hoje não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente, até que de repente a descoberta muito tímida: quem sabe, também eu poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável."[4]

Mas este lugar, sabemos, não seria o de Clarice, aquela que dizia escrever não por prazer, mas porque havia sido incubida. Para essa escritora, que tanto queria escrever uma história linear que começasse com "era uma vez", só restaria o destino do tormento: "Era uma vez um pássaro, meu Deus".[5] E, desde então, a partir do espanto inicial, estaria instaurado o que ela mais tarde definiria como o tormento da escrita: como escrever, se não se pode escrever o que pede para ser escrito? Como não escrever, se o que não pode ser escrito se impõe como uma incumbência, um destino, uma maldição?

"Tormento: ato ou efeito de atormentar; tortura, aflição, desgraça", nos dizem os dicionários. "Atormentar: infligir tormentos a; afligir, torturar; mortificar-se". Algumas escritas situam-se neste ponto: o da mortificação. Não todas — algumas. E aí não parece haver saída, pois não se trata, como bem observa Blanchot, do instante da minha morte[6], mas de um estar a morrer, infinitamente, no texto.

Alguns textos, nascidos desse tormento, são capazes de esquecê-lo, por alguns instantes, para escreverem justamente o que escaparia ao tormento da escrita. Outros não. Outros, nascidos também do tormento, são incapazes de não escrever o tormento, situando-se nesse ponto de impasse tão bem circunscrito por Marguerite Duras, em Escrever:

"Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não se pode.
E se escreve."[7]

Este o destino de alguns, dos que não se calam. Estes, mortificados pela errância infinita da palavra, perseveram na escrita para além do instante da morte. E escrevem. Como se dissessem, neste mesmo instante: "Eu estou vivo. Não, tu estás morto."[8]

Mas como é possível morrer na escrita, se é justamente a morte o que nos impede de morrer? Uma vez mortos, não há mais morte no horizonte e as questões da morte e da imortalidade, sempre colocadas pela obra, deixam de existir. Por isso é preciso estar a morrer, perseverar nessa morte, perseverar nessa escrita, no infinito do verbo que é também o infinito da Literatura.

Disso sabia Borges. Disso sabe Blanchot, que persevera na escrita, a repetir, infinitamente, que a literatura caminha para o seu desaparecimento. E é justo em seu percurso em direção ao desaparecimento que a Literatura é capaz de atravessar o infinito, ir de um ponto a outro. Porque a Literatura "não é simples engano, é o perigoso poder de caminhar para o que é, graças à infinita multiplicidade do imaginário":

"A verdade da literatura estaria no erro do finito. O mundo em que vivemos e tal como o vivemos é, felizmente, delimitado. Bastam-nos alguns passos para sairmos do nosso quarto, alguns anos para sairmos da nossa vida. Mas suponhamos que, neste estreito espaço, subitamente obscuro, subitamente cegos, nos descaminhávamos. Suponhamos que o deserto geográfico se tornava o deserto bíblico: já não é de quatro passos, já não é onze dias que precisamos para o atravessar, mas do tempo de duas gerações, mas de toda a história de toda a humanidade, e talvez ainda mais. Para o homem medido e de medida, o quarto, o deserto e o mundo são lugares estritamente determinados. Para o homem desértico e labiríntico, votado ao erro de um empreendimento necessariamente um pouco mais longo que a sua vida, o mesmo espaço será verdadeiramente infinito, ainda que saiba que o não é tanto mais quanto melhor o souber." [9]

O escritor é este homem desértico e labiríntico, votado ao erro de um empreendimento necessariamente um pouco mais longo que a sua vida, submetido infinitamente à errância do verbo. Daí também o seu tormento, pois a errância do verbo o habita desde sempre e para sempre, mesmo quando ele se cala, ainda quando ele se cala, mesmo quando ele fala do que não é o tormento e ainda mais quando o tormento nele se põe a falar. O que faz de um escritor esse sujeito sempre atormentado pelo tormento da escrita e, estranhamente, pelo tormento de não escrever, como assinala Kafka em carta a Max Brod:

"O escrever continua me mantendo, mas não seria mais apropriado afirmar que conserva esse tipo de vida? Com isso não quero dizer naturalmente que minha vida seja melhor quando não escrevo. Em tais ocasiões é até pior e completamente insuportável e há de desembocar na loucura. Mas isso só sob a condição de que, como resulta ser na realidade, também sou escritor quando não escrevo; e um escritor que não escreve é de fato uma quimera que provoca a loucura."[10]

Mas é justamente esta a loucura, o degrau acima a que aspirava Clarice, o degrau acima em que se situa, na perspectiva de Blanchot, Joseph Joubert, o " autor sem obra, escritor sem escrito"[11]. Porque sabe que o livro não é a obra, mas um amontoado de palavras estéreis, Joubert encarna o escritor por excelência, aquele que abre mão da glória de publicar livros, não deixando, contudo, de habitar , infinitamente, a solidão essencial da obra.

Ocorre que o escritor (alguns escritores) volta a por mãos à obra. Porque, embora saiba que o livro não é a obra (ou justamente por isso), acredita "apenas que a obra está inacabada e crê que um pouco mais de trabalho, a chance de alguns instantes favoráveis permitir-lhe-ão, somente a ele, concluí-la (...) Mas o que quer terminar continua sendo o interminável."[12]

Trabalho — eis o outro nome de seu tormento. Trabalho, do latim tripalium; instrumento de tortura. O escritor é aquele que se põe a trabalhar infinitamente a obra, mas a obra não lhe pertence, é ele quem pertence à obra e o que lhe pertence é somente um livro.[13] Como trabalhar infinitamente a obra, se trabalhá-la significa estar desde sempre e para sempre a morrer, quando é a morte não exatamente o que nos impede de viver, mas justamente de morrer?

Diz Freud, em "Além do princípio do prazer", que a pulsão de vida faz com que a vida perdure até encontrar sua melhor forma de morrer. "A vida só quer morrer", dirá Lacan, parafraseando Freud. De maneira análoga, podemos dizer que a Literatura só quer morrer. Talvez a Literatura — o espaço literário — possa mesmo ser definida como esse lugar para morrer. Infinitamente. E, no entanto, aquilo que a abriga — o livro — é preciso que ele se construa como esse amontoado de palavras estéreis que, em sua finitude, abrigam o infinito.

O escritor sabe disso. Mas não sabe. E por isso escreve. Porque muitas vezes, como se lê nas palavras de Lacan sobre Duras, o escritor não sabe que escreve nem o que escreve: "Ela não deve saber que escreve, nem aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe."[14] Ao que Duras prontamente responderia: "A partir do momento em que se está perdido e que não se tem mais o que escrever, mais o que perder, aí é que se escreve."[15]

Na errância infinita do verbo, estamos todos perdidos. No entanto, é possível pensar, de certa maneira, que haverá sempre os que já perderam e os que ainda vão perder. O escritor é esse sujeito errático que já perdeu e que ainda vai perder. Por isso, na errância infinita do verbo, o escritor é também aquele que não está perdido. E por isso escreve. E por isso é escritor, desde sempre e para sempre, mesmo quando se cala.

Só o escritor pode dizer: não se pode. E, desse lugar da impossibilidade, escrever. Como se repetisse, a despeito da morte que escreve e do estar a morrer a que a escrita o submete:

"Eu vou envelhecer com os cabelos puxados para trás _________
cabelos grisalhos, corpo cheio, rugas e concentração narrativa
vou envelhecer
com os cabelos puxados para trás e sem quebra das minhas escalas musicais,
apenas a seqüência dos números dos episódios se quebrará
uma grande deflagração _______
que já começara a subir nos céus de Herbais e que aqui, na serra, à
beira-mar, atinge a forma de chuva horizontal onipresente ____________
ensurdece o ar e adensa o nevoeiro que sempre, até aqui, quiseram trocar
projectos comigo
volto ao espelho,
interrogo os olhos,
e sua superfície de bondade,
e sei que não quero outra para viver, e continuar a morrer"[16]

Porque o escritor é também aquele que, ainda que submetido à escrita, essa Nossa Senhora dos Tormentos, é capaz de buscar um final feliz, mesmo (ou sobretudo) quando esse final feliz reside no mal-estar e na morte: "Eu ando a contar o mal-estar profundo dos seres humanos, dos animais e das plantas" — diz sua escrita — "ando à procura de um final feliz".[17]

A Literatura só quer morrer. A Literatura só quer viver para continuar a morrer, diriam alguns escritores. Nisso, talvez, resida o seu final feliz. Mesmo (ou sobretudo) se é do tormento que sua escrita nasce, a Literatura pode talvez um dia encontrar o seu final feliz nessa boa morte que é também o seu nascedouro:

"Nocturnamente, pela vertente da abertura, que é paredes meias com
a morte,
tudo é interrogado e pesado, a tudo se exige a apresentação de um
certificado de consistência, ou, mais exactamente,
que revele qual o seu valor de apoio
afectos, laços humanos, expectativas, perfis de pensamento,
tudo passa pelo crivo intransigente da noite, até que se atinja _______
se houver algo que resista à devastação interrogativa ___________
a base da espiral sobre que giram os destinos dispersos da minha vida,
todas essas coisas que dizem eu a falar de mim, como se o meu corpo
não recebesse, todos os dias, ordem se morrer;
mas, todos os dias, uma projeção de sucedidos,
rios sobre lagos,
lagos sobre fontes,
fontes sobre cascatas,
cascatas sobre lágrimas,
tenta abrir caminhos por terrenos movediços vindos do lugar onde fui
criada antes de ser concebida; e eu só,
a sós comigo (um sou engolido e sabressaindo à tona), tentando unificar
as sombras inimigas,
peço apoio ao ambo, ao texto, à floresta e aos animais
porque demasiado implacáveis se podem mostrar as sombras da vida
peço apoio aos que não têm onde se apoiar,
àqueles que conhecem com mais qualidade a força da sombra e da exclusão
e o recado que recebo é sempre idêntico (até que o meu sou veja que assim é)
o sem-apoio apoia-se na falta de apoio
que leio (ou a ler)
o poema é sem-apoio."[18]

Então é isso: a Literatura é o sem-apoio que apoia o sem-apoio que é o escritor. Disso advém a sua consistência que é também a sua leveza, como observava Calvino: "a literatura como função existencial, a busca da leveza como reação ao peso do viver.[19] Só a palavra literária é capaz da leveza. Por isso a palavra literária é também capaz de nos levar, de nos transportar para bem longe do tormento a que própria escrita literária nos submete.

É dessa leveza, nascida justamente do tormento, que nos fala Baudelaire, no magnífico "Levana e as Três Nossas Senhoras das Tristezas". Diz o texto:

"Muitas vezes, em Oxford, vi Levana em meus sonhos. Conhecia-a pelos seus símbolos romanos. Mas quem é Levana? Era a deusa romana que presidia às primeiras horas da criança, que lhe conferia, por assim dizer, a dignidade humana. 'Na ocasião do nascimento, quando a criança provava pela primeira vez a atmosfera perturbada do nosso planeta, punham-na no chão.Mas quase logo, com medo de que uma tão grande criatura rastejasse no solo mais do que um instante, o pai, como mandatário da deusa Levana, ou qualquer parente próximo, lavantava-a ao ar, ordenava-lhe que olhasse para cima, como sendo o rei desse mundo, e apresentava a fronte da criança às estrelas, dizendo-lhes talvez em seu coração: 'Contemplai aquele que é maior que vós!'Este ato simbólico representava a função de Levana. E esta deusa misteriosa, que nunca mostrou suas feições (exceto para mim, nos meus sonhos) e que nunca agiu por delegação, tira o seu nome do verbo latino levare, erguer no ar, manter elevado. Naturalmente, várias pessoas entenderam por Levana o poder tutelar que vigia e rege a educação das crianças. Mas, não penseis que se trate aqui dessa pedagogia que reina apenas com alfabetos e gramáticas; deve-se pensar sobretudo 'nesse vasto sistema de forças centrais que está escondido no seio profundo da vida humana e que trabalha incessantemente as crianças, ensinando-lhes sucessivamente a paixão, a luta, a tentação, a energia de resistência'. Levana enobrece o ser humano por quem vela, mas com meios cruéis. É dura severa essa boa ama, e entre os processos que usa para aperfeiçoar a criatura humana, aquele que sobre todos prefere é a dor. Três deusas lhe são submetidas, que emprega em seus desígnios misteriosos. Assim como há três Graças, três Parcas, três Fúrias, como primitivamente havia três Musas, há também três deusas da tristeza. São elas as Nossas Senhoras das Tristezas. Vi-as muitas vezes conversando com Levana, e algumas vezes mesmo conversando comigo. Então, elas falam? Oh! Não. Estes poderosos fantasmas desdenham as insuficiências da linguagem. Podem proferir palavras através dos órgãos do homem, quando habitam num coração humano, mas, entre si, não seservem da voz, um eterno silêncio reina nos seus reinos..."[20]

Um eterno silêncio reina nos reinos dessas três Nossas Senhoras: Nossa Senhora das Lágrimas, Nossas Senhoras dos Suspiros e Nossa Senhora das Trevas. E é por esta última, naturalmente, que Baudelaire se dirá subjugado, esta que há de atormentar o seu coração até que as outras duas tenham "desenvolvido as faculdades do seu espírito". Mas, para além das três, há Levana, aquela que "enobrece o ser humano por quem vela".

Só Levana é capaz de levar o poeta além do tormento, elevando à dignidade da Coisa o que há de atormentar para sempre o seu coração. Pois, como observa Clarice Lispector,

"Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos grossas, vir a se transformar em 'pureza', nossas mãos grossas e cheias de palavras".[21]

Só assim, sustentado por esse ponto de sem-apoio que é a Literatura, a leveza pode se dar. Sublime leveza de Levana, em seu movimento de elevar no ar, levare, aquilo que a tortura de um trabalho — tripalium — reduziu a resto, a lixo, a livro.

E assim, aquilo que há de nascer morto pode voltar a nascer, infinitamente, para estar a morrer, infinitamente, na cena da escritura. E aí a queixa da mulher-escritora ao médico — "Doutor, estou me sentindo mal" —pode ser lida não apenas como um sintoma — "satisfação às avessas"[22] —, mas como uma estranha incumbência que Levana lhe tenha atribuído, não sem antes (e para sempre) passar por suas Nossas Senhoras das Tristezas.

E só aí — nessa pena de escrita, sua pena de morte — quem sabe a alma avolumada do escritor possa encontrar a leveza. E, elevada no ar, possa, então, voar.

Notas:
[1] Professora de Literatura da Faculdade de Letras da UFMG. Escritora, autora de A Falta (Record, 1997) e Livro de Cenas Fulgor (2 Luas, 2000), dentre outros.
[2] LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. P. 122: Esperando.
[3] Lispector. Op. cit., p. 122-123.
[4] Ibidem, p. 31: Um degrau acima.
[5] Ibidem, p. 21: Era uma vez.
[6] BLANCHOT, Maurice. L'instant de ma mort. Paris: Fata Morgana, 1996.
[7] DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
[8] BLANCHOT. Op. cit., p. 17.
[9] BLANCHOT, Maurice. O livro por vir.Lisboa: Relógio D'Água, 1984. P. 103: O infinito literário: o Aleph.
[10] KAFKA. Escritos de Franz Kafka sobre sus escritos. 2 ed. Barcelona: editorial Anagrama, 1983. P. 175.
[11] BLANCHOT. O livro por vir. P. 59-74: Joubert e os espaço.
[12] BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. P. 13.
[13] Ibidem.
[14] DURAS. Op. cit., p. 19.
[15] Ibidem, p. 21.
[16] LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais, drama poesia? P. 128-129. (Inédito)
[17] Ibidem, p. 173.
[18] LLANSOL. Op. cit., p. 130-131.
[19] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P. 39: Leveza.
[20] BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Ensaios, Novelas e Escritos íntimos/Paraísos artificiais.
[21] LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 3 ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1964. P. 63.
[22] Esta é a definição de sintoma dada por Lacan em Le séminaire. Livre V. Les formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1998. P. 319-334: Les masques du symptôme. 
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# Luciana Ferrari Montemezzo - A representação do golpe militar em “A casa dos espíritos”
Falar do ser humano e de sua evolução na Terra, seja através do discurso ficcional ou científico, é um ato político. Político não no sentido etimológico do termo, que se refere à arte ou ciência de governar, segundo o dicionário Michaelis (1998), o que significa hoje um ato essencialmente partidário. É um ato político no sentido de que participa da vida de um determinado povo, questiona-a e reflete sobre ela. Dessa maneira, toda palavra escrita - literária ou não - que trata da História vem carregada de um tom político, como afirma Eduardo Galeano, ao referir-se ao oficio do escritor no continente hispano-americano:

Escrevemos a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão com os demais, para denunciar o que dói e compartilhar o que dá alegria. Escrevemos contra a nossa própria solidão e a solidão dos outros. Supomos que a literatura transmite conhecimento e atua sobre a linguagem e conduta de quem a recebe; que nos ajuda a conhecer-nos melhor para salvar-nos juntos. (Galeano, 1990: 07)

De acordo com a perspectiva de Galeano, Isabel Allende em A casa dos espíritos reflete sobre a História chilena - que, em muitos aspectos, é semelhante à História latino-americana em geral - e descreve com muita propriedade fatos de essencial importância para a recuperação de períodos históricos ainda recentes e obscuros. Tais características podem classificá-la como um romance histórico, ou seja, como una obra que trata ficcionalmente dos signos da Historia. Sobre o entrecruzamento entre o discurso ficcional com o histórico, Mario González afirma que

O romance histórico (...) é leitor singular dos signos da história. (...) os signos da história são retomados pelo romance histórico para multiplicar seus significados. O discurso da história deve buscar a univocidade, por ser científico; o romance histórico, porém, recupera os signos da história do universo da afirmação científica para o espaço da existência humana onde foram motivados e onde são recarregados da ambigüidade original. (González, 1997: 212)

As afirmações de González chamam atenção para a concepção aristotélica de que ao historiador cabe o registro, enquanto que ao escritor cabe a criação. Ao leitor, participante de um determinado contexto histórico, cabe-lhe a identificação desses signos, através de leituras paralelas do mundo em que vive, com vistas a identificar a ficção na História ou vice-versa.

É na criação de una história dentro da própria História que Isabel Allende reconstitui um dos fatos mais relevantes da Historia chilena contemporânea: o golpe militar que depôs o socialista Salvador Allende e a conseqüente tomada de poder por parte dos militares. Embora a autora não mencione seu nome, através do conhecimento prévio da História recente, o leitor pode deduzir que o Presidente - sempre mencionado com maiúscula - socialista é, de fato, Salvador Allende.

Através dos personagens principais, marcam-se algumas posiciones sociais, as quais entrarão em conflito ao longo da narrativa e destacarão a amplitude alcançada pela ascensão ao poder - por via democrática - de um socialista em um país do terceiro mundo.

A obra dá especial importância, como se refere metaforicamente a professora Márcia Navarro, “as mulheres puxando o trem da história” (Navarro, 1995: 17). De acordo com a professora Navarro, em A casa dos espíritos

(...) a história do Chile não é apenas contada através de quatro gerações de mulheres que pertencem à elite dominante, mas também através da luta d e classes que está transformando o país e como as mulheres se posicionam a favor das classes oprimidas. (idem, p. 16)

Assim, narram-se os fatos históricos com muita singularidade, não somente devido à preocupação com a reflexão sobre os mesmos, através de a polissemia típica do texto literário, mas também devido à oportunidade que o texto dá às vozes femininas. O fato de que duas categorias sociais alijados do poder - as mulheres e os camponeses - possam expressar-se sobre um tema tão importante como a História faz de A casa dos espíritos um texto de protesto, digno de análise e reflexão.

AS PERSONAGENS
O rude proprietário rural Esteban Trueba, homem de origem humilde que conseguiu poder e riqueza explorando a pobreza e boa vontade de seus empregados, representa a elite chilena, decidida a manter sua hegemonia. É ativo participante de um grupo que defende os valores mais tradicionais, embora para isso necessite mascarar o que considera vergonhoso, em nome da reputação familiar, como quando a sua filha Blanca fica grávida de um camponês socialista. Trueba resolve a situação casando-a com um conde francês, solucionando o problema criado em seu lar e salvando a honra de sua filha. No entanto, o casamento é uma opção infeliz, já que o conde não compartilha os mesmos valores da família y desaparece, abandonando sua jovem esposa Blanca. A filha de Blanca, Alba, recebe, contudo, o sobrenome francês, desconsiderando-se sua origem camponesa, vergonhosa sob a ótica tradicional.

O pai de Alba, Pedro Tercero García, o camponês socialista, integra o povo dominado e inquieto, que luta por melhores condições de trabalho, igualdade social e reforma agrária. É um dos líderes do movimento que leva ao poder o Presidente socialista. Por tudo isso, opõe-se à elite, alçando a voz contra Trueba, patrão de sua família há anos. Com sus canções de protesto e seus discursos inflamados, tenta despertar os mais humildes para a existência de seus direitos.

Por causa disso, e acrescentando o fato de que o camponês é o responsável pela desonra de sua única filha mulher, Trueba persegue a Pedro Tercero e quando o encontra lhe corta três dedos da mão, para que não toque mais suas canções de protesto:

De uno de los galpones salía una frágil columna de humo, vi un caballo amarrado en la puerta, deduje que allí debía estar Pedro Tercero (...) Nos observamos em silencio, jadeando, cada uno esperaba el primer movimiento del otro para saltar. Entonces vi el hacha. (...) en el último instante levantó los brazos para detener el hachazo y el filo de la herramienta le rebanó limpiamente los tres dedos de la mano derecha. (Allende, 1985: p. 218-219)

Depois de tudo, embora apaixonado por Blanca, mas afastado dela, Pedro Tercero se incorpora à luta armada contra o regime ditatorial, vivendo como clandestino ao longo de grande parte da obra. Por isso, abre mão da convivência com Blanca, com quem somente vai encontrar-se no Canadá, ambos exilados.

As mulheres representam o caminho em direção à emancipação feminina e à ruptura com os padrões patriarcais de dominação. Nivea, a primeira, era a sufragista que lutava pelo voto feminino. Clara, sua filha, era a doce e clarividente esposa de Trueba, a única capaz de abrandar o autoritarismo do marido. Blanca, filha de Clara e Esteban, é a que se envolve com um camponês, mas ainda assim não consegue romper totalmente com as expectativas tradicionais e somente vai encontrar sua felicidade no exílio. Sua filha Alba, fruto da união das duas classes sociais, obtém sucesso em sua trajetória rumo à independência e rompe com os patrões, partindo para a luta armada e sofrendo as conseqüências de seus atos.

OS MOMENTOS DE TERROR
Quando a elite percebe a possibilidade de vitória do partido socialista, há discussões no âmbito do Partido Conservador, pelo qual Trueba agora é Senador da República. Preocupados com as mudanças sociais e com a reforma agrária apregoada pelos socialistas, reúnem-se os conservadores para organizar estratégias que garantam o manutenção da ordem social segundo seus desejos, através de um golpe militar. O agente de inteligência da embaixada presente à reunião, no entanto, rechaça tal alternativa, afirmando que “ese asunto lo vamos a arreglar con dinero” (p. 361). Trueba não concorda com a posição do agente:

- Sáquese esa idea de a cabeza, míster! - exclamó o senador Trueba -. Aquí no vai a poder sobornar a nadie! El Congreso y las Fuerzas Armadas son incorruptibles. Mejor destinamos ese dinero a comprar todos los medios de comunicación. Así podremos manejar la opinión pública, que es lo único que cuenta en realidad.

- Eso es una locura! Lo primero que harán los marxistas será acabar con la libertad de prensa! - dijeron varias voces al unísono.

- Créanme, caballeros - replicó el senador Trueba -. Yo conozco a este país. Nunca acabarán con la libertad de prensa. Por lo demás, está en su programa de gobierno, han jurado respetar las libertades democráticas. Lo cazaremos en sua propia trampa.

El senador Trueba tenía razón. No pudieron sobornar a los paralamentarios y en el plazo estipulado por la ley la izquierda asumió tranquilamente el poder. Y entonces la derecha comenzó a juntar odio. (idem, p. 361)

Com a vitória dos socialistas, Jaime, filho do Senador Trueba e médico comunitário, torna-se médico da presidência. Com isso, nas horas de agonia anteriores ao golpe militar, é chamado ao gabinete presidencial, onde testemunha os momentos mais críticos do governo:

Lo despertó la campanilla del teléfono y una secretaria, com a voz ligeramente alterada, terminó de espantarle la modorra. Lo llamaban del palacio para informarle que debía presentarse en la oficina del compañero Presidente lo antes posible, no, el compañero Presidente no estaba enfermo, no, no sabía lo que estaba pasando, ella tenía orden de llamar a todos los médicos de la Presidencia. (idem, p.385)

Devido à sua participação efetiva no governo socialista, a voz de Jaime narra os momentos finais do Presidente que ousara propor mudanças que favoreceriam a vida dos cidadãos mais esquecidos de seu país. No gabinete presidencial, Jaime participa dos momentos finais do Presidente:

(...) En el interior del edificio quedaron alrededor de treinta personas atrincheradas en los salones del segundo piso, entre quienes estaba Jaime. Creía encontrarse en el medio de una pesadilla. (...) Oyó la voz do Presidente que hablaba por radio al país. Era su despedida. (...) Vivan los trabajadores! Éstas serán mis últimas palabras. Tengo la certeza de que mi sacrificio no será vano! (...) Entonces oyeron el rugido de los aviones y comenzó el bombardeo. (idem, p. 386-387)

Não somente Jaime - que é morto pelos militares - mas também Alba participa das manifestações de resistência ao golpe militar e ao estado de exclusão que se impõe ao país. Sua participação é tão efetiva que a levam presa da casa de Trueba, desesperado ante a falta de respeito dos militares para com um Senador da República:

En esos meses, el senador había aprendido que ni siquiera su limpia trayectoria de golpista era garantía contra o terror. Nunca se imaginó, sin embargo, que vería irrumpir en su casa, al amparo del toque de queda, una docena de hombres sin uniformes, armados hasta los dientes (...) Vio a otros que abrían de una patada la puerta do cuarto de Alba (...) con metralletas en la mano (...), los vio sacarla a los empujones (...) (idem, p. 420)

Estupefato com os rumos que os militares deram ao golpe, e por ver-se envolvido em uma situação em que de nada valia sua reputação e seu nome, Trueba comove-se e passa a avaliar de maneira diferente a vida que lhe é imposta. Busca ajuda para encontrar Alba em Tránsito Soto, a prostituta a quem ajudou na juventude, que agora é influente e amiga de vários militares:

(...) yo al principio no quería oír hablar de muertos, de torturados, de desaparecidos, pero ahora no puedo seguir pensando que son embustes de los comunistas, (...) si hasta los propios gringos, que fueron los primeros en ayudar a los militares (...) ahora están escandalizados por la matanza, (...) pero se les pasó la mano, están exagerando las cosas y con el cuento de la seguridad interna y que hay que eliminar a los enemigos ideológicos, están acabando con todo el mundo (...) (idem, p.439-440).

A representação que é dada ao golpe militar é uma demonstração da proximidade entre o ficcional e o histórico na narrativa de A casa dos espíritos. Parte da crítica, talvez devido à riqueza de detalhes com que é contada a história, define-a como “demasiadamente jornalística”, aludindo, talvez, ao início da carreira de Isabel Allende. Outra parte, provavelmente por causa da atitude emocional que perpassa toda a narrativa, afirma o paradoxo de emocionalidade nos relatos históricos. Se se pode dizer que o estilo é jornalístico em alguns trechos, não se pode afirmar que isso rouba o valor à obra, uma vez que é jornalista o primeiro elo na cadeia que registra os fatos que, depois de um determinado tempo, vão adquirir ou não valor histórico. Quanto à emocionalidade na narrativa, cabe afirmar que, como já se disse, o romance histórico não tem compromisso com o científico. Ao contrário, ao questionar o valor absoluto dos fatos históricos, reflete sobre eles e polemiza seu status de verdade única.

Bibliografia
ALLENDE, Isabel. La casa de los espíritus. Buenos Aires: Sudamericana, 1985.
GALEANO, Eduardo. A descoberta da América (que ainda não houve). Porto Alegre: EDUFRGS, 1990.
GONZÁLEZ, Mario. Memória e biografia. In: AGUIAR, Flávio (org.) Gêneros de fronteira: cruzamento entre o histórico e o particular literário. São Paulo: Xamã, 1997.
NAVARRO, Márcia Hoppe (org.). Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina. Porto Alegre: EDUFRGS, 1995. 
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# Luiz Roberto Velloso Cairo - Anotações sobre El Brasil intelectual, de Martín García Merou
El estudio de un ser viviente se compone, en gran parte, del estudio de las relaciones que lo unen á los seres vecinos. Del mismo modo, no hay literatura cuya hitoria se encierre en los límites de su país de origen.

Joseph Texte

Por volta dos anos 80, quando desenvolvia um projeto de pesquisa sobre a obra crítica de Araripe Júnior, que resultou na tese de Doutorado, O salto por cima da própria sombra. O discurso crítico de Araripe Júnior: uma leitura, encontrei no conjunto da obra do crítico alguns textos contendo reflexões sobre a cultura e a literatura latino-americanas, que me despertaram a curiosidade, porque o momento no qual o autor exercia a sua atividade crítica era ainda muito marcado, na literatura brasileira, pela busca da identidade nacional. Busca esta que, se de um lado nos aproximava das demais literaturas latino-americanas, pelo fato de estarem vivendo um momento semelhante, de outro nos afastava por conta deste instante ser marcado pelo empenho na construção da nacionalidade da literatura brasileira, o que nos levou a um maior ensimesmamento, e pela circunstância lingüística de nos expressarmos em língua portuguesa.

Dentre os textos encontrados, destacaria principalmente os dedicados ao escritor argentino Martín García Merou, que, em 1896, iniciou a publicação de uma série de artigos sob a rubrica “El Brasil Intelectual”, no periódico La Biblioteca, de Buenos Aires, com o objetivo de divulgar a produção científica e literária brasileira entre os seus conterrâneos. Estes artigos, posteriormente, foram reunidos e, em 1900, sob a forma de livro, publicados pelo editor Felix Lajouane, em Buenos Aires, com o título El Brasil Intelectual: impresiones y notas literarias, por ocasião da visita diplomática à Argentina, de Campos Sales, na época, Presidente do Brasil.

Quando tomei conhecimento deste material que, por motivos diversos, naquele momento, não utilizei na pesquisa, constatei que tinha em mãos um interessante e raro diálogo que se estabeleceu, em fins do século XIX e início do século XX, entre o intelectual argentino e alguns escritores brasileiros.

Num primeiro momento, minha atenção voltou-se obviamente para a exploração dos textos que, de certa forma, estabeleciam um diálogo entre Araripe Júnior e Martín García Merou, o que me levou a escrever o artigo “Don Martín García Merou: repercussões de um escritor argentino na crítica literária brasileira do século XIX”(Cairo, 1993, p. 182-193).

Em seguida, montei o projeto de pesquisa “Os críticos brasileiros do século XIX e El Brasil Intelectual: impresiones y notas literarias, de Martín García Merou: um diálogo latino-americano”, com o objetivo de explorar os eventuais diálogos do argentino com os intelectuais brasileiros por ele abordados.

Desde então, escrevi os artigos “Martín García Merou e José Veríssimo: um diálogo latino-americano”(Cairo, 1996, p. 57-66), “Martín García Merou: um olhar portenho sobre Sílvio Romero”(Cairo, 1999, p. 133-141), e “Martín García Merou e o Visconde de Taunay: considerações em torno de um diálogo latino-americano”(Cairo, 1998).

A publicação deste livro aparentemente inusitado de Merou parece justificar-se, não apenas pelos festejos diplomáticos em torno da viagem do Presidente brasileiro à Argentina, mas também pela perplexidade manifestada pelo autor, logo nas primeiras páginas, frente à constatação de que dentre as literaturas sul-americanas, a brasileira era a menos conhecida dos argentinos. Ele não consegue entender como uma literatura de indiscutível valor, tão próxima geográfica e culturalmente, pudesse passar despercebida aos olhos dos leitores do seu país e dos demais países sul-americanos.

De todas las literaturas sudamericanas, ninguna es tan poco conocida entre nosotros como la del Brasil. (Merou, 1900, p. 1)

Por mi parte no vacilo en confesar que, sorprendido de la variedad y valor real de la producción literaria brasilera, me he preguntado mas de una vez, como es que ella puede pasarnos hasta hoy casi inapercebida. El Brasil está ligado á nuestro país por vínculos estrechos. (1900, p. 3)

Ao fazer esta reflexão, constata que, em relação às obras dos escritores hispano-americanos, o conhecimento dos argentinos era um pouco melhor, mas ainda assim estava longe de ser o ideal:

De tarde en tarde, com mayor ó menor dificultad, jadeante y fatigado por la larga travesía, recibimos uno que outro livro de nuestros hermanos del Perú, de Méjico, de Venezuela ó Colombia. Sin ser un vaso común, á veces un nombre dotado de mayor resonancia, rompe la indiferencia reinante y vence la incomunicación intelectual que separa las secciones de nuestro continente. Sólo por una rara excepción, una obra nacida bajo una estrella propicia, adquiere entre nosotros carta de ciudadanía, como acontece con ese tierno idilio que Estrada tuvo el mal gusto de comparar com Graziela; y la María de Jorge Isaacs, se convierte en el breviario amoroso de las cándidas imaginaciones de quince años. El grueso de la producción científica ó literária, la historia, la crítica, los estudios jurídicos, están destinados à reposar, como en una muda necrópolis, en las bibliotecas públicas ó en medio de las colecciones valiosas de los eruditos de raza, que sólo muy raras veces hojean sus páginas polvorosas Este triste destino, es el lote general de toda la labor intelectual del nuevo mundo. (1900, p. 1-2)

Nesta mesma direção, observa que o mesmo acontecia com a repercussão dos escritores argentinos, que apenas excepcionalmente conseguem atravessar a fronteira dos demais países americanos:

En cuanto respecta á nosotros, los únicos nombres literarios que han salvado las fronteras de la patria son los de Guido Spano y Andrade, para no referirme al de Mármol, algo envejecido, pero cuyas imprecaciones contra Rosas despiertan todavía el entusiasmo de una parte de la juventud sudamericana. Las huellas de Sarmiento y Alberdi quedan grabadas en Chile, aunque menos vivientes que las de don Andrés Bello; pero sería excusado buscar fuera de aquel país y del escaso número de iniciados á que acabo de referirme, quienes conozcan los Recuerdos de Província o la Peregrinación de Luz del Día. (1900, p. 2)

No caso do Brasil, a indiferença dos argentinos, conforme registra, não era compreensível, não só em função do talento e refinamento de seus escritores e intelectuais, como também pelo fato de terem tido experiências históricas comuns:

Nuestra historia política está en contacto com la suya, desde la época colonial. Hemos cruzado nuestras armas en guerras gloriosas, hemos favorecido juntos el nacimiento de otras nacionalidades, hemos luchado después en las mismas filas, en una campaña brillante pero deplorable; nuestros intereses comerciales son solidarios y los productos de nuestro suelo se complementam; la extensa línea de nuestras fronteras facilita la amistad de pueblo á pueblo; nuestras grandes capitales, los centros pensantes y dirigentes de ambos países, están apenas á tres dias de navegación; finalmente, hemos vaciado en el mismo molde nuestras instituciones políticas y hemos chocado con los mismos obstáculos al llevar á la práctica sus principios liberales. (MEROU, 1900, p. 3-4)

O desapontamento de Merou leva-o a fazer algumas indagações:

Cómo comprender, com estos antecedentes, el alejamiento respectivo en que vivimos? Cómo disculpar la mutua ignorancia en que nos hallamos de nuestras modalidades nacionales, de nuestras virtudes nativas, de nuestro estado de civilización y de cultura, de la forma é importancia de nuestra producción intelectual? (1900, p. 4)

Estas indagações por sua vez o conduzem a outras que antecedem às primeiras:

Tenemos realmente una cultura artística propia, algo que pueda llamarse una literatura nacional, ó estamos en condiciones de tenerla?... Podemos abrigar la pretensión de haber conseguido lo que es todavia un desideratum para naciones que han llegado al grado de desarrollo de los Estados Unidos?... (1900, p. 4)

Ao tentar responder estas questões, percebe a necessidade de mapear o problema e acaba aproximando e, conseqüentemente, isolando dos demais países americanos os Estados Unidos e o Brasil. Isto porque, partindo de uma interpretação marcada pelo determinismo, ora mesológico, ora etnológico, tende inicialmente a uma generalização:

Aquí como allí, la influencia del medio modificó profundamente el alma de la raza colonizadora. (1900, p. 6)

No caso norte-americano, apoiando-se na leitura de American Literature de John Nichol, afirma que, nos Estados Unidos, as condições físicas e as circunstâncias morais amoldaram o anglo-saxão de tal forma que ao aproximar seus feitos aos do nativo, nele “estampa” um novo caráter. No caso do Brasil, embasa-se na teoria da Obnubilação Brasílica de Araripe Júnior, para dizer que o fenômeno de transformação e posterior adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo por que passaram os colonos dos três primeiros séculos ao atravessarem o Atlântico, aliado à docilidade dos nativos, favoreceram um entrosamento entre ambos que possibilitou o prolongamento e a continuação da cultura européia.

Tomando por base o Curso Elementar de literatura nacional do Cônego Fernandes Pinheiro, vê os precursores da literatura brasileira – Durão, Basílio da Gama, Caldas, os Alvarengas e Cláudio Manuel da Costa - como um reflexo do pensamento dos poetas portugueses, da mesma forma como vê as manifestações espirituais dos Estados Unidos se perderem no vasto tesouro da Inglaterra.

Los brasileros podrían encabezar la lista de sus vates com el nombre de Camoens, com igual derecho al de aquella dama americana que, á una pregunta respecto á los poetas de su nación, que le dirigió un crítico inglés: “Entre otros – respondió – contamos com Chaucer, Shakespeare y Milton”. (1900, p. 6)

Este tipo de interpretação o conduziu à crença de que:

La influencia de nuevas gentes, la facilidad del contacto com los pueblos del viejo mundo, las corrientes inmigratorias, que se difunden en todo los ámbitos del país, y que luchan sin tregua por el sometimiento de la naturaleza, son otras tantas causa que en el Brasil concurren para que la acción del medio se debilite, en detrimento de la originalidad individual. Consecuencia de estos hechos, es el espíritu de imitación que estraga la cultura intelectual de aquella nación, como la de la república del Norte. (1900, p. 7)

Para Merou, parece que o espírito de imitação que conduz a predileção dos artistas pela ilustração na Europa seria um traço que diferencia os povos dos Estados Unidos e do Brasil dos demais do continente americano. O que, hoje, sabemos não ser pertinente, pois nenhum país da sul-americano ficou imune a esta ilustração.

Em texto de 1985, intitulado “A dimensão utópica da ilustração”, Antonio Candido coloca, ao contrário de Merou, que:

Os países da América Latina realizaram a sua independência política sob o fluxo da Ilustração. Os seus promotores assumiram alguns princípios desta, que atuaram como fator de unidade dentro da grande diversidade das culturas existentes entre o México e a Terra do Fogo. Um desses princípios pode ser expresso por meio das seguintes proposições (1) o saber trará a felicidade dos povos, (2) este saber é aquele que veio da Europa, trazido pelo colonizador, (3) os detentores deste saber formam uma elite que deve orientar o destino das jovens nações. A principal conseqüência foi a idéia de que o saber seria difundido por todos, a partir das luzes de poucos. (Candido, 1999, p. 91)

Infelizmente a má distribuição da riqueza na América continua não dizendo respeito apenas à economia, mas também, proveniente desta visão ilustrada, à cultura, à literatura, à arte e à ciência que acabam constituindo instrumentos de poder a serviço de uma elite, conforme Antonio Candido observa com muita lucidez:

A história dos ideais ilustrados na América Latina tem às vezes um sabor quase trágico de perversão dos intuitos ostensivos, porque acabaram funcionando como fatores de exclusão, não de incorporação, de sujeição, não de liberdade. Este fato nem sempre chegou ao nível da consciência clara, tanto nos grupos dominantes quanto nos dominados; tornou-se uma espécie de perplexidade, como se os objetivos ideais fossem ficando sempre para mais adiante. (1999, p. 91).

Retomando as questões levantadas por Merou, no que se refere ao histórico alijamento da produção científica e literária brasileira por parte dos leitores da Argentina e dos demais países sul-americanos, os motivos que se costumam colocar para justificá-lo são principalmente a diferença lingüística e as imagens preconceituosas que os espanhóis nutriam em relação aos portugueses.

Durante o processo de colonização da América Latina, a Espanha, realmente, gozava de maior prestígio que Portugal, por isso talvez o Brasil fosse visto pelos hispano-americanos com um certo desprezo resultante de sua aparente “inferioridade cultural”.

Quando de sua estadia no Brasil, Merou curiosamente constata a existência de uma interessante efervescência cultural, graças ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, no Rio de Janeiro, onde:

El cultor de las letras, el investigador tranquilo y asiduo de la historia patria, encontraban un centro propicio y silencioso, en que unir sus esfuerzos y colaborador en la obra benéfica de su civilización y su progreso moral. (1900, p. 20)

Esta efervescência desfaz a imagem pré-concebida da excolônia portuguesa, a ponto de lamentar que, na Argentina, a realidade, fosse bem diferente, naquele momento:

Ay! en aquel mismo año, las sombras de la dictadura trataban de apagar todos los destellos de la inteligencia argentina! Alberdi se alejaba de la tierra de su cuna, para no deprimir su alma jurando fidelidad al déspota, é iba á encontrar en playas extrañas á Sarmiento, á Mitre, á Mármol, á Gutiérrez, dispersos por la ola de la barbarie. Quien puede calcular cuál sería el grado de nuestro desarrollo actual, se elimináramos de nuestra historia medio siglo de anarquía y de guerras intestinas? (1900, p. 20)

A perplexidade de Merou frente ao desconhecimento mútuo entre os povos americanos me lembraram a observação de José Veríssimo num texto intitulado “Um americano e a literatura americana”, publicado em Homens e coisas estrangeiras, 1ª série, onde ele diz:

Pouquíssimo sabemos nós, brasileiros, das literaturas americanas, e não sei se eu não poderei, generalizando, afirmar que pouquíssimo sabemos nós, americanos, da literatura uns dos outros. Nessa nossa comum e recíproca ignorância, os Estados Unidos, não obstante sua supremacia no continente, não têm quinhão consideravelmente menor do que o México ou a Venezuela, por exemplo. Ignoramo-los intelectualmente quase tanto como ao Chile ou à Argentina. (Broca, 1998, p. 68)

Nesta mesma linha, Brito Broca por volta de 1946, num texto intitulado “O Brasil e as literaturas latino-americanas”, hoje incluído na coletânea Americanos, escreveu:

Não se compreende como os países latino-americanos permanecem no desconhecimento recíproco das respectivas literaturas. Dizemos apenas nos países latino-americanos, porque hoje, não só no Brasil, mas em todo o continente, já não reina a ignorância de outrora com relação aos Estados Unidos. (...) Entretanto, dos nossos vizinhos de língua espanhola continuamos a conhecer somente duas ou três figuras de proa, mostrando a mais completa indiferença pelos valores que entre eles ainda possa existir. (Broca, 1998, p. 66)

Naquele momento, chegou mesmo a presentear os leitores com uma generosa sugestão:

Seria um trabalho curioso e de grande importância documentária historiar as nossas manifestações isoladas e fugazes de interesse pelas literaturas do Norte e do Sul. (1998, p. 67)

Neste texto, vale observar Brito Broca, referindo-se à ignorância do leitor brasileiro à novela María, de Jorge Isaacs, sobre a qual escrevera em 1942, fato este registrado no passado por Merou, em relação ao desconhecimento da novela Inocência, do Visconde de Taunay, por parte dos hispanos:

Cuantos de los apasionados de María, sospechan que existe en el Brasil una dulce hermana de la heroína de Isaacs, aquella hermosa Innocencia, cuya historia há referido en una obra encantadora el vizconde de Taunay?... (Merou, 1900, p. 3)

Mais recentemente, Antonio Candido, no texto “Os brasileiros e a nossa América”, de 1986, comenta a existência de uma acentuada assimetria no modo como os dois blocos lingüísticos da América Latina se vêem, o que significa termos avançado muito pouco em direção ao auto-conhecimento, enquanto latino-americanos.

Ao longo das 469 páginas de El Brasil Intelectual: impresiones y notas literarias, Martín García Merou discorre sobre as principais figuras da intelectualidade brasileira do final do século XIX. Figuras como Sílvio Romero, Tobias Barreto, José Veríssimo, Araripe Júnior, Visconde de Taunay, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto de Oliveira, Raimundo Corrêa, Fontoura Xavier, Francisca Júlia, Coelho Neto, Ferreira de Araújo, Carlos de Laet, Machado de Assis, Quintino Bocaiúva, Carlos Rodrigues, Tobias Monteiro, Inglês de Sousa, Aluísio Azevedo, Afonso Celso, Rodrigo Otávio e Manuel de Oliveira Paiva desfilam pelas páginas do livro sob o olhar do crítico portenho.

Através do olhar destas e sobre estas personalidades, Merou apresenta aos argentinos uma verdadeira história da cultura literária brasileira. Vale dizer que ao informar seus leitores, cruza seu olhar não só com o destas personalidades, como também com o olhar de outros hispano-americanos que já haviam escrito sobre Brasil, mas isto fica para outro momento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Gregório de Matos (Perfil Literário). Obra crítica de Araripe Júnior (Org. Afrânio Coutinho) Vol. 2. Rio de Janeiro: MEC-Casa de Rui Barbosa, 1960, p. 383-490.
BROCA, Brito. O Brasil e as literaturas latino-americanas. Americanos. (Org. M. Gárate) Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1998, p. 63-73.
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_______ Don Martín García Merou: repercussões de um escritor argentino na crítica literária brasileira do século XX. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n°. 35. São Paulo: I.E.B.-USP, 1993, p. 182-193.
_______ Martín García Merou e José Veríssimo: um diálogo latino-americano. Literatura Comparada: ensaios. (Orgs. E.L. Cunha e E.M. de Souza) Salvador-BA: EDUFBA, 1996, p. 57-66.
_______ Um olhar portenho sobre Sílvio Romero. Limiares críticos: ensaios de literatura comparada (Orgs. R. Marques e G.N. Bittencourt) Belo Horizonte-MG: Autêntica, 1999, p.133-141.
_______ Martín García Merou e o Visconde de Taunay: considerações em torno de um diálogo latino-americano. GT de Literatura Comparada. XIII Encontro Nacional da ANPOLL. Campinas-SP, junho/1998.
CANDIDO, Antonio. A dimensão utópica da ilustração. Remate de Males. Número Especial Antonio Candido. Campinas-SP: Depto. De Teoria Literária / IEL – UNICAMP, 1999, p. 91-95. _________________ Os brasileiros e a nossa América. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 130.

MEROU, Martín García. El Brasil Intelectual: impresiones y notas literárias. Buenos Aires: Félix Lajouane, 1900.
VERÍSSIMO, José. Um americano e a literatura americana. Homens e coisas estrangeiras. 1ª série. Rio de Janeiro: Garnier, 1902. 
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# Magdala França Vianna - Convergências e diferenças culturais nas sociedades pluriétnicas em situação pós-colonial
Quando se comemoram quinhentos anos do processo de expansão ocidental, faz-se necessário verificar como a existência de convergências e diferenças culturais nas sociedades pluriétnicas em situação pós-colonial atua sobre a representação política de núcleos de resistência ao apagamento do patrimônio de saberes e fazeres de sociedades excluídas dos centros de poder.

Uma análise dos nacionalismos surgidos dos processos de descolonização torna visível, nos povos emergentes desse contexto em épocas diferenciadas, um confronto entre o desejo de resgatar e afirmar uma continuidade histórica e a compulsão para ingressar na modernidade de seu tempo. Segundo os cânones de uma cultura política vigente até então, o resgate do continuum histórico incide diretamente sobre a legitimação da soberania nacional, e o ingresso na modernidade instaura a possibilidade de participação na competitividade de mercado. No momento em que se faz uma revisão do equilíbrio de forças na circulação dos recursos econômicos entre os centros hegemônicos do sistema mundial, essa tensão é o pano de fundo das atuais políticas de naturalização do social e do político.

Um estudo da historiografia e das práticas políticas das sociedades pós-coloniais mostra a recusa do Estado em considerar o tempo como dimensão onde se organizam os jogos políticos. Essa é uma característica própria do nacionalismo promovido pelo Estado. O divórcio entre as memórias sociais e a historiografia difundida pelos media oficiais traduz-se pela imposição do esquecimento. Isso significa que o consenso visado é trabalhado em muito pouco tempo, inviabilizando toda a negociação que o esquecimento forçado pela situação colonial havia estimulado, favorecendo a emergência da consciência histórica. O esquecimento imposto, entretanto, paradoxalmente reforçou diversas memórias e o determinismo do processo histórico, ancorado no par classe-raça, não conseguindo fazer acreditar a classe como objeto político natural do sistema de representações sociais, vem incidindo sobre a questão étnica. Os regimes coloniais tiveram mais sucesso com o investimento no conceito de raça, à medida que a idéia do caráter natural da identidade coletiva étnica, transmitida pela via da filiação, tornou-se o elemento central de estruturação das forças políticas em competição com os recursos, cujo acesso o Estado controla. Nos dois casos, a dúvida sobre a natureza do sucesso ou do fracasso persiste, uma vez que as demagogias políticas centradas na classe ou na raça parecem não ter impacto real senão sobre os discursos e as práticas no âmbito de um espaço estatal. A consciência de que a classe constitui uma clivagem de acesso ao poder e aos recursos provocou nas culturas populares urbanas de várias sociedades pós-coloniais um comportamento compulsivo na busca do essencialismo identitário atrelado às memórias, muitas vezes congeladas em um espaço significativo de tempo. A fim de proteger grupos e comunidades do totalitarismo do historicismo ideológico do regime colonial ou o do socialismo real, as memórias muitas vezes deixaram de constituir processos culturais para se tornarem relíquias.

As sociedades que giram em torno de suas tradições, arquivadas em textos, artefatos e imagens, presumivelmente herdadas de seus ancestrais, trabalham sua continuidade histórica recuperando uma cadeia de atos necessários que supõe a existência de verdadeiros e falsos atores sociais e políticos. Há sociedades que herdam o patrimônio de saberes e fazeres em virtude dos direitos "naturais" de nascimento e de filiação, também há as que usurpam essa herança ou ainda as que a negam. Considerando-se essas categorias, a contaminação da herança cultural acumulada significaria, de um dado ponto de vista, uma perda de identidade e o risco de dilapidação do patrimônio. Assim, a experiência do tempo seria uma resistência ao tempo, uma luta para preservar intacta a herança ancestral. O tempo é vivido como obstáculo a superar, no esforço de preservação dessa herança, uma vez que as mudanças instauram o risco de enfraquecimento da identidade e de dissolução da sociedade sob o efeito do tempo. Trazer o passado preservado ao presente seria uma tentativa de anulação do efeito do tempo. Para outras, entretanto, o tempo é uma experiência do vir-a-ser social e a sociedade estrutura-se em um processo permanente de tomada de consciência coletiva e de construção de seu patrimônio cultural. Nesse contexto, a tradição perde sua especificidade e é vivida apenas como um dos componentes da cultura, alimentada por diversas mestiçagens com sociedades tanto contemporâneas como ancestrais, próximas e distantes, ou seja, em situação transterritorial.

É, portanto, nesse processo que se coloca a questão das convergências e diferenças culturais e sua dimensão política. A diferença, que tem sua fonte em uma distinção culturalmente dada, assegura a possibilidade de comunicação e torna possível o político, uma vez que uma comunidade, concebida como unidade perfeita de indivíduos idênticos em um sistema de auto-gestão, não teria necessidade do outro nem possibilidade de comunicação com o outro. Se a realidade política de uma comunidade estrutura-se em torno de uma representação sócio-cultural que lhe confere especificidade, no sistema contemporâneo das representações, uma representação é relativa em relação a outras, em relação à dos outros. Sendo assim, a discussão sobre os conceitos (entre outros que incluam a questão da convergência e das diferenças culturais) de classe, raça, etnia, e sua constituição em atores políticos virtuais a serviço dos mecanismos ideológicos de poder constitui-se em um pertinente objeto de pesquisa.

Este trabalho situa-se, pois, no âmbito dessa reflexão, e busca, na análise das narrativas de Patrick Chamoiseau (Martinica) e Ariano Suassuna (Pernambuco), avaliar a extensão desse construto teórico no processo de identificação cultural de sociedades pluriétnicas em situação pós-colonial sob novas formas de imperialismo, ainda que menos visíveis. A opção pela região do Grande Caribe baseia-se nos conceitos de região que Édouard Glissant desenvolve em Introduction à une poétique du divers: "Ce que je vois, aujourd'hui, c'est que les continents 's'archipélisent', du moins du point de vue d'un regard extérieur. Les Amériques s'archipélisent, elles se constituent en régions par-dessus les frontières nationales. Et je crois que c'est un terme qu'il faut rétablir dans sa dignité, le terme de région. L'Europe s'archipélise.

Les régions linguistiques, les régions culturelles, par-delà les barrières des nations, sont des îles, mais des îles ouvertes, c'est leur principale condition de survie" (GLISSANT, 1996, p. 44). Trata-se ainda de discutir políticas culturais e construir sobre o assunto uma abordagem teórica clara e científica, articulando conceitos, como a negritude de Aimé Césaire, a crioulização de Édouard Glissant, a crioulidade de Patrick Chamoiseau, Raphaël Confiant e René Depestre, a transculturação de Fernando Ortiz e Angel Rama, o hibridismo de Nestor García Canclini, a antropofagia de Oswald de Andrade, a mestiçagem de Gilberto Freire, o tropicalismo de 68 e o armorialismo de Ariano Suassuna, que pontuam a discursividade latino-americana em busca de sua função na sociedade ocidental.

Bibliografia
ANDRADE, Oswald. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. In: Obras Completas VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
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Éloge de la créolité.Paris: Gallimard, 1989.
BHABHA, Homi (org). Nation and narration.
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BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Visão do paraíso. Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional -USP, 1969.
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SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas. Polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Iluminuras/EDUSP/FAPESP, 1995. 
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# Marcos Falchero Falleiros - Ingenuidade e brasileirismo em Manuel Bandeira
O estado de espírito de uma história infantil a que a obra lírica de Manuel Bandeira dá expressão aparece bem representado em Lira dos cinqüent’anos, no poema de 1943, “Testamento”, cujo perfil de discurso público se mostra travado no início, para a seguir, nos versos finais de cada estrofe, desembestar sua gagueira constrangida como que auxiliado pelo achado da rima, que apressa o andamento final, também com a ajuda do fluxo sintático entre estes últimos versos, fazendo com que seu desfecho se assemelhe à vazão coletiva de um responso – embalo que leva a um comprometimento “fatal” na última estrofe. Imitado dos versinhos que um mendigo declamava para o pai do poeta como pagamento pela esmola, o poema traz tal movimento sensivelmente na segunda e quinta estrofes:

Testamento
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras de minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado,
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho! ... Não foi de jeito ...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde ...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Entre camicases e nazismo, no ritmo do poema Bandeira revela seu amor às formas populares, como no uso freqüente dos versinhos das redondilhas e da circularidade reiterativa dos versos iniciais no final de seus poemas, por exemplo, em “Vulgívaga”, em “Vou-me embora pra Pasárgada”, e tantos outros. Mas, no movimento da forma, também banha a obra o tema do vivido-a-triste-sina sob o aspecto de uma apresentação ao público, que, na sonoridade declamatória da formulação, sugere, mesmo sem construção imagética, a cena receptora de um auditório, mais nitidamente do que o que está sempre implícito à natureza do fingimento poético na lírica. Na inauguração da obra, em 1917, com “Epígrafe” de Cinza das horas:

Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Em “Vulgívaga”, de Carnaval, 1919:
Fui de um ... Fui de outro ... Este era médico ...
Um, poeta ... Outro, nem sei mais!
Tive em meu leito enciclopédico
Todas as artes liberais.

Em Estrela da manhã, de 1936, o poema homônimo:
Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário.

Ainda nessa obra, no poema “Oração a Nossa Senhora da Boa Morte”:
Fui despachado de mãos vazias!
Dei volta ao mundo, tentei a sorte.

No tom humilde do relato, que ecoa sempre o modo popular do náufrago da vida, tendo sempre para ele alguma solidariedade toda-ouvidos, não há tragédia grega de um destino indecifrável, mas a familiaridade natural aquém de uma direção histórica consciente de suas possibilidades de intervenção como sujeito racional sob viés iluminista. Nessa imagética popular, várias configurações são possíveis: a festa escolar do menino bem-nascido posto no palco, o discurso de confidência no lupanar, o choro boêmio no bar do porto - são imagens que aderem conciliatoriamente a um mundo sempre-o-mesmo que as acolhe com solidariedade resignada. Nenhuma tragicidade há nessas misérias que as obscureça com o travo da contradição. O lirismo “menor” vem de uma subjetividade pouco densa na afirmação contra o mundo, e nada acuada naquilo que possa ser o exílio de sua acentuada individualização biográfica.

A claridade de sua limpidez moderna recupera em seu choro lírico conotações remotas das lágrimas de Odisseu. Choro de criança, sem o peso de dramaticidade sinistra e psicologia escura de depressivos “desterros transcendentais” - para usar a expressão com que Lukács em Teoria do romance deu como condição e situação histórico-filosófica para o surgimento do gênero.

A fonte popular é o elemento fundamental para esse processo, tanto quanto o mundo de aconchego onde seu jorro é colhido. A resolução feliz do complexo familiar, a amizade terna do pai aninharam a infância do poeta que iria encontrar nas raízes de seu lirismo o país fabuloso de Pasárgada. Dos seis aos dez anos, Bandeira viveu no Recife, onde, da primeira meninice, cantada em “Infância”, floresceu, segundo suas palavras, “ o conteúdo inesgotável de emoção” que o adulto reconheceria na “emoção de natureza artística”.

A casa de seu avô como capital e a Rua da União, Rua da Aurora, Rua da Saudade, Rua Formosa e Rua Princesa Isabel eram a sua Tróada, conta o poeta. Foram nesses quatro anos, cuja densidade espantosa deixou ao resto da vida adulta a sensação de vazio, que, no Recife, “com pequenos veraneios nos arredores”, como ele relata em Itinerário de Pasárgada, construiu-se a sua mitologia: “e digo mitologia porque os seu tipos, um Totônio Rodrigues, uma Dona Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência heróica das personagens dos poemas homéricos”.

No tempo em que a poesia ocupa as primeiras páginas de jornais, Bandeira aprendeu com o pai que “a poesia está em tudo”. Seus primeiros contatos com as formas líricas, sob letras e falas de seu pequeno mundo, ocorreram com os contos de fadas, as histórias da carochinha, as cantigas de roda, as trovas populares. Ali, no país fabuloso, ouviu os versos de um mendigo que lhe deixaram como herença a forma e o corpo de “Testamento”, entre tantos outros versos que acalentaram a infância do menino feliz. Sem lembrar a relação desses versos com “Testamento”, entretanto Bandeira diz em Itinerário de Pasárgada:

“Lembro-me de uns cujo autor até hoje ignoro. Ouviu-os meu pai de um sujeito que um dia, no alpendre de uma casinha no interior de Pernambuco, lhe veio pedir esmola. Meu pai, que gostava de brincar, disse-lhe: ‘Pois não! Mas você antes tem de me dizer uns versos’. Ora, o nosso homem não se fez de rogado e saiu-se com esta décima lapidar, cujo primeiro verso, estropiado, mostra que a estrofe não era de sua autoria:

Tive uma choça, se ardeu-se.
Tive um só dente, caiu.
Tive uma arara, morreu.
Um papagaio, fugiu.
Dois tostões tinha de meu:
Tentou o diabo, joguei-os.
E fiquei sem ter os meios
De sustentar os meus brios.
Tinha uns chinelos ... Vendi-os
Tinha uns amores ... Deixei-os. ”

O ponto final de quase todos os versos sugere o pensamento que se articula com dificuldade em razão de um misto de condição simplificada de linguagem e constrangimento diante do “patrão”. Do mesmo modo articula-se a assimilação que Bandeira faz deles em “Testamento”.

Assim, ao assimilar essa forma, a poesia “menor” de Bandeira faz figurar seu encontro com a poesia alta do Ocidente no século 20 em sua complexidade de “abstrações generosas”, criando voz própria em diálogo com elas, posta humildemente em sua situação inferiorizada de periferia, em uma civilização recente e colonizada, dependente e postiça, mas de cuja situação retira a força da viçosidade e uma autencidade ingênua.

Mas sua individualidade, no recolhimento radical da cerca biográfica, dá prova de ter alcançado voz brasileira através da recepção em primeira plana com que a cultura do país agracia sua obra. Assim, a felicidade da expressão em Bandeira não permite diagnosticá-la apenas com os clichês de uma filosofia generalizante do tipo “os espinhos da vida”, o que significaria interpretá-la por sua exterioridade, sem encontrar nela as relações históricas entre estilo e ideologia, para finalmente entregá-la ao kitsch sentimentalão, de que cedo o poeta soube se livrar.

O alcance e a expressão da voz brasileira que sua poesia configura, são aspectos que envolvem uma dinâmica muito mais complexa que as categorias - já de si imprecisas - do “ingênuo” e do “sentimental” em Schiller, ou - também pertinentes - as de “homérico” e “bíblico” em Auerbach, ou ainda as implicitamente elaboradas por Benjamin, quando, em O narrador, a partir da teoria do romance de Lukács e de sua concepção de “forma do desterro transcendental”, cria a contraposição entre “narrativa oral” e “romance”, deixando àquela o sentido da ingenuidade. Entretanto, podemos ouvir as observações de Schiller em Poesia ingênua e sentimental para aproximá-las da conceituação de poesia ingênua que pode caracterizar o resultado histórico-estético de Manuel Bandeira:

“Alguém que observa em si a impressão causada por poesias ingênuas e seja capaz de nela separar a porção que cabe ao conteúdo, achará essa impressão jovial, sempre pura, sempre calma, mesmo em objetos bastante patéticos; em objetos sentimentais, será sempre algo séria e tensa. Isso se dá porque nas formas de expressão sentimental, ao contrário, temos de unir a representação da imaginação a uma Idéia da razão e, assim, sempre vacilamos entre dois estados diferentes”.  [topo da página]

# Maria Antonieta Pereira - Narrativas do Cone Sul
Hay cierta ventaja, a veces, en no estar en el centro. Mirar las cosas desde un lugar levemente marginal.
Ricardo Piglia

Esse lugar, teoricamente, tem muitas vantagens (...) nem todos os produtos periféricos são periféricos.
Silviano Santiago

Em "A trama celeste" (BIOY CASARES, 1995), o narrador informa o desaparecimento do capitão Irineo Morris e do médico Carlos Alberto Servian, ambos funcionários da aviação argentina. Logo a seguir, transcreve "As aventuras do Capitão Morris", onde estão narradas as incríveis peripécias do aviador que, por acidente, penetra noutra dimensão, num mundo paralelo onde Cartago venceu Roma, fato que define a existência de uma Buenos Aires diferente da que conhecemos. A partir dessa hipotética mutação histórica, o conto funciona como uma reflexão paradigmática sobre as categorias nacional/estrangeiro. Segundo o narrador, "Irineo é tranqüilamente argentino e ignora e desdenha por igual todos os estrangeiros. Até em sua aparência é tipicamente argentino (alguns o acreditam sul-americano)". Entretanto, ao despertar ferido no Hospital Militar de Buenos Aires, Morris é considerado estrangeiro, talvez uruguaio, provavelmente espião. O piloto que tanto desdenhava os estrangeiros admite ter sofrido, na pátria, "o desamparo que sentem os que visitam outros países" e, para não ser condenado à morte, assume a nacionalidade uruguaia, explicando-se: "Me consolava pensando que para mim um uruguaio não é estrangeiro." Ao final do relato, o narrador considera que há infinitos mundos paralelos, embora todos os viajantes sempre cheguem a Buenos Aires. Apesar disso, o destino de Morris acaba sendo refugiar-se no Brasil.

O conto de Bioy Casares problematiza certas questões de identidade nacional típicas do Cone Sul. Isso se torna claro não só quando se mostra a possibilidade de um argentino ser considerado estrangeiro em seu próprio país, mas também quando o protagonista admite dividir sua nacionalidade com os uruguaios ou ainda quando ele encontra refúgio numa fazenda brasileira. Noutras palavras, à medida que o texto indica a existência de uma cultura rioplatense que irmana argentinos, uruguaios e brasileiros, ele também considera o Brasil como espaço de diferença radical. No mesmo movimento em que o Uruguai é pensado como uma espécie de província argentina, a estância brasileira é tão estrangeira que oferece asilo a um portenho fora-da-lei. Negando e reconhecendo os limites da nação, o conto revela como a mesclagem transnacional inutiliza certas demarcações geográficas, ao mesmo tempo em que erige e contesta as fronteiras culturais.

As questões identitárias dessa região são também tematizadas no romance Dinheiro queimado (PIGLIA, 1998) cuja trama baseia-se numa história real, ocorrida entre 27 de setembro e 6 de novembro de 1965, quando uma quadrilha assalta um banco na província de Buenos Aires. Composto por Malito, Gaucho Dorda, Cuervo Mereles e Nene Brignone, o bando desenvolve um audacioso plano de fuga cujo roteiro passa por Montevidéu, inclui a travessia para o Brasil e pretende terminar em Nova York.

Ao longo do relato, os cruzamentos rioplatenses voltam à tona, seja quando a cultura gauchesca é evocada através do personagem Dorda, seja quando esse figurante atribui ao portenho Nando o rosto de um charrua uruguaio. Nesse relato, mais uma vez, o Brasil figura como território estrangeiro em oposição a uma América Hispânica regida pelas leis da semelhança. Tal como no conto de Bioy Casares, os bandidos estarão a salvo se conseguirem penetrar no sul do país. Nesse caso, do ponto de vista da América Espanhola, o Brasil passa a configurar o lugar da fuga e do exílio - por um lado, permite a sobrevivência daquele que está à margem da sociedade, por outro, colabora involuntariamente para seu desterro. Além disso, o país vai sendo referido como um espaço utópico, a partir do qual os assaltantes poderiam acessar o grande sonho norte-americano do poder e da riqueza, através da máfia porto-riquenha de Nova York. As breves alusões ao Brasil vão, contudo, transformando as utopias em atopias: evocado por traços que o denotam como espaço de prazer e liberdade, o país se torna cada vez mais distante e fantasioso. Assim, ir à boate num carro de chapa brasileira ou tomar cerveja brasileira configuram a remissão metonímica ao local que poderia servir de trampolim para o centro do mundo, mas que jamais será alcançado pelos fugitivos.

Quando Ricardo Piglia esteve no Brasil para o lançamento de Dinheiro queimado, perguntei-lhe porque, nessa obra e no conto de Bioy Casares, os bandidos sempre procuravam fugir para o Brasil. O escritor riu, como se eu tivesse contado uma piada, mas não vacilou em responder:

Porque há outra língua, não? Porque o país está na fronteira conosco, mas tem outra língua. E dá a sensação de ser outro mundo, outra cultura. Não é a mesma coisa que ir para o Uruguai, para a Bolívia ou para o Peru. A outra língua é muito atraente como um universo de diferença pura, mesmo sendo uma língua próxima como é o português. E há outra coisa que me parece importante, no Brasil, que é a presença da cultura afro, da cultura negra, que também o converte na imagem do diferente, para o Rio da Prata. É como uma viagem no tempo, uma viagem a território místico, de aventuras, com um imaginário múltiplo. (PIGLIA, 1999. p. 63)

Na fala do escritor argentino, a diferença idiomática seria o fator preponderante para se distinguir o que é estrangeiro. De tal forma isso é ressaltado que Uruguai, Peru e Bolívia são citados como uma espécie de segunda pátria. A radicalidade da diferença lingüística desdobra-se na cultura negra do Brasil, por sua vez traduzida pelas idéias de viagem, multiplicidade, imaginação. Nessa mesma entrevista, Piglia considerou que o Brasil poderia ser visto como “um lugar onde se vai buscar uma espécie de essência latino-americana” (1999. p. 64). Curiosamente, no imaginário brasileiro, muitas vezes a “essência latino-americana” só pode ser encontrada na América Espanhola, o que nos leva a pensar que, sob tal rubrica, existe apenas o espaço vazio do desejo que convoca a todos nós, mercosulinos, a buscar na linguagem do outro a narrativa de nós mesmos.

Em um dos mais importantes de seus contos, ao suspeitar que o Aleph da Rua Garay era falso, Jorge Luis Borges também se refere ao Brasil de forma peculiar:

Por 1867, o capitão Burton exerceu o cargo de cônsul britânico no Brasil; em julho de 1942, Pedro Henríquez Ureña descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Inskandar Zu al-Karnayn, ou Alexandre Bicorne da Macedônia. Em seu cristal refletia-se o universo inteiro. Burton mencionava outros artifícios semelhantes - o sétuplo cálice de Kai Josru, o espelho que Tarik Benzeyad encontrou numa torre (Mil e Uma Noites, 272), o espelho que Luciano de Samosata pôde examinar na lua (História Verdadeira, I, 26), a lança especular que o primeiro livro do Satiricon de Capella atribui a Júpiter, o espelho universal de Merlin, “redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro” (The Faerie Queene, III, 2, 19) (...)
(BORGES, 1982. p.127-128)

É sintomático o fato de Borges situar no Brasil, numa biblioteca de Santos, um manuscrito que trata do Aleph e que, nesse sentido, utiliza uma simbologia tão cara à sua obra, naquilo que ela significa enquanto resgate arqueológico-cultural. Conjugando símbolos típicos do Oriente a datas, nomes e títulos precisos, o conto borgiano instiga a memória arquetípica do leitor e, assim, forja um cenário familiar e estranho, próprio à imagem fantástica do Aleph. A localização do manuscrito de Burton em terras brasileiras, associada à descrição minuciosa de objetos encantatórios pertencentes a culturas ancestrais, sugere que o país participa de um rol de imagens fabulosas, longínquas e enigmáticas, fato que confirma sua condição de espaço estrangeiro.

No entanto, uma visão bem diferente do Brasil é apresentada no conto “O preço do amor” (PIGLIA, 1989). Nesse relato, o personagem Esteban reclama com Adela o fato de tê-la visto na companhia de um brasileiro “safado”, cuja nacionalidade pôde ser deduzida pelo jeito do homem andar na rua. Remetendo a uma questão real do cotidiano - de fato, o modo de andar de brasileiros e argentinos é muito diferente - Esteban aborda também as pequenas rivalidades freqüentemente presentes nas relações Brasil/Argentina. Nessa mesma perspectiva, desenvolve-se o romance Bernabé! Bernabé! (MATTOS, 1995) onde se discute a configuração da nacionalidade uruguaia, a partir dos confusos episódios de Salsipuedes e Yacaré-Cururú, nos quais, respectivamente, são assassinados os índios charruas e Bernabé Rivera. Ao longo do relato não se poupam críticas ao Império Brasileiro e à Confederação Argentina, responsáveis, segundo o narrador, pela apropriação de terras e rebanhos uruguaios. No Brasil, discussão semelhante é proposta pelo romance A grande arte (FONSECA, 1990), ao apresentar o índio boliviano Camilo Fuentes, cujo pai teria sido morto na fronteira por um brasileiro. Indignado com a usurpação de território boliviano pelo Brasil e por outras razões ainda mais obscuras, Fuentes rejeita solenemente os brasileiros.

Se a literatura hispânica da região percebe o Brasil como o mais estrangeiro dos países do Cone Sul – e, muitas vezes, como um país imperialista - do ponto de vista brasileiro todas as nações latino-americanas são, lingüística e culturalmente, diferentes dele. Além disso, o fenômeno da estraneidade encontra-se dentro do próprio território nacional. Convivendo com intensa mistura étnica e cultural, o país desenvolve um olhar habituado à dessemelhança, ao mesmo tempo em que se sabe incapaz de conhecer profundamente a si mesmo.

As grandes extensões territoriais, as diversidades regionais e as dificuldades econômicas contribuem para que a identidade nacional vacile, ao longo das vastas fronteiras geográficas, mesclando-se a práticas e linguagens típicas da América Hispânica. Contudo, a consciência de sua própria diferença é tão intensa que, no Brasil, expressões do tipo “literatura latino-americana” freqüentemente funcionam como sinônimo de “literatura de língua espanhola”, não servindo, portanto, para nomear a própria literatura brasileira sobre a qual, diga-se de passagem, não temos dúvida de que se localiza na América Latina. Num gesto paradoxal, usamos com freqüência e relativa facilidade a língua espanhola escrita e falada e, de comum acordo com nossos vizinhos, inventamos o portunhol, idioma da fronteira feito de mesclagens e retalhos de sentido que instaura uma permanente atividade tradutória e cooperativa no Cone Sul.

Além das trocas culturais realizadas nos espaços fronteiriços, a literatura e a teoria literária do Brasil discutem e adotam vários conceitos propostos pelo pensamento crítico do Cone Sul, especialmente da Argentina e do Uruguai. Algumas concepções veiculadas amplamente pela ficção e pela crítica borgianas foram de tal forma apropriadas pela poética e pela ensaística de autores brasileiros que hoje fazem parte do acervo comum da cultura nacional. O exemplo mais significativo dessa interação se encontra na obra do escritor brasileiro Silviano Santiago. Leitor de Borges desde os anos 50, mais tarde, ele fará a mesclagem do aleph com as noções oriundas do debate desenvolvido por John Barth sobre a exaustão da literatura e com os conceitos veiculados pela desconstrução proposta por Derrida. São dessa época as reflexões que levaram a dois de seus mais importantes ensaios - “Eça, autor de Madame Bovary” e o “Entre-lugar do discurso latino-americano”. Em ambos os textos, Santiago utiliza o conceito borgiano de eleição dos precursores, colaborando para que a crítica literária brasileira desenvolvesse reflexões sobre a tradição literária do país, num contexto em que a proposta de ruptura da Modernidade não era mais uma força, mas uma forma canonizada. Na ensaística de Santiago, a desconfiança antropofágica, que indica o entre-lugar do discurso como um espaço de combate simbólico, expressa a mesma perspectiva presente no conceito de mirada estrábica de Ricardo Piglia. As intervenções de ambos os escritores caracterizam-nos como cidadãos transnacionais, cujas preocupações vão delimitando uma região que não se constitui pelo grande espaço chamado América Latina e tampouco se limita às fronteiras nacionais. O estrabismo do olhar e o entre-lugar do discurso constituem posturas ideológico-estéticas próprias de um contexto em que a poética de Borges, inventora de origens e de alianças culturais, colabora para o desenvolvimento do conceito de Sul enquanto espaço de mesclagens, conflitos e rearticulações discursivas, fato que indiretamente tematiza a própria idéia de Cone Sul. Descendentes de uma tradição ao mesmo tempo européia e indígena - e, no caso do Brasil, também africana - Santiago e Piglia desenvolvem uma memória textual seletiva e dialógica, em constante debate com a sombra da crítica e da releitura que a sustentam. A consciência de ultrapassagem das fronteiras nacionais apresenta-se no uso do comentário e da citação, em que pastiche e paródia permitem a apropriação da memória alheia européia ou norte-americana.

Nesse sentido, ambos os autores reescrevem fatos decisivos da História nacional ou regional, abordados dentro da estratégia dessacralizadora de uma perspectiva do cotidiano, a partir da tematização de aspectos biográficos, autobiográficos ou relativos à historiografia literária. Enquanto narrativa que pretende ressignificar a experiência de escritura, as obras de Piglia e Santiago permitem o surgimento do ponto de vista dos vencidos e, nesse sentido, reelaboram os rastros de narrativas recalcadas transformando-os em espaço de emergência de outras possibilidades identitárias. Assim, os autores retomam os controvertidos temas da traição política, do homoerotismo, da loucura, da velhice, do anarquismo, da prostituição feminina e masculina, do escritor fracassado, do ladrão de palavras, do censor, do pervertido e do assassino. Nesse contexto, as obras apresentam a pátria como uma construção de linguagem que, recomeçando indefinidamente, por isso mesmo suscita os diálogos supranacionais que, de uma forma ou de outra, sempre estiveram presentes no imaginário do Sul.

Entretanto, como lembra Ricardo Piglia, não podemos pensar a “América Latina com um modelo da nação futura a la Bolívar, todos unidos etc.” (1997). O reconhecimento das diferenças nacionais e das convergências de interesses supranacionais exige o investimento em políticas regionais que reforcem o comércio de signos já existente no Cone Sul. Herdeiros de trocas significativas - como as desenvolvidas entre Ángel Rama e Antonio Candido, que resultaram em importantes teorizações sobre o caráter periférico das literaturas latino-americanas (PIZARRO, 1993. p. 249) - escritores e teóricos desenvolvem novas reflexões sobre o Sul do continente, de forma a desdobrar a recusa do binarismo Norte-Sul, através da invenção de identidades regionais. Entre o global e o local, a idéia de Cone Sul aos poucos vai se definindo como uma estratégia discursiva que favorece a migração de linguagens, idiomas e sentidos e, assim, permite formas de pertencimento a um espaço “de significação descentrada, aberto a modalidades distintas de atuação narrativa” (MIRANDA, 1998).

Talvez as mais interessantes decorrências dessas propostas identitárias sejam os conceitos elaborados na região, para se pensar a região e o mundo. Para isso, concorrem os estudos culturais de Beatriz Sarlo, o conceito de nosotros de Hugo Achugar, o não-lugar da literatura de Eneida Maria de Souza e a retomada do conceito de margem, por Silviano Santiago e Ricardo Piglia. Enquanto “espaço de escrita e reflexão que é, na sua excentricidade histórica e geográfica, metonímia da condição sócio-cultural periférica no processo de mundialização da economia” (SANTIAGO, 1999) o conceito de margem desenvolvido por Santiago remete a um lugar preciso, facilmente identificável por sua exclusão dos grandes centros europeus e norte-americanos. Contudo, ao mesmo tempo, a idéia também se refere a um lugar atópico, cujo estado de virtualidade configura a potência necessária para desencadear uma produção teórico-ficcional pertinente. Quanto a Ricardo Piglia, sua concepção de margem procede de uma reflexão sobre as Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino, reduzidas a cinco pela morte do autor. Pergunta Piglia: “Qual seria a sexta proposta não escrita para o próximo milênio?

E qual seria essa proposta escrita a partir de Buenos Aires, escrita a partir desse subúrbio do mundo?” E responde: “Me parece que a proposta para o próximo milênio que eu acrescentaria às de Calvino seria [a] idéia de deslocamento e de distância (...), a mudança de lugar. Sair do centro, deixar que a linguagem fale também na borda, no que se ouve, no que vem de outro.” (PIGLIA, 1999). As reflexões de Piglia, no mesmo gesto, suplementam as propostas de Calvino e praticam aquilo que propõem: definem a margem a partir da margem. Essa linguagem descentrada e performática talvez seja a principal contribuição dos escritores-críticos do Cone Sul, no sentido de se pensar a literatura do próximo milênio.

Referências bibliográficas
ACHUGAR, Hugo. Integración y escenarios culturales. In: ACHUGAR, Hugo,
CAETANO, Gerardo (org.). Mundo, región, aldea. Montevideo: Trilce, 1994.
BIOY CASARES, Adolfo. La trama celeste. In: CAPANNA, Pablo. El cuento argentino de ciencia ficción - antología. Buenos Aires: Ediciones Nuevo Siglo, 1995.
BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Trad. de Flávio J. Cardoso. Porto Alegre: Globo, 1982.
FONSECA, Rubem. A grande arte. 12. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MATTOS, Tomás de. Bernabé, Bernabé! 2. ed. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1995.
MIRANDA, Wander Melo. Local/global. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1998.
PIGLIA, Ricardo. Prisão perpétua. São Paulo: Iluminuras, 1989.
PIGLIA, Ricardo. Dinheiro queimado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
PIGLIA, Ricardo. Entrevista realizada por Maria Antonieta Pereira. Estado de Minas. Belo Horizonte, 19 jul. 1997. Caderno Pensar.
PIGLIA, Ricardo. Entrevista com Ricardo Piglia. In: PEREIRA, Maria Antonieta, SANTOS, Luis Alberto B. Santos. Palavras ao sul - seis escritores latino-americanos contemporâneos. Belo Horizonte: Autêntica/FALE, 1999.
PIGLIA, Ricardo. www.clarin.com.ar./diario/especiales/viva99.
PIZARRO, Ana. Angel Rama: a lição intelectual latino-americana. In: CHIAPPINI, Lígia, AGUIAR, Flávio Wolf de. (orgs.). Literatura e História na América Latina. São Paulo: Edusp, 1993.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos - ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva / Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.
SANTIAGO, Silviano. Silviano Santiago, no corpo da escrita. Entrevista realizada por Maria Antonieta Pereira e Cleide Simões. Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 1168, ano XXIV, 3 ago. 1991. Suplemento literário.
SANTIAGO, Silviano. Entrevista realizada por Maria Antonieta Pereira. Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 53, nov. 1999. Suplemento literário.
SANTIAGO, Silviano. Texto inédito. 1999.
SOUZA, Eneida Maria de. O não-lugar da literatura. In: VASCONCELOS, Maurício Salles, COELHO, Haydée Ribeiro. 1000 rastros rápidos - cultura e milênio. Belo Horizonte: Autêntica/FALE, 1999. 
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# Maria Bernadette Porto - Babel revisitada: a construção de uma poética das línguas nas Américas
Constituindo-se como um objeto privilegiado de estudo para todos os que se interessam pela linguagem, aos olhos de Paul Zumthor (1997), a narrativa bíblica de Babel pode ser vista como um texto aberto, pleno de virtualidades que foram retomadas e reinterpretadas ao longo da história, sugerindo as idéias de confusão, inacabamento, pecado de orgulho, punição divina, impossibilidade de comunicação, entre outras. Em nossos dias, muitos congressos, revistas e publicações resgatam alguns aspectos deste mito que aponta para uma pluralidade de direções.

Para nós, que já construímos, no decorrer de muitos anos de pesquisa, certa bagagem de reflexões em torno das chamadas literaturas francófonas, no seio das quais, dotados de uma consciência lingüística muito apurada, os escritores são condenados a pensar a língua (GAUVIN, 1996, p. 7), a lembrança de Babel nos parece muito enriquecedora, sugerindo promessas interessantes de futuras investigações. Todavia, ao invés de a encararmos sob a ótica do pessimismo e da negatividade, preferimos considerá-la, a exemplo de Octavio Paz (1991), através de sua aproximação com Pentecostes. Assim, trata-se, antes de tudo, de se ter acesso à compreensão de outrem, para além das diferenças, e de reconhecer que “cada um, sem deixar de ser o mesmo, é o outro” (PAZ, 1991, p. 8). Distanciamo-nos, pois, da visão desfavorável da pluralidade das línguas associada na Idade Média à punição de uma falta antiga (ZUMTHOR, 1997, p. 91) e que, ainda na contemporaneidade, foi vivenciada enquanto dilaceramento doloroso ou apelo à alienação em sociedades marcadas pelo processo da colonização, onde se afrontavam a língua materna e a língua do colonizador.

Consciente de que, hoje, os autores escrevem na presença de todas as línguas do mundo, Édouard Glissant sugere a riqueza da coexistência das línguas no ato da escrita (GLISSANT, 1995, p. 84), o “imaginário das línguas” sendo uma característica de nosso tempo. Já em pesquisas anteriores – e, em particular, em ensaios em que nos detivemos nos chamados autores migrantes do Quebec – pudemos verificar que mesmo o contato tenso de línguas representado, em maior ou menor grau, nos textos analisados, assegura a sua criatividade. Além disto, ainda que domine apenas um idioma – e aqui as análises de Derrida (1996) e Régine Robin (1993) nos levariam a questionar se é possível possuir ou habitar uma língua – nenhum autor pode escrever num idioma de modo monolingue (GLISSANT, 1995, p. 84). Isto porque para escrever é preciso que o escritor descubra a estranheza no seio de sua própria língua, explorando os caminhos nem sempre familiares e até imprevisíveis de seu idioma.

Inspirando-nos sobretudo nas análises de Octavio Paz (1991), Jacques Derrida (1987) e Paul Zumthor (1997), buscaremos na referida narrativa bíblica pontos de apoio para uma breve apresentação de nossas primeiras reflexões que, por ocasião do desenvolvimento de nosso projeto, se orientarão no sentido do diálogo estabelecido entre obras das literaturas quebequense, antilhana e brasileira. Tal diálogo demonstrará possivelmente que, apesar das diferenças relativas à própria noção de “surconscience linguistique” que afeta autores oriundos de jovens literaturas (GAUVIN, 1997, p. 6) – onde a mesma é vivenciada de formas e em tempos diversos – é no próprio exercício da Literatura Comparada que se dá a superação dos impedimentos decorrentes de Babel. Lidas sob a inspiração de Pentecostes, as obras a serem estudadas dialogam entre si, mesmo guardando suas opacidades particulares.

Em primeiro lugar, o desejo coletivo de “se fazer um nome” que aparece no texto bíblico pode ser associado à necessidade imperiosa de se afirmar uma identidade no âmbito de sociedades oriundas do sistema colonial. É sabido que, como a torre de Babel, todo processo de construção identitária é marcado pelo inacabamento. Sinal da incompletude própria da existência humana (TODOROV, 1996, p. 100), o inacabamento aqui não se confunde com a noção de fracasso. Fugindo à idéia de essencialismo, o processo identitário – sempre presente nas “jovens literaturas” – constitui algo em aberto que supõe a possibilidade de novos inícios. No que concerne a Babel, segundo Manganelli (1989), a partir daí, tudo o que acontece ou existe está ligado à lei dos recomeços. Isto parece insinuar a visão atual da idéia de origem que, na concepção de autores como Régine Robin (1993) e Daniel Sibony (1991) é passível de ser continuamente reinventada.

Outro aspecto do episódio babélico que remete a questões da contemporaneidade refere-se à experiência vivida no espaço. Para Zumthor, a mesma narrativa se organiza a partir de oposições espaciais: errância e fixação, terra e céu, espaço dado e espaço a ser conquistado. Estão aí, em jogo, dois eixos: a horizontalidade do lugar de estadia dos homens, de sua migração e de sua dispersão final e a verticalidade da obra elevada até o firmamento (ZUMTHOR, 1997, p. 57). Segundo o mesmo autor, na narrativa de Babel verifica-se a passagem do nomadismo à sedentarização: “eles encontram uma planície em Shinéar e aí se instalam” diz o texto. Assim, o homem construiu para si mesmo um ponto de referência no espaço e no tempo. Interessa-nos reconhecer nas pistas apontadas por Zumthor alguns dados que podem contribuir para as reflexões em torno dos autores nômades de nosso tempo, vistos como “homens traduzidos, produtos das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais” (HALL, 1999, p. 89). Apesar da oposição nômades/ sedentários não se colocar mais exatamente da mesma maneira em nossos dias, uma vez que a própria noção de distâncias espaciais tende a se tornar relativa e imprecisa, assim como as configurações identitárias, admitimos, com ZUMTHOR (1997, p. 141) que, desconfiando das idéias fixas e de toda espécie de limites, o nômade deixa-se levar pelo movimento e, mais particularmente, pelo seu corpo que lhe dá a medida do universo. Ou, como pensa Glissant, a errância se confunde com o apetite do mundo (1995, p. 96), com a disponibilidade para o plural do Outro.

Explorando um pouco mais a questão espacial detectada por Zumthor na narrativa bíblica, remetemo-nos agora a duas dicotomias privilegiadas na obra de Glissant. A primeira, inspirada em Deleuze e Guattari, refere-se à distinção raiz / rizoma, que, de alguma forma, corresponde às oposições unidade / dispersão, verticalidade/horizontalidade e fixação/nomadismo presentes no mito de Babel. Única e orientada em direção às profundezas do solo, a raiz se inscreve no eixo vertical, ao passo que o rizoma, raiz múltipla, se estende em redes, na terra ou no ar, destituindo-se do caráter totalitário associado à raiz (GLISSANT, 1990, p. 23). Índice dos contatos plurais com o Outro, o rizoma se articula com a poética da Relação (GLISSANT, 1990), com a abertura para a pluralidade de línguas e culturas, diferentemente da raiz, presa à sugestão de monolinguismo. Vinculando-se a tal dicotomia, a oposição território/lugar (GLISSANT, 1981) também pode ser evocada aqui para reler o mito de Babel à luz da perspectiva espacial. Se o território – ligado ao fascínio do Mesmo – supõe a existência de fronteiras remetendo ao monolinguismo, à raiz única e à concepção de uma memória exclusiva vinculada à História, o lugar corresponde, antes, à diversidade de histórias e memórias transversais nas quais são convocadas todas as línguas e são mobilizadas todas as formas de expressão (ao contrário do território que tende a privilegiar apenas a escrita).

No panorama quebequense atual, com o reconhecimento da presença de vozes plurais relativas à literatura migrante que contribuiu para o questionamento da identidade construída em torno da homogeneidade difundida pelas elites canadenses francesas (BOUCHARD & LAMONDE, 1997), o mito de Babel adquire particular relevância. Situados em Montreal, Babel em trânsito por excelência (NOËL, 1992), muitos romances (de autoria de escritores migrantes ou não), refletem os encontros e desencontros das línguas na cidade cosmopolita.

Necessário se faz esclarecer que, desde sempre, o estatuto da literatura francófona produzida no Canadá (denominada, inicialmente, “canadense de língua francesa” e, a partir da Revolução Tranqüila, “quebequense”) passou pelas reflexões sobre a questão lingüística e pela defesa da língua francesa. Ainda nos anos 60, a polêmica criada sobre o “joual” trouxe à baila discussões sobre as próprias condições de existência desta comunidade marcada pelo sistema colonial. Hoje, com a revisão dos conceitos de identidade cultural, o debate sobre a(s) língua(s) no Quebec tende a ser colocado de outro modo. Assim, deixando de ser visto como expressão de uma identidade baseada no caráter homogêneo dos quebequenses, o francês tende a se constituir o lugar onde se manifestam representantes de povos diversos, ou, como pensa Simon Harel, diferentes estranhezas (HAREL, 1989).

No que diz respeito às reflexões produzidas no Quebec sobre a tradução – decorrência babélica – podemos lembrar que elas constituem um campo interessante de análise. Ressaltaríamos, de imediato, a representação desta atividade no plano ficcional. Em muitas obras romanescas, a tradução remete a situações constrangedoras vivenciadas, no cotidiano pelos quebequenses, em seu próprio espaço onde “tudo fala inglês” (PORTO, 1997). Em romances mais atuais, tal prática remete, antes de tudo, à evocação de Babel a partir da multiplicidade de suas sugestões (em especial, a estética do heterogêneo e do inacabamento).

No domínio da ensaística desenvolvida no Quebec, atribuindo ao conceito de fronteira – lingüística e cultural – um lugar privilegiado em suas análises, muitos autores destacam o papel da tradução no processo de negociação contínua entre indivíduos e comunidades possuidoras de línguas e culturas diversas. É o caso, por exemplo, do livro Le trafic des langues de Sherry Simon (1994), em que, ao analisar romances quebequenses, a autora reconhece uma poética da tradução.

Por sua vez, interessando-se pela posição dos escritores francófonos situados no entrecruzamento de línguas, Lise Gauvin dá realce às estratégias textuais de que se valem tais autores, entre as quais identifica a tradução (em Réjean Ducharme, por exemplo). Lendo o texto francófono como espaço lúdico propício aos jogos de língua e às metamorfoses, Gauvin o vê como travessia de línguas onde se manifestam memórias de outros idiomas e a possibilidade de uma outra língua marcada pelo heterogêneo – talvez a terceira língua proposta por Antoine Berman no seu clássico estudo sobre a tradução (1984), que, aos olhos de Régine Robin, “ao invés de fingir preencher a falta, designa o horizonte da fissura” (ROBIN, 1993, p. 17). Em poucas palavras, Robin nos remete à ambivalência babélica: se, por um lado, todo escritor deve atravessar os limites de seu próprio idioma para criar um outro (mesmo dentro de sua língua materna), ele se depara com a impossibilidade de superar a falta inicial.

Como no contexto quebequense, graças ao reconhecimento da construção de uma outra poética de línguas, fecundada pela lembrança de uma Babel feliz – como propôs Barthes (BARTHES, 1973) – nas Antilhas de hoje foi ultrapassada a tendência ocidental à valorização do confronto entre dois idiomas (o francês contra o inglês, no caso do Quebec, e o crioulo contra o francês, no contexto antilhano) (GAUVIN, 1997, p. 38). Desta forma, a relação problemática dos antilhanos com a língua francesa – assinalada já na obra clássica de Fanon Peau noire, masques blancs foi redimensionada. Como se sabe, os antilhanos não se vêem mais nos célebres versos do poeta haitiano Léon Laleau: “Vocês conhecem este sofrimento igual a nenhum outro, o de exprimir com palavras da França este coração que me veio do Senegal?” (GAUVIN, 1997, p. 89). Também não se trata mais de escrever contra o francês, como o fez René Depestre durante certo tempo na sua tentativa de descolonizar tal idioma (GAUVIN, 1997, p. 89). O que importa é admitir a apropriação da língua francesa assumida por poetas e escritores como Raphäel Confiant, Patrick Chamoiseau, Ernest Pepin, entre outros. Trata-se de fecundar a língua francesa a partir da ótica crioula.

É o que afirma a autora Simone Schwarz-Bart ao revelar que, quando escreve, a língua crioula é o sol que ilumina, aquece e dá vida a suas idéias em francês, a tal ponto que, sem o crioulo, a língua francesa ficaria de certo modo como a Bela Adormecida no bosque à espera do Príncipe Encantado. Além disto, para a mesma escritora, não se trata de traduzir o crioulo em francês – o que supõe, a nosso ver, a lembrança das impossibilidades de Babel – mas de admitir que, às vezes, no seu exercício diário, o crioulo está no não-dito e que é preciso traduzir o não-dito da língua crioula – o que, apesar da opacidade – garante a tradutibilidade do mesmo idioma (GAUVIN, 1997, p. 121).

Finalmente, é preciso dizer que em nossas reflexões sobre a representação da língua em obras literárias produzidas nas Américas, não poderíamos deixar de ressaltar o lugar de inscrição de nossa identidade. Embora a noção de “surconscience linguistique” (GAUVIN) não se coloque mais para nós como ocorreu no passado – quando a questão da identidade nacional passava pelas discussões em torno da especificidade da língua portuguesa no Brasil – muitos autores de hoje reservam, em seus textos, um espaço significativo para reflexões sobre nosso idioma, assim como o fizeram em sua época, José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, entre outros.

Encarando a língua a partir da idéia da sua conquista diária por farte de seus falantes, muitos escritores souberam fugir ao mito da pureza do idioma legado, visto por muitos estudiosos como um tesouro herdado a ser preservado (cf. PORTO, 1993). Deste modo, de forma poética, Nélida Piñon realça os lamentos africanos que, “nos últimos quinhentos anos brasileiros” foram incorporados ao português, tornando-o uma “língua morena” (PIÑON, 1980, p. 14-15), definido pela mesma autora em outro romance como uma “língua salgada, com ritmos retumbantes” (PIÑON, 1987, p. 407). Embora possamos reconhecer nestas passagens uma certa visão estereotipada da nossa identidade – associada à sensualidade da raça negra – identificamos aí sobretudo a valorização do caráter híbrido próprio da construção identitária.

Já na época do nosso Modernismo, denunciando o hiato entre a língua escrita (defendida pelos gramáticos orientados pelo modelo da língua portuguesa da metrópole) e a língua falada no Brasil, foi questionada a questão da correção e o mito da pureza a que aludimos. Assim, opondo-se ao “falar difícil” do lado doutor, em seu “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, Oswald de Andrade propõe uma “língua sem arcaísmos, sem erudição”, “com a contribuição milionária de todos os erros”, tal como somos e falamos (ANDRADE, 1978). Menos preocupado com os erros de gramática do que com os “erros de linguagem que fragilizam a expressão” (PINTO, 1981, p. 131), Mário de Andrade anunciou, um dia, que escreveria a Gramatiquinha da Fala Brasileira. Também em seu texto “Dialeto brasileiro” (1925), Manuel Bandeira afirmou que todos os brasileiros deveriam falar “como as cariocas que não sabem gramática” (PINTO, 1981, p. 209). Assim, através destas rápidas referências, vemos que, retomando ou atualizando reflexões anteriores sobre o idioma falado no Brasil, tais autores eram sensíveis ao caráter heterogêneo da língua portuguesa.

A exploração da heterogeneidade associada à prática lingüística de Babel se depreende sobretudo em obras mais recentes centradas na experiência de personagens imigrantes instalados no Brasil, onde se verifica a representação do entre-dois lingüístico e cultural, vivenciado de forma mais ou menos traumática (como aparece em A asa esquerda do anjo de Lya Luft). Trata-se de mostrar a negociação identitária entre dois idiomas, duas culturas e dois referentes espaciais. É o caso da travessia de línguas, memórias e religiões e do entrecruzamento da escrita e da oralidade no romance Relato de um certo Oriente (HATOUM, 1997), situado entre Manaus e o Líbano. Ou ainda, é preciso ressaltar a exploração de “efeitos de línguas” criados por Ana Miranda em Amrik (1997), através dos quais a perspectiva da estranheza (de idiomas estrangeiros) se insinua nos silêncios e entrelinhas da língua portuguesa, fecundada pelos ecos da alteridade. Língua-torre refúgio, capaz de acolher as vozes plurais do Outro que dela se apropria, renovando-a.  [topo da página]

# Maria Luiza Berwanger da Silva - Poesia e Alteridade: Mário de Andrade, Augusto Meyer e a paisagem das “múltiplas moradas”

“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)

“Quem é esse que mergulhou no lago liso do espelho / e me encara de frente à claridade crua? / Tem na íris castanha irradiações misteriosas, / ... / Abro a mão - ele abre a mão. / Meu plagiário teimoso... / Tudo que eu faço morre no gelo de um reflexo / ... / Dói-me a ironia de pensar que eu sou tu, fantasma...” (Giraluz. MEYER, 1926-1927)

“Audace d’être un instant soi-même la forme accomplie du poème. Bien-être d’avoir entrevu la matière-émotion instantanément reine.” (CHAR, 1925-1936)

Perpassa a poesia brasileira a busca da outra voz, voz de revitalização que o sujeito lírico colhe do espaço da Alteridade.

Do estranhamento de si, da sedução e resistência ao Outro, do eterno retorno ao Mesmo e da transparência sobre a presença estrangeira, imagens gravam na página em branco essa fisionomia multifacetada do Modernismo brasileiro. Paisagem com figuras ou paisagem sem figuras? Indagação que se oculta sob os versos, nas epígrafes.

A recusa do menino em Mário de Andrade e a indagação do não-eu em Augusto Meyer representam esse diálogo que a poesia estabelece com a Alteridade, no qual o ritmo que tece e retece a palavra, modula-o o olhar infatigável que não se dilui na celebração do Outro. Filtrada toda nuance imprime no matiz o prazer do único, do múltiplo e do diverso.

Fragmentos como “E me sinto maior, igualando-me aos homens iguais!...” (ANDRADE, 1987, p.205), “Glória aos iguais! Um é todos / Todos são um só! / Somos os Orientalismos Convencionais” (p.106), do livro Paulicéia desvairada de Mário de Andrade, e “Reduzo tudo a mim mesmo, não há nada que me resista: pois o caminho mais curto / entre dois pontos, se chama ponto de vista” (p.175), de Canção encrencada, de Augusto Meyer, mascaram o itinerário poético singular do Uno com o Diverso e que parece consolidar-se na recente obra Múltiples moradas de Cláudio Guillen.

Já no prefácio, a relação de aproximação e de complementaridade que o autor fixa da obra anterior Entre lo uno y lo diverso (1985) com Múltiplas moradas (Ensayos de Literatura Comparada – 1998) inova a reflexão teórica sobre a Alteridade: “Al eligir un título hoy daria mi preferencia a otras palabras, lo ‘uno con lo diverso’ o ‘lo diverso con lo uno’, que sugieren no vaivenes, sino superposiciones; no dialecticas, sino complexidades” (GUILLEN, 1998, p.23), o que corresponderia, pois, a marcar, na poesia, não só o movimento de errância do Mesmo ao Outro e desse ao Mesmo, com a conseqüente delimitação do espaço intervalar, (espaço de dissolução e de harmonização das polaridades), mas também o trânsito pelas margens, conformando o espaço poético da distância de que o homem está ausente.

“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)

Desse modo, conjunções e disjunções indissolúveis geram o efeito do irredutível e da permanência, aquele “noyau dur” (a que se referia Roland Barthes) que não se deixa mesclar pelo contato com o Outro. Reconfigura-se a paisagem do eu que sorve dos incessantes desdobramentos do “hombre invisible” a consciência do provisório e da passagem, representação exemplar do lirismo disseminado pelas “múltiplas moradas”.

No encerramento do capítulo, a referência a Bernardo Soares, personagem do Livro do desassossego de Fernando Pessoa (“Toda vida humana é um movimento na penumbra”), demarca a construção da identidade lírica pela visão do sujeito como “coexistência e multiplicidade transpessoal” (GUILLEN, 1998, p.174), significando que: a abordagem do diálogo da Poesia com a Alteridade, hoje, inclina-se ao prazer da simultaneidade, acentua o duplo movimento (o intervalar e o das margens), do mesmo modo que distende, ampliando, o imaginário da paisagem antropofágica: o entrelaçamento de paisagens, produto da apropriação/transformação, inscrito na apologia do espaço intervalar, não dissolve o simbolismo das bordas. De certo modo, o traçado baudelairiano da paisagem do vasto também transparece em Guillen, traduzindo a relação do espaço com a memória residual tecido e pelo homem invisível.

Tempo e espaço redimensionados articularão, pois, a coexistência harmoniosa do fragmentário com o uno; como se, a voz que diz em Mário “Eu sou trezentos, trezentos e cincoenta / mas um dia toparei comigo mesmo” ocultasse a consciência da eterna procura, da imagem do poeta peregrino retida desde o Movimento Simbolista e que a poesia modernista de Meyer revitaliza pela consciência da migração multiplicada: “Meu destino é andar. Alegria! Os caminhos não têm destino, eles levam à alegria de andar... Eu não sou, sou uma vontade de ser” (Metapatafísica) (MEYER, 1957, p.193).

No fundo, a metáfora das Múltiplas moradas explicita-se teórica e criticamente no estudo de Jean Bessière sobre a obra de Blaise Cendrars, onde diz que “a fábula do lugar é constante... todo lugar é lugar de outro lugar” (BESSIÈRE, in CHEFDOR, 1999), o que significa modelar o diálogo da poesia com a Alteridade tanto pelo eixo da transgressão ou da reconfiguração das fronteiras quanto pelo das ficções ou representações do eu captadas do magnetismo que o mito do novo ou do lugar exerce sobre a identidade poética.

Guarda a paisagem resíduos, cores e matizes, figurações do eu que registram o processo de constituição do lirismo mais genuíno, da emergência à redefinição pela Alteridade. Nas palavras de Michel Collot, em Le sujet lyrique hors de soi: “La poésie moderne nous impose de dépasser toutes les dychotomies pour tenter de comprendre comment le sujet lyrique ne peut se constituer que dans son rapport à l’objet qui passe notamment par le corps et par les sens, mais qui fait sens et nous émeut à travers la matière du monde et des mots... Or ce privilège accordé à l’objet de sensation et de langage n’implique pas la disparition pure et simple du sujet, mais plutôt sa transformation... il s’invente au dehors et au futur dans le mouvement d’une émotion qui le fait sortir de soi pour se rejoindre et rejoindre les autres à l’horizon du poème.” (COLLOT, in RABATÉ, 1996, p.117).

“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)

Convergentes na poética do desdobramento e da multiplicação, essas três vozes teóricas imprimem, na prática de escrituras sobre o Outro, a marca da transitividade produtiva do eu, conquanto reacendem, no olhar comparatista lançado sobre a construção dos “não-lugares” ou “parages”, o prazer do eco e das constelações da arte vasta e globalizada, além do intervalo, além das margens.

De certo modo, o texto de jornal O elogio da folha em branco (1926), de Augusto Meyer, ao evocar a figura da Rainha de Sabá, da poesia do simbolista belga Albert Samain, faz-se metáfora exemplar dessa inclinação modernista à diversidade articulada pelo eu: “Voir dans un faste d’or, de pierres et d’essences, venir à soi son oeuvre en Reine de Saba” (MEYER, 1926, p.3).

Em produção igualmente periodística, intitulada Os Gaúchos, Mário de Andrade elogiará justamente esse pensamento cristalino do modernista do Sul, talhado pelo rigor crítico, representativo, segundo o poeta paulista, da Literatura gaúcha vista como um todo. Diz Mário de Andrade em um texto de 1939 (Diário de Notícias, Rio de Janeiro): “De todas as literaturas regionais do Brasil, tenho a impressão de que a gaúcha é a que mais apresenta uma identidade de princípios, uma consciência de cultura... a literatura do Rio Grande do Sul é hoje nacional como as que mais o sejam... No momento, Augusto Meyer me parece a personalidade mais representativa como caracterização regional da inteligência gaúcha. Uma delicadeza muito nuançada de pensamento, um apego quase agressivo à cultura, uma profundeza, um refinamento saboroso, uma ausência de largas sensualidades, uma paciência muito controladora que não permite nunca o fácil nem o apressado” (ANDRADE, 1993, p.116-117).

Em síntese, a consciência de vate, articuladora da produção poética, crítica e teórica, nos dois poetas-críticos, com base no projeto modernista de renovação da linguagem, parece impulsionar, controlando, os novos rumos da arte brasileira. Sob o traçado firme da dicção crítica que delimita a teoria do texto poético do Modernismo brasileiro, percebe-se uma outra voz que, lirismo puro, emerge em busca da plenitude poética. Suave, encontra no simbolismo da dança o ponto de convergência da inovação teórico-crítica com a produção poética que reconfigura o espaço da distância entre o Mesmo e o Outro. Paisagem singular, essa que a dança descortina para a poesia brasileira.

Quase que contemporâneas, as poesias Ciranda de Augusto Meyer (Coração verde, 1924-1925) e Poemas da amiga de Mário de Andrade (1920-1930) apostam no simbolismo da dança como imagem exemplar dos desdobramentos e das figurações múltiplas da subjetividade lírica. Assim, da poética do jogo aparentemente desprovido de outra intenção que não a da própria movimentação e gestual do corpo, mas que sorve justamente dessa prática lúdica a transgressão da distância, aquele sentimento de vazio e de longínquo emergente da paisagem do pampa, azul e infinito, é com a espontaneidade de uma cantiga de roda que Augusto Meyer tecerá a imagem da dança como certeza do lirismo decantado:

“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)

“(...) Vertiginosa ronda, as mãos entrelaçadas / entre a poeira fina, / ingênua ronda e risos de alegria / as crianças dançam loucas sarabandas: / Ciranda, cirandinha, / Vamos todos cirandar... / (As mãos entrelaçadas na vertigem louca, / nós também dançamos, / nós também colhemos a vertigem boa / de quem dança a vida numa sarabanda...)” (MEYER, 1957, p.25). Esses versos se esclarecem em Mário na pesquisa do sentimento íntimo, enquanto relação do sujeito com o espaço exterior, incidindo na diluição (aparente) do eu: “(...) Oh espírito do ar, dizei-me a rosa incomparável / Que se evola reagindo em baile no ar! / Baile! Baile de mim no entre-sono! / Não é uma alma, não é um espírito do ar, não é nada! / É outra coisa que baila, que baila, / Livre de mim! Gratuita enfim! Fútil de eternidade!” (ANDRADE, 1987, p.279).

Marcar o exercício de disseminação do sujeito invisível na paisagem desdobrada, na qual a transgressão dos limites do corpo pela dança fortalece a supremacia do eu, eis, em síntese, o que lega à poesia brasileira a memória inapagável dos poetas franceses S. Mallarmé e Paul Valéry.

Se a imagem decisiva da dança em Mallarmé como representação da neutralidade do eu (“la danseuse n’est pas une femme qui danse” (MALLARMÉ, p.304) recupera a tessitura da subjetividade múltipla na releitura de Paul Valéry em Degas danse dessin (Pièces sur l’art) (VALÉRY, p.1173) (“suite de transformations de la forme dans l’espace; qui tantôt se transporte, mais sans aller véritablement nulle part, tantôt se modifie sur place, s’expose dans tous ses aspects” (VALÉRY, p.1398)), a fluidez desse estado dançante é compensada pela constituição do que Valéry denomina de “vie intérieure”, conjunto de ressonâncias representativas da solidariedade entre o eu e o espaço circundante cujos limites foram apagados: “Image singulière de l’instabilité”que ordena nos “mouvements de dissipation”, a dança faz-se registro da energia lírica que o diálogo entre as artes proporciona.

Nos bastidores da criação poética de Augusto Meyer, o poeta simbolista Eduardo Guimaraens já antecipara a função poética da dança como magia da expansão corpórea, paralela à própria errância e multiplicação do eu em um texto inédito de 1916: “Dança... / Ó Poesia! Dança! / Arte dos ritmos aérea e luminosa! / Romança / que se canta / sem palavras... / Harmonia silenciosa. / Sonham as formas... E as linhas / se exprimem / como bôcas... / Quando o seu frágil corpo / e os seus dois braços de ondas / que se recurvam, / e as suas mãos, as suas mãos brancas e longas, / e o seu sorriso, / que é tanto / dos lábios como dos olhos, / dançam, / faz-se tudo música em tôrno!” (SILVA, 1999, p.313).

“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)

Do mesmo modo, mas já mais distanciado na temporalidade, Felippe d’Oliveira, em um texto (1929) reiterativo da poeticidade eduardiana, confirma a relação da dança com a emergência da palavra poética que, produto do eu, faz-se memória inapagável da pluralidade e da disseminação: “... Dança estática ou tumultuosa de sensações que acharam o corpo das palavras inertes e depois ganharam a respiração da vida... Dança de pensamentos cadenciados que se amplificam ao prestígio de sua voz – comovente e empolgante como o silêncio. Dança que se propaga de seu instinto para o nosso inconsciente violentado e acorda ou gera a admiração, a gratidão, o êxtase, a alegria de nosso encantamento” (SILVA, 1999, p.204).

Entrevista por outro modernista da transição Simbolismo/ Modernismo, Álvaro Moreyra, em obra memorialística, As amargas... não, acentua o efeito interdiscursivo captado da dança, especialmente a dos Bailados Russos, que sintetiza em Nijinsky, ao dizer: “A minha geração, apesar de tudo o que sempre a puxou para o tempo, foi do espaço. Creio que isso veio dos Bailados Russos... Todas as artes se juntavam nos Bailados Russos e a influência deles foi profunda sobre a época em tudo. Houve um russo...” (SILVA, 1999, p.225).

Em Mário de Andrade, a intersecção da produção teórico-crítica (A escrava que não é Isaura) com a poética em Paisagem nº 2 intermediada por Nijinsky expõe o processo de figuração da subjetividade lírica no diálogo que estabelece com o Outro, mas na clarividência do eu: “São Paulo é um palco de bailados russos. / Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os crimes / e também as apoteoses da ilusão... / Mas o Nijinsky sou eu! / E vem aí a Morte, minha Karsavina! / Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da / desesperança, / a rir, a rir dos nossos desiguais!” (ANDRADE, 1987, p.97).

Imagem de uma oscilação poética, Nijinsky ressurge na poesia de Murilo Mendes, como prática do “homem invisível”, dissolvido na paisagem, traduzindo, ao mesmo tempo, ausência e presença, alternância e desestabilização, marcas transgressivas processadas pelo sujeito habitante das “múltiplas moradas”.

“Nijinsky atrai a força do universo. Escreve um livro por meio de sinais inventados, registra os passos da dança... Em que território sem galáxia ou escadas rolantes penetrou Nijinsky? Desfeito o apetite da terra, suspenso o disfarce do céu... Nijinski sonhará que é dançado pela dança?” (MENDES, s.d., p.1276).

Nos versos, a finalização pelo ponto de interrogação, expressando dúvida e hesitação, sela esse metaforismo da dança como registro das figurações da intimidade que se mostram e se multiplicam na relação com o Outro.

“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)

“Lirismo em diálogo”, a poesia de Mário de Andrade para Roger Bastide em Poetas do Brasil e a poesia de Augusto Meyer onde “tudo é pago, tudo são imagens da terra... gauchesco mas sem as limitações do gauchesco”, na transparência do olhar de Guilhermino César e “evidência mascarada”, na análise textual fina e rigorosa de Tania Franco Carvalhal, transparecem esse cruzamento do nomadismo do eu com a constante reinvenção do mito ou da fábula do lugar, (caminho crítico insinuado pelo ensaio crítico de Mário sobre a poesia brasileira de 30, sintetizada pelo desejo de partir, inspirado pelo verso “Vou-me embora pra Pasárgada” de Manuel Bandeira). Renovação do mundo sensorial e ilusão de infinito, a imagem da dança de ombros, nos dois poetas: “Amigo, trobemos, clus / O non trobemos, bailemos / A dança d’ombros, e sus! Que malmaridada é a alma / E a vida, lá vai perdida” (MEYER, 1957, p.215-223); versos de Augusto Meyer (Poemas de Bilu, 1928?1929), em paralelismo perfeito com versos de Danças (1924) do livro Remate de males de Mário de Andrade: “Quem dirá que não vivo satisfeito / Eu danço / ... Aquele quarto me sufoca / Prefiro ar livre, / Não voltarei. / Ar livre, ar leve que dança, dança! Dançam as rosas nos rosais... Eu danço manso a dança do ombro... / Eu danço... Não sei mais chorar!...” (ANDRADE, 1987, p.147), marca, no pontilhado do conflito existencial pela Arte, a prática das “múltiplas moradas” do sujeito invisível.

Sob o movimento quase imperceptível da dança de ombros, a “audace d’être un instant soi-même la forme accomplie tu poème” de René Char, como figuração do Outro que se decanta pela presença multiplicada do eu, sulca, na recusa do menino em Mário de Andrade e na dúvida provocada pelo desdobramento diante do espelho em Augusto Meyer, a consciência clara da fisionomia multifacetada. “Grand visage de la diversité” diz o poeta e crítico francês Victor Segalen, voz de antecipação e de síntese da reflexão sobre a Alteridade vista sob o ângulo do exotismo e da recriação textual, incidindo na poetização do horizonte e do longínquo. Fábula do lugar reinventado e paisagem das “múltiplas moradas”, sugerem as vozes da modernidade crítica que, ao revisarem o fato comparatista como transtextualidade, buscam agregar ao olhar exótico o prazer da simultaneidade das relações do Uno com o Diverso. Nas cartas que Mário de Andrade escreve a Augusto Meyer, (no período de 1928 a 1938), o desejo insistente de conhecer cada vez mais e mais profundamente a literatura do Sul nas suas raízes genuinamente nacionais e, ao mesmo tempo, a preocupação de justificar ao poeta gaúcho o móvel articulador do seu processo de criação literária, (se consciente ou inconsciente), deixam filtrar o esboço de um projeto cuja feição transgressiva buscaria redimensionar o pensamento antropofágico pelo sentimento contraditório e paradoxal, mas legítimo e concomitante, de resistência e aceitação do Outro. Paisagem com figuras, pois, e paisagem sem figuras, onde o contato com a Alteridade assegura a continuidade do diálogo, aqui apenas esboçado.

“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.

___. Vida literária. São Paulo: EDUSP, 1993.

BESSIÈRE, Jean. Cendrars, lieux et frontières. In: CHEFDOR, Monique (Org.). La fable du lieu. Paris: Champion, 1999. p.11-31.

CARVALHAL, Tania Franco. A evidência mascarada. Porto Alegre: L&PM, 1984.

CESAR, Guilhermino. A vida literária. In: Rio Grande do Sul: terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1969.

CHAR, René. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1983.

COLLOT, Michel. Le sujet lyrique hors de soi. In: RABATÉ, Dominique (Org.). Figures du sujet lyrique. Paris: PUF, 1996. P.113-125.

COSTA, Walter Carlos. Mário de Andrade (1893-1945). Revista Arca, São Paulo: Paraula, n.1, 1993.

GUILLEN, Claudio. Múltiplas moradas (Ensayo de Literatura Comparada). Barcelona: Tusquets, 1998.

LAFETÁ, João Luiz. Figurações da intimidade. São Paulo: EDUSP, 1986.

MEYER, Augusto. Poesias (1922-1955). Rio de Janeiro: São José, 1957.

SILVA, Maria Luiza Berwanger da. Paisagens reinventadas (traços franceses no simbolismo sul-rio-grandense). Porto Alegre: UFRGS, 1999.  [topo da página]

# Marli Fantini Scarpelli - Cartografias Móveis: A poética de fronteiras em Guimarães Rosa

Em minha tese de doutorado intitulada “Fronteiras em falso: a poética migrante de Guimarães Rosa” (recentemente defendida na FALE-UFMG, sob a orientação da Profª Dra. Eneida Maria de Souza), investigo como Rosa problematiza, em seus cenários discursivos, a hibridez cultural e a heterogeneidade conflitiva geradas por distintos confrontos, em âmbito regional, nacional e transnacional, o que possibilita a emergência de zonas fronteiriças migrantes e reversíveis em homologia aos “espaços sem lugares e tempos sem duração”, de que fala Althusser (Apud BHABHA, 1998, p. 202).

Neste trabalho, enfoco fronteiras em falso, onde o interior e o exterior não podem ser separados; entre-lugares liminares, intersticiais, disjuntivos onde, malgrado todos serem estrangeiros uns aos outros, vigora um intenso contrabando entre distintas línguas e culturas a agenciar o efetivo intercâmbio e a permeabilização entre várias alteridades. Falo de uma terceira margem habitada por culturas híbridas, formada de ex-traditados da história e da própria geografia, de habitantes de margens e brenhais, que trazem à superfície dos campos discursivos de Rosa toda uma história de opressão, de exílios, de uma tradição oral soterrada durante vários séculos de encobrimentos. Falo de um sertão mais metafórico do que físico metafísico, cujas fronteiras se volatilizam, fazendo esboroar quaisquer marcos fixos ou hierarquizantes. Falo de um mapa periférico, cartografado nos subúrbios da história oficial.

Penso que a questão da fronteira — recorrente na vida profissional e na obra literária de João Guimarães Rosa —, as viagem por muitas geografias, o convívio com diversas culturas, o conhecimento de várias línguas são indubitáveis fatores a intervir no enfoque fronteiriço privilegiado na obra ficcional desse escritor, sobretudo no que diz respeito ao desdobramento e à permeabilização da perspectiva frente às diferenças culturais.

Viajante contumaz, Rosa desdobra sua vivência para reincorporá-la criticamente ao sertão mítico, às narrativas orais ouvidas em sua infância. Da itinerância entre culturas e mundos diversos, o deslocamento de perspectiva, permeabilizado pela mirada “estrábica” desse intelectual que, depois da travessia por várias línguas e culturas, reassume o próprio domínio lingüístico. E que, ao fazê-lo, comporta-se como um tradutor da língua materna. Tradução, transcriação, transculturação são procedimentos por meio dos quais Guimarães Rosa estende uma ponte entre o regional e o transnacional, cujos resultados mais evidentes são não os pólos extremos de sincretização ou excludência, de submissão ou rejeição, mas a relativização capaz de permear afinidades e diferenças, convergências e divergências entre o mesmo e o outro, entre o particular e o universal.

Exemplo dessa permeabilidade pode ser reconhecido em Grande sertão: veredas, romance em que a dureza geofísica do “sertão” perde o peso da referencialidade, para expressar uma realidade ambígua e heterogênea, ao mesmo tempo local e universal: “sertão” é onde “tudo é e não é” (GSV, 11); “Sertão é quando menos se espera” (GSV, 267); “Sertão é dentro da gente” (GSV, 289); “o sertão é uma espera enorme” (GSV, 538). Se a multiplicidade do cosmos pode caber no sertão, a singularidade do sertão também pode difundir-se no cosmos: “Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte” (GSV, 8).

Situado entre duas águas, Guimarães Rosa se desdobra entre o arcaico e o moderno, o sertão e o mundo, tendo certamente usado uma pluralidade de máscaras, muitas das quais calcadas, a posteriori, em suas próprias personagens. O constante assédio de críticos literários e jornalistas (em decorrência principalmente da charmosa conjunção entre o Ministro das Relações Exteriores e o escritor de prestígio internacional), em contraste à obrigação de sigilo (exigência protocolar da diplomacia), são em si razão externa suficiente para se compreender a imagem multifacetada e contraditória desse Janus sertanejo, que muitas vezes irrompe lúdica e fantasmaticamente no campo discursivo do escritor.

Em 1963, o crítico uruguaio Emir Rodrigues Monegal (que, anos depois, viria a tornar-se um importante biógrafo de Jorge Luis Borges) visita Guimarães Rosa, no Rio de Janeiro, quando este já é Ministro de 1ª Classe, ocupando o cargo de Chefe do Serviço de Fronteiras no Itamarati. Durante a entrevista, o escritor explica minuciosamente como constrói sua poética, a inserção de vários idiomas no português, a exploração deliberada de contradições etc., o que leva Monegal a perceber a conjunção entre o escritor e o diplomata: “Enquanto o escutava falar com precisão sem pressa, pensei que esta tarefa devia ser também um serviço de demarcação de fronteiras” (MONEGAL, 1991, p. 51).

A partir da reconstituição do ambiente literário, da vida intelectual e profissional de Guimarães Rosa, tendo sobretudo em vista o exercício de conjugar, em sua escrita, diferentes formas de conhecimento e formações discursivas de prestígio diferenciado (oral e escrito, popular e erudito, saber mitopoético e saber epistemológico, intuição e razão), pretendo verificar que as produções ficcionais e documentais desse escritor contribuem para a ampliação do conceito de literatura. Ao inter-relacionar-se com vários campos de conhecimento, a literatura de Rosa, além de rasurar seus próprios limites, dramatiza a relação intersubjetiva entre história e estória, realidade e ficção, texto literário e paraliterário, autoria e atoria. Através da própria forma de intencionar sua obra, Guimarães Rosa se utiliza de operadores que possibilitam ao leitor compreender a rede intercomunicante entre texto e contexto, entre formações culturais e discursivas, e, ainda, as múltiplas relações de sua literatura com as Ciências Humanas, a História, a Antropologia, a Psicanálise, a Filosofia e a Teoria da Literatura.

Tendo em vista a diversidade da obra rosiana e o locus que define suas condições de enunciação – zonas fronteiriças assinaladas pela hibridez e pela heterogeneidade conflitiva – este trabalho se ocupará em (a) observar a emergência de uma nova forma de habitar o mundo e de novos estatutos de trocas culturais; (b) discutir os procedimentos autorais/atorais do escritor a partir das várias personas sob as quais se faz representar no próprio texto – médico, diplomata, sertanejo, pesquisador, crítico consciente do próprio fazer poético – e a partir das quais ele pode criar uma abrangência que ultrapassa os limites da mera literariedade; (c) surpreender o processo de hibridização cultural entre populações rurais e urbanas, entre arcaísmo e modernidade; (d) discutir a tensão “assimilação/resistência” de formações discursivas produzidas em situação colonial, frente às culturas hegemônicas; (e) abordar a interação desierarquizante entre cultura popular e erudita, oralidade e escritura, pensamento mitopoético e epistemológico;

(f) tomar o interculturalismo como eixo para repensar conceitos como “nacionalismo”, “nação”, “pátria”, “relações identitárias”, tendo em vista a emergência de novos paradigmas relacionais decorrentes, sobretudo, do atual contexto de globalização e multiculturalismo e suas demandas de flexibilização de fronteiras políticas e culturais.

A abordagem comparatista que norteará este trabalho se ampara em três justificativas básicas. A primeira – em concordância com pressupostos desenvolvidos por Ángel Rama (Apud Candido, 1983) sobre a literatura produzida no continente a partir de 1910 – advém da constatação de que a “América Latina desenvolveu o seu sistema literário próprio, em dimensão continental, formando (...) «um sistema literário comum», do qual o Brasil é parte integrante e não mais corpo paralelo, como na concepção anterior” (CANDIDO, 1983, p. 145-46). Exemplo disso está na apropriação criativa às vanguardas européias e seu desdobramento nas técnicas renovadoras do regionalismo transnacional, cujo aproveitamento na obra de autores continentais, como José Maria Arguedas, Juan Rulfo, Roa Bastos, Gabriel Garcia Márquez e João Guimarães Rosa, institui um modelo comum a essas literaturas. Marcando diferença em relação aos modelos importados ou impostos pela metrópole, o regionalismo transnacional inaugura, na América Latina, um novo espaço discursivo. Para abordá-lo, torna-se necessária a perspectiva comparatista que poderá, a partir de agora, “assumir o papel que lhe cabe num país caracterizado pelo cruzamento intenso de culturas, como é o Brasil” (CANDIDO, 1983, p. 215).

Uma segunda justificativa se sustenta na consciência de que, dada a pluralidade de discursos críticos e de dispositivos teóricos desenvolvidos pelo comparatismo literário inter-americano, sobretudo na perspectiva dos Estudos Culturais (a “heterogeneidade cultural”, o “transculturalismo”, as “culturas híbridas”, o “entre-lugar do discurso latino-americano”, a “diglosia”, a “hermenêutica diatópica/heterotópica”), seria inconseqüente uma abordagem de quaisquer obras literárias latino-americanas que esteja desvinculada das condições simbólicas em que essas obras foram geradas.

A terceira e última justificativa se ampara na premissa de que os Estudos Culturais e os Estudos Pós-Coloniais propiciaram a alternativa plástica de colocar a voz recalcada do sujeito subalterno (antes silenciado) como importante interlocutor de novas trocas simbólicas e culturais. Essa alternativa deflagra um grande diálogo em que interagem não apenas instâncias discursivas, mas esferas extrínsecas (ao texto) de produção de sentido que incluem todos os agentes de transformação sócio-cultural, política e literária. Dentre esses agenciadores de transformação, além do principal ator – a própria encarnação do sujeito subalterno –, destaca-se a importante participação de sociólogos, antropólogos, etnólogos, historiadores, agentes culturais e, sobretudo do sujeito da enunciação que, enquanto agente de um discurso alternativo, deixa vazar, em seu campo discursivo, a imagem de um escritor preocupado com uma causa de ordem sócio-cultural. Dessa forma, a conjunção do comparativismo latino e ibero-americano com as produções concretas das “literaturas alternativas” explicita cada vez mais qual é o locus a partir do qual esses novos agentes podem enunciar e denunciar as próprias condições de submissão e recalcamento que lhe foram impostas pelo legado colonial.

O esforço teórico-crítico em apreender essas novas formas enunciativas deve mobilizar-se no sentido de aproximar, comparar e entrecruzar formações discursivas produzidas em condição colonial com novos modelos de produção simbólica, a essa altura já assinalados pela marca da heterogeneidade e da hibridez cultural. Esse procedimento deve fundamentalmente evidenciar a existência das trocas interculturais provenientes da necessidade de os elementos compósitos dessa grande totalidade heterogênea e contraditória interagirem e se colocarem em posição intersticial, ou seja, constituírem seu campo discursivo a partir de entre-lugares replicantes para, dessa forma, fazer frente ao modelo homogêneo e hegemônico herdado da pressão cultural imposta pela máquina colonizadora.

Ana Pizarro percebeu bem a urgência em se utilizar um novo instrumental comparatista capaz de dar conta dessa literatura alternativa que emerge de contextos coloniais e pós-coloniais. Na apresentação do livro América Latina: palavra, literatura, cultura, ela alerta para a necessidade de se utilizar uma “hermenêutica heterotópica”, para uma melhor apreensão da pluralidade de tempos culturais – superpostos e seqüenciais – que conformam a formação do continente latino-americano. Comportando diferentes formas de imaginário, distintas concepções estéticas e contrastivos modos de relação, as formações discursivas produzidas no espaço de tensões da história continental, “articularam-se [segundo ela] em um complexo composto de segmentos de modos de produção, sociabilidade e imaginário, inseridos em diferentes graus de desenvolvimento e em diferentes momentos na direção imposta pela metrópole” (PIZARRO, 1993, p. 28-9). Sua sugestão é a de que, para abordar a complexidade dessas formações híbridas e heterogêneas, torna-se necessário conjugar a crítica estética a um instrumental metodológico multíplice, capaz de abranger a compreensão dos fenômenos gerados pela superposição de distintos planos temporais, culturais, históricos e sociais que conformam as contrastivas formações literárias do continente latino-americano.

Como minha investigação privilegia o enfoque fronteiriço da poética rosiana, não me ocupo de “uma” obra específica de Guimarães Rosa, nem apenas da abordagem de certos aspectos temáticos ou formais canonizados pela fortuna crítica do escritor. A recorrência a tais aspectos será pontual, pois somente ocorrerá na medida em que possa contribuir para a fundamentação de alguns pressupostos em que se ancora a poética visada. Assim, exploro distintas virtualidades da “poética de fronteira” em uma ou mais obras rosianas. Um enfoque maior é dado aos contos “A menina de lá”, A terceira margem do rio” e “As margens da alegria”, de Primeiras estórias; às novelas “Cara-de-Bronze”, de No Urubùquaquá, no Pinhém, e “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)”, de Manuelzão e Miguilim; e principalmente ao romance Grande sertão: veredas que, sem ser privilegiado em um capítulo específico, estará, contudo, permeando todo o trabalho.

Ao inserir outros idiomas ao português, Guimarães Rosa quebra os parâmetros particularistas de língua. Diferentemente da utópica originalidade isolacionista com que, desde o romantismo, o regionalismo patriótico e provinciano vinha-se protegendo contra as influências externas e sobretudo contra a dependência cultural, Rosa põe sua região em relação de interatividade com outras paragens continentais e universais. Antonio Candido considera que, dos três momentos de manifestação regionalista brasileira e continental por ele examinados, somente a terceira vertente – consolidada por escritores como José María Arguedas, Gabriel García Márquez, Augusto Roa Bastos e João Guimarães Rosa – cria alternativas inovadoras, permitindo-lhe escapar ao anacronismo e ao provincianismo a que ficaram sujeitas as vertentes anteriores. Ao se fixar nas formas mais peculiares da realidade local, em lugar de afirmar a identidade nacional, como pretendia, tanto o regionalismo romântico quanto o naturalista acabaram ambos oferecendo à sensibilidade européia o exotismo que ela desejava, o que, segundo Candido, se torna uma “forma aguda de dependência na independência” (CANDIDO, 1989, p. 157).

A permeabilização da matriz regional, realizada sob o influxo da transitividade territorial, lingüística e cultural, permite a Guimarães Rosa adotar a combinatória de práticas culturais representativas da índole conflitiva e desafiante com que o Brasil e a América Latina se inserem na modernidade ocidental. Dessa forma, a obra rosiana ultrapassa os limites do subdesenvolvimento continental que levaram Candido a refletir que “nossas literaturas latino-americanas, como também as da América do Norte, são basicamente galhos das metropolitanas”. Ainda que semeados no quintal terceiromundista, os germens dessa nova literatura voltada para o ano 2000 proliferam e, sobretudo a partir de Rosa, já dão frutos no jardim das musas.

Malgrado toda a alta aspiração metafísica postulada pelo escritor em entrevistas e correspondências, tudo ou quase tudo viaja dentro de sua obra; e, a partir da viagem, desloca, atravessa e se desterritorializa. O recorrente impulso para a busca – de origem e sentido, de tempo e espaço, do incondicionado e do indizível – impele personagens rosianas sempre para um outro lugar. Mas as coisas acontecem, não na ida ou na volta, mas na zona fronteiriça, na terceira margem onde as demarcações perdem sua visibilidade e tudo entra em conexão: territórios, águas, línguas, culturas, conhecimentos e insciências. Um eloqüente exemplo dessa poética do “meio” se encontra neste trecho em que, ao refletir sobre o sentido de suas travessias, o narrador de Grande sertão: veredas constata que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (GSV, p. 60).

Permeável tecido de transformações, em cujas dobras se matizam temporalidades distintas e espacialidades móveis, o mapa dos territórios rosianos é aberto e remanejável de sorte que de suas fronteiras discursivas sempre se espera o surgimento de uma “terceira margem”, uma das mais emblemáticas imagens dessa cartografia verbal, onde “escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13).

A idéia de integrar, numa mesma rede multíplice e infinita, conhecimento e emoção, várias experiências e estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis, sob o princípio de amostragem potencial do narrável, institui a totalidade potencial, conjectural, multíplice dos hiper-romances que emblematizam, segundo Italo Calvino, a literatura do próximo milênio (CALVINO, 1990, p. 112). Essa radiografia do hiper-romance como grande rede pode ser reconhecida na grande arte de Guimarães Rosa.

Como seu personagem “Cara-de-Bronze”, que viaja sem sair do quarto, o escritor mineiro descobriu, mediante o efetivo trânsito por inumeráveis países e línguas, a transitar por diferentes temporalidades, línguas, culturas e geografias, a partir de sua máquina de escrever. A imagem da interface entre as inumeráveis barreiras desconstruídas pelo Chefe do Serviço de Demarcação de Fronteiras teria que ajustar-se à forma de um mapa migrante, sem fronteiras ou legendas. Móvel e remanejável como um tabuleiro de xadrez, o mapa de Rosa agencia infinitas combinações territoriais, cujo traçado aceita a intervenção simultânea de negociações e acaso.

Ainda que Rosa conjugue restauração e renovação da tradição oral, acentuar a tonalidade da cor local não é o procedimento mais forte da sua escrita, que trata, na verdade, de mesclar as matrizes a partir da superposição de vários outros matizes. Posto existir na obra rosiana uma forte recorrência ao acervo da oralidade, ao desclicherizar e reestruturar a morfologia do “era uma vez”, o escritor-diplomata não só renova e restaura a voz recalcada da tradição oral, como a recoloca em lúdica interação com a plasticidade dos signos postos em rotação pelas vanguardas poéticas.

Graças a esse revival, o tradicional “Aí, num belo dia...” converte-se, numa reviravolta performática, em “Ah, e, vai, um feio dia...” (GSV, 275). Nos contos de Primeiras estórias, cujo título já traz, em si mesmo, o emblema do descondicionamento, há incontáveis senhas a abrir ou fechar as estórias e, em paralelo, a desfossilizar os sentidos esvaziados pela repetição da mesma clave, como atestam estes exemplos: em “Os cimos”: “Outra era a vez” (168); em “As margens da alegria”: “Era outra vez, em quando, a Alegria” (7); em “Famigerado”: “Foi de incerta feita — o evento”(9).

As linhas de fuga do mapa rosiano se deslocam. Em sua poética de fronteiras, o escritor mineiro agencia, a partir de seu heterotópico locus de enunciação, uma tal dança de signos, que se perde a noção dos limites entre eu e o outro, o local e o universal, o oral e o escrito, a renovação e a restauração. Ao reinventariar, restaurar, reciclar, remanejar, reiventar suas fontes, Rosa suplementa as potencialidades inconcluídas da literatura (e da modernidade) brasileira e latino-americana.

Diferentemente de demarcações identitárias e de cartografias referenciais, os cenários heterotópicos dos mapas rosianos criam zonas de confluência, onde se institui um intenso contrabando entre línguas e culturas de diferentes procedências e temporalidades. Essa desmarcação discursiva dá visibilidade a identidades em curso, a pátrias itinerantes em permanente confronto e negociação, em cujas fronteiras emerge uma nova forma de ler e de habitar o mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. O olhar crítico de Ángel Rama; Literatura Comparada; Uma palavra instável.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 5v. Trad. Aurélio G. Neto e Célia P. Costa. Rio Janeiro: Editora 34, 1995. v. I.
MONEGAL, Emir Rodrigues. Em busca de Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
PIZARRO, Ana (Org.). América Latina: palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1993. Palabra, literatura y cultura en las formaciones discursivas coloniales.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969 
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# Paulo Sérgio Nolasco dos Santos - Lobivar Matos: Um clássico desconhecido

Para o Professor Lins.

Eu sou o poeta desconhecido...
Lobivar Matos

Recebi um presente: uma cópia do poema “sol”, inédito, em manuscrito do próprio Lobivar Matos, escrito no Rio de Janeiro, em 1938.

Para esta reunião do GT de Literatura Comparada, durante o XV Encontro Nacional da ANPOLL – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística –, que se realiza em Niterói, quero retomar a referência ao “poeta desconhecido”, o sul-mato-grossense Lobivar Matos (1915-1947), para fazer retornar a presença do ausente (o poeta desconhecido) que se torna um nome–signo emblemático da própria vida da literatura enquanto história dos seus textos.

Transcorridos sessenta anos desde que o poeta escreveu este texto e o momento que o recebi, acompanhado de um “dossiê” Lobivar Matos, registram-se, grosso modo, dois fatos que se interligam na vida literária, na crítica e na academia universitária. Primeiro o meu próprio desconhecimento de um nome expressivo não só da literatura de meu país, portanto, nacional (desconhecimento agravado mais ainda por se tratar de um poeta sul-mato-grossense) e depois os reveses e os (des)caminhos à que o sucesso ou a fortuna de um autor e sua obra estão submetidos, inexoravelmente, aos solavancos da história literária freqüentemente moldada por interesses de vários mercados, em especial da alfândega nem sempre atenta que projeta alguns nomes e condena outros ao silêncio e ao repouso no depósito das mercadorias que não encontraram boa cotação em seu tempo, ou, quando não, relegados, ao esquecimento total.

De minha parte, o interesse por Lobivar Matos nasceu, como disse, da leitura do “dossiê” e do livro publicado Lobivar Matos – O poeta desconhecido, do Professor José Pereira Lins (LINS: 1994). Também, isso veio ao encontro de um projeto de estudo, ainda restrito, que desenvolvo sobre a produção artístico-cultural sul-mato-grossense, cujo objetivo parte da constatação de que a região sul do Mato Grosso não foi devidamente mapeada em sua rica diversidade cultural. Essa região, do extremo oeste do Brasil, marcada na sua formação por um variado processo migratório, favoreceu-se grandemente no desenvolvimento da sua produção artístico-cultural. Daí que, o objetivo principal desse projeto de estudo é a recuperação, registro e divulgação de aspectos e/ou questões específicas da região e que ainda não foram devidamente estudados ou pesquisados.

Assim, quando recebi o material sobre Lobivar Matos, e sabedor de que tudo o mais estava a minha disposição na biblioteca do Professor Lins, em Dourados, inclusive as primeiras e únicas edições de Areotorare e Sarobá, publicados em 1935 e 1936 respectivamente, compreendi que tenho em mãos um valioso material, que, somando ao corpus fabuloso do que já se constituía um rico objeto de estudo – o local, a região sul do meu Estado –, além de tudo, o próprio epíteto com que se batizava Lobivar Matos, “o poeta desconhecido”, oferece uma chave importante para se repensar as condições sócio-culturais que interagem na divulgação de um nome, de uma obra, e até mesmo de uma região em especial, pois, assim como se reconheceu uma inteligente percepção no domínio da arte poética na obra lobivariana, também se observa o quanto sua cidade natal, Corumbá – a cidade branca –, com seu casario do porto e o bairro negro, está presente nos poemas do autor.

Passados sessenta anos, o cognome “poeta desconhecido” faz ressoar, hoje, a necessidade urgente de uma reedição das duas obras de Lobivar Matos, cuja importância tanto para a historiografia literária sul-mato-grossense como para a historiografia nacional é fato já salientado por estudiosos como Tasso da Silveira, dentre outros, e por Manoel de Barros, amigo e contemporâneo de Lobivar, que, em jornal do Rio de Janeiro, registrou com propriedade a “roupagem” modernista que justifica a atualidade de Lobivar Matos: “Aprecio a roupagem simples com que Lobivar Matos vestiu seus poemas. Não possuem aquele entochamento compacto da terminologia clássico-acadêmica. Pelo contrário, seu vocabulário é folclórico, apanhado do povo distante, de lá de Mato Grosso. Os estudiosos de costumes regionais têm em Sarobá uma fonte de estudos. Estou certo que o livro de Lobivar Matos, bem lotado de imagem e de realismo abriu para os jovens do Brasil a janela ampla que dá para a arte moderna, humana e sem preconceitos”. (Apud LINS: 1998, p. 20)

Com efeito, há que se sublinhar a maestria com que o poeta corumbaense se utiliza do verso livre, da notação elíptica do verso e da disposição gráfico-espacial na folha em branco, num procedimento modernista, para criar imagens que, como no poema “Aranha tecedeira”, brotam da própria tessitura textual para significar a relação analógico-comparativa entre a “aranha tecedeira” e o poeta que tece, sem glória, fios de seda, fios leves de ouro nas fibras da sensibilidade humana! (LINS: 1994, p. 29). Nesse sentido poderiam se justificar relações de homologia entre o “poeta desconhecido” e o autor de Da Educação pela pedra, João Cabral de Mello Neto, p.ex., nos poemas “Tecendo a manhã” e “Catar feijão”. Outros versos lobivarianos tematizam a grandeza das coisas simples que muitas vezes lembram a poética de seu contemporâneo Manoel de Barros. Como nessa primeira estrofe do poema “Lavadeiras”: “A manhã, - lavadeira velha - esfregou o sol e o estendeu na terra para secar...” (Apud LINS: 1994, p. 15).

Por fim, o cognome com o qual se batizou Lobivar Matos, além do que se observou, nos faz alerta para repensar uma das questões fundamentais da historiografia e com a qual muito se preocupa a crítica literária contemporânea, principalmente os estudos de literatura comparada. Ou seja, a fortuna crítica de um escritor e as injunções sócio-econômicas que, no caso de Lobivar Matos, parecem ter sido decisivas para o esquecimento de uma obra que, sem dúvida, tornou-se uma página da literatura brasileira, e de uma história de vida, a do próprio Lobivar Matos, entrecruzada por idas e vindas do Rio de Janeiro para Corumbá que parecem configurar, nesse caso, um ethos errático, à deriva da história oficial e à margem da vida. Questões como essa, do inexpressivo ou nenhum acolhimento de um escritor, continuam intrigando os estudiosos da literatura, seja para melhor avaliar o poder decisivo à que se submete a literatura pela recepção e quê variantes, como a da difusão mercantil e/ou acadêmica, acabam por excluir ou incluir obras e autores num cânone que, hoje mais do que nunca, mostra suas lacerações.

A propósito, Claudio Cezar Henriques, em artigo que estuda com profundidade o caráter valorativo e as possíveis conceituações do que seja o termo “clássico”, mostrou que autores de inabalável institucionalização canônica e “acima de qualquer suspeita” são também “Ilustres” desconhecidos. E cita o artigo “A recepção de Machado de Assis em Portugal”, de Pedro Calheiros: “Machado de Assis é um desconhecido em Portugal, e nem tenho a certeza de poder acrescentar o costumeiro adjetivo que muito serve nestas situações” (Apud HENRIQUES: 1997, p. 85-105).

Referências Bibliográficas
HENRIQUES, Claudio Cezar. Sob o signo dos quatro. Matraga, Rio de Janeiro: n.9, p. 85-105, out./1997.
LINS, José Pereira. “Dossiê” Lobivar Matos. 1998, 25p.
LINS, José Pereira. Lobivar Matos – o homem e o poeta. Trabalho apresentado no VI Ciclo de Literatura. Dourados: 1998.
LINS, José Pereira. Lobivar Matos – o poeta desconhecido. Dourados: 1994, 68p.
NETO, João Cabral de Melo. Da Educação pela Pedra à Pedra do Sono. (Antologia poética). São Paulo: Clube do Livro, s/d., 256p.
NOLASCO, Paulo Sérgio (Org.). Ciclos de Literatura. Campo Grande: Editora UFMS, (no prelo).
NOLASCO, Paulo Sérgio. A literatura comparada no extremo oeste do Brasil. Relatos de Pesquisas. Salvador: UFBA/ANPOLL, set./1997, p. 27-30.

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# Rachel Esteves Lima - Identidades tropicais: o latino-americanismo dos anos 60
É digna de nota a escassa tematização da América Latina na literatura brasileira. Enquanto nos demais países do subcontinente é abundante a produção literária que procura enfocar o pertencimento a uma comunidade latino-americana, no Brasil, à exceção de algumas poucas obras surgidas em dois momentos específicos (anos 20 e 60), parece predominar um Tratado de Tordesilhas no que se refere à construção de um imaginário que projete uma visão identitária das nações de colonização ibérica.

De modo geral, pode-se dizer que a percepção da diferenciação brasileira frente aos hispano-americanos predomina nos discursos da intelectualidade do país. Exemplo dessa postura é encontrado em Verdade tropical, de Caetano Veloso. Nas primeiras páginas do livro, o compositor evoca a paradoxal situação do Brasil, ao tratar do isolamento das comemorações dos 500 anos de seu descobrimento. Se esse evento, descompassado em 8 anos em relação à descoberta da América, nos situa, num certo sentido, à parte do continente como um todo, curiosamente, Caetano não deixará de criar, de forma artificial, uma certa correspondência, ainda que também sob o signo da diferença, entre os Estados Unidos e o Brasil, marcando, sem justificar, o seu distanciamento da América hispânica. Segundo ele,

O paralelo com os Estados Unidos é inevitável. Se todos os países do mundo têm, hoje, de se medir com a "América", de se posicionar em face do Império Americano, e se os outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto , o caso do Brasil apresenta a agravante de ser um espelhamento mais evidente e um alheamento mais radical. O Brasil é o outro gigante da América, o outro melting pot de raças e culturas, o outro paraíso prometido a imigrantes europeus e asiáticos, o Outro. O duplo, a sombra, o negativo da aventura do Novo Mundo.[i]

Sugere-se, nesta passagem, a persistência, posteriormente confirmada pelo próprio compositor, de um patriotismo que não deixa de ser eufórico e da aceitação do conceito de identidade nacional, ainda que não mais estruturado em torno de um dualismo radical entre a autêntica cultura popular nacional e a imperialista cultura estrangeira sinônimo de indústria cultural norte-americana , como se fazia até a década de 60. A não inclusão da América Hispânica no esquema identitário assumido, hoje, por Caetano Veloso cumpre, aqui, não a função de recusar como fictícia qualquer projeção da "nossa" diferença, mas apenas a que foi proposta, num breve período da história brasileira, como conciliação do nacionalismo e do regionalismo latino-americano. Não obstante o próprio Caetano haver gravado há 30 anos a canção de Gilberto Gil e Capinan, Soy loco por ti America dessa forma participando também do descontínuo processo de construção da imagem unificada do ser latino-americano na arte brasileira , o que se percebe é que a sua evocação permanece eivada de conotações populistas, que o compositor procura, no momento, evitar.

A proposta desse trabalho consiste na análise das formas que tomou o "latino-americanismo" da década de 60, em uma abordagem contrastiva que o correlacione ao pensamento da identidade latino-americana no modernismo, momento em que, efetivamente, ele se mostra mais incorporado à literatura brasileira.

Como ponto de partida, retomemos o ensaio “Literatura e subdesenvolvimento”, de Antonio Candido.[ii] Tal estudo ao mesmo tempo traça uma configuração e faz parte do momento em que se toma consciência do caráter estrutural do nosso subdesenvolvimento e se procura promover a unificação cultural latino-americana, uma vez que foi produzido como colaboração em um projeto maior patrocinado pela UNESCO, instituição que assumiu no pós-guerra o objetivo de conciliar identidade regional e universalismo.[iii] Importa-nos dele reter a noção de que a ruptura com a idéia de "país novo" e a conseqüente identificação com a cultura latino-americana se dá, na literatura brasileira, a partir do movimento modernista, sendo retomada mais enfaticamente ao final dos anos 60 e princípio dos 70, quando é publicado o estudo de Candido. Nesses momentos, produziu-se um questionamento das concepções evolutivas da história que, de acordo com Hegel, só poderia reservar um lugar à América no futuro , mas acabou-se recaindo em um discurso fundacionista, que, no caso do modernismo, promoveu um retorno às origens, fosse através do elogio da valorização do mundo indígena pre-colombiano, da evocação de uma harmonia racial evidenciada pela prática da mestiçagem, ou do elogio do legado cultural latino. Pode-se dizer que nem mesmo a teoria da dependência, que, na década de 60, enfatizou os processos históricos, políticos e econômicos, em detrimento das justificativas culturalistas, na explicação do descompasso da periferia em relação ao centro, conseguiu romper radicalmente com a noção de herança cultural. O ensaio de Candido é paradigmático, nesse sentido, tanto no que diz respeito ao seu conteúdo quanto ao locus de sua enunciação. E, ainda hoje, a recorrência ao sincretismo cultural encontra lugar no discurso da originalidade, que só pode ser operacionalizado a partir de um esquema diferencial e dualista, como ocorre na fala de Caetano.

O latino-americanismo surge, no cenário literário modernista, através da representação alegórica que opera, muitas vezes, uma incorporação transnominal da América Hispânica, no processo de construção ou de “invenção” da tradição cultural brasileira. Sobre ela, se assentariam as bases para um projeto autoritário de modernização tardia do país. A recorrência à origem, corporificada pelas pesquisas que tinham como objeto a língua, o folclore, os costumes e a arte primitiva em geral atenderam ao imperativo do regime de disciplinarização da sociedade, que se instituiu na América Latina com a fundamental contribuição da classe letrada. Coube a ela fornecer os símbolos formadores não apenas da identidade nacional, mas também latino-americana. Confluem nessa prática, o "messianismo salvacionista" implícito no papel do intelectual institucionalizador da essência de um povo, a exclusão das diferenças pela idealização de uma identidade homogênea e a delimitação das fronteiras que nos separam da modernidade ocidental e que acaba nos transformando no seu "outro absoluto".[iv]

Pode-se exemplificar esse paradoxo através da estratégia de "desgeografização" adotada por Mário de Andrade no desenvolvimento do personagem Macunaíma,[v] que serve tanto para conformar a sua "diversidade na unidade", como para contrapô-lo à racionalidade ocidental burguesa, quando se enuncia o resultado de sua plasticidade cultural como ausência de caráter. Ou através da devoração ritualística da antropofagia oswaldiana, que acaba incorrendo na mitificação da identidade calcada na abertura ao sincretismo cultural.

O rompimento com a visão unilinear e progressista e o engajamento no processo de modernização das estruturas sociais convivem na obra e na vida dos escritores modernistas. Tal ambivalência que talvez constitua a característica central dessas vanguardas exprime a peculiar situação do pensamento crítico e da prática intelectual que se constituem na periferia do capitalismo. A conjunção de temporalidades históricas distintas em um espaço caracterizado pelas gritantes desigualdades sócio-econômicas implica a impossibilidade de se seguir o mesmo percurso histórico e de se adotar o mesmo padrão de racionalidade das nações desenvolvidas. A ausência de uma elite econômica vanguardista que fosse capaz de ampliar aos setores populares os benefícios do processo de modernização, a incapacidade de se organizarem forças de oposição às classes dominantes e a diversidade étnica do país impediram o advento de uma revolução burguesa e a delimitação de uma esfera cultural pública, tal como se dera nos países do capitalismo central. A modernidade brasileira só poderia ocorrer em um cenário de contradições e a classe letrada teve que recorrer ao Estado na tentativa de promover os avanços dos projetos que a constituem[vi] e que, em última instância, a beneficiam. Na ambivalência de seus movimentos, muitos intelectuais acabaram tendo que se confrontar com a conclusão de que

assim como o passado do mundo não foi o nosso passado, o seu presente não é nosso futuro. Somos evolutivamente de outro fuso temporal. Para nós, qualquer revolução burguesa de liberação das peias feudais, a fim de ensejar o surgimento de um empresariado shumpeteriano seria tardio.[vii]

Até a década de 60 prevaleceu, entretanto, a ideologia desenvolvimentista que considerava viável o atingimento de um estágio avançado do capitalismo, no qual o progresso técnico e os benefícios dele decorrentes seriam estendidos a todos os países que participassem do sistema de divisão internacional do trabalho. De acordo com Celso Furtado, a tardia industrialização brasileira estaria na origem tanto das enormes desigualdades sociais do país quanto da persistência do autoritarismo político. E é o próprio economista quem nos leva a concluir que essa conexão entre rígidas estruturas políticas e industrialização se sustentou na ideologia do desenvolvimento, que ele, com sua política reformista, ajudara a construir. Reconstituindo um discurso proferido em reunião na qual defendeu a "Aliança para o progresso" malogrado projeto que nos anos 50 representou uma arma utilizada pelos Estados Unidos para desenvolver um panamericanismo sob seu domínio , Furtado afirma:

Não se trata de fazer a revolução antes que o povo a faça, pois não existe revolução sem povo, e sim de contribuir com inteligência e realismo para iluminar os caminhos dessa revolução e evitar que oportunistas e fanáticos assumam seu comando". E ia mais longe, insistindo em que o desenvolvimento latino-americano tinha como um de seus suportes a busca da auto-identidade. Disse, enfático: "É por essa razão que a mística do desenvolvimento tem entre nós uma dimensão nitidamente nacionalista.[viii]

Esta ideologia foi encampada também pelas esquerdas latino-americanas, que aderiam a uma política de alianças com as elites locais, em obediência à ortodoxia marxista, que pressupõe um encadeamento causal no processo revolucionário. Sem revolução burguesa, não haveria, portanto, socialismo. Recaía-se, assim, em um estado de suspensão, no qual o presente só se constituía na espera por um futuro que se podia mirar nos modelos democráticos ou socialistas existentes, um futuro "que liber[asse] a América Latina e a transform[asse] em si mesma".[ix]

Como já se antecipou, a ambigüidade dos escritores modernistas se expressa na participação no projeto de modernização e no simultâneo questionamento da racionalidade logocêntrica. O recurso ao passado, através da reativação da cultura popular ou do universo mítico indígena podem, dessa forma, tanto significar um envolvimento dos escritores na produção ideológica que sustentaria o nacionalismo e o desenvolvimentismo, dentro de uma concepção progressista da história, quanto a desidentificação com a lógica linear do pensamento ocidental.

Os textos sobre a antropofagia, principalmente os produzidos após o rompimento de Oswald de Andrade com o Partido Comunista, ocorrido em 1945, podem ser considerados, na literatura brasileira, como os exemplos mais ricos e disseminadores dessa situação. Como já concluiu Benedito Nunes, a apropriação da cultura indígena, nessas obras, significa uma dessolidarização de Oswald de Andrade com os valores da sociedade na qual o escritor se achava inserido.[x] A "metafísica bárbara " reflete uma visão cíclica da história, onde se concretizaria a síntese dialética entre o homem natural e o homem civilizado, na figura do primitivo tecnizado. A utopia oswaldiana coaduna o anti-patrimonialismo e a moral anti-autoritária do bom selvagem rousseauniano localizado em tempo e espaço imemoriais e as possibilidades de redenção humana, proporcionadas pelos benefícios tecnológicos decorrentes do desenvolvimento capitalista.

A crítica ao messianismo, que traduz a ideologia do futuro e a opressão nas quais se fundamentam tanto o capitalismo quanto o comunismo, tem como contrapartida a inabalável confiança na ciência e na técnica enquanto instrumento fundamental para o retorno "em diferença" ao Matriarcado de Pindorama. Também aqui, reforça-se a ideologia da "transição", que posterga a liberação humana das estruturas disciplinares. É o que se depreende das palavras de Oswald:

Não se pode confundir uma fase da História com a própria História. Temos que aceitar a superioridade inconteste do calvinismo baseado na desigualdade como alentador da técnica e do progresso. Mas, hoje, conquistados como estão os valores produzidos pela mecanização, chegou a hora de revisar e procurar novos horizontes.[xi]

Segundo o escritor, a abertura a esses horizontes seria papel a ser desempenhado pela América, onde estaria “criado o clima do mundo lúdico e o clima do mundo técnico aberto para o futuro".[xii] Pela antevisão de um devir que constitui, na verdade, uma projeção do pensamento ocidental, dado que a descoberta do Novo Mundo fundou no imaginário europeu a utopia de um novo Éden, o escritor acaba recaindo nas narrativas da identidade. A mitologia do paraíso perdido, que sempre alimentou os discursos ufanistas da cultura latino-americana,[xiii] renova aqui as suas forças, impedindo que Oswald conseguisse romper radicalmente com a mentalidade progressista. Seu conceito de antropofagia e a valorização de uma moral desrepressora, baseada no ócio, na festa e nas relações intersubjetivas solidárias, lançaram, contudo, as sementes para que o presente irrompesse na cena cultural brasileira dos anos 60.

Além dos movimentos contraculturais deflagrados a partir de 68, dois momentos da história latino-americana contribuíram para que isso acontecesse: a revolução socialista de Cuba e a onda de golpes militares que se seguiram no subcontinente, desacreditando a ortodoxia do pensamento marxista calcado em anacrônicas noções dualistas e tornando evidente a relação de “simbiose estrutural” estabelecida entre capital nacional e estrangeiro.

No plano da cultura, a década de 60 representou um divisor de águas. A concepção "nacional-popular", que praticamente constituiu uma tradição no pensamento brasileiro, se vê confrontada com a indústria da cultura, que dificulta a permanência da visão messiânica do intelectual enquanto responsável pelo projeto educativo e formador da consciência nacional. A hegemonia das teorias isebianas que pressupunham a construção de uma cultura original, remetiam ao futuro a condição ontológica do "ser" nacional e decretavam a existência de uma relação reflexiva entre dependência econômica e dependência cultural vai se chocar com uma produção artística que as questionaria veementemente.

Diante de um cenário econômico, político e institucional que desmentia as promessas utópicas tanto dos desenvolvimentistas quanto da esquerda pré-64 e da desilusão quanto às possibilidades emancipatórias da ciência e da técnica, após a invenção da bomba atômica, a "ideologia do futuro" se vê seriamente abalada e a arte pode, então, se voltar para "o tempo presente, os homens presentes, a vida presente".[xiv] A pop arte, o tropicalismo e a contracultura se oferecem, assim, como sintomas das contradições em que se enredara o capitalismo tardio. A "experiência do desbunde" dos anos 60 se sustenta, como lembra Carlos Alberto M. Pereira, no seguinte tripé: "hedonismo, ludicidade e erotização das relações sociais".[xv] A estetização do cotidiano se traduz no experimentalismo artístico, que incorpora a exploração multisensorial, tanto nas artes plásticas, quanto no teatro, no cinema, na música e na literatura. O diálogo com a "cultura internacional-popular"[xvi] não significa, entretanto, uma abstenção quanto às questões políticas da época. Não se advoga a autonomia da arte, traduzida no imanentismo de certas experimentações vanguardistas, mas sim a liberação da subjetividade na produção cultural, sem corroborar a postura salvacionista que transformava o artista ou o intelectual em tradutor da consciência da nação.

Evidentemente, mesmo entre os participantes dos movimentos de renovação surgidos no período notam-se diferenças quanto à interpretação do que se passava na sociedade e essas diferenças marcarão a forma como é elaborada a questão da identidade e da temporalidade.

Tem se procurado elaborar, ultimamente, uma analogia entre o que se passava na teoria econômica e na arena cultural: de um lado, os defensores do movimento foquista, que advogavam o "socialismo ou a barbárie" e uma produção artística ainda presa aos critérios de autenticidade e de genuinidade; de outro, os que acreditavam numa relação de interdependência na esfera macroeconômica e os novos antropófagos internacionalistas, que retrabalhavam os ícones da indústria cultural. É fato que as duas tendências culturais podem ser detectadas nessa época. Não se admite, entretanto, as posições que enxergam uma relação de igualdade entre as duas esferas. Afinal, se a teoria de Fernando Henrique Cardoso tende, principalmente hoje, a ser considerada uma expressão do realismo conformista,[xvii] o mesmo não se pode dizer de um movimento como o da Tropicália, que representou, na verdade, uma alternativa à dicotomia desenvolvido/subdesenvolvido e à racionalidade burguesa, que ainda pautava o pensamento da dependência.

A década de 60 constitui o momento áureo do sentimento de unidade latino-americana. A consciência de que os países do subcontinente partilham história e destino comuns evoca projeções identitárias, que rompem até mesmo a barreira lingüística existente entre as Américas de colonização hispânica e portuguesa. Como ocorrera em finais do século XIX e início do XX, essas projeções refletem uma oposição à política de ingerência e desrespeito à autonomia dos países latino-americanos demonstrados pelos Estados Unidos. O repúdio ao imperialismo norte-americano justificou, no Brasil, os embates que se travaram contra a indústria cultural, considerada instrumento de dominação neocolonial, principalmente no âmbito da música popular brasileira. Mas o fato é que muitas produções que incorporavam a cultura de massas assumiam também o repúdio à dominação norte-americana, no plano político, econômico e até cultural.

O latino-americanismo na arte de Glauber Rocha, Caetano Veloso e José Agrippino de Paula foi uma expressão desta postura. No entanto, a produção cultural dos anos 60 foi acusada à época de ambígua e desajustada à realidade vivida no período. Tal crítica tem sido reativada, ultimamente, o que evidencia a necessidade de, neste momento, se repensar criticamente o significado da arte e da cultura, em geral, produzida naquela década. A crítica mais contundente partiu, na época, de Roberto Schwarz, cujas idéias são hoje retomadas por aqueles que querem combater a prática de devoração das idéias estrangeiras pela cultura brasileira.

No artigo "Notas sobre a cultura e a política, 1964-1969", publicado no calor dos acontecimentos, Schwarz coloca em questão o caráter atemporal, e portanto a-histórico, da visão de Brasil enunciada pela arte tropicalista, onde, segundo o autor, convivem harmoniosamente o lado arcaico e o lado moderno do país. A coexistência dos contrários na alegoria de Brasil criada tanto naquele momento, quanto no movimento modernista, revelaria o "absurdo" como essência do ser nacional e desviaria a atenção da luta de classes, num quadro de profunda repressão política. Neste artigo, o crítico antecipa, sem contudo nomear, a construção teórica formulada em Ao vencedor as batatas, publicado em 1981, que se traduz nos conceitos de "idéias fora do lugar" e de "ideologia do segundo grau". Tais noções se referem à situação criada pela importação das idéias que, incorporadas pela representação brasileira, cumprem apenas a função de escamotear a violência das relações sociais aqui estabelecidas.

Ao recuperar, na contemporaneidade, as idéias de Schwarz, Paulo Arantes reforça a visão de que o problema é que na vanguarda modernista e tropicalista, por extensão , o aniquilamento da sensação de inadequação, de inautenticidade cultural, decorrente do "senso dos contrários", representa uma "pacificação sem dialética", que se alcança através do "mito progressista-conservador", representado pela ilusão da existência de um "país não-oficial". No entendimento de Arantes se revela, a meu ver, justamente a grande contribuição das narrativas contra-modernas (ou pós-modernas) do tropicalismo. Nelas, não se postula realmente uma compreensão dialética da história, onde o futuro deve comandar as ações do presente. Não se propõe uma síntese, como na proposta oswaldiana, que acaba justificando a "ideologia da transição" e a missão salvífica do intelectual. Se Schwarz e Arantes conseguissem relativizar o quadro teórico da dependência cultural, talvez percebessem que, realmente, a arte da década de 60 certamente guardadas as devidas diferenças evidencia o absurdo, mas esse absurdo reflete e denuncia muito mais as contradições do capitalismo tardio, em um país periférico do que uma literatura que seguisse, nos dias de hoje, os parâmetros da representação realista.

A ambigüidade que detectamos em Oswald de Andrade talvez explique o fato de se pretenderem, tanto Glauber Rocha quanto Caetano Veloso e José Agrippino de Paula, tradutores do legado oswaldiano. A representação alegórica une a proposta estética de todos eles, mas a influência oswaldiana assume conotações diferentes nos trabalhos de cada um. Uma dimensão que se pode chamar ainda de nacionalista percorre as obras de Caetano Veloso e Glauber Rocha. Em ambas, nota-se a mesma preocupação em formular um discurso antropológico, que consiga revelar a riqueza cultural brasileira. O ponto de partida, entretanto, é bastante diferente. Caetano se apropria antropofagicamente tanto da tradição da música popular brasileira quanto dos ícones da cultura de massa, mantendo, contudo, o objetivo de transcendê-la esteticamente, desenvolvendo um produto de exportação, que demonstre a capacidade de se produzir no Brasil uma mistura original e cosmopolita. Se em Oswald ocorre, entretanto, a apropriação das técnicas de reprodução, mas não a incorporação ao mercado (até mesmo em razão de sua inexistência, no período), no capitalismo tardio as duas esferas tendem cada vez mais a se identificar e a confundir as hierarquias no terreno da cultura. Esta realidade é facilmente absorvida na proposta dos tropicalistas, que, lúdica e desculpabilizadamente, se mostram sintonizados com as tendências estéticas internacionais do tempo presente.

O mesmo não ocorre com Glauber Rocha, que, embora se aproprie das técnicas de comunicação massiva, como as da televisão, persiste rejeitando o sincretismo com a superficialidade da cultura "internacional-popular". Nesse sentido, o cineasta assume uma perspectiva mais próxima do nacionalismo romântico[xviii] e sua obra cinematográfica revela a dimensão épica que resulta em uma maior densidade histórica. A antecipação da crítica ao messianismo do intelectual em Terra em transe não o impede de dividir com Oswald de Andrade o comprometimento com a utopia, o que o faz lutar contra as formas de dominação exercidas pelo imperialismo cultural e recair no discurso da identidade dos povos oprimidos. Daí a constante recorrência ao jargão político-econômico criado em torno da noção de Terceiro Mundo, em sua obra teórica e cinematográfica. Assumindo uma perspectiva estética revolucionária, Glauber dramatiza em seus filmes, os problemas que unificam a “América nuestra” evocada por Martí.

Já José Agrippino de Paula leva ao paroxismo, em Panamérica, o conceito de antropofagia, ao representar a absorção dos discursos políticos, históricos e artísticos pela indústria cultural. Expõe de forma crítica, mas sem nenhum recurso à tradição, o espetáculo que constitui a realidade contemporânea, na qual nada escapa ao caráter mitologizante da mídia. A estratégia da presentificação é, em Agrippino, levada ao extremo, através do tratamento sincrônico de fatos históricos ocorridos em momentos distintos, da erotização das relações mais improváveis na vida cotidiana e da falta de profundidade dos personagens. O rompimento das fronteiras geográficas entre os países americanos, mais do que permitir a elaboração de uma crítica ao imperialismo do norte, já enuncia uma certa homogeneidade cultural no continente, uma vez que a representação da figura romântica de Che Guevara, tradutora do esforço latino-americano de resistência, apenas denuncia a fragilidade dos movimentos revolucionários. Como afirma Evelina Hoisel, "Agrippino de Paula propõe o texto multinacional, que assume a perspectiva industrial, tecnológica e hiperbólica do universo das multinacionais"[xix] (grifo da autora).

Ao contrário do que se passava com Oswald de Andrade, a sensibilidade pós-utópica de José Agrippino se revela no reconhecimento de que a técnica não pode levar a um novo Matriarcado, mas sim à destruição humana e ao caos.[xx] Ao invés de proporcionar a generalização do ócio e da festa, a automação tecnológica acentua o desperdício e as oposições centro/periferia, situação que evidencia as contradições que cada vez mais seriam evidenciadas pelo capitalismo tardio[xxi], que, segundo Ernest Mandel, apresenta uma mistura contraditória de racionalidade e irracionalidade, que pode fazer explodir o sistema e, quem sabe, prenunciar uma reorganização do modo de produção. Nesse caso, a anarquia poderia gerar uma nova utopia, não prevista em nenhuma síntese dialética. Afinal, ao trazer o futuro para o presente, só se pode produzir uma história aberta, sem roteiro predefinido.

Referências bibliográficas
[i] VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.14.
[ii] CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, p.140-162.
[iii] Cf. MORENO, César Fernández (Coord.) América Latina em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.XXIII.
[iv] Cf. CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Crítica de la razón latinoamericana. Barcelona: Puvill Libros, s.d., cap.3.
[v] Cf. ANTELO, Raúl. Na ilha de Marapatá; Mário de Andrade lê os hispano-americanos. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL/Fundação Nacional Pró-Memória, 1986, p.50.
[vi] Cf. CANCLINI, Néstor García.La modernidad después de la posmodernidad. In: BELLUZZO, Ana Maria de Moraes (Org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial/UNESP, 1990, p.204-205.
[vii] RIBEIRO, Darcy. América Latina: a pátria grande. Rio de Janeiro: Guanabara Dois, 1986, p.97.
[viii] FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, v.2, p.241.
[ix] ALMINO, João. Um falso problema? Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 ago. 1988. Caderno Folhetim, p.B-6.
[x] NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo/Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p.5-39.
[xi] ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica, p.165.
[xii] ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica, p.145.
[xiii] Cf. HOLLANDA, Sergio Buarque de. Visões do paraíso. São Paulo: Ed. Nacional/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1977. No cap.VII, o autor nos informa que a disseminação do mito edênico no Brasil constitui uma exceção na construção do imaginário do brasileiro, pouco afeito às fantasias que proliferavam na América de colonização hispânica.
[xiv] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, p.132.
[xv]PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.
[xvi] ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.182.
[xvii] Cf. FIORI, José Luís. Os moedeiros falsos. Petrópolis: Vozes, 1997; VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O príncipe da moeda.Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1997.
[xviii] Cf. VELOSO, Caetano. Verdade tropical, p.257, VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto, p.215.
[xix] HOISEL, Evelina. Supercaos; os estilhaços da cultura em Panamérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1980, p.152.
[xx] Ibidem, p.123-134.
[xxi] Cf. MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p.358.

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# Rildo Cosson - O romance-reportagem depois dos anos 70
1. Horizonte Metodológico

Os gêneros periféricos costumam ser tratados como uma massa informe. Deles se apreende apenas um punhado de características vagas que mais justificam a designação dada que a sua verdadeira constituição como gênero. Muito menos se estuda suas obras individualmente, uma vez que o título genérico é suficiente para as operações de contraste com os gêneros centrais. Frente tais limitações de leitura é que se indaga: qual a visibilidade de um gênero não-canônico como o romance-reportagem? É possível a construção de um cânone do romance-reportagem conforme os padrões dos gêneros canônicos?

Aprendemos com a crítica feminista contemporânea que a subversão ou revisão dos cânones estabelecidos é uma das estratégias básicas daqueles que recusam tomar o campo literário como um espaço de pura expressão estética. O trabalho de recuperação de autores esquecidos ou apagados, a releitura de textos considerados menores e a configuração mesma de um cânone paralelo demonstram que a permanência das obras não depende apenas de seus dotes artísticos. Todavia, talvez porque lutem por um espaço maior no centro do sistema literário ou porque desejem garantir maior visibilidade para seus autores, os estudos feministas e de minorias terminam, em alguns casos, subscrevendo os mesmos valores estéticos que deram suporte ao cânone oficial. Em outras palavras, no afã de provar que as obras esquecidas são tão legítimas quanto aquelas que já estão incluídas no cânone, o crítico deixa de lado as diferenças e não questiona as razões das semelhanças.

Transposta para a leitura de gêneros não-canônicos como o romance-reportagem, a situação delineada acima é um tanto mais complexa. Por um lado, não se trata apenas da inclusão de novos autores e obras em um cânone estabelecido, mas sim do questionamento das fronteiras estabelecidas para o literário. Por outro, os gêneros já legitimados não podem ser tomados como parâmetros de leitura porque eles são parte constitutiva do sistema que garante a distinção entre canônico e não canônico. De fato, a própria posição central que esses gêneros ocupam e sobre a qual repousa o conceito de literário implica necessariamente em separação e exclusão.

Dessas breves considerações se conclui que o estabelecimento de um cânone para o romance-reportagem exige muito mais que simplesmente arrolar obras e hierarquizá-las segundo os critérios usuais da crítica. Na verdade, faz-se necessário toda uma revisão dos aportes teóricos e dos procedimentos metodológicos que envolvem o questionamento do cânone. Também é fundamental um estudo amplo do sistema literário vigente a fim de que se possa explicitar tanto a sua inserção periférica, quanto as possibilidades não efetivadas. Igualmente importante é o estudo do gênero em seu percurso histórico, compreendendo desde o estabelecimento de precursores até as suas mais recentes manifestações. O caminho é longo e exige estudos que ultrapassam as possibilidades desse texto. Um primeiro passo, que precede mesmo o atendimento dos requisitos teóricos e metodológicos, consiste em resolver uma questão que a recepção crítica do romance-reportagem no Brasil impôs ao gênero.

2. Horizonte Crítico

Emergindo com grande sucesso de público na segunda metade da década de 70, o romance-reportagem recebe inicialmente uma ampla cobertura jornalística. Nos reviews às obras e nas introduções às várias entrevistas de José Louzeiro, considerado unanimemente como o principal autor desse tipo de narrativa, os críticos apontam, como traços positivos do romance-reportagem, a denúncia social e a mistura de jornalismo com literatura. Tanto num caso como no outro, o gênero é um exemplo de resistência ao arbítrio do regime ditatorial. Passado o momento das resenhas nos jornais que se sucedem às publicações das obras, o romance-reportagem vai paulatinamente sendo apagado dos artigos, ensaios e textos acadêmicos que compõem o centro da crítica literária. Nas poucas vezes que o gênero ganha atenção dessa crítica, ele é majoritariamente visto de maneira negativa. Para os críticos literários, a hibridização proposta pelo romance-reportagem é um equívoco de época, seja porque transpõe sem filtragem temas e técnicas jornalísticas para a literatura, seja porque apresenta uma baixa ou repetida elaboração da linguagem literária. Essas falhas formais atingem também a sua denúncia que, sem apoiar-se em um ato verdadeiramente criativo, é apenas uma maneira ingênua, quando não inócua, de fazer crítica social. Desse modo, o romance-reportagem não deveria nem mesmo ser visto como um gênero, conforme o fizeram os críticos jornalísticos, mas sim como um fenômeno de época que imprimiu na literatura os tons e as cores do jornalismo.

A leitura do conjunto da recepção crítica do romance-reportagem deixa várias questões em aberto. Aqui nos interessa salientar essa que faz do gênero expressão malograda de uma época. Em primeiro lugar cumpre destacar que a posição do romance-reportagem dada pela crítica faz parte da configuração do campo literário nos anos 70 ou, mais especificamente, do rearranjo do cânone que se processa após o esfacelamento da frente de resistência à ditadura. Neste contexto, o romance-reportagem, admitido momentaneamente no conjunto das obras representativas do período, termina por se configurar como o aspecto negativo dessa produção literária. Se as obras são documentais na resistência à ditadura, o romance-reportagem representa o excesso dessa documentalidade, comprometendo-se mais com a política do que com a literatura. Se os escritores tomam de empréstimo ao jornalismo fórmulas narrativas, o romance-reportagem se afirma como a própria fusão de jornalismo e literatura, adquirindo por esse meio o caráter de obra ‘bastarda’. Se as narrativas alegorizam, através do fantástico ou do absurdo, o arbítrio ditatorial, o romance-reportagem realiza essa alegoria com as armas realistas dos casos singulares. Se as obras literárias do período desconfiam das verdades e desafiam as certezas sobre o mundo burguês, o romance-reportagem é primário, unívoco e dogmático em sua tentativa de retratar a sociedade brasileira. Em suma, qualquer que seja a característica atribuída à produção literária dos anos 70, o romance-reportagem serve de fundo e contraste para que se valorize, apesar dos problemas detectados, parte dessa produção. Sem o limite alto das obras-primas ou com esse limite localizado no passado modernista, a crítica usa o romance-reportagem como ponto de partida para situar determinadas obras acima do que considera as inconsistências da época.

Mais que isso, é graças a tal mecanismo que a crítica só consegue ler o romance-reportagem pelas ausências que apresenta, pelo que lhe falta e não pelo que lhe é peculiar e próprio. É também por cumprir a função de limite baixo das narrativas literárias da década de 70 que o romance-reportagem não pode ser visto como um gênero à parte. Daí o apagamento do seu lado jornalístico que, se mantido, perturbaria a sua assimilação, ainda que negativa, ao campo literário. Daí o pouco interesse em analisar o conjunto dessas narrativas e a preferência por exemplo isolados, quando não impróprios para o sentido que remete a expressão. Daí o uso indiscriminado do rótulo romance-reportagem para as narrativas dos anos 70, mas o seu progressivo apagamento fora desse período histórico. Finalmente, transformando o romance-reportagem em uma tendência da época, a crítica adquiria um instrumento de fácil manipulação para o seu trabalho de realinhamento do cânone. Dessa forma, romance-reportagem termina sendo um rótulo geral para todo texto que, produzido na década de 70, não possui as características necessárias de elaboração da linguagem literária para ser integrado ao cânone brasileiro.

Todavia, se é verdade que o romance-reportagem teve grande sucesso nos anos 70, nem por isso pode ser reduzido apenas a um fenômeno de época. Até mesmo porque a produção de obras do gênero perdurará para além desse círculo histórico. As décadas de 80 e 90 apresentam novos títulos que asseguram continuidade ao romance-reportagem, ainda que essa produção receba pouca atenção e, alguns casos, nem mesmo use o rótulo genérico. São alguns desses títulos que vamos apresentar brevemente a seguir.

3. Horizonte de Leitura

Se a reprovação da crítica cumpriu, indubitavelmente, um papel relevante no apagamento do romance-reportagem dentro do cenário cultural brasileiro, nem por isso obras que misturam literatura e jornalismo deixaram de ser escritas e publicadas. Em 1987 dois sucateiros invadem uma casa abandonada, onde antes funcionava o Instituto Goiano de Radioterapia, em busca de qualquer objeto que pudesse ser vendido no ferro-velho. O resultado dessa aventura chegou às páginas dos jornais de Goiânia e de todo Brasil como o “caso do Césio-137”. No mesmo ano, a história é transformada por Fernando Pinto em livro com o título A Menina Que Comeu Césio[i]. Em 1988, um assalto a banco em Londrina envolvendo centenas de reféns “parece coisa de cinema”, mas termina é na forma de um livro, assinado por Domingos Pellegrini Jr. com o título Assalto à Brasileira[ii]. Em 1989, o assassinato de um casal da alta classe média paulista, os Bouchacki, e o provável envolvimento do filho mais velho do casal no crime também termina sendo registrado em livro com o título de O Crime da Rua Cuba, por Percival de Souza[iii]. Em 1993, a juíza Denise Frossard surpreende a imprensa ao condenar a seis anos de prisão os quatorze maiores banqueiros do jogo-do-bicho no estado do Rio de Janeiro. Tanto na acusação do promotor, quanto na sentença da juíza uma obra é citada: Avestruz, Águia e ... Cocaína, de Valério Meinel[iv], publicada pela primeira vez em 1987.

Também na década de 90, dois outros livros causam impacto pelo trabalho intenso de reconstituição de acontecimentos históricos. O primeiro deles, escrito em 1995, é As Noites das Grandes Fogueiras, de Domingos Meireles[v], dedicado a recontar a trajetória da Coluna Prestes. O segundo, de 1998, é Fera de Macabu, de Carlos Marchi[vi], tratando do caso Coqueiro ou como diz o subtítulo “a história e o romance de um condenado à morte”.

Todos esses autores citados são jornalistas e também escritores. Todas as obras referidas acima são reconstruções de acontecimentos factuais e empregam em maior ou menor intensidade artifícios narrativos usualmente encontrados em obras de ficção. Pelo menos é isso que nos informam os editores e apresentadores desses textos. Na orelha de A Menina Que Comeu Césio, a repórter Marlene Galeazzi explica que “não se trata de um trabalho exclusivamente jornalístico. Ele pesquisou como um repórter deve pesquisar e escreveu como deve fazer um escritor”. A contracapa de Assalto à Brasileira declara que “este é o primeiro livro-reportagem de Domingos Pellegrini, depois de vários volumes de contos e novelas. Aqui a técnica do narrador se junta à experiência do repórter para tratar de um fenômeno típico do Brasil pós-Cruzado: os assaltos com reféns”. Também na contracapa de O Crime da Rua Cuba, o editor afirma que “apelando para um recurso típico de textos de ficção - um narrador, uma máquina do tempo - o jornalista Percival de Souza constrói, neste livro, uma narrativa vibrante, que organiza fatos e hipóteses, pistas e mistérios. Uma reportagem que enriquece as informações e a discussão de um dos mais controvertidos crimes dos dias de hoje”. O livro de Valério Meinel traz expressa a indicação de que é um romance, mas o prefaciador não se engana em dizer que “Avestruz, Águia e... Cocaína é um belo romance com as cores vivas de fantástica reportagem, digna de merecido Prêmio Esso” (p. 7). Na orelha, os editores também enfatizam que o livro é “um documento definitivo, onde ficção e realidade se confundem para levar o leitor às profundezas do mega-esquema de intimidação e corrupção montado pelos reis do bicho”. Domingos Meirelles declara na introdução de seu livro que se trata de “um relato histórico, captado com a técnica de investigação do jornalista e montada com a paixão do repórter” (p. 28), mas a apresentação de Maurício Azêdo não deixa de registrar que “nada do que está presente na obra é fruto de ficção ou fabulação”, porém “como este momento e seus agentes não foram focalizados pela lente fria do historiador profissional, mas pelo olhar sensível do repórter, capaz de recompor, com alma, carne e ossos, personagens/seres feitos com a massa, inclusive a de sonhos e ilusões, que forma as criaturas humanas, a narrativa assumiu um ritmo romanesco” (p. 12). Também Carlos Marchi, em sua “Nota do Autor”, explicita que “todos os personagens, fatos e datas aqui narrados são verdadeiros” (p. XVI), mas indica ao leitor que em alguns momentos recorreu a construções ficcionais.

As apresentações desses livros em muito se assemelham com aquelas que introduziam os romances-reportagem dos anos 70. Todavia, nenhum deles assume a filiação ao gênero. O livro de Fernando Pinto não contém nenhuma indicação de gênero ou estatuto narrativo. Pellegrini Jr. adota a chancela de livro-reportagem[vii]. O caso de Percival de Souza é de uma narrativa que, sendo reportagem, utiliza-se dos recursos da ficção. No posfácio de seu livro, Valério Meinel, não por acaso um dos grandes nomes do romance-reportagem da década de 70, explica que escreveu uma reportagem na forma de romance para evitar problemas com a justiça. As obras de Domingos Meirelles e Carlos Marchi estão registradas como história do Brasil e parece ser essa a ambição maior dos autores, como se pode ver na preocupação de apresentar bibliografia, fotografias e reproduções de documentos.

Mas há aqueles que parecem não temer processos judiciais, nem são partidários de novas denominações, nem receiam restringir o público leitor através de um compromisso genérico. Adotando o rótulo de romance-reportagem temos pelo menos três obras que ultrapassam a década de 70. A primeira delas é Lula e a Greve dos Peões, do jornalista Antonio Possidonio Sampaio[viii], publicada ainda em 1982. Trata-se de um registro fortemente engajado das greves do ABC que sacudiram a ditadura na segunda metade da década de 70. O autor se utiliza de várias estratégias narrativas, a mais curiosa delas é uma certa proximidade com a estrutura de enunciação de Grande Sertão: Veredas. Já nos anos 90, temos os textos A Prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze, de Juremir Machado[ix], e Para sempre, Flamengo, de Jeferson de Andrade[x]. No primeiro caso, temos um conto de Cinderela às avessas no qual se denuncia a situação de opressão das mulheres nos anos 50. No segundo, conforme indica o título, uma tentativa de registrar as agruras e as emoções dos torcedores do Flamengo como um time de massas e do futebol como o esporte das multidões.

A feitura narrativa dessas obras é diversificada e, muitas vezes, insatisfatória para olhos adaptados aos textos inteiramente ficcionais. O rigor documental, até excessivo em alguns casos, parece indicar uma maior proximidade com o discurso jornalístico. A escolha dos temas é mais ampla e menos imediata do que na década de 70. Nada disso, porém , desautoriza uma continuidade do romance-reportagem como gênero. Se é verdade que nem todas as obras que afirmam promover o encontro da literatura com o jornalismo podem ser tomadas como romances-reportagem, também é certo que várias delas possuem todas as propriedades discursivas fundamentais que fazem desse tipo de narrativa um gênero separado quer do romance, quer da reportagem.

A indicação desses textos não se pretende uma busca sistemática de títulos que misturam jornalismo e literatura dando continuidade às obras rotuladas como romances-reportagens nos anos 70. Mesmo assim, essas indicações esparsas comprovam que o gênero sobreviveu ao seu momento de apogeu inicial. Sobreviveu sem sua designação genérica. Sobreviveu com a sua designação genérica. É tal sobrevivência que está demandando uma leitura do gênero para além dos limites estreitos da década de 70 que lhe foram designados pela crítica. Seria este um primeiro passo no sentido de construir o cânone de um gênero não-canônico como o romance-reportagem?

Pelotas, outono de 2000

Notas:
[i] Brasília: Ideal, 1987.
[ii] São Paulo: Busca Vida, 1988.
[iii] São Paulo: Atual, 1989.
[iv] 2 Ed. Porto Alegre: L&PM, 1994.
[v] 5 ed. Rio de Janeiro: Record, 1997
[vi] Rio de Janeiro: Record, 1998.
[vii] Conforme se pode ler no subtítulo do livro de Edvaldo Pereira LIMA, Páginas ampliadas - o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. Capinas, SP: Editora a UNICAMP, 1993, o livro-reportagem também relaciona jornalismo com a literatura. Note-se, porém, que os títulos dos romances-reportagem de 70 não aparecem nesse estudo, apesar do autor apontar vários exemplos de contaminação dos discursos literário e jornalístico, como é o caso do New Journalism e de Euclides da Cunha.
[viii] Romance-reportagem. São Paulo: Escrita,1982.
[ix] Romance-reportagem. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1993.
[x] Romance-reportagem. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1996. 
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# Rosana Cristina Zanelatto Santos - Representações da mulher em narrativas literárias e históricas
Procuramos, dentre outras questões, ressaltar em nossa pesquisa de doutorado a hipótese de que há, na realidade empírica e nas formas que a representam – a literatura, a história –, uma transformação progressiva de conceitos básicos, trabalhando, mesmo que implicitamente, com a idéia da longa duração, ou seja, tentando identificar conexões entre comportamentos, mentalidade e a construção de modelos/clichês literários e históricos num período de tempo que ultrapassa os limites de períodos cronológica e factualmente marcados. Para tanto, analisamos a construção das personagens femininas – mais especificamente, Isabel de Aragão e Inês de Castro – na Crónica de D. Dinis, em edição organizada por Carlos da Silva Tarouca com base no texto inédito do Código Cadaval 965, e na Crónica de D. Pedro, de Fernão Lopes, e nos poemas dramáticos de António Patrício, Dinis e Isabel – conto de primavera e Pedro, o Cru, ambas produções da década de 10 do século XX. Esclarecemos que, de início, não pretendíamos nos deter sobre as crônicas; elas nos interessavam na medida em que alguns episódios e personagens por elas retratados são o mote da ação dos poemas de Patrício. No entanto, ao longo da pesquisa, foi perceptível que as crônicas estão marcadas pela presença de personagens nas quais os traços pessoais e históricos anulam-se em favor de uma caracterização aistórica, o que nos levou a analisá-las.

Consideramos tanto o texto literário quanto o texto histórico como narrativas de acontecimentos, seguindo a distinção traçada por Aristóteles em sua Poética:

Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. (1993, 1451b, p. 53)

Acrescentemos às reflexões aristotélicas que a mão “tecedeira” das narrativas literárias e das históricas seleciona e organiza os conteúdos que lhe interessam, realizando um trabalho depurativo na construção de modelos/clichês. Nesse processo de seleção – aqui nos referimos de modo especial aos textos analisados em nossa pesquisa de doutorado –, insere-se “(...) a mulher ausente [, morta,] – lar simbólico eminentemente receptivo e sem qualquer dúvida superinvestido onde, a despeito de si mesmos, os homens albergam as suas contradições e os seus sonhos.” (MICHAUD, [s.d.], p. 148)

O mote do cavaleiro que serve sua dama por amor, mesmo que ela esteja ausente, morta – como acontece nos poemas de António Patrício: Isabel é a rainha moribunda e Inês, a rainha entronada depois de morta – é o ponto de partida de onde parte a fantasia de poetas e cronistas.

É a sensualidade transformada em ânsia de sacrifício, no desejo revelado pelo macho de mostrar a sua coragem, de correr perigos, de ser forte, de sofrer e sangrar diante da amada. (...) O homem não se contentará somente em sofrer; ambicionará salvar do perigo ou do desespero o objeto de seu desejo. (HUIZINGA, 1978, p. 74)

Essa estilização do amor parece ser fruto de uma necessidade dos homens de todos os tempos, uma força tão vibrante quanto a vida. O amor é um ritual transbordante de apelo passional, capaz de engendrar um sistema simbólico de normas que modula as emoções e auxilia o homem a escapar da barbárie. O espírito humano precisa dessas formas simbólicas para sobreviver.

Nesse contexto, a morte não é uma representação macabra; ela é o limite entre a brevidade das glórias – dentre elas, o amor – e dos infortúnios terrenos e a possibilidade, por via do reconhecimento das limitações humanas, da redenção da alma e da extensão eterna de um amor que nasceu terreno. Nos textos analisados em nossa pesquisa, com destaque para os poemas de António Patrício, a morte é extensão natural da vida:

Dinis, como a si mesmo

Só a morte é real, e quando a vemos, tudo recua em corredores de sonho...

O Bobo

A mim lembra-me um conto, tudo isto. A Morte está a contá-lo, está a contá-lo, ela quedou assim p’ra ouvir melhor...

Dinis

Não quero que acabe. Não acaba. (Como implorando) Ninguém venha ainda...

(...) Não quero mal à Morte: está connosco. Sinto-a à nossa roda. (PATRÍCIO, 1919, p. 168-169)

Pedro

Parece-me... parece, minha Inês, que despertei... Estava a teu lado... Tu – sempre dormindo. Ergui a pedra do outro Paço... do meu lar... E ainda com terra da cova, ainda contigo... voltei a Portugal... do outro reino... (Levanta a mão-cheia de terra: beija-a: fica a olhá-la) (...) A terra... a terra que fechou a tua boca – o segredo do amor p’ra além da Morte... (Beija-a de novo) É terra santa. (PATRÍCIO, 1925, p. 81)

Quanto aos textos históricos, a morte é vista de modo mais doloroso, porém, com a mesma expectativa de um possível reencontro n’outro nível que não o terreno. Sabemos que Isabel de Aragão morreu depois de D. Dinis e após a morte do rei, teria proferido as seguintes palavras:

Pois Deus por seu gramde poder e profundo juizo houue por bem, que ha morte delRey meu senhor e marydo antecypase a minha, e sem su vyda eu fico e sou tamto como morta, e de rezão eu oje mory com ele, (...) Porque a vyda que sem ele vyver, seja com doo e trysteza pera sempre. (TAROUCA, 1947, p. 242)

Na Crónica de D. Pedro, no capítulo em que se narra a trasladação de Inês de Castro para Alcobaça, o cronista reforça o papel da memória na manutenção da presença da morta:

Porque semelhante amor qual el-rei Dom Pedro houve a Dona Inês raramente é achado nalguma pessoa, porém disseram os antigos que nenhum é tão verdadeiramente achado como aquele cuja morte não tira da memória o grande espaço de tempo. (LOPES, 1977, p. 166)

Ao retomar e revitalizar mitos caros à cultura portuguesa – o amor entre Dinis e Isabel e Pedro e Inês -, António Patrício conseguiu captar e representar os anseios do espírito humano e que, por isso, resistem à ação do tempo. O poeta busca o retorno ao princípio erótico/vital, conservado sob o manto da morte, visto que perdido na vulgarização e na cassação da naturalidade humana perpetradas pela sociedade materialista e tecnicista do século XIX.

Referências bibliográficas:
ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. 2. ed. São Paulo : Ars Poetica, 1993.
HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Trad. Augusto Abelaira. São Paulo : Verbo; Editora da USP, 1978.
LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro. [s.l.] : Horizonte, 1977.
MICHAUD, Stéphane. Idolatria: representações artísticas e literárias. In: FRAISSE, Geneviève; PERROT, Michelle (org.). História das mulheres no Ocidente. Trad. Cláudia Gonçalves e Egito Gonçalves. Porto : Afrontamento; São Paulo : Ebradil, [s.d.]. (V. 4 – O século XIX)
PATRÏCIO, António. Dinis e Isabel – conto de primavera. Lisboa : Livrarias Aillaud e Bertrand, 1919.
_____. Pedro, o Cru. 2. ed. Lisboa : Livrarias Aillaud e Bertrand, 1925.
TAROUCA, Carlos da Silva (org.). Crónica de D. Dinis. Edição do texto inédito do Cod. Cadaval 965. Coimbra : Universidade de Coimbra, 1947. 
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# Rosani U. Ketzer - Representações de autoritarismo em obras da literatura contemporânea na RDA
O trabalho tem por objetivo analisar representações de autoritarismo em obras da literatura alemã contemporânea. Entre os autores selecionados estão Christoph Hein, Erich Loest e Christa Wolf. Eles têm em comum, além de serem oriundos da extinta República Democrática Alemã (RDA), o fato de retratarem sistemas autoritários e também de tematizarem fatos históricos relacionados com a repressão, ocorridos durante a vigência do regime socialista na RDA.

Entre as obras dos autores abordados, foram escolhidas Der Fremde Freund (1982), de Christoph Hein, Zwiebelmuster (1985), de Erich Loest, e Was bleibt (1990), de Christa Wolf. Nelas, é tematizada a angústia das personagens frente ao autoritarismo. Sem entrar aqui na discussão das ciências políticas em torno da definição dos termos ‘autoritarismo’, ‘totalitarismo’ e ‘fascismo’, tomamos por base um conjunto de características comuns aos sistemas autoritários para selecionar o pano de fundo extraliterário para esse estudo. „Trata-se de sistemas que têm uma estrutura monística de governo, que detêm o monopólio sobre armas, economia e imprensa e que procuram implantar uma ideologia de Estado oficial com auxílio de uma polícia secreta, que controla os indivíduos“ (MÖLLER-ZEIDLER, 1995, p. 219). Essas características eram inerentes ao regime socialista da RDA, que surgiu após a II Guerra, no bojo da ocupação soviética, e se prolongou até a queda do Muro de Berlim, em 1989.

Dentro do regime socialista alemão, a repressão - entendida aqui como movimento que visa a suprimir uma oposição real ou imaginária - era aguçada em situações de crise política. Por ocasião do levante de trabalhadores em junho de 1953, por exemplo, tanques soviéticos reinstauraram a ‘ordem’, reprimindo os protestos. Nos anos seguintes, intelectuais que pediam reformas foram presos, professores universitários perderam o direito à docência, escritores como Erich Loest foram proibidos de publicar. Em 1961, com a construção do Muro de Berlim, os cidadãos perderam o direito de viajar para o lado ocidental; viajar passou a constituir-se em um privilégio concedido pelo Estado em troca do apoio ao sistema vigente. O serviço secreto, denominado „Staatssicherheitsdienst“ ou simplesmente „Stasi“, estendeu sua rede de espionagem por todo o país, ameaçando não só os intelectuais, mas também os trabalhadores.

Cenários de insegurança e medo, de repressão, são retratados nas obras dos autores aqui abordados. Eles viveram o período autoritário do regime socialista em seu país, sendo que Erich Loest e Christa Wolf tiveram contato com o autoritarismo do regime nazista na juventude. Enquanto Christoph Hein, que começou a publicar em 1980, e Christa Wolf, que iniciou sua carreira literária em 1962, sempre permaneceram no lado oriental, Erich Loest – escritor desde 1950, preso em 1957 por motivos políticos e condenado a vários anos de prisão – mudou-se para a Alemanha Ocidental em 1981.

Loest sofreu várias formas de censura enquanto escrevia na RDA. Seu romance Es geht seinen Gang oder Mühen in unserer Ebene (1978) passou por todas as instâncias da pré-censura, como era de praxe (editora, ‘Lektor’, chefe da editora, Departamento de publicações do Ministério da Cultura). Foi publicado e, depois de esgotada a primeira edição, uma segunda edição foi proibida, caracterizando um caso de pós-censura. Como conseqüência dos atos de censura, o escritor deixou seu país e passou a publicar na Alemanha Ocidental. Christa Wolf e Christoph Hein fazem parte de um outro grupo de escritores da RDA que, embora tentasse manter uma posição crítica em relação ao regime socialista, permaneceu-lhe leal até o fim. Imbuídos de uma visão anti-imperialista, esses escritores, ao mesmo tempo „críticos e leais“ (DOMDEY, 1996, p.167), pregavam a reforma do sistema, cujas mazelas eram incontestáveis. Mas, para que a ‘opção Socialismo’ pudesse ser mantida, continuavam aliados ao regime. Como Erich Loest, Christa Wolf também foi submetida à pré-censura e, em pelo menos uma ocasião, houve pequenos cortes em sua obra Kassandra (1983), motivados pela censura. Christoph Hein, embora não tenha sofrido censura direta em seus textos, condenou-a em um famoso discurso no X Congresso dos Escritores da RDA em 1987, classificando-a como „prescrita, inútil, paradoxal [...]“ (HEIN, 1990, p.144s.). A diferença essencial entre os autores é que, enquanto Loest radicalizou sua crítica para uma crítica ao sistema como um todo, Wolf e Hein visavam, com sua crítica, à reforma do sistema.

No contexto da literatura alemã contemporânea, Erich Loest figura entre os escritores vindos do lado oriental, cuja temática continua centrada na RDA, mesmo depois de já viverem há muitos anos no lado ocidental. Christa Wolf, considerada a mais importante autora da RDA e, devido à sua projeção também na Alemanha Ocidental, uma das maiores escritoras da Alemanha unificada, igualmente fez da RDA um de seus temas principais. Christoph Hein, de uma geração posterior, é considerado um grande prosador e dramaturgo, cujo tema recorrente são conflitos do cotidiano na RDA.

Christoph Hein mostra a dor e os sofrimentos da vida na RDA através de personagens calcadas em pessoas comuns, retratando seu dia-a-dia no trabalho e sua vida particular em Der fremde Freund, publicado em 1982. Erich Loest procura apresentar, como na maioria de seus romances, um retrato realista e crítico da RDA em Zwiebelmuster, publicado na Alemanha Ocidental em 1985, quando o autor já havia deixado seu país. Também realista e crítico é o retrato da Alemanha Oriental feito por Christa Wolf em Was bleibt, onde ela mostra os métodos de espionagem que eram usados contra a população na extinta RDA. Embora tenha escrito o livro em 1979, a autora só liberou sua publicação dez anos depois, quando o regime socialista havia caído, caracterizando, com isso, um caso de auto-censura.

1. Der fremde Freund (Christoph Hein, 1982): angústia, medo e silêncio

A personagem central da novela de Christoph Hein, a médica Claudia, é retratada como sendo uma pessoa extremamente solitária, que esconde sua vulnerabilidade sob um manto de frieza. Uma das experiências que mais a marcaram em seus tempos de adolescência é a chegada de um tanque a sua cidade. A cena faz referência ao dia 17 de junho de 1953, data histórica na RDA, em que ocorreu um levante de trabalhadores, insatisfeitos com a situação nas fábricas, onde era exigido um aumento constante de produção. O levante foi reprimido pelos tanques soviéticos, que se tornaram um símbolo de repressão na literatura produzida na RDA.

Em Der fremde Freund, a chegada do tanque à pequena cidade provoca perplexidade na população, que entretanto não se manifesta sobre o assunto, com medo da repressão. Também na escola não se fala sobre o estranho acontecimento; a professora, agitada, passa mal e é levada para casa por dois alunos. O pai de Claudia a aconselha a não fazer perguntas na escola, nem discutir sobre o fato, pois não seria o momento oportuno. E, de fato, “nenhum dos alunos quis saber algo, e os professores, igualmente, nada disseram.” (145 – Tradução minha; citações seguintes, idem) As lembranças de Claudia sobre a reação das pessoas à chegada do tanque explicam a causa do silêncio dos adultos: “Não entendi por que não se podia falar sobre o assunto. Mas como realmente nenhum dos adultos falava sobre o tanque, percebi que uma conversa também podia ser algo perigoso. Senti o medo dos adultos de falarem uns com os outros. E fiquei quieta, para que eles não precisassem falar.” (145-6) O medo das pessoas de expressar sua opinião diante de acontecimentos políticos é típico de regimes ditatoriais, que usam a força, simbolizada pelo tanque, para reprimir manifestações da população. A adolescente Claudia associa esse medo de falar abertamente sobre fatos políticos com outro sentimento, que teve ao ouvir as explicações de sua mãe sobre sexualidade: “Eu temia que, depois de uma conversa importuna imposta a eles sobre um de seus tabus, novamente seres repugnantes, com doenças venéreas, me seguiriam para dentro dos meus sonhos. Eu aprendi a calar.” (146) Assim, sentimentos de medo e angústia se misturam e influenciam a postura adotada pela personagem daí por diante.

2. Zwiebelmuster(Erich Loest, 1985): alienação

Em Zwiebelmuster, a repressão causa a alienação da personagem principal, o escritor Hans-Georg Haas. O grande sonho do escritor é fazer uma viagem para o lado ocidental, o maior privilégio que a RDA tem a oferecer a seus cidadãos: visitar um país fora do bloco socialista depende da concessão de uma licença especial por parte do regime. Na visão da personagem, esse privilégio está diretamente ligado a seu status como escritor, pois só os autores renomados conseguiriam o visto para países ocidentais. Assim sendo, ele procura desenvolver sua carreira literária dentro dos limites estéticos e ideológicos estabelecidos pela política cultural. Por não conseguir fazer a sonhada viagem, acaba sentindo-se um cidadão de segunda classe e ficando alienado em um mundo próprio, internado numa clínica psiquiátrica, à mercê das decisões do partido.

O regime autoritário é representado pela polícia política secreta, pela existência de um partido único, pela distribuição de privilégios e pela atuação de órgãos de censura institucionalizados. A princípio, o autoritarismo não incomoda o escritor, já que ele se sente integrado ao sistema, do qual espera obter o privilégio maior: a permissão para viajar para o Ocidente. Para Haas, o destino da viagem não faz muita diferença; para cada país, ele imaginou um tema sobre o qual poderia escrever para justificar a viagem. Por isso, Haas não consegue superar sua frustração e sua angústia, ao perceber que o partido lhe nega o privilégio. Ele perde sua auto-estima e passa a cometer pequenos atos de rebeldia, de insubordinação às normas estabelecidas.

Cenas de autoritarismo e de repressão também são apresentadas no contexto de uma passeata organizada por um grupo ecológico, que protesta contra a poluição de uma fábrica de cimento, causadora de danos à saúde da população. Por ter participado da passeata, a filha do escritor, Marion, fica proibida pelos agentes secretos de ver seu namorado holandês, considerado um ‚inimigo da classe operária‘, simplesmente por ser de um país capitalista. O texto faz alusões à luta ideológica existente na época da Guerra Fria, que se refletiu intensamente na Alemanha dividida.

3. Was bleibt (Christa Wolf, 1990): angústia e bloqueio psíquico

A narrativa tem como tema a angústia da personagem central, uma escritora de meia idade, que está sendo espionada pelo serviço secreto de segurança do Estado. Bloqueada pela angústia, a escritora não consegue escrever. Na tentativa de superar o bloqueio, a personagem volta-se para dentro de si mesma, buscando, através de um processo de conscientização, retornar ao caminho da autonomia.

O tema das reflexões da personagem narradora é o efeito da espionagem sobre sua personalidade. Uma das conseqüências da repressão a que está sendo submetida seria a intimidação. Segundo a narradora, esta seria exatamente a intenção dos agentes do serviço secreto: “Provocar o medo, que, como se sabe, leva muitas pessoas a transigir, outras a ações precipitadas que, por sua vez, podiam servir de novo como demonstração de indícios para a necessidade da observação.” (21) O medo faz com que a personagem escritora se sinta seqüestrada, conforme sua própria descrição: “Seqüestro, sim, era isso, seqüestrada, em aflições.” (17) Com essa afirmação, a narradora admite sua subjugação e seu medo, causados pela espionagem. Ela se sente tratada como coisa, degradada a objeto.

O fato de a personagem escritora sentir medo até nos momentos em que não está sendo espionada pelos agentes, que normalmente ficam dentro do carro em frente a sua casa, aponta para a internalização do medo. O medo continua agindo, mesmo quando os agentes não estão por perto, e torna-se um fenômeno permanente. Aterrorizada, ela sente sua personalidade ameaçada: “O mais puro horror, eu não sabia que ele se anunciava como insensibilidade.” (80) O efeito do terror sobre a personagem é sua dissolução como sujeito autônomo.

O reconhecimento das estruturas totalitárias de poder e também de suas próprias ilusões pressupõe a superação do medo. Significa enfrentar o processo doloroso de conscientização. A personagem narradora reflete sobre a dificuldade de reconhecer a ‘verdade’ sobre as estruturas da sociedade, de se livrar de ilusões e medos, de ver as próprias fraquezas. O medo de perder a esperança relacionada com o socialismo da RDA e a dor da conscientização causam conflitos de identidade: “Eu mesma. Quem era essa. Qual dos múltiplos seres que constituem ‘eu mesma’. Esse que queria conhecer a si próprio? Esse que queria resguardar-se? Ou aquele terceiro que ainda estava tentado a dançar a mesma música que os jovens senhores lá fora em frente à minha porta?” (57) Com a expressão “jovens senhores lá fora”, a narradora refere-se aos agentes do serviço secreto que a observam da rua. Para superar seu bloqueio e reconquistar sua autonomia, a narradora precisa acreditar que um dia teria “tirado” de si e escorraçado “aquele terceiro”, e que ela “realmente queria isso”. Isso significa que ela tem de desistir de um de seus “múltiplos seres”, superando sua tendência de concordar com o regime estabelecido e perdendo seu medo da repressão.

4. A repressão e a destruição da personalidade

Nos três textos aqui abordados, a repressão é causadora da destruição da personalidade das personagens retratadas. Em virtude da personalidade destruída, as personagens podem apresentar perda de autonomia e de autoconfiança, sentimentos de angústia, medo e até de completa insensibilidade. As personagens estão sujeitas aos ditames do Estado, dependentes da estrutura político-social vigente. Nesse sentido, elas são apresentadas como vítimas da repressão. Entretanto, há diferenças na tipificação das personagens quanto a sua reação ao sistema: a médica Claudia, de O amigo distante, acomoda-se ao sistema vigente, tentando proteger-se por uma aura de invulnerabilidade; o escritor Haas, de Zwiebelmuster, acaba internado numa clínica psiquiátrica, na dependência de um terapeuta; já a narradora escritora de Was bleibt supera sua crise existencial e retorna à sua independência, que havia perdido temporariamente, voltando a escrever.

A “variante real-socialista, específica, de destruição da identidade” (KRAUSS, 1991, p. 19) está relacionada, nos três textos, com o autoritarismo. O choque, direto ou indireto, com as estruturas repressoras ocasiona a alienação ou, como no caso da personagem narradora de Was bleibt, uma ruptura com o sistema e a conseqüente luta por autonomia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DOMDEY, Horst. “Kritik und Loyalität. Aspekte einer Typologie der Kritik von DDR-Autoren (Historische Skizze)”.
In: Trilateraler Forschungsschwerpunkt ‘Differenzierung und Integration’. DFG, Züricher Gesamtsymposium, Boldern, 1995. Hg. von Michael Böhler u.a., Zürich, 1996.
HEIN, Christoph. Die fünfte Grundrechenart. Aufsätze und Reden 1987-1990. Frankfurt a.M.: Luchterhand, 1990.
HEIN, Christoph. Der fremde Freund. Berlin, Weimar: Aufbau Taschenbuch, 1993.
KRAUSS, Hannes. “Mit geliehenen Worten das Schweigen brechen”. In: Text+ Kritik, Hg. von Heinz Ludwig Arnold, Heft 111 Christoph Hein. München, Juli 1991, p.16-27.
LOEST, Erich. Zwiebelmuster. München: DTV, 1988.
LOEST, Erich. Es geht seinen Gang oder Mühen in unserer Ebene. München: DTV, 1978.
LOEST, Erich. Der vierte Zensor. Vom Enstehen und Sterben eines Romans in der DDR. Köln: Wissenschaft und Politik, 1984.
MÖLLER-ZEIDLER, Sabine. “Literatur und Autoritarismus. Die zensierte Sprache in der Lyrik”. In: CZIESLA, Wolfgang u. von ENGELHARDT, Michael (Hg.) Vergleichende Literaturbetrachtungen. München: Iudicium, 1995, p.219-43.
WOLF, Christa. Was bleibt. Frankfurt a.M.: Luchterhand, 1990.
WOLF, Christa. Voraussetzungen einer Erzählung: Kassandra. Darmstadt, Neuwied: Luchterhand, 1983.  [topo da página]

# Sébastien Joachim - Desconstrução da escrita, da identidade cultural, no tempo da cybercultura

Resumo: Certas concordâncias surpreendentes aparecem entre os pensadores da Cybercultura (Pierre Lévy, André Lemos, etc.), os estudiosos da pós-colonialidade (Leela Gandhi, Eurídice Figueiredo, etc. ). De ambos os lados, se efetua uma desterritorialização do conceito da escrita tal como se desenvolveu no Ocidente, e se propõem (nos termos de Michel De Certeau) Des Arts de Faire/Artes de Fazer, assim como novas modalidades de estar na linguagem e no mundo. Sobretudo discorre-se sobre a subjetividade, a comunidade a alterar ou abolir com vista a um “refaçonnage” (como diz Georges Balandier), uma reconstrução. Chega-se a um (in)certo utopismo. Parece que estamos saindo do mundo dos textos e do significado, para nos dirigirmos rumo ao mundo da experiência. É uma mudança que Roland Barthes previa nos anos 70.

1. Barthes

Roland Barthes (1997:811-822) tem apostado na energia e “vibrações da linguagem”, no texto-produção, que culminam na concepção lacaniana de significância:«A significância significa um trabalho infinito do significante sobre si mesmo: o texto não pode, pois, coincidir exatamente (ou de direito) com as unidades lingüísticas ou retóricas ainda reconhecidas pelas ciências da linguagem, e cuja divisão subtendia sempre a idéia de uma estrutura finita».

Mais adiante, Barthes precisará a sua definição da significância: ela é um “processo” liberado da «lógica do ego-cogito» cartesiano e que se envolve em « outras lógicas ... desconstrutoras», indiferentes à significação imediata, sendo esta a face de uma vontade de domínio. Ora, em vez de procurar qualquer domínio, o sujeito (leitor ou escritor) que ingressa na língua deveria aceitar a crise da enunciação e a perda que ela acarreta. Ele é ultrapassado pela atividade de linguagem e caem na heterogeneidade, num além-normas e afora da metafísica da verdade, que supõem essas normas. Resta como tarefa: a exploração da língua que trabalha o sujeito, uma atividade que o expulsa de posições convencionais ou preestabelecidas.

Se entendessemos bem o pensamento de Barthes, afirmaríamos que a língua-signo nos colonizava; ao passo que a língua-discurso, a língua dinamizada pela enunciação e pela significância nos descoloniza. Veio um momento de sua exposição onde Barthes (op. cit., 818) assimila a significância às imagens dialéticas de Walter Benjamim: «La signifiance est lueur, fulgurations imprévisibles des infinis du langage... / A significância é clarão, fulgor imprevisível dos infinitos da linguagem», e o trabalho significante se assemelha ao «trabalho do sonho».

Há, neste Barthes do verbete “théorie du texte” do Dicionário citado, uma passagem escandalosa para a tradição literária, como serão quinze a vinte anos depois certas passagens de Pierre Lévy sobre o hipertexto e a cybercultura (Sallenave, 1997:79-85) . Vale a pena citar in extenso essa guinada:

“La théorie du texte ne se croira pas tenue d’observer la distinction usuelle entre la “bonne” et la “mauvaise” littérature: les principaux critères du texte peuvent se retrouver, isolément, dans des oeuvres rejetées ou dédaignées par la culture noble, humaniste (...). On ne peut, en droit, restreindre le concept de “texte” à l’écrit (à la littérature) (...). Toutes les pratiques signifiantes peuvent engendrer du texte.”

“A teoria do texto não se acha obrigada a respeitar a distinção habitual entre a boa e a má literatura; os principais critérios de texto podem ser encontrados, isoladamente, nas obras rejeitadas ou desprezadas pela cultura humanista (...). Não se pode, de direito, restringir o conceito de “texto” à escrita (à literatura) (...). Todas as práticas significantes podem engendrar texto.”

Barthes citou logo depois a pintura, a música, o canto, a escultura e preconiza uma “subversão dos gêneros”, uma “transtextualidade”. Tudo isso se aparenta à nova visão da hipermedia, com seu achatamento das hierarquias e a promoção das enunciações de onde vieram. Em termos expressos, Barthes descarta do texto a hermenêutica e, através delas as noções de comunicação, de “mensagens”, de “enunciados”, de “produtos finitos”(Barthes:1997:819) e propõe uma prática ou pragmática ou ação social, via, por parte de cada falante, o seu empenho em «produções perpétuas, em atos enunciativos, através dos quais o sujeito continua lutando” a caminho de seu vir-a-ser. Por ele, esta se realizando assim, aqui, “uma prática erótica da linguagem”, obras de amadores e não de tecnocratas da linguagem, como têm-se revelado a casta tradicional dos “escritores, professores, intelectuais”.

Barthes era perfeitamente consciente de que tomava uma crucial virada ideológica. Para assegurar sua posição, recorreu a um recurso sociológico à altura: encontrou-o na noção kristeviana de ideologema. Com efeito, esse conceito « permite articular o texto com o intertexto e de pensá-lo nos textos da sociedade e da história”. No entanto, Barthes completa esta definição entrelaçando texto e intertexto num único tecido inconsútil, proliferação infinita de escrita/enunciação sempre nova que anula toda relação de exterioridade entre texto e comentário, escrito e leitor, destinador e destinatário, mas assevera “variações irracionais (inverossímeis) da pessoa e do tempo.”

Trata-se de uma “prática transgressiva”, que derruba todas nossas tradições da escrita, da forma de socialidade, que através dela, se expressava. O discurso da comunidade virtual dos cibernautas dirá que aqui não há texto-modelo a imitar, nem código universal ao qual submeter-se queira ou não queira. O inter-texto do inter-leitor ou do ator do texto “se situa”, tal como o hipertexto, ao alcance de muitos, e próprios a ninguém, «no intercourse (itálico no original) infinita» de códigos peculiares de seres singulares em devir, e “a percepção está”, como queira Nietzsche “para além da forma grosseira das coisas”.

"Não somos bastante sutis, diz Barthes citando Nietzsche, para perceber o escoamento provavelmente absoluto do devir; o permanente» da escrita «só existe graças a nossos órgãos grosseiros, que resumem e reduzem as coisas aos planos comuns, enquanto nada existe sob forma (sous cette forme). A árvore é a cada instante uma coisa nova, afirmamos a forma porque não apreendemos a sutileza de um movimento absoluto. Conclui, então Barthes: «O texto também é esta árvore, de que a etiqueta nominal colada (provisoriamente) sobre ela não passa de uma iniciativa de nossos órgãos grosseiros".

Constatamos uma grande convergência entre Henri Meschonnic (In Barthes,1997: 702-706) e Roland Barthes: mesma recusa das convenções que aprisionam o sujeito, elogio do deslocamento permanente, a prevalência da significância. Meschonnic enfatiza ainda mais o ritmo, o corpo, a não consciência dos inter-sujeitos de discurso barthesianos, atropelando o lingüístico em sua derivação organizada para o «desconhecido» (in Barthes1997: 706).

Esse atropelamento ou saída do lingüístico, da linguagem dos signos, corresponde a uma recusa do discurso instituinte e instituído, que encontraremos ao mesmo tempo que uma desconstrução do sujeito clássico, nos escritos dos estudiosos apelidados de pós-coloniais.

1. Os Pós-Coloniais

Caminharemos daqui em diante na companhia dos estudiosos da Pós-colonialidade. A tonalidade das pesquisas “pós-coloniais” se percebe no livro de Leela Gandhi (1998) assim como nos escritos e ficções de J. M. Coetze.. Mas também em diversos estudos brasileiros entre os quais se destacam o último livro de Eurídice Figueiredo (1999) e uma meia dúzia de opúsculos de Zilá Bernd.

2.1. Leela Gandhi e pós-colonialistas anglófonos.

Começamos pelo livro de L. Gandhi, porque esse ramo de estudos foi iniciado pelos anglo-saxãos. O livro de Leela Gandhi é um repertório considerável de textos de filósofos como Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard, e também de representantes do pensamento pós-colonialista.

Esta segunda categoria se divide em dois grupos: de um lado, há os pensadores pós-colonialistas strictu sensu, entre os quais contam-se percursores como Mahatma Gandhi, Jean-Paul Sartre e seus discípulos (Frantz Fanon, Albert Memmi) e os grandes expoentes atuais Homi K. Bhabha, Gayatri Spivak, Ashis Nandy; de outro lado, há os escritores que muitas vezes se expressam implícita ou explicitamente em teóricos como Salman Rushdie, Yole Soyinka, J. M. Coetze. Gandhi os faz dialogar entre si.

Como Barthes o deu a entender, o poder está instalado na linguagem. O colonizador falou, cobrindo com sua voz a voz do colonizado; o ex-colonizado terá que levantar voz e se tornar audível por uma substituição do lugar, uma mudança de espaço, de enunciação e de altura. Isto, Leela Gandhi o exprime admiravelmente numa citação de Ashis Nandy: «(...) Modern colonialism did, of course, rely on the institutional uses of force and coercions”(“hierarchies of subjects and knowledges”).» (Nandy, in Gandhi, 1998:15).Tem que ter uma “reinscrição”, na qual o colonizado inversará a imagem, a fala e até a mente: “This colonialism colonises minds ...”(Gandhi, 1998:15), “it is crucial for postcolonial theory to take seriously the idea as a psychological resistance to colonialism’s civilising mission” (Gandhi,1998:17).

É mister agir, comenta por sua vez Leela Gandhi (Gandhi,1998:18), afirmar a heterogeneidade onde dominava uma falsa homogeneidade (Gandhi,1998: 28). Como anteriormente Barthes, a estudiosa indiana contesta o ego-cogito cartesiano e a filosofia da identidade, da mesmidade, que rasura o outro (Gandhi, 1998:40). É preciso intervir no texto da História, em todos os textos recebidos, perturbar o dispositivo enunciativo, possibilitar um conhecer e um conhecer-se diferente. Esse ensinamento, que tem muitos patrocínios, é compreendido de modo diferente na prática dos escritores africanos (Soyinka, Rushdie). Eis aqui algumas práticas estrangeiras aos comentários de Leela Gandhi. Nos a recolhemos de Richard Samin especialista da Literatura sul-africana. Existem escritores sul-africanos cuja estratégia consiste em reificar o outro, devolvendo ao Branco o seu desprezo. Outros recusam simplesmente de representar esse outro por ser em demasia distante e imprevisível. Até agora, não saímos da escrita e não rompemos com a representação nem com a memória.

A singularidade de J. M. Coetze é de proceder de outra maneira. Ele reatualiza, diz Samin, o conselho sartreano de 1948 (Sartre:1948) e o estende a todo seu universo romanesco: «À astúcia do colonizador», diz Sartre, «era preciso responder por uma astúcia que derruba o opressor presente na língua falando esta língua por conta própria e destruindo-a» . Por isso, Coetze pula fora do espaço de representação linguageira constituída pela ideologia liberalista com seus “pressupostos semânticos” e suas estruturas; em vez de criticar a ideologia racista ou xenófoba, paternalista ou assistencialista reinante, ele «transgride as convenções genéricas e recorre a uma intertextualidade sistemática»(Samin, 1998: 156).

Como estratégia, a intertextualidade torna contemporâneos uma variedade de textos; estes em vez de olhar para a montante, tecem novas relações sincrônicas, novas aventuras que olham à jusante e bloqueiam portanto toda representação. Eis como, no dizer de Richard Samin, Coetze consegue essa façanha:«Em seus romances concebidos no “modo alegórico, ele mistura a epopéia, a pastoral, a narrativa iniciática ou onírica as histórias de aventuras e a narrativa aparentemente realista, e ele utiliza narradores marginalizados que se questionam constantemente sobre sua existência, seus valores ou o estatuto do discurso que eles produzem. Simultaneamente os textos de Coetze insistem sobre a materialidade discursiva incorporando suas próprias condições de enunciação, — seja qual for a sua forma de apresentação (documento de arquivo, jornais, cartas, ou confissões), — de tal maneira que eles não tem sentido fora do ato de comunicação que os institui»(Samin, 1998:156)

Assim como a texto-produção de Barthes, o texto coetziano é a-referêncial, começa e caminha com o próprio ato de leitura, torna logicamente impossível a coincidência entre o eu da enunciação e o eu do enunciado, nos envolve em “contradições”, “silêncios”, “aporias”, se assemelha aos eventos que pontuam a experiência de um estar-no-mundo.

2.2. Pós-colonialistas brasileiros e francófonos.

Depois deste exemplo, que ultrapassou os limites que temos estabelecidos, passamos a ótica francófona da Pós-colonialidade. É a partir daqui que pretendemos principalmente mostrar o paralelismo dos discursos literários e tecno-científicos sobre a tradição da escrita assim como a utopia que vislumbram esses discursos.

Em 1998 e 1999, saíram no Brasil dois livros que oferecem uma visão mutuamente complementar sobre o pensamento pós-colonialista: o livro de Eurídice Figueiredo, Construção de identidades pós-coloniais na literatura antilhana e o livro organizado por Edson Luiz André de Sousa intitulado Psicanálise e colonização.

O segundo livro (Edson de Sousa: 1999) tematiza a memória (Amélia de Bulhões), a identidade mestiça e a utopia (Zilá Bernd). O livro de Eurídice Figueiredo elabora em torno das noções aparentadas de crioulização, mestiçagem, hibridismo, heterogeneidade. Zilá Bernd retoma à sua maneira esses assuntos. Ela vê no ideologema da mestiçagem algo que recebe apoio teórico da noção deleuziano-guattariana de rizoma e que, em nosso tempo, põe em xeque o “ideal” de homogeneidade. Este “ideal” da alta “modernidade” é para Zilá Bernd, como um canto de sereia perante as subjetividades emergentes da colonização de ontem e de hoje.

O analista Contardo Calligaris emite críticas contundentes sobre o “essencialismo e o apego ilusório à verdade deste sujeito moderno;” mais ainda sobre a saudade que muitos brasileiros pretensamente emancipados nutrem em segredo para essa dimensão arcaica de sua mente; ele finalmente chama atenção sobre um trabalho de luto inacabado na América Latina, ao descrever o sujeito daqui em oscilação permanente entre a memória e a utopia.

Maria Amélia Bulhões arranca também as máscaras. Se valendo do socioleto do construtivismo e das neurociências, ela começa por traçar positivamente as linhas norteadoras da nova subjetividade que deveríamos cultivar em sintonia com a atualidade: uma individualidade “que realiza, a cada momento, reelaborações das recordações”, de tal sorte que o passado se reconstrói, se traduz num permanente devir ... Amélia Bulhões bate forte nos maníacos das comemorações e celebrações. Para ela são avestruzes que evitam mexer numa identidade que necessita de ser substituída. O passado vira assim como um armazém de acessórios e de disfarces. As minorias não podem, não devem se pagar o luxo de se entregar a um “passado embalsamado” e paralisante. A urgência é de ir em frente, rumo à descoberta de nova socialidade e novos sentidos. Observando a interatividade trazida pela Cybercultura, Amélia Bulhões acrescenta:« A globalização, através das redes de informatização, estabeleceu uma intercomunicação de signos que rompeu com as territorialidades, impondo a temporalidade do presente permanente.»

Nesta configuração interativa, já estamos deixando para trás o paradigma literário que vanguardista como Roland Barthes já não representava mais. A autora insiste sobre a diversidade e a multiplicidade de memórias, que assegurariam heterogeneidade, pluri-pertencimento; aptidão a renegociar incessantes pactos sociais ... Amélia se expressa como uma internauta que teria se penetrado no campo de estudos pós-coloniais. Antes de entrar em mais detalhes, convém escutar uma das vozes mais autorizadas do Brasil na problemática da pós-colonialidade: Eurídice Figueiredo (1998).

A memória da época colonial só pode ser uma memória espúria, uma falsificação, parece dizer Eurídice, quer sozinha, quer em companhia de E. Said, A. Memmi, Edouard Glissant. Daí, a urgência de uma desconstrução de uma derrocada, como diz Sartre, do poder instalado na linguagem. É, do resto, rente à linguagem que Eurídice Figueiredo procede à sua desconstrução do homogêneo e da memória, tendo por escolha os escritores e pensadores das Antilhas. Focalizamos em especial Edouard Glissant. Cronologicamente, Glissant é uma figura-emblema da resistência cultural nas Antilhas, depois de Frantz Fanon (o autor de Les Damnés de la terre, Peau noire, masques blancs). Adotando ao ângulo de visão de Glissant, Eurídice(Figueiredo, 1998: 74-79) apresenta dois componentes da antilhanidade: a hipótese de uma koiné, ou língua franca, que circularia do francófono Glissant aos anglófonos Derek Walcott, V. S. Naipaul, passando pelo cubano Nicolas Guillen; um segundo componente, que seria «o pensamento arquipélago».O grande livro de Glissant, Poétique de la Relation (cf. Figueiredo, 1998: 79) explicita o que se entende por «pensamento arquipélago».É «uma abertura para a complexidade do diverso, em ruptura com qualquer essencialismo, com qualquer pensamento de sistema. Note-se de passagem que a linguagem escrita/tipográfica é tida por “um pensamento de sistema”.»

A Poética da relação de Glissant ergue-se contra essa cristalização, protesta contra as “construções identitárias” duras e puras, e hasteia a bandeira das identidades nômades, mutantes, múltiplas. Analisando os romances de Edouard Glissant, Eurídice se depara com reflexões que achamos consoantes com a “filosofia” hipertextual. O romancista (e poeta) acabava de qualificar a escritura dos novos descolonizados como sendo uma intraduzível e descontínua «irrupção de irrupção» (Figueiredo,1998:92). Lemos em seguida, a respeito da recusa de um certo universal racionalizante que impera no Ocidente. Glissant, dando as costas a este universal, formula uma estética crioula. Nela, como antes em Meschonnic, o ritmo será rei, um ritmo que “desterritorializa a língua francesa” engendrando um outro falar, barroco, multilíngue, dessacralizante, de-sistematizante, imprevisível, impredictível.

Chamaremos a atenção enfim a um outro tema de Glissant que Eurídice Figueiredo levantou: a subjetividade mestiça. É preciso ainda e sempre repartir da problemática da escrita como sistema transcendente e “imobilizador dos corpos”, apagador de vozes plurais até a revolução rabelaisiana e bakthiniana. Lançando mão dessas descobertas, «o projeto literário de Glissant», nos diz Eurídice quer “conciliar o absoluto da escrita (nos frisamos) com o não absoluto da oralidade, fazer uma síntese crioula, mestiça híbrida entre dois mundos, o Ocidente e as tradições populares não-européias”(Figueiredo, 1998: 100).

A crioulização como unidade na diversidade, Glissant o explicita em seu livro Le Discours Antillais, mas ela será reinterpretada pelo autores do manifesto da crioulidade (Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant, - três antilhanos). No entender deles “a crioulidade seria uma ‘visão interior’ da antilhanidade, com ênfase na “cultura popular tradicional” em vez do aspecto “geopolítico” contido na palavra “americanidade” (esta, um análogo da antilhanidade).”(Figueiredo, 1998)

A expressão “visão interior” reportada por Eurídice Figueiredo, nos lembra considerações similares apresentadas por Dominique Combe no seu livro Poétiques Francophones(1995). O sonho conciliatório de Glissant teria sido realizado, segundo Combe, em Pluie et vent sur Télumée Miracle de Simone Schwarcz-Bart e, na Suíça romana, nas ficções de Ramuz. Numa e outra obra, a imaginação dos autores cria a visão, fundada numa relação sensível com os mitos e o imaginário de seu ambiente telúrico. O resultado é uma combinação quase intraduzível, em que os termos locais não precisam ser ostensivamente marcados:«Je ne suis pas un tubercule de glaïeul, de sorte que je ne peux pas me promettre si je sortirai jaune ou rouge de la terre. Demain notre eau peut devenir vinaigre ou vin doux, mais si c’est vinaigre, n’allez pas me maudire, laissez tranquillement dormir vos malédictions au creux des fromagers, car dites-le moi, n’est-ce-pas un spectacle courant,ici à Fond-Zombi, que la métamorphose d’un homme en diable.» (Simone Schwarcz-Bart).

Realmente, Proust tinha razão: o estilo é uma questão de visão, e não de língua(s). E os melhores escritores pós-coloniais assim como seus exegetas ilustram perfeitamente que a antropologia cultural passa pelo estilo.

Bibliografia
BARTHES, Roland. Théorie du texte.
In: Dictionnaire des genres et notions littéraires. Paris, Encyclopaedia Universalis/ Albin Michel, 1997, pp. 811-822.
BERND, Zilá. Literatura e identidade. In: Edson Luís André de Sousa, Psicanálise e Colonização. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999, p. 213.
COMBE, Dominique. Poétiques francophones. Paris, Hachette, 1995, chap. 7.
FIGUEIREDO, Eurídice. Construção de identidades pós-coloniais na literatura antilhana.
Niterói, Editora da UFF,1998.
GANDHI, Leela. Postcolonial theory. New York, Columbia University Press, 1998.
LIMA REIS, Eliana Lourenço de. Pós-colonialismo, Identidade e mestiçagem cultural: a literatura de Yole Soyinka. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999.
SAID, Edward. Culture and Imperialism.
London, Chatto and Windus, 1993.
SALLENAVE, Danièle. A quoi sert la littérature? Paris, Edition Textuel, 1997, pp.79-85
SAMIN, Richard. Représentation et post-colonialisme dans le roman sud-africain. In Michel Morel (dir.). L'exil et l’allégorie dans le roman anglophone contemporain.
Paris, Messène, 1998, cap. XI, pp. 147-157.
SARTRE, Jean-Paul. Anthologie de nouvelle poésie nègre et malgache. Paris, Présence Africaine, 1948.
SOUSA, Edson Luiz André de. (org.) Psicanálise e colonização. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999. (ref. Zilá Bernd, Contardo Calligaris e Maria Amélia Bulhões).
DE CERTEAU, Michel. L’invention du quotidien, 1- Arts de faire. Paris, Folio-Essais, 1990.
BALANDIER, Georges. Le Détour. Fayard, 1985. 
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# Sílvia Maria Azevedo - O Brasil romântico visita a Europa

Assim em vez de considerar a poesia do Brasil como uma bela estrangeira, uma virgem da terra Helênica, transportada às regiões do novo mundo, nós diremos que ela é filha das florestas, educada na velha Europa, onde a sua inspiração nativa se desenvolveu com o estudo e a contemplação de ciência e natureza estranha.

Santiago Nunes Ribeiro. Da nacionalidade da literatura brasileira

A experiência de ter vivido ou simplesmente viajado pela Europa foi compartilhada, como se sabe, por muitos de nossos escritores românticos. Gonçalves de Magalhães, Porto-Alegre, Torres Homem, Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, para citar apenas alguns nomes, fazem parte da extensa lista de brasileiros que fizeram a sua estada européia, sobretudo durante a primeira metade do século XIX. Causa estranheza, no entanto, e foi Brito Broca quem chamou a atenção, que poucos tenham se interessado em deixar depoimentos de suas andanças pelo Velho Mundo. Outro fato igualmente conhecido é que, ao lado da França, a Itália exerceu igual fascinação entre os românticos brasileiros, sendo ambos os países largamente visitados por eles. Viagens, algumas delas imaginárias, como a de Álvares de Azevedo. Quando morava em São Paulo, na Chácara dos Ingleses, o poeta tinha no quarto uma estampa de Veneza, diante da qual ele teria comunicado a Chica Prosa, no relato de Pires de Almeida, “tudo o que aquela vista lhe sugeria, demorando-se em descrever Murano e Chioggia, as cavalgadas de Byron nos bairros de Veneza e os diálogos de Giuliano Moddado com esse poeta e o ateu Shelley, à beira da laguna em que vinham espreguiçar-se, ainda sussurrantes, as ondas do Adriático.”(BROCA, 1979, p.141). Não é difícil identificar a presença de Bryon, de resto, explicitamente citado na passagem, na “viagem” do poeta de A noite na taverna a Veneza. Já Fagundes Varela, que também se deixou contagiar pelo fascínio da Itália, visita o país, no poema “Fragmentos”, das Noturnas (1861), na companhia de Lamartine, autor do romance Graziella. Agora é Nápoles, tornada “um território lamartiniano” (BROCA, 1979, p.141), a cidade que configura a Itália imaginária do romântico brasileiro. Mas a Itália tornou-se igualmente território de Alfred de Musset, por conta da dramática relação amorosa que o autor de Mémoires d’un enfant du siècle vai viver com Georg Sand em Veneza, em dezembro de 1833.

Mais ou menos por essa época, quatro anos mais tarde, um viajante brasileiro, não se contentando em visitar a Itália com os olhos da imaginação, preferiu “ir ver as coisas com os próprios olhos da cara”, na feliz expressão de Machado de Assis. (ASSIS, s.d., p.74). Esse brasileiro foi João Manuel Pereira da Silva (1817-1898), escritor da geração de 30 do século XIX que, na companhia de muitos outros, introduziu o romance de folhetim no Brasil. Apenas para lembrar, dessa geração também fizeram parte Justiniano José da Rocha, Firmino Rodrigues da Silva, Josino do Nascimento, João José de Sousa e Silva Rio, Brito Broca, quase todos tendo vivido por algum tempo em Paris, de onde trouxeram a nova moda literária.

Ao contrário de seus contemporâneos que, como se disse, andaram pela Europa, e não deixaram registro das experiências de viajantes, Pereira da Silva foi um dos primeiros escritores brasileiros a dar depoimento sobre a Itália, no texto que ele chamou de Reminiscências, cuja primeira parte foi publicada em 1859, na Revista Popular. Num certo sentido, e com alguns anos de atraso, pode-se dizer que tanto Reminiscências quanto a Revista Popular vêm cumprir as expectativas que a Minerva Brasiliense não pode honrar junto ao leitor, quando anuncia, em 1o. de agosto de 1845, a publicação das Cartas da Itália, de Araújo Porto Alegre, e estas não aparecem, como nunca apareceram em qualquer outro periódico. Se tivessem vindo a público, ou antes, se tivessem sido escritas, as Cartas da Itália poderiam fornecer informações importantes sobre a estada de Porto-Alegre, em companhia de Gonçalves de Magalhães, na Itália, em 1834.

Viajante incansável, o autor de Os varões ilustres do Brasil escreveu páginas interessantes também sobre suas peregrinações pela Alemanha, registradas em “Viagem pela Alemanha em 1837”, mais tarde recolhidas no livro Variedades literárias, publicado em 1862 pela Garnier. Faz parte dessa coletânea, ainda outro texto, “Impressões de viagem”, doze cartas que Pereira da Silva escreveu, de outubro de 1851 a março de 1852, sobre a viagem que fez por essa época pela Europa, e que Brito Broca acredita que tenham sido publicadas nos jornais do Rio de Janeiro (BROCA, 1979, p.166)

Reminiscências, como o próprio título sugere, é a recuperação pela memória das duas visitas que o escritor brasileiro fez a Roma: a de 1837, quando ele tinha apenas 20 anos, e a de 1858, com 41. Na leitura do texto fica claro que o narrador-viajante do texto de 58 não é mais o jovem de 37, e sim um homem maduro que pode se orgulhar das realizações que constam de seu curriculum: fundador da Revista Nacional e Estrangeira (1839-1841), com Josino do Nascimento e Pedro de Álcântara Bellegarde; organizador, em 1847, da antologia de biografias brasileiras, Plutarco Brasileiro, título mudado para Os varões ilustres do Brasil, em 1858; colaborador, já em 1838, de diversas folhas literárias e jornais, entre eles a revista Niterói – para a qual colaborou ainda em Paris -, o Jornal de Debates, O Chronista, O Gabinete de Leitura, o Museu Universal e o Jornal do Comércio. Neste, saíram, em 1839, os “romances históricos”, Religião, amor e pátria e O aniversário de D. Miguel em 1828, o segundo com tiragem à parte. Ainda na linha da narrativa histórica é a “crônica portuguesa do século XVI”, Jerônimo Corte Real, publicada em 1840, e reeditada em 1854.

É com distanciamento que esse homem maduro de 1858 olha a viagem que aquele outro, o giovinettodo passado, fez a Roma. Portanto, a cidade que aparece no texto de 1859, e à qual os leitores da Revista Popular são apresentados, é uma Roma recuperada por dupla distância: o distanciamento da idade e o distanciamento temporal e espacial, também este último, sendo plausível supor que Pereira da Silva tenha escrito o texto quando já se encontrava no Brasil. “Pungem-me saudades sempre que vêm-me à lembrança as duas visitas que fiz à bela terra da Itália !” (R. P. , p.85), é como começam as Reminiscências de Pereira da Silva. É curioso pensar que as “saudades” das quais o narrador se queixa, digam respeito, antes à viagem de 37 do que a de 58, já que o viajante brasileiro deixara Roma, na segunda vez, há um ano apenas. É bem verdade que a saudade de alguém ou de algum lugar não se mede pelo maior ou menor afastamento no tempo...

De qualquer forma, o leitor, tanto de hoje como talvez o de 59, gostariam de conhecer as impressões que a “cidade eterna” deixou no giovinetto de vinte anos, que, em visita à Itália, age, pensa e sente o país como se fosse um italiano, ou melhor, fingindo ser um italiano, mas sem a intermediação do homem maduro de 58. Tanto maior é a curiosidade do leitor, quanto o interesse do estudioso, porque o rapaz que fingia ver a Itália à italiana, foi alguém “para quem cifrava-se a vida no sonho dos amores, e no descuidado dos anos.” (R. P., p.85). O que faz supor que, na primeira visita à Itália, esse jovem romântico, como tantos outros que perambulavam na época pela Europa, também teria feito a viagem na companhia de Byron Musset, Lamartine, eles também viajantes-escritores, responsáveis por criar uma Itália feita de imagens românticas, aquela mesma que vai povoar o imaginário de poetas brasileiros, como Álvares de Azevedo, e também o de Pereira da Silva em 1837. Já que o autor de Reminiscências não escreveu no passado as memórias de sua visita a Roma - e se o tivesse feito, bem outra seria a “fotografia” da cidade -, é só através da lembrança do homem de 59, que vive no presente, que é possível fazê-lo, o que é sempre um consolo não apenas para o pesquisador como também para a cultura literária brasileira, sempre carente da memória do passado.

Mas não é verdade que Pereira da Silva na quadra da juventude não tenha se preocupado em deixar registradas as impressões do viajante que percorre a Europa. Como se disse, no ano em que esteve na Itália, o escritor brasileiro andou também pelo país de Goethe, e é no texto que escreve então, “Viagem à Alemanha em 1837”, onde é possível ouvir a voz, entre vivrante e emocionada, do nosso romântico. Lessing, Schiller, Hoffmann, Wieland, Winkelmann, além do próprio Goethe, é claro, seriam os companheiros nessa peregrinação, matrizes de imagens por meio das quais o escritor brasileiro registra suas impressões sobre o país. Como a da viagem que Pereira da Silva faz à noite, depois de deixar Nuremberg: “Era noite fechada quando deixamos Nuremberg. Pela estrada rolava solitária e surdamente a nossa carruagem, quando, de repente, o som de uma harpa veio arrebatar-nos a esse sono inquieto, que se pode dormir em viagem, apesar de, cansado, o corpo procurar repouso. De um pequeno castelo gótico, que ficava encostado ao caminho, vinha o som harmonioso. A harpa no deserto àquelas horas mortas da noite, tocada, sem dúvida por algum anjo, produziu o efeito maravilhoso que nos é impossível descrever fielmente.”(BROCA, 1979, p.165) Prosseguindo viagem, a certa altura, o viajante brasileiro chega mesmo a identificar o som de uma balada de Schiller. “Pura atmosfera romântica do medieval e do gótico”, é como Brito Broca sintetiza esse fragmento da viagem noturna do jovem Pereira da Silva pela Alemanha, em 1837.

Vinte anos mais tarde, em Reminiscências, quase com as mesmas palavras, o escritor volta a dizer que vai desistir de “descrever fielmente”, desta vez, Roma. Mas fica por aí a semelhança entre os dois textos, ou se se quiser, o apelo ao mesmo efeito retórico. Na verdade, no texto de 58, o narrador acha que “é impossível descrever-se Roma” (p.89), mas por outras razões: em primeiro lugar, porque, antes dele, muitos outros “ilustres poetas” já o fizeram, o que é o mesmo que dizer que nessa altura da vida o viajante brasileiro está dispensando as companhias literárias que no passado o acompanharam nas andanças pela Europa; em segundo lugar, porque a cidade oferece hoje um espetáculo de degradação, pobreza e abandono, quadro esse que os “ilustres poetas” deixaram de fora dos retratos que pintaram de Roma, dessa forma criando uma imagem falsa da cidade, de uma Roma que não existe mais (se é que um dia existiu).

Voltando pela segunda vez a Roma, não é somente a atmosfera de encantamento que se desfaz. Como que despertando de um sonho, o viajante brasileiro, que percorre os lugares que no passado povoaram a sua imaginação, se dá conta agora de que está correndo perigos bastante concretos. Como no passeio noturno pelos arredores de Roma: “Perigoso é de noite percorrê-los. Se não se é assaltado por quadrilhas de ladrões, que despojam o viajante, é pestilenta a atmosfera, e pode uma febre pútrida arrancar-lhe a saúde e levá-lo à sepultura.” (p.86)

De fato, na segunda visita, nem Roma, nem Veneza são as cidades italinas prediletas do viajante brasileiro. Se elas representavam a Itália poética de quando ele era um giovinetto, hoje estão imersas na decadência, que o nosso escritor faz questão de registrar. A Itália de 1858, a Itália moderna, está em outro lugar, é representada por outras regiões, como a Sardenha, por exemplo, que atraiu mais a atenção de Pereira da Silva “pelo desenvolvimento de sua indústria, a natureza de suas instituições livres” (p.86)

Mesmo que nosso escritor diga que, na segunda viagem à terra de Dante, tenha mudado “a cor das lentes com que via os objetos”, de tal modo que é sob a óptica da “razão calma e do conhecimento do mundo” que eles passam a ser revistos, é a Itália feita de imagens românticas, aquela vislumbrada pela imaginação da juventude, que vai criar uma “impressão profunda” (p.85) no jovem Pereira da Silva, de tal forma que o homem maduro jamais vai conseguir se subtair. É esta Itália, quando visitada pela primeira vez, e que ficou na memória do escritor, que vai inspirar as Reminiscências, o que não quer dizer que predomine no texto o tom de nostalgia, e sim o da indignação contra o estado de decadência de um país, cujos lugares mais sagrados, como a cidade de Roma, “seu doce nome” (p.87) os brasileiros, desde a infância, na escola, aprendemos a amar e respeitar.

Na tentativa de visitar Roma como se fosse da primeira vez, esforço que traduz o propósito de recuperar aquele outro viajante que Pereira da Silva foi na época, o narrador de 58 desenvolve algumas estratégias narrativas, uma delas, o jogo com as formas verbais do passado e do presente: “Entrei em Roma, quando primeiro a vi, pela porta do povo. Descortina-se a cidade eterna do alto de um montículo, a algumas léguas de distância.” (p.86). Se bem que, com a predominância do presente, predomina com ele a visão de uma cidade degradada. Outro recurso narrativo é manter o tom de perplexidade e espanto do jovem que, finalmente, vai conhecer a célebre cidade: “Mas seria Roma na realidade? Não estaria eu sob a impressão de um sonho agradável e sublime? Eram deveras o Tibre, o Capitólio, o Panteon, e o Coliseu que me apareciam?” (p.87) É pouco provável, porém, que a emoção de que o escritor diz-se estar possuído, seja a do homem de 58: “Era tão grande a minha emoção, que a todos os companheiros de viagem fazia perguntas, e os lábios balbuciavam, e a língua tremia de medo, que eram elas desconxavadas, e mal significavam o pensamento que me dominava.”(p.87) Finalmente, o recurso talvez mais eficaz na recuperação da Roma vista no passado, é trazer para as Reminiscências a presença de Byron, através do poema que ele compôs em louvor à cidade, e que começa com o seguinte verso: “Ó Roma! Ó meu país! Cidade santa!” (p.87). Como de costume entre os escritores brasileiros da época que se valiam de citações e epígrafes, Pereira da Silva igualmente não informa o leitor nem sobre o título do poema, nem sobre o nome do tradutor para o português. De qualquer forma, é essa Roma feita de imagens românticas, recriada pela imaginação do poeta inglês, que elevou a cidade à condição de pátria dos cidadãos de todas as nacionalidades, o retrato que melhor representa o viajante brasileiro de 37.

Apesar do esforço de trazer de volta o jovem escritor para o texto que, em 1859, a Revista Popular vai oferecer aos seus leitores, quem fala aqui é o Pereira da Silva político e historiador que, de longe e de fora, toma posição quanto ao contexto italiano da época, o que lhe possibilita falar ao mesmo tempo do Brasil. Isso explica que, quando da segunda visita a Roma, grande parte do depoimento diga respeito à entrevista que o viajante brasileiro teve com o Papa Pio IX, com quem conversa sobre questões que, no Brasil da época, eram motivo de grandes polêmicas: os casamentos mistos, a influência do clero e do catolicismo, a necessidade de novos bispados, a criação de seminários teológicos e cabidos. Há que se lembrar que quando foi deputado, Pereira da Silva esteve envolvido na discussão desses problemas, sob os quais estava latente o conflito entre a Igreja e o Estado. Como no pronunciamento de 28 de junho de 1855, em que era de parecer que cabia à repartição do Império, encarregada do ensino superior, a regulamentação das duas faculdades de teologia, então criadas, e não à Justiça e Negócios Eclesiásticos. Ainda que sua intenção fosse discriminar as atribuições do poder eclesiástico e do poder temporal, em nenhum momento o deputado Pereira da Silva vai abjurar a religião católica, empregando na época, em defesa própria, palavras que vão ecoar no texto de 59: “Senhores, eu sou católico e reconheço como chefe da minha igreja o Sumo Pontífice; ninguém o acata, venera, o respeita e admira mesmo mais do que eu; a respeito dos mandamentos da Igreja sou o seu súdito mais humilde e obediente; não concorrerei senão para dar força moral e esplendor à tiara sagrada, que é a salvação do mundo.”(MARTINS, 1977, v.III, p.6)

As impressões favoráveis, registradas nas Reminiscências, tanto de Pio IX quanto de Gregório XVI, com quem o nosso viajante igualmente tem entrevista em 1837, funcionam no sentido da defesa incondicional da Igreja, num momento em que o poder desta vinha sendo contestado, não apenas no Brasil, mas também na Itália. Não esquecer que, na época, a Itália lutava por se consolidar enquanto nação, e é nesse contexto de luta política que a soberania do Papa estava sendo posta em xeque. Isso talvez explique a veemente defesa que Pereira da Silva faz do poder espiritual, não admitindo que este fique sob a tutela do poder temporal: “(...) não pode o poder temporal separar-se da pessoa do Papa. Por outra forma seria destruição, e não reforma, e traria ela perda irreparável para Roma, e para a Igreja Católica, que é a nossa mãe, a mãe da sociedade moderna, a mãe da humanidade inteira.”(p.91)

Se as questões da conjuntura italiana contemporânea, a partir das quais o Brasil se vê representado, são objeto de interesse do Pereira da Silva político, os monumentos, os museus e as obras de arte são os pontos que atraem o olhar do historiador. Também aqui, em dando destaque às realizações dos homens do passado, e que fizeram de Roma uma cidade eterna, o nosso escritor estará se remetendo ao Brasil. O que permite dizer que, em 58, são dois os viajantes que visitam Roma pela segunda vez: o político e o historiador, cada um a seu modo falando do país de origem.

A cidade de Roma vista pelo historiador Pereira da Silva é a Roma da Igreja Católica, representada por monumentos e obras de arte do passado em louvor, quase todos, à religião de Cristo: o museu do Vaticano e do Capitólio, os frescos de Rafael e de Miquelângelo, os quadros de Murillo, Ticiano, Dominichiano, Caravaggio, Correggio. Também o Panteon de Agrippa e o Coliseu de Vespasiano têm destaque no inventário do historiador brasileiro, que se refere àquele último usando uma linguagem que ficaria melhor na boca do ficcionista do que na do historiador: “Gostava o povo rei de espetáculos cruéis, e bárbaros. Com os animais ferozes batiam-se os gladiadores para divertimento público (...). Regavam com seu sangue aquela terra milhares de cristãos mártires; nas lutas selvagens com leões e tigres despedaçavam-se os seus corpos aos gritos e aplausos da multidão infrene.”(p.93) Apesar desse e de alguns outros deslizes mais “poéticos”, parece que Pereira da Silva, no propósito de recuperar os “elementos necessários da antigüidade”(p.93) de Roma, pretende dispensar os intermediários, isto é, as companhias literárias que devem ter visitado com ele, em 1837, a cidade santa. O que é fácil compreender, configurando-se a “objetividade” como o comportamento que o autor de Reminiscências julgaria mais adequado ao papel do historiador.

Por isso mesmo, é nas estátuas e nas obras pictóricas da “antigüidade”, criações às quais a pedra e as telas permitiram ganhar vida eterna, que o historiador vê representada a “objetividade” que busca no passado. Ao mesmo tempo, e num momento em que a Itália está vivendo um dos períodos mais conturbados de sua história, imersa em conflitos que dificultam a consolidação política, são os monumentos de Roma que conferem identidade ao território italiano. Em sendo esta a função dos monumentos históricos romanos referenciados em Reminiscências, é possível pensar que, na verdade, o escritor brasileiro não estaria levando em conta que a Itália era um território formado por realidades geográficas, históricas e lingüísticas bastantes difereciadas, tal como a região da Sardenha, e cidades de Veneza, Nápoles e Roma.

No outro lado do Atlântico, o Brasil, país de onde provinha esse viajante, há pouco mais de trinta anos havia conquistado a Independência, desfrutando de uma situação política que a Itália ainda não tinha conseguido alcançar (1870 é a data que formalmente registra a unificação italiana), em que pese as inúmeras revoltas que grassavam pelo território brasileiro durante grande parte do século XIX, pondo em risco a unidade do Estado nacional. Em contrapartida, os monumentos históricos e artísticos que estão em Roma, conferem à Itália uma identidade, aquela que, no Brasil, é buscada pelos intelectuais e escritores da geração de Pereira da Silva.

Nesse sentido, deve-se mencionar os primeiros esboços de história da literatura brasileira que começam a ser elaborados na época, a exemplo do projeto incompleto de Joaquim Norberto de Sousa Silva, publicado de forma esparsa na Revista Popular, entre 1859 a 1862. A esta história literária, como a outras diferentes, posteriormente escritas, cabe dizer que todas “se articulam ou se articularam como projetos constitutivos (grifo do autor) da própria nação e nacionalidade literária, atuando mais comos discursos fundantes do nacional do que propriamente como expressão reflexa da nação ou “nações”. (WEBER, 1997, p.18) O que significa dizer que esses projetos de história literária “compõem, imaginam e instituem a própria nação ou “nações”, em íntima correlação com os interesses históricos que as sustentam.”(Weber, 1997, p.18) Por uma questão de espaço, fica para outra ocasião o desenvolvimento dessa proposta de interpretação das histórias literárias brasileiras, em particular, o projeto de Joaquim Norberto.

Qualquer que fosse a imagem ou imagens de Brasil que essas histórias literárias vieram a construir, poderim ser tomadas como o equivalente dos monumentos históricos que conferiam identidade à Itália, mesmo que essa identidade, como no caso brasileiro, resultasse da invenção de viajantes, como Pereira da Silva, que a visitaram no século XIX.

Se as histórias da literatura brasileira e os depoimentos de viagens pelo Brasil, estes cada vez mais freqüentes nas páginas da Revista Popular, são expressões da busca da nacionalidade, nem por isso se pode dizer que os intermediários literários, responsáveis pela criação de uma Itália imaginária, foram descartados pelos nossos românticos. No ano de 1857, um escritor, que vai ter participação decisiva no processo de formação do romance brasileiro, começa a sua carreira de ficcionista, igualmente valendo-se das imagens literárias da Itália.

Esse escritor, todos sabem, é José de Alencar, autor de Cinco minutos, obra de “evidente inspiração lamartiniana”(BROCA, 1979, p.144), publicada no Diário do Rio de Janeiro. Só para relembrar, Carlota, a heroína do romance, não pode corresponder ao amor do narrador porque está tuberculosa. Viaja então para a Itália, em busca de melhores ares, que possam curá-la da doença fatal, o que fato vem a acontecer, cabendo aqui a observação perspicaz de Brito Broca: “O encanto dos românticos pela Itália levava-os a emprestar ao clima a virtude de curar uma tuberculosa em último grau.”(BROCA, 1979, p.145) Além da cura, o casamento de Carlota com o narrador, realizado na igreja de Santa Maria Novella, em Florença, acrescenta um toque de sonho ao final feliz da história. Sem dúvida, o desenlace ideal para realimentar o imaginário romântico das jovens leitoras do romance de Alencar.

Referências bibliográficas
- Assis, Machado de. “Uma excursão milagrosa”, In: Contos recolhidos. Organização e prefácio de Raimundo Magalhães Júnior. Rio de Janeiro: Tecnoprint Editora, s/d, 74-83.
- Broca, Brito. “Os românticos e a Itália”, In: Românticos, pré-românticos, ultra-românticos. Vida literária e romantismo no Brasil. Prefácio de Alexandre Eulálio. São Paulo: Polis, Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação e Cultura, 979, 140-146.
- __________. “Um viajante romântico: Pereira da Silva”, In: Românticos, pré-românticos, ultra-românticos, 164-169.
- Martins, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo: Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1977, v.III (1855-1877).
- Pereira da Silva, João Manuel. “Reminiscências”, In: Revista Popular, t.I, 20 de janeiro de 1859, 85-94.
- Weber, João Ernesto. A nação e o paraíso. A construção da nacionalidade na historiografia literária brasileira. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1997. 
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# Vera Lucia Soares - Movências Identitárias
1. Tema e objetivos da pesquisa:

Centrando, já há bastante tempo, minhas pesquisas sobre a questão identitária no Maghreb, através do diálogo entre a literatura e a história, venho tecendo algumas hipóteses sobre a mobilidade da construção da identidade nesses países recentemente saídos da colonização e que passo a explicitar.

Se, no período colonial, a grande questão se colocava entre a assimilação aos modelos impostos pelos franceses e a resistência dos estratos culturais autóctones, após as independências, desencadeou-se um processo de descolonização de cunho nacionalista com vistas à construção de uma identidade nacional pautada unicamente nos valores árabe-islâmicos. Contra essa política se levantaram as vozes dos intelectuais francófonos, às quais se juntaram as de outras minorias, como as dos berberes, para reivindicar uma identidade plural capaz de expressar a diversidade cultural do Maghreb pós-colonial. É justamente essa identidade plural realizada no encontro da tradição com a modernidade que as obras literárias dos escritores maghrebinos de língua francesa da fase pós-colonial reconstroem de forma metafórica.

Embora privilegiando a questão da reconstrução da identidade nacional em suas obras, alguns desses escritores, como Rachid Boudjedra e Tahar Ben Jelloun, vinham se mostrando, já há algum tempo, sensíveis à problemática da e/imigração, preocupação que se intensificou ultimamente devido a uma nova onda de emigração de argelinos em direção à França, provocada pela radicalização do movimento fundamentalista na Argélia. As dificuldades vividas pelos imigrantes têm levado também outros escritores maghrebinos, entre os quais Leila Sebbar e Malika Mokeddem, a repensarem a questão identitária para além das fronteiras nacionais, voltando o seu olhar para os imigrantes, não apenas para esses que foram obrigados, recentemente, a se exilar na França por motivos políticos ou ideológicos, mas sobretudo para aqueles que para lá emigraram a partir da Segunda Guerra, ainda durante o período colonial, atraídos pelas condições salariais oferecidas pela metrópole que, na época, necessitava urgentemente de mão-de-obra.

Esses primeiros imigrantes acalentavam um sonho: o de regressarem a seus países com uma boa situação econômica, sonho que com o tempo foi se tornando cada vez mais distante. Assim, em lugar de voltar, eles acabaram trazendo a família e se radicando definitivamente na França, o que não significa que tenham abdicado suas tradições culturais e religiosas. Vivendo em guetos e discriminados pelos franceses, esses imigrantes não só conservaram suas práticas culturais como as transmitiram aos filhos vindos ainda crianças ou já nascidos na França. Esta chamada “segunda geração” ou geração beure vai, então, viver uma experiência identitária complexa: culturalmente, seus representantes se encontram entre dois pólos de base, francês/maghrebino, mas simultaneamente esses dois pólos se abrem à multiplicidade e permitem uma pluralidade de combinações identitárias entre as duas culturas. Assim, os beursseriam ao mesmo tempo franceses e maghrebinos, nem franceses nem maghrebinos, franceses não-maghrebinos e ou maghrebinos não-franceses (MANOPOULOS, 1999).

Esta minha nova pesquisa se propõe justamente a analisar essas movências identitárias que muitos deles, fazendo-se escritores, vão expressar em seus textos literários. Escapando a toda e qualquer noção fixa de identidade, suas narrativas desconstroem as oposições binárias entre os dois pólos de base e criam, neste entre-lugar ou neste Terceiro Espaço (BHABHA, 1998), possibilidades infinitas de construções culturais pluri-identitárias. Dentre os escritores representantes da chamada “segunda geração”, cujas obras constituem parte do corpus desta pesquisa, encontram-se: Azouz Begag, Nina Bouraoui, Farida Belghoul, Leila Houari.

Um dado interessante é que essa produção literária da e sobre a imigração vem ocupando um espaço cada vez maior no interior da literatura francesa como um todo, sendo esse tema privilegiado não apenas por escritores de origem maghrebina, mas também por alguns escritores franceses autóctones, como Michel Tournier e J.M.G. Le Clézio. E há que se considerar também sua boa recepção por parte da crítica francesa.

Com base nesses dados, teci uma hipótese a ser comprovada ou não durante a realização desta pesquisa: a de que a inserção dessa literatura emergente no seio da produção literária francesa seria o indício de uma possível “crioulização” da cultura francesa. Ao falar de “crioulização”, refiro-me ao “fenômeno de crioulização” de Édouard Glissant, segundo o qual, as culturas atávicas (aquelas que afirmam sua identidade como raiz única) tendem a se tornar compósitas, ou seja, culturas onde a identidade deixa de ser de raiz única para ser “raiz indo ao encontro de outras raízes” (GLISSANT, 1996, p. 22-23). A seu ver, tal fenômeno, que caracteriza o que ele chama de “Neo-America”, se estende hoje pelo mundo inteiro através do contato cada vez maior entre as culturas criando “micro- e macroclimas de interpenetração cultural e lingüística” (1996, p. 19). Logicamente, quando essa interpenetração ganha força, as culturas atávicas, vendo-se ameaçadas de diluição, tendem a defender seu estatuto de identidade como raiz única, o que gera discriminações e conflitos dos mais diversos.

A França, que sempre nutriu um forte orgulho por seus ancestrais gauleses, por sua língua e cultura e que, por conta disso, desenvolveu toda uma política assimilacionista nas suas antigas colônias, encontra hoje na grande massa de imigrantes maghrebinos e seus descendentes - que com suas diferenças culturais constituem parte significativa da população do país - uma ameaça à sua pretensa identidade de raiz única. Digo pretensa porque todas essas culturas que se dizem atávicas foram compósitas em suas origens.

Na verdade, a questão da imigração maghrebina na França tomou rumos imprevisíveis dando origem, por exemplo, ao recrudescimento do racismo e de posições nacionalistas exacerbadas, como as defendidas pelo partido nacionalista de Le Pen e partilhadas por um bom número de franceses.

Conviver com a diferença, ser si mesmo sem se fechar ao outro é o grande desafio do mundo de hoje, tanto para as culturas ditas atávicas como para as compósitas. Na França, esse desafio, a meu ver, já começa a ser enfrentado por essa literatura da e sobre a imigração que, por conta do imaginário, aponta o que Paul Ricoeur chama de “soluções poéticas” (1985) para essa questão identitária ligada à imigração, fazendo da narrativa literária um espaço de construção de identidades móveis e plurais.

A construção dessas narrativas literárias, que são narrativas de um tempo vivido, tem na memória a sua mola propulsora. Através das lembranças daqueles que viveram e ou vivem essas experiências, essas narrativas vão desvelando as “zonas sombrias” da memória oficial (ROBIN, 1989) sobre o processo imigratório na França desde a Segunda Guerra ao mesmo tempo em que reconstroem uma memória outra desse tempo, uma memória feita de fragmentos da vida cotidiana, a partir da qual se poderá, então, reescrever a história desses imigrantes e de seus descendentes.

Por outro lado, parece-me interessante verificar de que forma a experiência da imigração se expressa literariamente no seio de uma cultura compósita. Nesse sentido, me proponho também a analisar alguns romances brasileiros centrados sobre a imigração de origem árabe no Brasil (basicamente a libanesa), buscando cotejá-los com textos da literatura da e sobre a imigração maghrebina produzida na França. Dentre esses romances brasileiros, destaco Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, e Amrik, de Ana Miranda.

Os objetivos visados pela presente pesquisa resumem-se, portanto, nos seguintes:

·          analisar a narrativa ficcional como espaço de construção de identidades marginais, móveis e plurais;

·          estudar o tema das movências identitárias em textos produzidos na França por escritores originários do Maghreb ou descendentes de imigrantes maghrebinos, assim como em textos de escritores franceses autóctones;

·          analisar a situação e o impacto dessa produção literária emergente, ou seja, da literatura sobre e das imigrações no interior do cânone literário francês;

·          verificar até que ponto a inserção dessa literatura emergente no seio da produção literária francesa poderia ser interpretada como indício de uma possível “crioulização” (GLISSANT, 1996) da cultura francesa;

·          fazer dialogar textos dessa literatura sobre e das imigrações na França com textos da literatura brasileira centrados sobre a questão da imigração libanesa no Brasil, no sentido de verificar as formas pelas quais essas diferentes construções narrativas expressam a experiência da movência identitária entre as culturas oriental e ocidental;

·          repensar os conceitos de identidade e cultura não mais como noções acabadas e monolíticas, mas como construções dinâmicas, inacabadas e abertas ao contato com o outro.

2. Considerações teórico-críticas e metodológicas:

Para tratar do tema das movências identitárias em obras da literatura sobre e das imigrações produzidas na França e no Brasil considero pertinente adotar uma perspectiva cultural-comparatista, vislumbrando a leitura dessas obras a partir do contexto histórico-cultural e social em que elas se inserem, ou seja, enquanto representações do paradoxo que caracteriza o final do século XX, onde ao mesmo tempo em que a chamada “globalização” da economia e da mídia dilui as fronteiras entre as nações e facilita o contato entre diferentes culturas, movimentos separacionistas explodem por todos os lados dando origem a guerras absurdas que destroem populações em nome da diferença étnico-cultural.

Nesse sentido, o diálogo com outras áreas do saber, como a História, a Antropologia, a Sociologia e a Fisolofia, se faz fundamental, uma vez que a questão das movências identitárias se constitui hoje em dia não apenas em uma experiência vivida pelo homem, ser migrante por natureza, mas também em um processo histórico-social de conseqüências imprevisíveis. A interação com essas outras disciplinas longe de representar o desprestígio da obra literária é, ao contrário, um enriquecimento, tendo em vista que as trocas teórico-metodológicas permitem leituras diferenciadas de um mesmo texto. Além do mais, o caráter estético do texto literário continua preservado e até mesmo valorizado, pois é justamente através da sua poética que se expressam as múltiplas temporalidades e espacialidades que dão conta dessas identidades móveis, errantes e plurais.

Assim, dentre os teóricos com os quais dialogo mais de perto, ressalto, evidentemente, alguns cujas reflexões não se fecham na especificidade de seu campo de conhecimento, mas que, ao contrário, buscam sempre a interação com outras disciplinas, como é o caso de Edward Said, Édouard Glissant, Paul Ricoeur, Tzvetan Todorov, Régine Robin, Homi Bhabha, Pierre Bourdieu, Jacques Le Goff, Michel De Certeau.

A defesa que faço do diálogo da literatura com outras áreas do saber não se restringe a uma necessidade específica do meu tema de pesquisa. A meu ver, é no diálogo que se estabelecem as trocas enriquecedoras que nos permitem refletir, relativizar nossos pontos de vista, desconstruir e reconstruir conceitos, enfim, descobrir novas perspectivas para nossas pesquisas. É nesse sentido que acredito deva caminhar não apenas o nosso GT de Literatura Comparada, mas também os demais GTs da ANPOLL.

3.Referências bibliográficas:

Textos literários:
BEGAG, Azouz. Le gone du Chaâba. Paris: Seuil, 1986.
__________. Zenzela.
Paris: Seuil, 1997.
BELGHOUL, Farida. Georgette!Paris: Barrault, 1986.
BEN JELLOUN, Tahar. Les raisins de la galère. Paris: Fayard, 1996.
BOUDJEDRA, Rachid. Topographie idéale pour une agression caractérisée. Paris: Denoël, 1975.
BOURAOUI, Nina. La voyeuse interdite. Paris: Gallimard, 1991.
HATOUM, Milton.
Relato de um certo Oriente. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
HOUARI, Leïla. Zeida de nulle part. Paris: L’Harmattan, 1985.
LE CLÉZIO, Jean-Marie Gustave. Désert. Paris: Gallimard, 1980.
MIRANDA, Ana. Amrik. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MOKEDDEM, Malika.
Des rêves et des assassins. Paris: Grasset&Fasquelle, 1995.
SEBBAR, Leïla. Schérézade: 17 ans, brune, frisée, les yeux verts. Paris: Stock, 1982.
TOURNIER, Michel. La goutte d’or. Paris: Gallimard, 1986.

Textos teóricos:
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
BOURDIEU, Pierre (ss. dir. de). La misère du monde. Paris: Seuil, 1993.
CERTEAU, Michel de.L’inventiondu quotidien l: arts de faire. Paris: Gallimard, 1990.
GLISSANT, Édouard. Poétique de la relation. Paris: Gallimard, 1990.
__________. Introduction à une poétique du divers. Paris: Gallimard, 1996.
LE GOFF, Jacques. Memória. Documento/monumento. Enciclopédia Einaudi, v. 1: Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional, 1984, p.11-50 e p. 95-106.
__________. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE GOFF, J., NORA, P. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.68-80.
MANOPOULOS, Monique. Décentrage et pluri-identités dans Les A.N.I. du Tassili de Akli Tadjer.
Le Maghreb Littéraire, Toronto: Éditions La Source, v. III, n. 5, p. 65-80, 1999.
RICOEUR, Paul. Temps et récit 3: le temps raconté. Paris: Seuil (poche), 1985.
ROBIN, Régine. Le roman mémoriel: de l’histoire à l’écriture du hors-lieu. Montréal: Éditions du Préambule, 1989.
__________. Le deuil de l’origine. Une langue en trop, la langue en moins. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 1993.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
__________. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
__________. Nous et les autres : la réflexion française sur la diversité humaine. Paris: Le Seuil, 1989. 
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# Zilá Bernd - As relações literárias interamericanas
São dois os objetivos da presente exposição: (1) situar as tendências atuais da linha 4: Relações literárias interamericanas, a qual se propõe não apenas a abrigar pesquisas comparadas entre as literaturas das três Américas como também a refletir sobre o estatuto do comparativismo literário interamericano; (2) apresentar os projetos futuros e seus possíveis desdobramentos incluindo a proposta de criação de um novo GT que será apreciada no XV Encontro Nacional e que, se aprovado, terá por título “Relações Literárias Interamericanas”.

(1) Tendências atuais da linha 4

Dentro desta linha as pesquisas cartografaram a geografia das Américas nas seguintes direções: a) Quebec/Brasil, através de estudos comparados entre a literatura de língua francesa do Quebec e a literatura brasileira; b) Antilhas/Brasil, através de etudos entre a literatura francófona das Antilhas (Caribe) e a literatura brasileira; c) América Latina/Brasil e d) América do Norte/Brasil, com estudos sobre literatura norte americana (estadunidense e canadense anglófona) e suas relações com a literatura brasileira.

a) Quebec/Brasil: consolidando uma tradição da UFF (Universidade Fed. Fluminense) e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) que, desde o início dos anos 90, possuem cursos em nível de Pós-Graduação e pesquisa na área das literaturas francófonas das Américas, os trabalhos mais relevantes originaram-se de pesquisadores dessas universidades.

Maria Bernadette Porto (UFF) editou volume coletivo intitulado Fronteiras, passagens, paisagens na Literatura Canadense (Niterói: EDUFF/ABECAN, 2000) no qual ela própria assina um artigo que contém de alguma forma a síntese sua pesquisa : “Mutações e (i) migrações no espaço quebenquense” . Seu texto recorre à revisão crítica de noções privilegias como a questão da origem, as travessias da identidade e a representação do entre-dois. Desenvolve nesse texto o rico filão das chamadas literaturas migrantes, ou seja, aquelas cujos autores lidam com dois horizontes culturais: o de seus países de origem e o do Quebec, país de adoção. Segundo a própria autora, a literatura migrante “trouxe o heterogêneo para a paisagem ficcional do Quebec graças à incorporação de outras histórias, memórias e referências culturais, propondo relfexões em torno das travessias identitárias realizadas no Quebec por autores e personagens que conhecem de perto a vivência do exílio.” São de grande valia teórica à Bernadette Porto as teses de Daniel Sibony (L’entre-deux; l’origine en partage. Seuil, 1991) e de Régine Robin (Le deuil de l’origine. Vincennes, 1993).

Na mesma obra, Nubia J. Hanciau, da FURG (Fundação Universidade do Rio Grande), elabora estudo sobre uma escritora que foge a qualquer tentativa de classificação por encarnar ela própria uma constante migração: trata-se de Nancy Huston, nascida na província canadense anglófona de Alberta, mas que fez uma opção por escrever em francês e por viver em Paris. A análise de Nubia Hanciau destaca, no conjunto dos romances da autora e também de sua produção ensaística, uma das linhas de força de sua obra que é a questão das ambiguidades identitárias, destacando seu desconforto face a assumir uma identidade identidade canadense e sua necessidade de empreender uma viagem de volta ao país natal, a Alberta. Nesse retour au pays natal, Nancy Huston procede à redescoberta da América, oferecendo aos leitores descrições da paisagem do Novo Mundo como um campo de infinitas possibilidades.

Zilá Bernd, da UFRGS (Universidade Fed. do Rio Grande do Sul), em publicação coletiva intitulada Identidades e estéticas compósitas (PPG-Letras/UFRGS e La Salle, 1999), focaliza no adjetivo “compósito”, associado aos conceitos de “identidade” e “estética”, sua atenção, pretendendo com ele abarcar o conjunto de mesclas, hibridações, justaposições e aglutinações que ocorrem na geografia ficcional americana. Segundo Glissant, compósito opõe-se a atávico (culturas enraizadas em suas crenças e em seus respectivos territórios). O choque brutal dessas culturas atávicas produziu, nos territórios colonizados, culturas compósitas, marcadas pela diversidade. Provar que as identidades, no contexto das três Américas, podem ser “compósitas”, o que constitui sem sombra de dúvida um oxímoro, é uma das propostas do livro organizado por Zilá Bernd e Cícero Lopes.

b) Antilhas/Brasil : também na linha da investigação das “feições das identidades culturais”, Maria Nazareth Soares Fonseca, da PUC-MG, trabalha com os conceitos de impureza e contaminação como operadores para a análise de entrecruzamentos e flutuações dinâmicas de espaços em transformação. O antilhano Edouard Glissant fornece preciosa ossatura teórica à reflexão de Maria Nazarteth que investiga não apenas textos literários, como os de Nicolás Guillén e de Patrick Chamoiseau, como também as pinturas híbridas de Wilfredo Lam, visando uma releitura de textos e objetos culturais a partir de novos lugares.

c) América Latina/Brasil: o trabalho da profa. Vera Follain de Figueriedo não foi informado.

d) América do Norte/Brasil: duas pesquisadores trabalham com as literturas de língua inglesa da América do Norte: Gisele Fernandes (UNESP de Assis) e Eloína Prati dos Santos (UFRGS). Gisele, no momento realizando programa de pós-doutorado nos Estados unidos, analisa a obra de Don Delillo, sob a ótica do Pós-moderno (Hutcheon, Jameson) para mostrar como seus romances de natureza contestadora querem fazer do leitor um sujeito atuante capaz de consquistar sua consciência histórica e assim reconstituir e fazer a História de seu próprio país. As pesquisas de Eloína , a partir de autoras canadenses de língua inglesa, apresenta um texto em que, privilegiando o feminino, fornece uma via de acesso à obra de Susanna Moodie. Essa escritora, de origem inglesa que emigrou para o Canadá, apresenta pela vivência pessoal do entre-dois, a própria dualidade canadense e a difícil sobrevivência no espaço do Novo Mundo. Usa igualmente como fundamento teórico, a obra da autora canadense Linda Hutcheon para apontar a sobrevivência de personagens ex-cêntricas na literatura canadense e na escrita feminina.

2. Continuidade e desdobramentos futuros

Projeto CD-ROM: ANTOLOGIA DE TEXTOS FUNDADORES PARA UMA TEORIA DA LITERATURA COMPARADA INTERAMERICANA

No âmago da linha de pesquisa: Relações Literárias Interamericanas, está o desejo de estabelecer o diálogo entre as literaturas das três Américas e aperfeiçoar métodos de Literatura Comparada para viabilizá-lo. A tentativa de estabelecer, via literatura, “relações interamericanas”, passou pela constatação da dificuldade de acesso a textos fundacionais não só para o conceito de americanidade e americanização, como para questões ainda anteriores como pertença à(s) América(s), autonomização e dependência literárias, questões básicas para se pensar o possível estatuto de um comparativismo literário interamericano. Textos pioneiros e seminais para abordagem desses temas ou nunca haviam sido traduzidos para o português, ou pertenciam a edições esgotadas. Pensamos que seria prioritário para levar a cabo nossos objetivos, traduzir para o português textos escritos originalmente em inglês, francês e espanhol, disponibilizando-os em um único multimídia, o CD-ROM, que teria a imensa vantagem de poder armazenar ainda hipertextos, imagens e sons e de oferecer-se à consulta entrecruzada de informações.

O projeto CD-ROM, coordenado por Zilá Bernd, na UFRGS, está em fase final de preparação, devendo estar concluído em forma de cd-rom propriamente dito e disponível em linguagem HTML na Internet até fevereiro de 2001. Mais de 50 pesquisadores de todo o Brasil e do exterior integraram o corpo de tradutores e comentaristas, no sentido de viabailizar a empreitada que colocará em um único meio mais de sessenta textos que apresentam duas grandes características: textos fundadores do literário e do identitário nas três Américas e textos fundacionais para uma teoria da literatura comparada interamericana. Fazem parte do primeiro conjunto textos de distintas naturezas (ensaios, manifestos, poemas, etc) que, desde o início do século, procuraram problematizar as questões de autonomização e identidade americanas como os de Aimé Césaire, Price Mars, Fernando Ortiz, Lezama Lima, Ralph Emerson, Borduas, Mário e Oswald de Andrade, Machado de Assis, entre outros. No segundo grupo de textos, elencamos os mais relevantes no que tange à sua repercussão através das Américas, por seu caráter inovador e dessacralizante como os discursos da negritude e da crioulização (René Depestre, Edouard Glissant e Patrick Chamoiseau), os calcados nas questões identitárias ( Gérard Bouchard, Jocelyn Létourneau, Maximilien Laroche), os que propõem novas leituras do texto literário no entrecruzamento com os estudos culturais (Linda Hutcheon, Firmat, Silviano Santiago, Ana Pizarro, Antonio Candido, Octavio Paz e Alejo Carpentier) e os que peliteiam claramente a possibilidade de comparação entre as literaturas das Américas (Wlad Godzich, Roger Bastide, Piglia, Eduardo Galeano, Mario Valdez , Walter Mignolo e Néstor Garcia Canclini). Temos a esperança de poder, com o CD-ROM, colaborar para superar o desconhecimento entre as culturas das Américas e intensificar um diálogo crítico mais sólido e criador.

O principal desdobramento foi a proposta de pesquisadores que não integravam o GT de Comparada de criação de um novo GT que receberia a denominação mesma da linha 4 : RELAÇÕES LITERÁRIAS INTERAMERI-CANAS, tendo a profa. Eurídice Figueiredo (UFF) como coordenadora e a profa. Zilá Bernd como vice. Esta proposta será avaliada durante o XV Congresso da ANPOLL em Niterói, em junho de 2000, confirmando uma tradição da própria ANPOLL, segundo a qual linhas que se fortalecem, atingem um grau de maturidade e um número considerável de interessados se desmembrem constituindo novos GTs.

Com esse desdobramento, os estudos americanísticos ganharão um fôlego maior abrigando pesquisadores interessados nas literaturas americanas que se exprimem em português, espanhol, inglês e francês. Dando prosseguimento aos objetivos da linha pretende-se trabalhar mais especificamente no sentido da migração de conceitos como os de americanidade, americanização, negritude, crioulização, entre outros, bem como das estratégias de construçào/desconstrução identitárias que se valem de mecanismos tais como mestiçagens, hibridações, transculturações, etc. no longo e ainda não concluído processo de constituição das culturas e das literaturas das três Américas. Procurar determinar as similitudes e as discrepâncias desse processo de formação constitui-se em uma das tarefas a serem privilegiadas pelo grupo.

Acompanhar as transferências culturais através das Américas, cartografar textos que – em diferentes países – caracterizaram-se como verdadeiras “declarações de independência intelectual”, acompanhar o trânsito e a migração de determinados conceitos, flagrando a formação de processos de hibridação, como barroco e o realismo maravilhoso, são possibilidades que se oferecem para o próximo biênio.  [topo da página]

    XVII Encontro Nacional da Anpoll - Gramado 2002

# Anelise Reich Corseuil - O Documentário como Forma de Representação: Entre o Real e o Exótico
Contextualização
A proposta de Hayden White de equiparar a narrativa ficcional histórica `a historiografia oficial aponta para uma transgressão das fronteiras associadas à ficção e à história. Para White, a narrativa histórica ficcional é capaz de imaginar uma alternativa para as realidades existentes e construir significação para a fragmentação histórica (The Content of the Form 157). Essa transgressão de fronteiras disciplinares é identificada também por vários críticos culturalistas como Ella Shohat e Robert Stam. Para eles, a transgressão de fronteiras disciplinares no momento atual vem associada `a influência e proliferação de imagens e narrativas, fabricando ícones culturais e fatos históricos que fazem parte de um imaginário coletivo globalizado. O termo definido por Alison Landsbergh como prosthetic memory, ou "memórias postiças" ,utilizado para descrever como a memória popular pode ser moldada por tecnologias de massa que possibilitam ao espectador incorporar como experiência individual eventos históricos não vivenciados (citado em Burgoyne, pág.3), resume bem a influência que ícones e imagens podem passar a exercer no imaginário coletivo. Apesar de a produção e a disseminação destas memórias não estarem organicamente relacionadas com a experiência pessoal do indivíduo, o que pode viabilizar uma certa alienação, elas também possibilitam um engajamento com fatos passados que podem servir como "uma base mediadora para uma identificação coletiva" (Burgoyne pág.6). As imagens de Zapruder do assassinato de J. F. Kennedy ou a reencenação dos três soldados de Iwojima levantando a bandeira americana durante a II Guerra Mundial no cenário do World Trade Center ilustram a influência que imagens documentadas ou documentários podem exercer no imaginário de uma coletividade globalizada.

Nesse cenário cultural, o documentário tem sido objeto de estudo e de discussões críticas variadas que demonstram, na sua grande maioria, a dificuldade que se tem em defini-lo como gênero ou como discurso capaz de representar uma realidade específica. Teóricos anglo-americanos, como Bill Nichols, em Representing Reality, e William Guynn, A Cinema of Nonfiction, apresentam definições conflitantes, colocando o documentário no foco de uma discussão maior que se relaciona com a crise da representação no contexto pós-moderno. Para Guynn, “os filmes documentais se constituem em documentos, no sentido que a palavra [o documento] tem dentro das ciências humanas: representações fieis (aqui filmadas ao invés de escritas) de eventos que ocorrem fora ou independentemente da consciência do documentarista" (Guynn, pág.13). O trabalho de Guynn reitera uma perspectiva mais mimética das artes, no sentido em que afirma a capacidade do documentário de representar o evento "real” com uma retórica própria de um enunciador que distingue "o espectador do enunciado das imagens, reestabelecendo assim a heterogeneidade de certos elementos do siginificante, e chamando a atenção para a segregação dos dois espaços do cinema [o do documentário e o do espectador]” (pág. 231). Observa-se no texto de Guynn uma tentativa de atribuir ao documentário os elementos que o distinguem e ao mesmo tempo o aproximam do cinema ficcional. A relação tempo e espaço--a relação entre lugares (aqui e lá) e entre tempos (antes e agora)--vem demarcada pela retórica própria do enunciador do documentário, que neutraliza a ilusão criada pelo cinema e pelo filme ficcional de aproximar o espectador de "um falso presente" enquanto o filme é projetado na tela.

Em Representing Reality, Bill Nicholls apresenta uma definição do documentário que se baseia nos elementos que podem diferenciá-lo de outras formas narrativas. O conceito de argumentação serve como base para tal diferenciação: "o documentário retoma e utiliza uma relação indexical ao mundo histórico...a evidência do documentário é neste sentido diferente, menos por ser de uma ordem inteiramente distinta da evidência histórica do filme ficcional (as autênticas armas e pinturas do filme de época, por exemplo), mas porque as evidências não servem às necessidades da narrativa em si" (116). Para Nicholls, a evidência do documentário não é um toque estético, “não é um elemento exposto e motivado de acordo com as necessidades da coerência narrativa. Ao contrário, a evidência do documentário nos remete ao mundo e suporta argumentos elaborados sobre aquele mundo diretamente. (É ainda representação mas não ficcional)”(pág. 116). Nas formulações de Guynn e Nicholls há uma ênfase nos aspectos retóricos diferenciadores do filme ficcional e documental. Para Guynn, tem-se a presença do mediador, enunciador, como elemento distintivo entre um universo e o outro; para Nicholls, o documentário tem um caráter argumentativo acerca de instituições, momentos históricos e/ou realidades sociais/geográficas distintas.

A despeito das diferenças elaboradas por esses teóricos, pode-se traçar um paralelo entre o filme histórico ficcional e o documentário no contexto da teoria narrativa de Hayden White, que equipara o texto histórico ao ficcional, na medida em que narrativas históricas também se preocupam com a produção de significados através de uma coerência textual. Para White, no processo de seleção, organização e projeção de fatos e personagens históricos, diversas crônicas e narrativas históricas têm uma tendência a moralizar a história. O crivo interpretativo de diferentes historiadores ou diretores vai, desta forma, definir a inclusão ou a exclusão de significantes históricos específicos afim de que o conjunto de imagens ou o texto em questão construa um significado específico (White, págs.26-47). Neste sentido, os documentários e filmes históricos veiculados na grande mídia podem também ser vistos como representações com cunho ideológico específico através do qual certas etnias e nacionalidades são representadas na grande mídia. A teoria narratológica pode ser, desta forma, uma importante ferramenta na análise de documentários, sugerindo uma estreita relação entre construção da narrativa e formas de representação. Esta relação pode ser observada através de aspectos técnicos, como o conceito de fechamento e abertura do texto, a relação entre a argumentação e construção narrativa, a relação entre o sujeito e o objeto, e a questão da autoridade do narrador como elemento enunciador e mediador entre a realidade do espectador e do mundo representado.

Nesse contexto, este trabalho busca analisar o documentário canadense "Um Lugar Chamado Chiapas" (1998), de Nettie Wild, como uma forma de representação da revolução de Chiapas. Sem descartar o pressuposto básico nas definições de Guynn e Nicholls, ou seja, de que o documentário tem uma forma narrativa distinta da ficcional (seja ela argumentativa ou conceitual), os documentários tentam representar uma realidade específica ao mesmo tempo em que se constituem como formas narrativas carregadas de significado.

Em Um Lugar Chamado Chiapas ocorre também a justaposição de duas linguagens: a representação do real, Chiapas, enquanto local específico de conflito entre Zapatistas e o governo mexicano, e a forma como a câmera transforma a realidade de Chiapas em imagens esteticamente belas, chamando a atenção para questões como enquadramento, posição de câmera e efeito de luz. Ocorre aí um certo distanciamento entre o real e a sedução proporcionada pelas imagens. A diretora do documentário, Nettie Wild, também constrói um universo de imagens, onde o realismo do conflito é substituído por uma visão mais subjetiva e metafórica.

O documentário, ganhador do título de melhor documentário produzido no Canadá em 1998, recebendo o Genie Award em 1999, apresenta o levante Zapatista do Exército de Liberação Nacional, comandado pelo subcomandante Marcos, contra as políticas do presidente do México, Zedillo. O conflito se dá em conseqüência da implantação do NAFTA (North America Free Trade Agreement), no México, em 1994. A narrativa em off explica que o NAFTA facilitou não apenas o impedimento, por parte do governo mexicano, do assentamento de índios Maias mas também o boicote da produção de milho pelos indígenas Maias, uma vez que o milho consumido no México passou a ser importado dos EUA por um valor inferior ao produzido pelos indígenas. Membros da Igreja que tentam intermediar o conflito, a população indígena, vitimada pela ação de grupos paramilitares formados por zapatistas e latifundiários são documentados na narrativa através de entrevistas.

O documentário pode ser definido como "politicamente correto", na sua tentativa de apresentar para diferentes audiências um olhar externo ao conflito de Chiapas. Nettie Wild posiciona-se como estrangeira que busca apresentar uma perspectiva pessoal ao problema político de Chiapas. Nas cenas iniciais do filme sua narrativa em off traça um panorama político de Chiapas, apresentando uma leitura pessoal enquanto elemento externo ao conflito. Na cenas subseqüentes, apresenta-se a equipe de Nettie tentando penetrar no território de Chiapas. Nettie aparece em plano médio, dentro de sua caminhonete, questionando os guardas sobre a necessidade de apresentar-lhes um passaporte, uma vez que ela já se encontra em território mexicano e que ali não deveriam existir fronteiras. O filme coloca uma pergunta sobre Chiapas--"que lugar é este?"--para respondê-la em seguida com um seqüência de imagens onde um mapa do México apresenta alguns pontos em vermelho: pequenos vilarejos de Chiapas, que, conforme a narrativa em off explica, são “fronteiras dentro de fronteiras”, determinando diferenças internas ao próprio território mexicano. Ou seja, a proposta do documentário é representar essas diferenças internas ao México, ao invés de homogeneizar as diversas etnias e interesses.

A seqüência em voz-off, explicando, através do mapa, a trajetória realizada pela equipe de Nettie, continua a informar que a partir do vilarejo La Realidad não há mais estradas. O subtexto da visita sugere um problema de representação, ou seja, que o local não pode ser representado em termos de uma cartografia, remetendo-nos, indiretamente, às várias correntes migratórias de cartógrafos que vieram às Américas durante os séculos XVIII e XIX. A ausência de estradas para representar o espaço de Chiapas, pode ser visto como uma leitura paródica de textos colonialistas históricos ou exploratórios de Literatura de Viagem, em que autores como Humboldt "reinventavam" a natureza da América do Sul em tom dramático e grandioso, convertendo o que já era conhecimento comum dos habitantes do lugar em conhecimento europeu, nacional e continental (Pratt, pág.120). Várias outras seqüências do filme reiteram a postura consciente da documentarista do processo de representação em discursos globalizantes, universais que se outorgam certa autoridade para falar de uma realidade histórica distinta e específica. Na seqüência em que Nettie entrevista o comandante Marcos, à audiência é dado escutar as perguntas de Nettie, com o enquadramento de Marcos, sem que Nettie apareça em cena. A inversão de papéis, entrevistado e entrevistadora, é revelada quando Marcos pergunta a ela há quanto tempo está em Chiapas. Ele então comenta que oito meses é um tempo muito pequeno para entender Chiapas, explicando que ele está lá há doze anos e "só agora começa a compreender melhor o lugar". Pode-se ler a inversão de papéis como forma de inverter as posições, entrevistado e entrevistador, evidenciando, mais uma vez que Nettie democraticamente aceita a crítica de Marcos, que a coloca como observadora externa e incapaz de compreender a totalidade do conflito de Chiapas.

A entrevista também possibilita ao sub-comandante Marcos ocupar um espaço como articulador de um discurso próprio que questiona o posicionamento da documentarista estrangeira (detentora do poder em representar Chiapas). Mas, uma vez que o sub-comandante Marcos também é externo--ou seja, não reativo-- a Chiapas (ele está lá há aproximadamente 12 anos, tendo uma origem desconhecida e híbrida, meio indígena, hispânica, talvez sendo oriundo da Cidade do México como professor de filosofia), a entrevista possibilita também o questionamento da própria autoridade de Marcos como intérprete de Chiapas.

O documentário permite uma leitura de sua prática discursiva, como forma de metadocumentário, devidamente auto-reflexivo, na medida em que questiona a sua própria forma discursiva como representação de uma realidade distinta que é Chiapas. Na seqüencia dos créditos, os entrevistados são reintroduzidos no momento inicial da tomada de câmera, quando então aparecem em atitude informal, fazendo pose para a câmera de maneira displicente, rindo e tecendo comentários. Essas seqüências finais dos créditos (bem como a entrevista com Marcos) sugerem uma releitura do documentário, não mais como elemento capaz de captar a realidade mas como discurso mediador de diferentes realidades, uma vez que o aparato cinematográfico (com suas tomadas, inclusão e exclusão de cenas, enquadramento, edição de som) é revelado como um aparato. Simultaneamente, os entrevistados sugerem que suas entrevistas também são uma encenação, uma performance, talvez organizada para que estrangeiros possam vê-los de forma mais assimilável. Muitas dessas representações, por conseqüência, implicitamente, negam agência aos sujeitos do relato, para depois incluírem essa falta de agência no subtexto do documentário, como uma crítica inerente à própria forma discursiva do documentário atual.

O filme poderia assim ser visto como discurso metadiscursivo, questionador da suposta capacidade do documentário em representar uma realidade de forma neutra, sem artifícios narrativos; ou seja, como produto cultural inserido no momento em que ele é produzido: o momento pós-moderno--dentro de uma postura politicamente correta, onde os indígenas ou correligionários dos Zapatistas têm um espaço para se apresentarem como sujeitos de um momento histórico particular. Ao mesmo tempo em que esses indivíduos tentam se articular como sujeitos de sua história, o documentário revela os problemas inerentes ao próprio aparato utilizado para representá-los: um documentário produzido por estrangeiros--agentes de uma outra história que não é a dos nativos de Chiapas.

Paralelamente à metalinguagem que revela os processos de mediação na produção do documentário, ocorre um efeito de sedução do espectador através de imagens extremamente bem elaboradas, com efeito de iluminação e enquadramento que produzem imagens simbólicas e poéticas. Essas sequências possibilitam à audiência do filme a substituição momentânea de imagens de uma realidade de miséria, crise e tensão por imagens estéticamente bem elaboradas. Essa parece ser a leitura viável de várias cenas apresentadas no filme. Duas cenas ilustram esse processo de estetização da realidade. Em uma das tomadas iniciais, o espectador é introduzido a uma igreja em Chiapas, onde velas acesas são seguradas próximas a uma lápide. O cinematografista utilizou-se de um ângulo extremamente baixo para ressaltar a luz difusa das velas queimando. O efeito de luz criado pelas velas, como se pudessem ter existência própria, embeleza a imagem ao mesmo tempo em que simbolicamente reforça o poder quase mítico que elas têm para aquela comunidade de pessoas reunidas na igreja. A fotografia seduz o espectador em dois aspectos: distanciando-o do contexto em que as pessoas que seguram as velas estão inseridas, alienando-o assim do momento histórico que elas vivem (os mexicanos acenderam as velas para livrarem-se das mazelas vividas) e esteticizando uma imagem que poderia ter tido um outro tipo de enquadramento--um enquadramento em ângulo alto, por exemplo, colocaria em evidência o coletivo, pois mostraria as pessoas reunidas dentro da igreja em detrimento do brilho das velas, que definitivamente dá maior valor estético à fotografia do filme. A beleza das tomadas atinge seu ápice quando o rosto de uma menina indígena, em close, tem seu perfil ressaltado pelo efeito de iluminação das velas.

Há uma segunda seqüência que ilustra a questão da substituição do coletivo pelo valor estético. A seqüência ocorre quando a câmera mostra em plano médio a imagem de uma mulher com duas crianças, puxando pesadas cargas de madeira. Ocorre um diálogo entre a narradora e a mãe que diz aceitar ser fotografada sob a condição de receber 20 pesos por foto, 20 para ela e para cada um dos seus dois filhos. A discussão continua e a câmera focaliza as crianças individualmente. O significado da imagem que em um primeiro momento revela o trabalho de semi-escravidão a que as crianças estão sendo submetidas é substituído pela beleza e exotismo da cena: um close de uma criança maia. A imagem da criança que fixa o olhar na câmera torna-se quase desmaterializada, uma vez que o meio externo, constituído pela carga de madeira, a família e a mata, é excluído da fotografia.

A teoria literária tem definido o termo “estética realista” como conceito problemático, uma vez que o realismo e o naturalismo pictorial de Emile Zolá, Theodore Dreiser, ou de Graça Aranha vêm associado a uma estética que se diz destituída de metáforas ou de uma sintaxe rica. Em diferentes discussões sobre o realismo, o valor do romance realista não está na estética do belo, mas sim na capacidade de expor de forma verossímil problemas coletivos, ressaltando diferenças de classe, questões econômicas, educacionais, institucionais, quase de forma documental (Furst págs.1-23).. A relação que se traça aqui neste trabalho entre o exotismo e o realismo focaliza a dicotomia entre a sedução da fotografia do documentário—no caso específico do documentário que me proponho a analisar Um Lugar Chamado Chiapas—e do seu distanciamento da economia de escassez vivida pelos índios Maias na região de Chiapas. Parece ocorrer, neste documentário, uma simbiose entre o “politicamente correto”, de uma narrativa que muitas vezes se questiona como discurso mediador de uma realidade distinta, e imagens para exportação, ou seja, imagens belas de um território marginalizado.

O documentário, de forma similar à ficção histórica, constrói o passado histórico ou realidades distintas, possibilitando que o elemento representado se articule, seja através de uma narrativa, com um conteúdo mais ou menos argumentativo do que o texto ficcional, ou com elementos idênticos à narrativa ficcional, tais como a construção do sujeito/personagem, a voz narrativa, a montagem de imagens metafóricas ou simbólicas, ou até mesmo na utilização de uma estética similar à ficcional. No caso específico de Um Lugar Chamado Chiapas, a realidade histórica e geográfica de Chiapas estabelece uma relação de diálogo com o documentarista e com o espectador, possibilitando a articulação de uma crise que transcende o próprio espaço representado para questionar os métodos e formas de representação.

Obras Citadas:
Burgoyne, Robert. “Memory, History and the Digital Imagery in Contemporary Film”. (http://www.markszine.com/104).
Furst, Lilian R. All is True: The Claims and Strategies of Realist Fiction. Durham: Duke University Press,1995.
Guynn, William. A Cinema of Nonfiction. London: Associated U. P., 1987.
Nichols, Bill. Representing Reality. Bloomington: Indiana U. P., 1991.
Shohat, Ella and Robert Stam. Unthinking Eurocentrism: Multiculturalism and the Media. London and New York: Routledge, 1994.
White, Hayden. The Content of the Form: Narrative Discourse and Historical Representation.
Baltimore: The Johns Hopkins U. P., 1987.  [topo da página]

# Ângela Dias - Imagens/Ficções da crueldade contemporânea

Escrever como um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E, para isso, encontrar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro-mundo, seu próprio deserto.
Deleuze/Guattari, Kafka por uma literatura menor

A reconhecida propensão ao realismo1 da literatura brasileira, na cena pós-moderna, está longe de proporcionar um leque previsível de dicções, sobretudo na tendência dominante de dramatização da cidade contemporânea. Se o conflito sem vinculação explícita à luta de classes, como o constatam vários críticos (Gomes, 2000:68), constitui uma das constantes, o influxo midiático-instantaneísta, sob o qual se processa tal produção, relativiza a perspectiva mais ou menos distanciada, ainda atuante em expressiva parcela da literatura realista, na tradição moderna.

Com efeito, o dilúvio imagético, no qual estão imersos habitantes e metrópoles, dentro e fora da ficção, imiscui e confunde olhares e objetos, numa especularidade ofuscante entre imagens-mercadorias e corpos-fetiches. Neste carrossel compulsivamente auto-reproduzido, o circuito do desejo feito máquina faz funcionar peças, pessoas e materiais e transforma tudo e todos, sem exceção, em engrenagens de um processo imanente, em que o "erótico opera todo um investimento político e social"(Deleuze&Guattari; 1977:94).

Justamente tal implicação entre eros, poder e funcionamento dissuade a tradicional figura hierarquizante da Lei em favor de um exercício linear e contíguo, em que cada segmento conecta-se com o do lado para operar "a burocracia como desejo, isto é como exercício do próprio agenciamento"(Deleuze&Guattari; 1977:84). Por isso mesmo, nas sociedades de consumo do capitalismo pós-industrial, a compreensão tradicional de cultura, como adiamento da violência por meio da representação, fragiliza-se e, de certa maneira, entra em crise.

Na instabilidade de um "aqui-agora" fluido e movediço, a figura abstrata do antigo poder estratificado, refém da transcendência, atualiza-se como véu midiático e dissemina-se na selva de signos das cidades. Em sua progressão obscena, a visibilidade espetaculosa encobre, o excesso produz carência e a opulência hedonista agride e incita à violência.

Assim a última versão do totalitarismo nas sociedades de consumo, administradas pela sedução e pela manipulação das massas, de um lado, submete o corpo à pornografia glamourizada da fantasia multimidiática e de outro, exercita-o no ritmo alucinante da violência banalizada, pela disputa da cupidez indiferente com o ressentimento da fome.

Não obstante a modalidade mais flexível de aparição, o totalitarismo pós-moderno compartilha, com outras manifestações históricas, a convergente aposta na pobreza da experiência. É que o tempo da mercadoria-fetiche, como bem o reconhecia Adorno, é o presente perpétuo, em que a figura-chave da repetição do mesmo, como sempre novo, isola os acontecimentos da injunção que os produziu, destacando-os de seus respectivos horizontes, para fixá-los na bricolage indiferente do momento que passa.

O aludido caráter maquínico do desejo, como poder disseminado e imanente, segundo a dupla Deleuze/Guattari, encarna, justamente, o nexo de equivalências e vínculos entre homens e coisas, inerente ao aparato tecno-econômico do desenvolvimento capitalista, desde a modernidade. A natureza neutralizadora de tal deriva, em sua aversão a qualquer outro valor, que não seja o "de troca", autentifica sempre e cada vez mais a formulação benjaminiana, de 1939, sobre o avesso de barbárie inerente a cada documento de cultura, no percurso da História.

Encravado visceralmente nesta injunção, hoje, globalizada, o atual romance urbano brasileiro plural, híbrido e com assídua tendência à autocrítica vem, com relativa frequência, dramatizando o princípio de crueldade2 como diretriz de organização formal. A imagem da crueldade entendida como violência sádica, agressividade perversa ou ainda pornografia banal e obsessiva ao imprimir-se no espelho do texto, em plena sintonia com a lógica do mercado, encontra expressão efetiva na repetição como traço característico.

Assim, a tradução narrativa do que denominamos de "bricolage transcultural"3 característica do regime audiovisual e do paradigma informático, dominantes na cultura brasileira atual alia a repetição, como forma básica de expressão, ao fragmentarismo, de fatura e formatos diferenciados. Por outro lado, o presente perpétuo de nossas metrópoles, enfeitiçado pelo mito da modernização redentora, grava na cena ficcional, o perfil de vitrines e superfícies, através da percepção plana e extensivamente plástica de panoramas e personagens.

Portanto, em divergência com o que, em termos mais gerais, compreendemos por realismo convencionalmente caracterizado pela "presença do pormenor, sua especificação e mudança"(Candido,1993:124); a perspectiva contemporânea aludida certamente aproxima-se do que Antonio Candido configura como o "estilo, a concepção de vida e arte de Edmond de Goncourt", com base no pastiche concebido por Proust, ao final de Em busca do tempo perdido. Conforme constata, então, o crítico:

O olhar de tal escritor pára na superfície e não discrimina em perspectiva, nem correlaciona as impressões com referência a um princípio integrador. Daí cada pessoa ou objeto adquirir um valor por assim dizer absoluto, que se esgota na descrição ou no juízo. Ao contrário, a arte do narrador (Proust) pretende descrever de muitas maneiras, recomeçar de vários ângulos, ver o objeto ou a pessoa de vários modos, em vários níveis, lugares e momentos, só aceitando a impressão como índice ou sinal. É uma visão dinâmica e poliédrica, contrapondo-se a outra, estática e plana. (Candido, 1993:127)

Evidentemente que o caráter superficial desta plasticidade, pouco perspectívica, caso a comparemos com a busca do(s) sentido(s) no mais profundo no latente sob a paisagem manifesta primeiro, se deve a uma espécie de interação intersemiótica com as transparências e espelhos da ciranda virtual que nos rodeia; e depois, tem que ser tomado, grosso modo, como uma constante passível de variações e nuances, segundo escritores e regimes de expressão.

No intuito de esboçar uma amostragem do pluralismo das dicções urbano-literárias recentes, escolhemos comparar duas narrativas que, embora bastante diferenciadas, compartilham as características acima mencionadas: a dramatização de figuras da crueldade, a repetição como procedimento crucial, a composição em blocos fragmentários, com relativa autonomia e o extremo visualismo na composição de cenas e na narração de episódios.

Cidade de Deus, de Paulo Lins, e Sexo ,de André Sant`Anna, embora, à primeira vista, pouco tenham em comum, com exceção do fato de ficcionalizarem as duas maiores cidades brasileiras, o Rio de Janeiro e São Paulo, serão aqui aproximadas, a partir de dois fragmentos, duas cenas, duas tomadas cruciais, tanto pelo seu poder imagético de síntese psico-político-social, quanto pela pregnância das linguagens à metamorfose que dramatizam.

Tratam-se de duas conversões. Em ambos os episódios, personagens marginalizados, pobres e excluídos, convertem-se a uma seita protestante de franca aceitação popular. Tal correspondência entre as versões literárias da prática social e o contexto extra-literário empresta uma inegável solidez sociológica às narrativas. Entretanto, ä "estabilidade da paisagem sociológica, capaz de fundir o mundo de dentro do romance com o mundo de fora e a vida cotidiana do leitor" (Dias,1999:83), no caso de ambas as obras, não confirma o realismo da técnica, à moda novecentista.

Se a geografia da cidade desponta, em cada narrativa, em modalidades bastante diferenciadas, a referência que constitui também se encontra mediada de formas específicas e distintas.

À propósito de Cidade de Deus, Wander Miranda observa que "a aderência ao referente", explicitada ao final do livro nas "Notas e Agradecimentos" - "Este romance se baseia em fatos reais"(Lins,1997:549) - de uma parte, assinala o movimento da escrita na direção da fotografia, enquanto que, de outra, não é suficiente para promover a naturalização dos dados representados (Miranda,2002:184). A nosso ver, tal insuficiência do apêndice explicativo - quando são expostos a base antropológica e seus desdobramentos ficcionais, integrantes do caprichoso processo de produção da obra - não se deve, apenas, "à ênfase do estatuto literário pela indicação auto-reflexiva" (Miranda,2002:184) contida na epígrafe, ou ao que esta última possa ocasionar, como declaração de princípios.

Acreditamos que, tanto nesta caudalosa narrativa, quanto na quase-novela de André Sant'Anna, o diferencial frente à dicção do realismo novecentista, se deva ao ponto de vista, ou seja, à posição dos respectivos focos narrativos diante da geografia das cidades que se dispõem a contar. Panofsky já reconhecia o quanto as "perspectivas desempenham o papel ativo de formas simbólicas"(Panofsky apud Bosi,1988:21), daí, a necessidade de sua determinação num empreendimento comparatista4.

Se ambas as obras partilham das características alinhadas acima, a mais marcante delas, a dramatização da figura da crueldade, indica seu compromisso com a pobreza da experiência como forma, e por isso, talvez, com "o estilo coletivista do que a dupla Deleuze/Guattari conceitua como "literatura menor""(Dias,2001:73).

Em outro texto, já assinalamos, no caso específico de Sexo, a crucial vinculação entre pornografia, canibalismo e consumo que opera, ao "arrancar de sua própria língua uma literatura menor", na pronúncia de uma linguagem dissecada por "um uso intensivo, assignificante", capaz de dar conta da "clonagem estratificada dos personagens, uns pelos outros, bem como da natureza heterodirigida de suas mais íntimas satisfações"(Dias,2001:73).

O acento coletivista característico do gênero "pornografia terrorista", previsto, em 1975, no conto "Intestino Grosso" de Rubem Fonseca como resposta à impossibilidade de uma "literatura de autor ou de mestre" (Dias, 2001:71) conduz o narrador sem rosto de Sexo à encenação da crueldade como ritual obsceno, escrito em sua grafia pornô pela obsessiva banalidade. Com efeito, a trama enredada de relações sexuais, diferentes apenas no grau da escatologia e da perversão, desdobra as metonímias de estilos e mundos segmentados, mas, igualmente heterodirigidos, ao encenar, com distintas paisagens e figurantes, a mesmice fetichista do corpo como mercadoria.

A materialização do "caráter oprimido da língua", através de um estilo inchado de apostos e redundâncias e da nomeação perifrástica de quase todos os personagens, inabilitados para o nome próprio, encarna a fala do deus "ex-machina" do mercado embutida na onipresença da máquina midiática5.

Neste sentido, a cena da conversão de "O Negro, Que Fedia", indicia o regime geral da focalização ausente e irônica, pela tomada sutil da auto-ilusão consumada, no transe do exorcismo que, afinal, retira do próprio fingimento a sua força de verdade.

Agora eu peço, em nome de nosso senhor Jesus Cristo, que todos os demônio, aqui presentes, se manifeste. Pode aparecer Exu Caveira, venha Tranca-Rua, venha que, hoje, Jesus vai dar uma surra em vocês. Eu ordeno que todos os agente do mal se manifeste agora, em nome do Senhor, em nome de Jesus Cristo! Amém, gente.
O Negro, Que Fedia, olhou impressionado para as pessoas que começaram a se contorcer pelo templo. A Trocadora Do Ônibus No Qual O Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos Os Dias, Às Seis Horas Da Tarde indicou para o Negro, Que Fedia, os dois ajudantes do Pastor, que andavam pelo templo à procura de demônios incorporados e se aproximavam da fila de cadeiras onde estavam o Negro, Que Fedia e a A Trocadora Do Ônibus No Qual O Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos Os Dias, Às Seis Horas Da Tarde. A Trocadora Do Ônibus No Qual O Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos Os Dias, Às Seis Horas Da Tarde, cochichou no ouvido do Negro, Que Fedia:
- Vai com eles e entrega seu coração a Cristo.
O Negro, Que Fedia, andou na direção dos dois ajudantes do Pastor. Um dos ajudantes do Pastor colocou uma de suas mãos sobre a cabeça do Negro, Que Fedia, e a empurrou para baixo. O Negro, Que Fedia, olhou para os fiéis que se contorciam e passou a imitá-los. Nesse momento, O Negro, Que Fedia, entregou seu coração a Cristo e estrebuchou sinceramente. Havia mais de cem demônios possuindo a alma do Negro, Que Fedia. (Sant'Anna, 1999:62,63)

O antecedente da passagem em questão, no nível do enredo, coloca a conversão como pré-requisito da conquista sexual da Trocadora pelo Negro, Que Fedia. Aqui, o agenciamento social e administrativo do desejo ao colocar a religião, como uma das drogas propiciadoras do sexo numa relação com as outras mais caras(cocaína, bebidas alcóolicas de elite, maconha), consumidas pelos demais personagens, de nível social superior classifica o exorcismo da "entrega do coração a Cristo"(Sant'Anna, 1999:61), no templo do Pastor protestante, no último lugar na escala, de prestígio social, tanto pela absoluta ausência de glamour, quanto pelo grotesco que encarna.

Além disso, a desterritorialização da língua, concretizada pela própria narrativa, e igualmente, pela fala estropiada do pastor, configura a técnica de Sant'Anna como o pastiche mais que perfeito da estética hiper-realista. Afinal, ao combinar acurácia morfológica, no senso detalhista das descrições realistas, e des-historicização do contexto e das motivações, o discurso reverte o auge do próprio ilusionismo num espelho em que a "expressão material intensa"(Deleuze&Guattari, 1977:30) da violência, do kitsch e da banalidade sociais opera uma espécie de "sóbria revolução", por objectualizar o inumano na chapada assignificância da linguagem.

Partindo de uma língua escavada, em completo jejum de "todo uso simbólico, ou mesmo significativo, ou simplesmente significante"(Deleuze&Guattari, 1977:79), o narrador de Sexo chega, pelo trânsito intersemiótico implicado na construção hiper-real, à materialização de uma espécie de jogo de armar reversível. Suas imagens estáticas e coloridas podem intercambiar fragmentos umas das outras. Assim como nos livros infantis de figuras em tiras, a cara de um pode caber no tronco de outro, o terno de um completar-se com a metade do outro, ou suas gravatas misturarem-se. A montagem das figuras desencontradas, cara de um, tronco de outro, ao justificar comicamente a brincadeira, de certa forma, retoma o caráter previsível dos personagens e a estereotipia de suas escolhas sublinhados pelo próprio enredo do romance6.

Já a conversão de Alicate, o bandido temido, e sua mulher Cleide, em Cidade de Deus, ao concretizar um foco narrativo radicalmente diferenciado do de Sexo, conduz ao reconhecimento da versatilidade da perspectiva no romance. Aqui, o hibridismo da condição do autor sua dupla experiência como estudante e bolsista universitário e habitante da neofavela condiciona o ir-e-vir do foco narrativo entre o "ponto de vista interno e diferente"(Schwarz,1999:163), a distância da câmera midiática no flagrante veloz da crueldade rotineira e o "agenciamento coletivo da enunciação" (Deleuze&Guattari, 1977:28)

Nas três posições, a metamorfose do narrador materializa um "processus" em que o gueto espacializa a violência como desejo, poder e exercício continuado. No entanto, o local, entroncando-se no Eros capitalista da metrópole, não possui margem de escolha. Nele, a distribuição entre oprimidos e opressores, a ciranda de peças, pessoas e matérias, decorrem de cada estado da máquina (...) em tal momento (...) constituindo unidade com o funcionamento de um certo número de engrenagens, o exercício de um certo número de poderes que determinam, em função da composição do campo social sobre o qual têm ação, tanto seus mecânicos quanto seus mecanizados (Deleuze&Guattari, 1977:79).

A economia maquínica deste entroncamento em que a dinâmica do gueto aflui para o estuário da metrópole e dela reflui, segundo Renato Gomes, aproxima Cidade de Deus de outras narrativas que fazem convergir "o tom nostálgico e a desilusão pós-utópica, (...) na demanda de uma legibilidade que se atrela às marcas identitárias" (Gomes,2000:72).

Talvez a grandeza de Cidade de Deus resida, justamente, nesta tensão da voz narrativa, repartida entre a nostalgia antropocentrista da metáfora e ou o seu "fragor (...) realista ou simbolista" e a "violência de um Eros burocrático, policial, judiciário, econômico ou político"(Deleuze&Guattari, 1977:58).

A passagem da conversão, certamente, poderá esclarecer a instável gangorra da voz narrativa sua reiterada alternância entre o ponto de vista interno do narrador neo-romântico, apaixonado pela idéia de fazer literatura, e o thriller repetido da câmera precisa, no recorte e na edição da crueldade voraz.

Na churrascaria, apenas um bêbado tomava a saideira, os funcionários alternavam-se no banho. O amigo de Mineiro, juntamente com o patrão, separava os cheques do dinheiro vivo. Os dois seguranças foram rendidos facilmente, pois estavam juntos na hora em que os bichos-soltos atacaram. Alicate mandou que todos se deitassem no chão. Ninguém reagiu.
( )
Entrega tua alma ao Senhor e terás a vida eterna. Só Cristo salva de todo sofrimento e liberta do fogo do inferno. Arrepende-te de teus pecados que o paraíso te espera! Aleluia!
Alicate escutava calado o que aquele homem de terno de tergal azul-marinho dizia segurando uma Bíblia, poucos minutos depois de ter chegado em casa e revelado seus planos a Cleide. Quando o homem acabou de falar, todos os seus acompanhantes ergueram a voz com palavras do mesmo campo semântico e com a eloquência de quem fala o mesmo texto todos os dias.
Como é que eu faço para conseguir tudo isso aí?
É só aceitar Jesus no coração!
Como...?
O senhor deixa nós entrar um pouquinho?
Hã-ram.
O homem de terno de tergal sentou no sofá junto com os outros três religiosos. Alicate ficou em pé no canto esquerdo da sala, Cleide ao seu lado. Escutavam os membros da Igreja batista pregar o Evangelho.
Agora vamos ouvir a palavra do Senhor:

A segurança daquele que se refugia em Deus.
Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará.
Direi do Senhor. Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha fortaleza e nele confiarei.
Porque ele te livrará do laço do passarinheiro, e da peste perniciosa.
Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas estarás seguro: a sua verdade é escudo e broquel. Não temerás espanto noturno, nem seta que voe de dia. Nem peste que ande na escuridão, nem mortandade que assole ao meio-dia...

Tudo em Alicate se transformara em emoção saltitante e jubilosa, ao ouvir essas palavras. Encarava e via sinceridade tão visível quanto as retinas do orador. Todo seu cerne se abrira às palavras de Cristo. De seus olhos, duas festas brilhantes, nasciam lágrimas mudas que sorriam ao vento que percorria os mil cantos da sala. Cada versículo fora uma estrada que lhe puxava a alma. Um sorriso foi tomando corpo em seu rosto. Era a bondade divina que o chamava. Os galhos da goiabeira, o rio correndo, a brisa do mar, Cleide, o filho que teria com ela, as estrelas no infinito, a pipa no céu, a lua, o canto triste dos grilos, tudo, tudo foi Deus quem criou. Lá fora, o sol explodia nas esquinas e todas as coisas já eram tão diferentes. Aceitar Jesus era poder renascer numa mesma vida. Sua meta era a de ser feliz para poder mudar o mundo através dos ensinamentos do Senhor. O milagre da conversão modificou as metáforas de seu semblante. A paz estava agora presente em todas as coisas. O sentimento de felicidade em Cleide também era de absoluta pureza. O futuro chegou para se entocar ali dentro de seu peito.
O amor, Deus é amor... balbuciou.
O cristão mudou-se sem se despedir dos amigos, um mês depois da visita dos religiosos. Largou baralho, canivete, o revólver, os vícios. De uma vez por todas deixou de lutar contra o azar. Volta e meia dizia para Cleide que ele sim tinha arrebentado a boa. Conseguiu um emprego na empresa Sérgio Dourado, onde foi explorado por muito tempo, mas não ligava. A fé afastava o sentimento de revolta diante da segregação qu sofria por ser negro, desdentado, semi-analfabeto. Os preconceitos sofridos partiam dessa gente que não tem Jesus no coração. Teve dois filhos com Cleide e sempre que podia voltava em Cidade de Deus para pregar o Evangelho. (Lins, 1997:151,154,155,156)

A desterritorialização da linguagem pelo descritivismo estirado da denotação se vale, nos momentos mais ágeis, da gíria "bicho-solto", ou seja, do jargão corrente entre a bandidagem da neofavela. Este circuito aberto entre a função dêitica do relato, nos clips-fragmentos-episódios, e o agenciamento coletivo da enunciação a língua geral entranhada na literária, corroendo-a e rebaixando-a tem efeito decisivo sobre a fatura da obra. Desmente a escrita fotográfica do novecentos, seja porque a volatiliza como imagem na tela midiática da narração, seja também pelo "princípio da crueldade" que põe em funcionamento, com uma precisão desrealizante e decisivamente sensacionalista.

Talvez possamos, por aí, compreender, ao lado do hiper-realismo desta escrita de menos, comprimida pela feroz velocidade da violência, a aura tardo-naturalista envolvendo os personagens, figuras sem estofo ou interioridade, mas visceralmente plantados na injunção local. Neste sentido, a permeabilidade da neofavela ao Eros capitalista da metrópole, além de relacionar as duas narrativas em pauta, e, especificamente, os personagens negros das passagens mencionadas Alicate e o "Negro, Que Fedia" também delineia o horizonte inumano compartilhado. É que, as "cidades partidas", vistas do gueto, ou fora dele, constituem o mesmo maquinismo desejante enlaçado à mediação do fetiche: no presente perpétuo, a aura da mercadoria, o fantasma, "a virtude espectral da moeda".

Em Sexo, o escavar da língua assume a obviedade e o infantilismo "tatibitati" das cartilhas de alfabetização, uma espécie de jejum diante de qualquer marca, bem próximo ao que seria o "sex appeal do inorgânico"(Benjamin apud Matos,2002:90), característico da mídia televisiva. Aqui, o narrador performático de Cidade de Deus, ou circula por seus espaços, assumindo, com a câmera na mão, a brusca gestualidade da violência e a fala do marginal ou então, sobrecarrega-se com o peso dos signos e com a pomposa respeitabilidade do "aedo", na responsabilidade da épica mesmo que jurada pela cotidiana crueldade, ou, mais simplesmente, rebaixada pela inexistência de heróis:

"Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os tons das minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e acontece. Aqui ele cambaleia baleado. Dito por bocas sem dentes e olhares cariados, nos conchavos dos becos, nas decisões de morte."(Lins,1997:23)

Se a dicção dos episódios-clipping guarda a distância da câmera para os grandes "travelings" das fugas e perseguições, apresenta também a proximidade de uma escuta permeável ao "ponto de subdesenvolvimento", ao "patoá", ao "terceiro-mundo"(Deleuze&Guattari, 1977:28) próprio da língua geral que irriga e renova as engrenagens do gueto, como máquina desejante. Esta mesma ambiguidade caracteriza a fala pejada pela vontade da literatura, peculiar ao narrador-aedo, nostálgico, localista, aplicado cultor das marcas perdidas e dos enredos apagados pelo tempo. É justo esta sua forte tendência à captação neo-romântica da natureza, do tempo, da infância e das franjas do enredo que vai capacitá-lo ao mergulho subjetivo nos sentimentos e inclinações de determinados personagens, tomados, quase sempre, em situações-limite.

O trecho da conversão de Alicate concretiza, aliás, com excelência, o acento marcadamente personalizado, antropocêntrico e intensamente tomado pelo investimento do sentido, inerente ao ponto de vista interno, com sua substancial pavimentação retórica.

É como se a absurda ausência de nexo, finalidade ou medida em que se desdobra a máquina do relato, com sua épica concatenação de episódios mais ou menos fragmentários, contíguos, e com uma relativa autonomia que os torna, a muitos, passíveis de serem tomados isoladamente fosse compulsivamente compensada pela opulenta dicção do narrador, pródigo em metáforas, simbolismos e explícita intenção de poesia. Contra a repetição "ad nauseam" das engrenagens do sadismo narrativo, em sua edição hiper-real nas precisas lâminas de rigorosa crueldade; surpreendente, o narrador assume o verbo edulcorado. E sem medo da ênfase kitsch, não se cansa de reafirmar o apego à memória do lugar, e a valores mais duradouros, como o amor, a família, a amizade, a religião.

Aliás, existem no relato inúmeras passagens sobre experiências ou transes místicos dos "bichos-soltos", mas, certamente, nenhuma tão flagrantemente abonada por um desinibido movimento de hipérbole retórica como esta, a da redenção de Alicate. As metáforas se sucedem, mais ou menos banais, com níveis mais ou menos inquietantes de pieguice, como podemos depreender, na amostragem que se segue, de alguns clímaxes de entusiasmo metafórico:

De seus olhos, duas festas brilhantes, nasciam lágrimas mudas que sorriam ao vento que percorria os mil cantos da sala. Cada versículo fora uma estrada que lhe puxava a alma. Um sorriso foi tomando corpo em seu rosto. Era a bondade divina que o chamava. (...) O milagre da conversão modificou as metáforas de seu semblante. (Lins, 1997:155,156)

O exagero não é absolutamente paródico, pelo contrário faz parte dos momentos de "territorialização", como diria a dupla Deleuze/Guattari, deste narrador ansioso por positivar seu povo, seu locus; por incluir, fixar, colocar seus personagens excluídos ao abrigo de alguma inclusão. Contudo, o mais extraordinário é que, o convívio repetido pelas mais de quinhentas páginas desta neo-épica entre tais ocorrências de auto-legitimação do narrador, inflado de Literatura, e o maquinismo do relato, vertiginoso e violento, funciona. Apesar do desequilíbrio entre tons, ritmos e valores, ou, justamente por causa dele, o fato é que a objetividade irrecorrível e repisada das sequências se conjuga aos intervalos reflexivos, às recapitulações de trajetórias, e aos surtos líricos, com um resultado final profundamente inquietante e ambíguo.

A linguagem dissecada dos "takes" violentos, o traçado minimalista no registro da língua geral da neofavela, em seus extremos de dor ou susto, os centros múltiplos do foco narrativo mais ou menos abrangente, mais ou menos rasante, confluem na ousadia de uma des-epopéia: a epopéia da barbárie urbana brasileira, em que a insistente vontade da literatura termina por gerar a dissonância de um conjunto em que o deserto de valores coletivos convive, estapafúrdio, com algumas poucas ilhas de tropical lirismo.

Não é por outro motivo que a conversão de Alicate, mesmo enfeixada pela objetividade no balanço final das mazelas, ensaia uma das poucas afirmações de todo o volume.: "Teve dois filhos com Cleide e sempre que podia voltava em Cidade de Deus para pregar o Evangelho" (Lins,1997:156). Em compensação, a única benesse reservada pela irônica ausência do narrador de Sexo, ao "Negro, Que Fedia", foi o seu "orgasmo que fedia, abençoado por Cristo" (Sant'Anna,1999:143).

NOTAS

1 A acepção de realismo aqui referida extrapola o estilo de época "stricto sensu" para subscrever a compreensão de Antonio Candido que abrange "modalidades modernas que se definiram no século XIX e vieram até nós." (Candido, 1993:123)

2 A acepção do princípio de crueldade, aqui invocada, adota, de início, a formulação de Clément Rosset, no livro de mesmo nome, para, em seguida, problematizar suas implicações, como capacidade de formalização tensionada a um limite, e ou a um horizonte nebuloso, o do colapso do sentido. Nesta direção apontam inclusive os comentários do filósofo: "Por "crueldade" do real entendo ( ) a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade. (...) Mas entendo também por crueldade do real o caráter único, e consequentemente irremediável e inapelável, desta realidade - caráter que impossibilita ao mesmo tempo conservá-la a distância e atenuar seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior a ela. Cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru, não digerido, indigesto) designa a carne escorchada e ensanguentada: ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos (...) no presente caso a pele, e reduzida assim à sua única realidade, tão sangrenta quanto indigesta." (Rosset, 2002:17,18)

3 Remeto, a respeito, para o artigo de minha autoria publicado na Revista da ANPOLL nº 10, jan-jun.2001, p.11-22, onde desenvolvo o conceito, bem como suas implicações para o trabalho intelectual, hoje.

4 Este é exatamente o contexto em que, muito produtivamente, Bosi usa Panofsky, para fundamentar a comparação entre as obras de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.

5 Consultar sobre o romance Sexo, o artigo de minha autoria ("Violência e miséria simbólica" In: Estudos Históricos Sociabilidades, Rio de Janeiro, nº28, 2001, p.71-85)que desenvolve uma interpretação detalhada sobre os traços estruturais e estilísticos do exercício da literatura menor.

6 A esse respeito, é ilustrativo o espelhamento da troca das noivas pelo mesmo motivo, entre dois executivos: o Jovem Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas e o Jovem Executivo De Gravata Azul com Detalhes Vermelhos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. 1988 Céu Inferno Ensaios de Crítica Literária e Ideológica. São Paulo, Ática.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI , Félix. 1977. Trad. Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda.
DERRIDA, Jacques. 1994. Espectros de Marx O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro, Relume-Dumará.
DIAS, Ângela Maria. 2001 "Violência e miséria simbólica na cidade de André Sant'Anna". Estudos Históricos Sociabilidades.nº28, p.71-85
_____ . 2001 "Por uma retórica da imagem: mídia e cultura brasileira contemporâneas". Revista ANPOLL, nº10, jan/jun, p.11-22.
_____ . (org) et al. (1999) A missão e o grande show Políticas culturais no Brasil dos anos 60 e depois. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.
FONSECA, Rubem. 1975. "Intestino Grosso". Feliz Ano Novo. Rio de Janeiro, Editora Artenova S.A.
GOMES, Renato Cordeiro. 2000 "Representações da cidade na narrativa brasileira pós-moderna: esgotamento da cena moderna?". Alceu Revista de Comunicação, Cultura e Política. V.1, nº1, jul/dez, p.64-74.
LINS, Paulo. 1997. Cidade de Deus Romance.São Paulo, Companhia das Letras.
MIRANDA, Wander Melo. 2002 "Cenas urbanas A violência como forma". IN: BIGNOTTO, Newton. Pensar aRepública. Belo Horizonte, Editora UFMG.
SANT'ANNA, André. 1999. Sexo. Rio de Janeiro, Sette Letras. 
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# Eliane Ferreira - Machado de Assis e as teorias do comparatismo na América Latina
Resumo: Este estudo retoma a “teoria do molho” machadiana com o objetivo de relê-la numa perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas pelo próprio Machado, em muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura Comparada, notadamente pela sua atuação como tradutor e crítico-teórico do traduzir. As leituras de textos pouco analisados pelos estudiosos machadianos tais como os prefácios, os pareceres emitidos quando censor do Conservatório Dramático Brasileiro e a crítica teatral demonstram o quanto Machado desde o início de sua carreira literária percebeu a importância do papel da tradução no percurso dos escritores como propiciador do diálogo entre textos, na formação da nacionalidade de um país e sua representatividade específica no cenário cultural da capital imperial do Segundo Reinado Brasileiro como um dos elementos que contribuíram para a modernização do país.

Roland Barthes convida escritores futuros a seguirem o conselho de Julio Cortázar - começar por traduzir.1 Dois outros escritores latino-americanos, já em época anterior a esse pronunciamento, começaram suas produções literárias pela prática tradutória: Machado de Assis, no século XIX, e Jorge Luis Borges, no século XX. Muito se sabe a respeito de Borges, tradutor, enquanto Machado de Assis é pouco reconhecido nessa atividade. Jean-Michel Massa, valendo-se das fontes para o estudo de Machado de Assis e da bibliografia levantada por Galante de Sousa, é o pioneiro em trabalhar com a tarefa tradutória stricto sensu exercida pelo escritor oitocentista. Sendo um pesquisador da produção juvenil de Machado, a tradução não poderia deixar, de fato, de integrar seus estudos. O que me causou um certo estranhamento foi constatar que a tese complementar, apresentada para a obtenção do título de doutor em Letras pela Faculté des Lettres de Poitiers, intitulada Machado de Assis traducteur, em 1970, não tenha sido traduzida para o português, tendo em vista o ineditismo do assunto abordado. Como ignorar essa atividade tradutória exercida por Machado, que traduziu, de acordo com Massa (1970:11), 45 textos de variados gêneros literários? Desse número, pelo menos dezesseis são traduções de textos dramáticos de Beaurmachais, Musset, Dumas Fils, V. Sardou, dentre outros, além do romance de Victor Hugo, Os trabalhadores do mar. Há fragmentos de Oliver Twist, de Charles Dickens, óperas, contos e poesias, em sua maioria pertencente ao cânone ocidental, tais como Shakespeare, Dante, La Fontaine, Lamartine, Chateaubriand e Poe, além de ensaios. Ressalto que esse estudo de Massa não foi retomado, até onde pude verificar, por nenhum biógrafo, estudioso ou crítico brasileiro2. John Gledson, em seu Machado de Assis e confrades de versos (1998: 7), utilizou esse estudo de Massa como fonte para rastear os originais das poesias canônicas traduzidas por Machado de Assis. Gledson publicou pela primeira vez os poemas de Lamartine a La Fontaine traduzidos por Machado com os originais para que se avaliasse a “perícia do tradutor” (1998: 7), além de tecer uma história em torno dessas traduções que são, para ele, “um aspecto menor de um aspecto menor” (1998: 7) da obra do escritor brasileiro.

Com relação a prática tradutória exercida por Machado de Assis, apenas dois críticos brasileiros alertaram para a lacuna tanto na historiografia literária quanto nos estudos machadianos sobre esse assunto. José Arimatéia Pinto do Carmo, autor do livro sobre as traduções de Capistrano de Abreu (1953), assim se referiu ao fato:

Os pesquisadores de nossa evolução cultural ainda não cogitaram de um estudo sobre a maneira como se conduziram vários de nossos grandes nomes, como tradutores. Seria proveitosa tal verificação porque ensejaria oportunidade para estudar-se tarefa a que se voltaram com carinho ontem: Norberto de Sousa Silva, Odorico Mendes, Ramiz Galvão, Rui Barbosa, Carlos de Laet, João Ribeiro, Machado de Assis, etc... hoje: Monteiro Lobato, Gustavo Barroso, José Oiticica, Sérgio Buarque de Holanda, Eugênio Gomes, Carlos Domingues, Raimundo Magalhães Júnior, além de outros. (...) É estranho, quanto a Rui e Machado, que os seus numerosos biógrafos, alguns minuciosos e competentes, não pesquisassem com maior carinho, e até mesmo omitissem, essa particularidade a que ambos se entregaram (Pinto do Carmo, 1953:10).

Lêdo Ivo, ao comentar sobre a tradução de Machado de Assis do romance Os trabalhadores do mar de Victor Hugo, ressalta também a falta de interesse dos críticos e biógrafos de Machado de Assis por sua práxis tradutória:

As atividades de Machado de Assis como tradutor não têm sido esmiuçadas pelos seus críticos e biógrafos, que se agarram ao exemplo da tradução de “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, contentando-se com esse episódio afortunado e fazendo apenas menções sumárias à parte quase total do ofício. Registra Lúcia Miguel Pereira que ele traduziu, entre 1860 e 1867, nada menos de sete peças teatrais, inclusive O Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, e o romance Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Não são, porém, estabelecidos os vínculos entre autor e tradutor, como se não tivesse havido entre ambos qualquer comunicação ou proveito (IVO, 1976: 51).

A ressalva quanto à falta de interesse pelo papel exercido pela tradução nas culturas em geral, apontada por José Arimatéia e Ledo Ivo, também é assim considerada por Susan Bassnett:

Note-se que, embora a tradução pareça ter exercido um papel importante no desenvolvimento de culturas nacionais, este fato foi quase ignorado por historiadores culturais, e não há absolutamente nenhuma pesquisa sobre a função da literatura traduzida dentro do sistema literário. A Renascença, por exemplo, tem sido geralmente vista como um período de atividade intensa de tradução, embora qualquer levantamento sistemático do que foi traduzido, por que, por quem e como, não ocorreu. Em um ensaio escrito em 1976, Even-Zohar argumenta que certas condições determinam uma acentuada atividade tradutória em uma cultura. Ele identifica três casos principais: quando uma literatura está num estágio inicial de desenvolvimento; quando a literatura for periférica ou “fraca”, ou ambas; quando há momentos cruciais, crises ou vácuos literários em uma literatura (BASSNETT, 1993: 142).3

Compartilhando as percepções de José Arimatéia, Lêdo Ivo e Susan Basnett, meu estudo analisa o envolvimento de Machado de Assis com a atividade tradutória, amplamente praticada no contexto cultural da Capital do Império, devido à predominância de um teatro importado, que propiciava a permanência da presença do tradutor dramático nos bastidores dos palcos fluminenses.

A tradução, à época, era a protagonista da cena cultural do Segundo Império Brasileiro. A ubiqüidade do fenômeno se manifesta não apenas na tradução de romances-folhetim, mas igualmente na tradução de peças teatrais para um tablado efervescente. O teatro traduzido ocupa tanto os espaços públicos das casas de espetáculos, quanto os espaços privados dos saraus literários. Essa intensa atividade tradutória coloca em cena as tensões da coexistência do modelo europeu com a busca de afirmação de uma cultura nacional inerente ao período pós-independência, expressas pelo debate da cor local. O fato de Machado não compartilhar com seus contemporâneos o entendimento de cor local, no sentido dado pelo Romantismo – o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína –, coloca-o em discordância com o momento cultural pelo qual a nação passava no século XIX, em busca de sua própria identidade. Alternativamente, ele elabora o conceito de pecúlio cultural, que implica um diálogo da contemporaneidade com a tradição e uma redefinição da cor local.

Assim, a partir de Even-Zohar, o meu estudo levanta e confirma a hipótese de que a tradução teatral e de romances em folhetins preenche uma lacuna no sistema literário do século XIX. O teatro, por ser uma das principais manifestações culturais da capital imperial, necessitava de um repertório crescente e variado, de forma que o tradutor dramático era peça fundamental para manter os teatros sempre com novidades vindas do estrangeiro. No entanto, esse intenso fluxo tradutório, como o próprio Machado de Assis ressaltava, tinha efeitos paradoxais, uma vez que, ao se buscar preencher a falta de uma produção dramática e romanesca, outras formas de esvaziamento eram geradas, como a inibição do desenvolvimento de uma dramaturgia nacional. Além disso, os binarismos comumente conferidos aos conceitos tradicionais da operação tradutora: cópia e originalidade; fidelidade e infidelidade, são elementos prementes na agenda cultural do período.

Já, nessa ocasião, Machado praticava sua “teoria do molho”, pois acrescentava às suas traduções “os temperos de sua fábrica” e declarava-se eclético em absoluto, ou seja, estava aberto ao diálogo entre literaturas, podendo desse modo ser considerado um comparatista avant la lettre na medida em que seu ponto de vista coaduna com os pressupostos teóricos da Literatura Comparada no tocante ao processo de descolonização dos países colonizados. Embora bebesse nas fontes européias utilizadas como “comida para seus pensamentos”, lembrando um ritual antropofágico, ele ruminava os diversos alimentos e os tranformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que abraçava e defendia. Suplementando a afirmação de Afrânio Coutinho de que Machado, com esses pensamentos, havia gravado num aforismo toda a sua teoria da originalidade (1966: 32), cito uma passagem dos Diálogos e reflexões de um relojoeiro para reforçar essa assertiva: “Já alguém afirmou que citar a propósito um texto alheio equivale a tê-lo inventado”. Além da modernidade desse ponto de vista, Machado já entendia a importância de se saber conviver com as diferenças culturais e de toda ordem quando afirmava que “nem tudo tinham os antigos nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.” (1953, p.148, v. 29). Desfaz-se aí a noção de débito imanente ao intelectual latino-americano, além de apontar para a evolução dos estudos comparatistas que no século XVIII praticava a comparação entre obras literárias clássicas e modernas quando gerou-se a famosa Querela dos Antigos e dos Modernos. Após esta data, como afirma Eduardo Coutinho,

inúmeros foram os casos isolados de escritores ou críticos que, marcados por acentuado senso de cosmpolitismo, realizaram estudos comparativos de autores, obras, movimentos, ou até literaturas de maneira geral: Goethe, Herder, Lessing, Mme. Stäel, os irmãos Schlegel, Henry Hallam e Sismond (2001, p. 955, v. 2).

À essa relação não poderia faltar o nome “Machado de Assis”, que tanto como escritor quanto crítico literário e teatral realizou a análise comparatista dentro da própria literatura brasileira quanto da européia, norte-americana, latino-americana e oriental. E nesse processo, a tradução foi um componente fundamental para a constituição tanto da identidade nacional quanto da identidade do escritor. Começou por “imitar” o poeta inglês, William Cowper (1790), ao “traduzir” o poema “On the receipt of my mother’s picture” em 1856, e de uma peça teatral La chasse au lion, de Vattier et De Najac em 1860, quando enfrentou “a dialética do começo e de origem”, ao adotar

uma estratégia discursiva na qual não se nega jamais o vigor da origem e, contudo, não se desautoriza a possibilidade de um novo começo. Trata-se da estratégia de manter um equilíbrio entre começo e origem e que poderia ser caracterizada como a estratégia de apropriação, particularmente visível em sua atividade como tradutor (BELLEI, 1992: 89).

Das traduções que realizou no início de sua carreira literária, a do ensaio “Queda que as mulheres têm para os tolos” foi uma das mais significativas, pois esta lhe serviu de inspiração para a escrita de sua primeira peça teatral, Desencantos (1861) e por cadeia, dos romances Ressurreição (1872) e Dom Casmurro (1899/1900), já que todos esses textos abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito e um homem de juízo. Como, segundo Helen Caldwell (1960: 19), o “germe” de Dom Casmurro, considerado uma adaptação de Otelo, de William Shakespeare, para a cena contemporânea brasileira, pode-se concluir que o romance mais polêmico do escritor brasileiro tem por modelo a “teoria amorosa” traduzida por Machado, em 1861.

Machado de Assis, em todas as traduções que fez, “se permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser um ofício de menor valor que qualquer outro na carreira de um escritor, embora assim continue a ser considerado e, respeitando o original, sem servilidade, exerceu essa atividade durante toda a sua carreira literária (1856 a 1908). Sua atuação enquanto tradutor e crítico-teórico dessa prática se constituiu pela contradição, pois ao mesmo tempo em que traduzia peças teatrais, por exemplo, considerava o tradutor dramático um entrave para o surgimento de talentos nacionais. Em crítica teatral de 1859, comparara esse tradutor a uma entidade, uma espécie de criado de servir que passava de uma sala a outra os pratos de uma cozinha estranha. “Ainda mais essa!”, exclamava. (1953, p. 17, v. 29).

De acordo com Susan Bassnett, “o tradutor como escravo ou servo do texto original é uma metáfora poderosa que adentra o século XIX. Implícita nessa metáfora está a idéia de dominação do autor do texto-fonte sobre o texto-alvo subserviente” (BASSNETT, 1993: 147).4 Essa definição refere-se à transposição de uma língua para outra, no sentido estrito do “modelo esquemático da tradução”. A definição de Machado, lato sensu, refere-se à subserviência do tradutor dramático em atender às demandas do mercado empresarial teatral, com a qual não concorda. Para Machado, quando parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro, uma tradução deve ser bem elaborada, devendo o tradutor ter conhecimento das duas línguas que traduz, independentemente de se tentar fazer uma tradução “literal”, pois o movimento em si, de passar de um idioma para outro, já torna essa pretensão de espelhamento impossível. Segundo George Steiner,

O modelo esquemático da tradução é o de uma mensagem proveniente de uma língua-fonte que passa através de uma língua-receptora, depois de ter sofrido um processo de transformação. A escolha reside no fato evidente de uma língua diferir-se da outra, e para que a mensagem consiga “passar” é necessário que se dê essa transformação interpretativa que algumas vezes é descrita, embora nem sempre com acêrto, em termos de codificação e descodificação.5

Servir é viver ou trabalhar como servo, aquele que se põe à disposição de alguém, que exerce as funções de criado, assim como o tradutor dramático prestava serviços de tradução aos empresários teatrais, auxiliando-lhes, sendo-lhes útil na medida em que contribuíam para manter as casas de espetáculos abertas. Tal servilidade era vista, pelo menos naquele momento, como negativa para Machado por colaborar para estagnação do teatro brasileiro e, conseqüentemente, com o atraso cultural da nação.

Analogamente, a tradução depende dos “mecenas”, da patronagem, conforme a teorização de André Lefevere, ou seja, os “poderes (pessoas, instituições) que auxiliam ou impedem a escrita, leitura ou reescrita da literatura”. A patronagem

envolve outros elementos, como o ideológico, o econômico e o de status (...) e pode ser exercida por pessoas, classes sociais, editores, a mídia, etc., que geralmente atuam através de instituições que regulam a escrita e a distribuição da literatura: academias, periódicos de crítica, o estabelecimento educacional, etc. (Lefevere, 1985: 227-228).

A questão da servidão do “criado de servir” coaduna-se também com o parasitismo de toda ordem – social, econômico e literário no Brasil oitocentista, podendo ser relacionada com a prática tradutória na medida em que esta, por viver em situação de dependência do texto original, sem produzir de fato um trabalho, por ser vista como tarefa improdutiva ou por depender de uma patronagem, pode ser elucidada através das crônicas de “Aquarelas” que Machado de Assis escreveu em 1859, no mesmo ano em que definiu a atuação do tradutor dramático.

A associação do tradutor a um parasita remete à distinção entre trabalho produtivo e improdutivo na medida em que se considera o traduzir como um trabalho, este seria classificado como improdutivo por não exigir nenhum esforço do tradutor, que já tem o texto pronto, escrito pelo autor do original, sendo assim um “criado servil” parasítico, como pensavam Smith e Marx a respeito da improdutividade. Segundo Hannah Arendt:

tanto Smith quanto Marx estavam de acordo com a moderna opinião pública quando menosprezavam o trabalho improdutivo, que para eles era parasítico, uma espécie de perversão do trabalho, como se fosse indigno deste nome toda atividade que não enriquecesse o mundo. Marx certamente compartilhava do desprezo de Smith pelos “criados servis” que, como “convivas ociosos... nada deixam atrás de si em troca do que consomem.” No entanto, todas as eras anteriores à era moderna, ao identificar o trabalho com a escravidão, tinham em mente precisamente esses criados servis, esses caseiros, oiketai ou familiares, cujo trabalho era exigido pela mera subsistência e que eram necessários para o consumo isento de esforço, e não para a produção (Arendt, 1986: 97-8).

Já para Theo Hermans (1985: 103-135), a servilidade do tradutor está diretamente vinculada à noção de fidelidade ao original, revelando hierarquias análogas às do agregado com a família que o acolhia, ou do escravo ao seu senhor. Sobre o uso das metáforas pelos tradutores, Hermans escreveu o ensaio “Images of Translation – Metaphor and imagery in the Renaissance Discourse on Translation” (1985), no qual “demonstra que naquele período as concepções de literatura, tradução e imitação consistiam em uma relação paradoxal umas com as outras. A tradução era vista como uma forma particular e restrita de imitação (1985: 103). A definição de Machado de Assis para o tradutor dramático também reflete, através das metáforas de servilidade, não apenas a condição subalterna do tradutor, mas o cenário brasileiro contraditório de uma situação de pós-independência e escravocrata ao mesmo tempo.

Nesse contexto contraditório, Machado de Assis como escritor do seu tempo e do seu país não deixou de contribuir para a permanência dessa situação. Por subtração, ele elaborou uma teoria da tradução, que em muitos aspectos assemelha-se às teorias de tradução desenvolvidas a partir da década de 70 do século XX, notadamente com relação ao entendimento pós-moderno de tradução proposto por Else Vieira em sua tese de doutorado – Por uma teoria pós-moderna da tradução (1992). Apoiando-se em teóricos da tradução como Susan-Bassnett, André Lefevere, Jorge Luis Borges, os irmãos Campos, Derrida, dentre outros, Vieira considera, por exemplo, a ficção como nova fonte de teorização para a tradução. Sua hipótese pode ser confirmada pela análise que fiz do romance Dom Casmurro, de acordo com os pressupostos teóricos apresentados por ela. Nessa perspectiva tradutológica, a “história de amor” de Bento Santiago e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das principais peças teatrais do dramaturgo inglês. Leitor voraz dos textos shakespeareanos, Machado embebeu-se nas lições do mestre e escreveu seu romance mais lido e estudado pelos leitores comuns e especializados, conseguindo atar, finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, que se estendeu até a sua velhice, e a de romancista, já maduro, ao revelar ou desvelar, ao colocar a descoberto a veia teatral que sempre o acompanhou como as “inquietas sombras” do Fausto.

Para concluir, gostaria de citar alguns ensaístas, críticos e teóricos que demonstram a importância da tradução para Teoria Literária e Literatura Comparada:

As literaturas servem de códigos lingüísticos diversos, e só se comunicam, em grande escala, através de traduções. Paradoxalmente, como adverte o crítico francês, René Etiemble, o sonho de uma “Weltliteratur”, uma literatura realmente universal, dependerá cada vez mais do progresso dessa arte tão menosprezada – a tradução (Onélia BARBOSA, 1975: 28).

O conceito de tradução, que há muito se tem infiltrado no campo da Teoria da Literatura, é um dos termos que tem enriquecido o campo literário e ampliado sua atuação. Seu sentido remete não apenas à prática usual da tradução, a transformação interlingual de um texto em outro, mas também ao processo de leitura e reescrita de um texto, aproximando-se do significado amplo de intertextualidade. Grande número de estudiosos confirmam a estreita aliança entre a operação que recai na paráfrase, no plágio ou na paródia (Eneida Maria de SOUZA, 1993: 34-35).

É um truísmo afirmar que a questão da tradução literária não se esgota apenas nos conhecimentos lingüísticos. O tradutor, ele próprio, também é um intérprete crítico dos conteúdos culturais, onde podem ser encontrados fatores extralingüísticos, pois a língua é apenas um dos elementos utilizados na criação literária. Questões como gênero, tema, época, às vezes mais relevantes, podem influir no processo tradutório. A tradução tem grande interesse para a Literatura comparada nos estudos de recepção, que aferem o acolhimento obtido pela obra traduzida. A análise da recepção estética abrange o levantamento da fortuna crítica, isto é, o grau de aceitabilidade junto ao público leitor e a avaliação dos processos utilizados na tradução (Gentil de FARIA, 1996: 124).

A tradução permite considerar o escritor, a língua e o público sob um ângulo novo: o tradutor, dividido entre a submissão ao texto e seu temperamento, entre a crítica e a criação; o público, cujas exigências devem ser cuidadas mais que de costume, porque, postas à parte as traduções clandestinas executadas a título de exercício de estilo ou de testemunho de amor por uma obra estrangeira, a tradução corresponde sempre a uma violenta necessidade de publicidade, e, sem escrúpulos, proclama-se comercial e cosmopolita (BRUNEL, 1990: 133).

Como bem lembra Tânia Carvalhal, Van Tieghem,

ao empregar o termo “passage”, evoca metaforicamente a situação intervalar da Literatura Comparada que se coloca “em meio a”, registrando sua característica essencial. Sabemos todos que aquele autor logrou fixar em seu manual pioneiro o que era usual na prática corrente: o estudo da natureza dos empréstimos e sua história (CARVALHAL, 1991: 10).

Analogamente, o ato tradutório também se efetiva por esse rito de passagem assim como o da Literatura Comparada posicionando-se no “entre-lugar” entre a língua de partida e a de chegada. Grandes escritores, como Machado de Assis, ao praticarem essa “ponte necessária” para suas criações, valeram-se dos empréstimos para construírem seus próprios textos, pois o processo tradutológico implica a importação de um outro código lingüístico que será transformado em uma linguagem própria. Susan-Bassnett, em seu livro Comparative Literature – a critical introduction (1993), comentado por Carvalhal “chama atenção para a importância dos cross-cultural works, nos quais avulta o interesse pelas traduções”. Para Carvalhal,

no exame dos processos de transferências culturais, os estudos de traduções, juntamente com as teorias sobre a tradução, tornam-se relevantes, na medida em que traduzir ilustra o próprio processo estético. Por outro lado, a transcendência de fronteiras culturais, implícita nesse processo, encaminha para outras indagações e novas abordagens metodológicas. Muitas vezes essas são fornecidas pelos estudos de gênero e pelos estudos interculturais (1996: 16-17),

Mediante o exposto, termino com uma citação de Machado de Assis para demonstrar o quanto seus pressupostos teóricos aproximam-se do conceito atual de Literatura Comparada no tocante à mobilidade e a amplitude da área com “inúmeras possibilidades de xploração, que deixou de lado o anseio totalizador de suas fases de formação e consolidação, e se ergue como um diálogo transcultural calcado na aceitação das diferenças e numa visão de mundo em que categorias como as de centro e periferia sofreram significativa reestruturação”, como afirma Eduardo Coutinho (2001, p. 956. v. 2).

“A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso está a condição de sua vitalidade”. 6
Machado de Assis.

NOTAS

1 - Ver BRUNEL, 1990, p. XIX.

2 - Caso algum pesquisador tenha informações sobre o assunto, ficarei agradecida pela contribuição.

3 - No original: Noted that although translation appeared to have played a major role in the development of national cultures, this fact was almost ignored by historians of culture, and there is no research at all on the function of translated literature within a literary system. The Renaissance, for example, has generally been perceived as a time of intensive translation activity, yet any systematic assessment of what was translated, why, by whom and how had not taken place. (...) In a paper written in 1976, Even-Zohar argues that certain conditions determine high translation activity in a culture. He identifies three major cases: when a literature is in an early stage of development; when a literature perceives itself to be peripheral or ‘weak’ or both; when there are turning points or crises or literary vaccums (in: BASSNETT, 1993: 142).

4 - Tradução de Marie-Anne Kremer: “the translator as slave, the servant of the source text, is a powerful metaphor that endures well into the nineteenth century. Implicit in this metaphor is the idea of dominance of the source text author over the subservient target text”.

5 - El modelo esquemático de la traducción es el de un mensaje proveniente de una lengua-fuente que pasa a través de una lengua-receptora, luego de haber sufrido un proceso de transformación. El escolho reside en el hecho evidente de que una lengua difiere de la outra, y para que el mensaje logre “pasar” es necesario que se dé esa trasnformación interpretativa que algunas veces es descrita, aunque no siempre com acierto, en términos de codificación y descodificación (1995: 50).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARBOSA, Onédia Célia de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1975.
BASSNETT, Susan. Comparative literature: a critical introduction. Oxford: Blackwell, 1993.
BELLEI, Sérgio Luiz Prado.
Nacionalidade e literatura: os caminhos da alteridade. Florianópolis: Editora DAUFSC, 1992.
BRUNEL, P., PICHOIS, CL., ROUSSEAU, A. M. Que é literatura comparada? Trad. Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1990.
CALDWELL, Helen. The brazilian Othello of Machado de Assis: a study of Dom Casmurro. Berkeley: University of California Press, 1960.
CARVALHAL, Tânia F. Literatura Comparada: a estratégia interdisciplinar. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada. Niterói: ABRALIC, 1991. v. 1, p. 9-21.
CARVALHAL, Tânia F. Literatura Comparada e literaturas estrangeiras no Brasil. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada. Rio de Janeiro: ABRALIC, 1996. v. 3, p. 55-65.
COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis na Literatura Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1966.
COUTINHO, Eduardo. Literatura Comparada. In: ENCICLOPÉDIA DE LITERATURA BRASILEIRA. 2. ed. São Paulo: Global Editora, 2001. V. 2, p. 954-957.
EVEN-ZOHAR, I. Polysystem theory. Poetics Today. n. 1, v. 11, p. 7- 94, 1990.
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FERREIRA, Eliane F. C. Machado de Assis: teórico do traduzir, por subtração? 2001. 255 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas, Belo Horizonte.
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LEFEVERE, André. Why waste our time on rewrites? The trouble with interpretation and the role of rewriting in an alternative paradigm. In: HERMAN, Theo (Ed.). The manipulation of literature: studies in literary translation.
London: Croom Helm, 1985.
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PINTO DO CARMO, José Arimatéia. Capistrano de Abreu e as suas traduções. Rio de Janeiro: Pongetti, 1953.
SOUZA, Eneida Maria de. Traço crítico. Belo Horizonte: Editora da UFMG; Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1993.
STEINER, George. Después de Babel: aspectos del lenguaje y la traducción. 2. ed. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1995. p. 215-243.
VIEIRA, Else Ribeiro Pires. Por uma teoria pós-moderna da tradução. 1992. 265 f. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

6 - Essa citação foi retirada do Dicionário antológico machadiano – Idéias e imagens de Machado de Assis de Raymundo Magalhães Júnior (1956, p. 216).  [topo da página]

# Eneida Menna Barreto - A Literatura como representação da História
O protagonista, Dr. Olímpio, figura carismática e contraditória é apresentado por um narrador onisciente. Exerce na vida pública a função de político, embaixador e ministro. E, no entanto, na vida privada, mostra-se incapaz e frágil com seus afetos. Em muitas situações, sua vida parece ser superficial, ficcional, representada e não a vivida na realidade. Os arroubos de paixão reserva-os para a política e para a amante da vida toda: Urânia (Nini).

A hierarquia social, contaminada pelos ares da época, tem mais evidência nos papéis femininos. Sempre um narrador perspicaz possibilita ampla visão das personagens, dos fatos, dos costumes, das vestimentas, conferindo veracidade ao relato: "Lembrado então de que ainda não possui um retrato da esposa, Olímpio telegrafa a Pelotas, chamando o pintor Frederico Trebbi ". (Pedra da Memória, p.318)

Tanto a mãe de Olímpio, Dona Plácida, quanto a esposa, Charlotte, a condessa austríaca, manifestam a inadequação ao meio. Ambas cultas, e dominando mais do que a língua materna, priorizam as leituras no sentido de ultrapassar a solidão e como um modo de acentuar a distância cultural que as separa do meio social. A Condessa, fechada em si mesma, nega amor ao marido e aos filhos.

A individualidade marca o mundo masculino nas suas relações familiares, salientando ressentimentos de um convívio superficial. Cada personagem locomove-se dentro de uma lógica irônica, hostil. O ponto de observação do narrador favorece esse tipo de olhar crítico, com autonomia, para perceber as animosidades.

Ligados à família de Olímpio, e tendo, de certo modo, seus destinos traçados, Astor, Proteu e Páris fazem parte de um opulento mundo material, embora frio, nas relações humanas. Astor, cuja falta de consciência não lhe possibilita dar um sentido à vida, visualizando-a como ela é, consome álcool, deixando as coisas acontecerem. Encarna a decadência familiar e, no entanto, nada o detém em ressaltar o ridículo das situações. Proteu expõe, com seu comportamento, aquilo que não era para ser revelado: sua homossexualidade latente. Dessa forma, afronta os princípios da sociedade viril em que vivia. Páris, narrador de si mesmo, relata sua trajetória, de forma, às vezes, hilariante e irônica. Neto bastardo de Olímpio, filho de sua única filha Selene (esta enlouquece ao dar à luz), sabe tirar proveito da posição que ocupa. Seus elos familiares são superficiais, quase fictícios, isentando-o de qualquer comprometimento afetivo que o impossibilite de agir como age: com ironia, com descaso, desvalorizando a opinião alheia à respeito de si mesmo. A delimitação do espaço físico que lhe coube, como herança, está em oposição à sua voz narrativa que desvenda mistérios e revela as impurezas das vidas que o cercava: os dez metros que lhe destinaram ao redor do Castelo, tem o contraponto de sua audácia de narrador. Todavia, modificará seu comportamento, quando o afeto entrar em seu coração, através da tia, Beatriz.

As sombras do Castelo iluminam o relato. O leitor, entre fascinado e estarrecido vê, sente e ouve, na concretude da narrativa, o movimento das personagens: materializadas, com sentimentos capazes de romper a passividade e despertar a sensibilidade.

Nesta trilogia, Assis Brasil não faz somente o resgate da História do Rio Grande do Sul e, por extensão, a do Brasil. Suas personagens instigam a reflexão sobre a existência humana, sobre as relações familiares, sobre as possibilidades não realizadas, estimulando o leitor a participar do processo de construção do sentido da narrativa, problematizando o texto, pondo em xeque a verdade histórica. O romance passa a ser visto não ele próprio como irônico, mas, também, como sendo a ironia da própria História.

Bibliografia:
ARISTÓTELES. A Poética Clássica. São Paulo: Cultrix,1995.
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio. Perversas Famílias. 3. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
ASSIS BRASIL. Pedra da Memória. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio. Os Senhores do Século. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica : Obras Escolhidas. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
CESAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1956.
CHAVES, Flávio Loureiro. História e Literatura. 2.ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.
CHIAPPINI, Lígia, AGUIAR, Flávio Wolf de. Literatura e História na América Latina. São Paulo: EDUSP, 1993.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
ISER, Wolfang. Teoria da Literatura em suas fontes. 2.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. v.II: Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1969.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Ed. da UNICAMP, 1994.
LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imáginário. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.7.
WHITE, Hayden. Meta-História : A imaginação Histórica do Século XIX. 2.ed. São Paulo: EDUSP, 1995.
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura. São Paulo: EDUSP, 1994. 
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# Gilda Bittencourt - Fronteiras do Conto como Gênero e Representação
Dentro da proposta de Linha de Pesquisa Limiares Críticos do GT de Literatura Comparada, a nossa intervenção tem a finalidade de relacionar aspectos da pesquisa individual, que desenvolvemos atualmente, com um dos tópicos escolhidos para definir o embrião do projeto integrado da Linha, que, aqui no caso, é "A representação como Mediação".

A referida pesquisa está centrada no conto literário contemporâneo do Brasil das décadas de 70 a 90 do século XX, e o objetivo principal que temos perseguido ao longo dela é identificar concepções de conto, através da leitura analítica da produção ficcional de contistas brasileiros, e do discurso crítico sobre o gênero.

A focalização neste tema tem nos levado a analisar mais de perto a real situação do gênero em nosso país e a ampliar o conhecimento sobre a própria teoria do conto, cujo embrião se localiza, indiscutivelmente, nas idéias de Edgar Allan Poe, que fermentaram idéias e conceitos, solidificados e desenvolvidos, particularmente, nos âmbitos das críticas norte e latino-americanas ao longo do século XX. Por outro lado, o assunto também nos levou a investigar a crítica brasileira sobre o conto, tentando sistematizá-la em torno de certas questões recorrentes nos estudos, ensaios e artigos que tratam do gênero, sobretudo aqueles publicados em jornal.

Esta visão mais ampla sobre a situação do conto e da sua crítica em nosso país, tem nos possibilitado, também, estabelecer, de forma mais consistente, relações com a contística e com o discurso crítico latino-americanos e a refletir sobre certas questões de ordem teórico-crítica que vem surgindo ao longo das leituras, sobre as quais temos elaborado trabalhos apresentados em diferentes ocasiões, em eventos nacionais e internacionais. Estes problemas são de várias naturezas, mas, de um modo geral, se relacionam aos modos de apresentação e de organização interna dos relatos, à participação do conto na configuração das literaturas nacionais da América Latina, à identidade do gênero e suas transgressões e às reflexões dos próprios contistas em torno do conto.

O tópico que aqui desejamos apresentar de forma sintética resulta, da mesma forma, de observações e leituras de narrativas curtas, brasileiras e latino-americanas contemporâneas, e que dizem respeito às rupturas e às infrações às convenções tradicionalmente associadas ao gênero e à problematização do conceito de representação.

O fato de pertencer ao gênero narrativo faz com que a concepção de conto demande uma série de requisitos necessários ao seu reconhecimento enquanto tal. O primeiro deles é de que ali se conte uma história, pressupondo, com isso, a existência de um enredo onde os fatos se interligam numa seqüência causal e cronológica, capaz de produzir transformações, de tal sorte que o final da narrativa represente sempre uma mudança em relação à situação inicial. Esta noção de transformação também está ligada a uma outra característica das narrativas em geral que é o seu caráter teleológico, na medida em que os fatos se organizam na história com vistas ao seu futuro desfecho. As narrativas também costumam definir um espaço, físico e social, onde se desenrolam as ações e onde atuam as personagens, seres ficcionais, semelhantes a nós, que agem no sentido de concretizar as transformações, motivadas por um desejo, uma vontade ou um objetivo (concreto ou abstrato) capaz de movê-las e de fazê-las prosseguir nessa busca.

Outro elemento importante é a presença de um narrador, sujeito enunciador do relato, cujas escolhas quanto ao ângulo, distância e modos de narrar interferirão fundamentalmente sobre a natureza do narrado, condicionando, inclusive, a maior ou menor confiabilidade da sua narração perante o leitor.

Ao lado dessas questões de gênero, aqui apenas esboçadas, o conto, como narrativa, prevê uma noção de representação, onde as palavras desempenham a função simbólica de remeter a uma outra realidade e de construir um sentido para este mundo criado pela linguagem. Esta noção, originada no ancestral conceito de verossimilhança aristotélico, estabelece a relação da obra literária com o real possível, mas não necessariamente verdadeiro, já que, como fruto da imaginação do artista, cria seu próprio universo ficcional. Ao lado disso, o conceito aristotélico também diz respeito à verossimilhança interna, relacionada à coerência com o social e culturalmente aceito e à interligação entre as partes da obra .

Todas essas questões estão também nos fundamentos do Realismo, não como corrente estética oitocentista, mas como concepção intemporal, onde o ponto comum é a adesão ao real e a credibilidade do que é narrado, sugerindo com isso que as coisas, os fatos e as pessoas ali presentes derivam diretamente da estrutura do mundo. Segundo Jonathan Culler, o realismo também trabalha com a "verossimilhança cultural", por remeter a práticas que fazem parte do nosso mundo social, além de ser ilustrativo das concepções do gênero correspondente, no caso, o narrativo (In: MARTIN, Wallace. Recent Theories of narrative, p. 67-68), reforçando assim a ligação entre a noção de representação, o realismo e a verossimilhança.

Se partirmos da idéia de que a identificação de uma narrativa está condicionada ao acatamento das convenções (referidas sinteticamente acima) e do conceito tradicional de representação, muito da produção literária contemporânea não poderá mais ser considerada verdadeiramente uma narrativa e, nesse sentido, o conto literário é uma das modalidades em que esse processo desconstrutor mostra-se bastante freqüente.

Não são poucos os casos, nas contísticas brasileira e hispano-americana que temos analisado, de textos que subvertem totalmente as convenções acima referidas, no que tange a aspectos mais formais como enredo, temporalidade, espaço, focalização, voz narrativa e personagem, mas que também contrariam aquela idéia de transformação, de compromisso com o real e o culturalmente aceito.

Assim, a questão do enredo e suas implicações na seqüência lógica e temporal dos acontecimentos fica comprometida em narrativas de autores como Clarice Lispector, João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu, onde a interligação dos fatos segue um fluxo interior e subjetivo, dominado pela emoção ou pelas sensações daquele que narra, ou então onde o relato se resume a um instantâneo da realidade, desvinculado de um fluir temporal que preveja um antes ou um depois. O mesmo acontece em contos totalmente fragmentários, constituído de várias cenas, aparentemente aleatórias e sem ligação (principalmente em João Gilberto Noll).

Da mesma forma, a idéia de que o conto representa um real possível e convencionalmente aceito, social e culturalmente, fica subvertida em histórias fantásticas, em que a transição entre real e irreal é incorporada, sem choques, ao fluir natural dos acontecimentos, como acontece nas narrativas dos brasileiros Murilo Rubião, José J. Veiga e Moacyr Scliar e nas obras de inúmeros contistas hispano-americanos.

A mistura de planos narrativos extra e intradiegéticos, a discussão da própria ficcionalidade do que está sendo narrado, ou do gênero do texto, a composição polifônica que incorpora discursos variados em que se confundem a História, a biografia, o ensaio, o diário e a própria ficção, simulando, irônica e parodisticamente, um registro erudito ou científico através de citações e alusões bibliográficas, são algumas das características da chamada metaficção, igualmente uma das formas de romper com as convenções do gênero narrativo identificadas em contos latino-americanos contemporâneos. Nesse caso, porém, o que se observa no confronto entre as contísticas brasileira e argentina, por exemplo, é uma maior incidência dessa prática entre representantes da última - como Cortázar, Borges e Ricardo Piglia, citando apenas os mais conhecidos - do que em escritores brasileiros, onde os exemplos são bem mais esporádicos. Tal diferença merece, sem dúvida, uma investigação mais demorada.

Nessa breve exposição, pretendemos não só mostrar o estado atual da nossa pesquisa, mas também esboçar alguns pontos possíveis de intersecção com o tópico proposto pela Linha, indicando formas de desenvolvê-los no sentido de uma convergência produtiva e teoricamente pertinente; ao mesmo tempo, esperamos abrir possibilidades de diálogo e trocas que sejam enriquecedoras para a construção de um projeto integrador que represente, de fato, os rumos do pensamento teórico-crítico deste grupo de pesquisadores.

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# Gustavo Bernardo1 - A Fronteira da Palavra
"The world is but a word" - William Shakespeare

Shakespeare já dissera, em Tímon de Atenas: o mundo é não mais do que uma palavra.

A declaração põe sob suspeita todas as palavras e, por via de conseqüência, as nossas ciências. As palavras de Shakespeare e, por extensão, as palavras da literatura, põem sob suspeita tudo aquilo que chamamos de "realidade". Como a ciência se mostra, a cada época, insuficiente, a ficção comparece como via indireta de acesso à realidade, uma vez que as vias diretas esbarram em becos epistemológicos. Entretanto, a ficção se define como antônima da realidade, o que a mantém em situação de paradoxo permanente.

Vamos examinar essa fronteira tentando vê-la na interface, ou na passagem, entre dois campos fraternalmente bélicos: ficção e filosofia. Como esses campos são ligeiramente imensos, tentemos restringi-los partindo do pensamento do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, que procurou construir toda a sua obra como uma ficção filosófica. Flusser atravessava as fronteiras não apenas entre a filosofia e a ficção, mas também das línguas que dominava - alemão, português, inglês e francês: traduzia-se e retraduzia-se constantemente, buscando mudanças radicais de perspectiva, ao mudar a língua em que escrevia.2

Filosofia e ficção parecem que são irmãs: odeiam-se quando muito próximas, sentem falta uma da outra quando distantes. Platão e Aristóteles são os casos emblemáticos: embora o primeiro tenha procurado expulsar os poetas da sua República ideal e o segundo os tenha acolhido, aquele é que era o verdadeiro poeta. Desde então, alguns filósofos flertaram com a ficção. Como parte desse grupo, Wittgenstein chegou a sugerir que convinha fazer filosofia como poesia.

Vilém Flusser tentou atender à recomendação de Wittgenstein. O filósofo praguense escrevia simultaneamente (isto é, traduzia a si mesmo) em alemão, português, inglês e francês. Pensava a literatura buscando aproximar a filosofia da ficção. Vilém refletia sobre a literatura como se fizesse epistemologia, isto é, pensando sobre o próprio pensamento. Se a literatura suspende a relação entre a palavra e as coisas a um nível imaginário, semelhante ao real mas jamais real, então a teoria da literatura se obriga a suspeitar da "realidade" do que chamamos... realidade.

A metáfora da caverna, em Platão, já promovia a ligação, ao mesmo tempo produtiva e conflituosa, entre a ficção e a filosofia. Flusser explora esta ligação no artigo "Da ficção", publicado em 1966. Muitos pensadores teriam vivenciado o mundo como ficção enganadora, dos platônicos aos românticos, mas na pós-história estaríamos vivenciando a ficção como a única realidade; o mundo que nos cerca parece ele mesmo ficção.

No entanto, dizer "ficção é realidade" implica contradição entre termos, se um termo se define como a negação do outro. Para pensar essa contradição, Vilém partiu da mesa sobre a qual repousavam os seus livros, entendendo que aquela mesa era uma ficção chamada "realidade dos sentidos". A mesma mesa, considerada sob o aspecto da física teórica, seria um campo gravitacional quase vazio sobre o qual flutuariam outros campos chamados "livros". Este aspecto, no entanto, seria também outra ficção, a que se poderia chamar: "realidade da ciência exata". Dependendo do ponto de vista a mesa é ora sólida, ora oca. Perguntar qual dos pontos de vista é mais "verdadeiro" carece de significado. Dizer "ficção é realidade" implica afirmar a relatividade e equivalência de todos os pontos de vista possíveis.

E se fosse possível eliminar os pontos de vista possíveis para contemplar a essência da mesa? Restaria, nesse caso, apenas "intencionalidade pura". A rigor, a mesa pode ser definida como a soma dos pontos de vista que incidem sobre ela, ou como a soma das ficções que a modelam, ou ainda como o ponto de coincidência de ficções diferentes. Se conseguíssemos eliminar essas ficções como camadas de uma cebola, restaria o mesmo que na cebola: nada. Não há centro. O raciocínio leva a abismo que provoca vertigem.

A maneira como Flusser pensa a literatura ajuda a pensar o abismo. Vilém reconhece duas maneiras de apreciar literatura: ou como resposta, ou como pergunta. No primeiro caso, a obra literária é percebida como resposta a contexto ou texto anterior - quando se tenta medir o abismo para controlá-lo. No segundo caso, a obra literária é percebida como pergunta ao leitor - quando se tenta descer no abismo para vivenciá-lo. O filósofo prefere descer no abismo.7

Abraham Moles, que reconhecia em Vilém Flusser um dos mais importantes filósofos brasileiros, via no seu pensamento a alternativa entre a sistematicidade do tratado e a fluência do ensaio. A esta alternativa chamou de "ficção filosófica". Ao ler a fábula que Flusser escreveu, Vampyrotheutis infernalis, Moles percebeu a brecha pela qual se podiam relacionar vida e filosofia.8

Para o filósofo, o fabuloso é o limite do imaginável. As fábulas flusserianas são experiências em sentido estrito, sem garantia prévia do resultado. Elas tentam religar os campos da ciência, da filosofia e da poesia, tornados estanques pela modernidade. Por isso, Moles via a obra de Vilém Flusser como science fiction, embora de maneira diversa da ficção científica que nos acostumamos a reconhecer nos seriados televisivos: não se trata de ficção da ciência, mas sim de ciência como ficção.

Rainer Guldin esboça hipótese complementar à de Moles: "Flusser via a si mesmo, no começo, como um escritor de textos literários, mas logo considerou que a melhor coisa para ele era ser um escritor de ensaios. Ainda que tentasse escrever de um modo mais literário, seu estilo como que hesitava até se tornar um pouco pomposo, quase kitsch"9. Suas tentativas de ficção "pura" esbarravam numa certa grandiloqüência que incomodava antes a ele mesmo. Escrever ensaios seria uma maneira de cortar esta tendência, esforçando-se para disciplinar o caos que emprestava força a seu estilo.10

A hipótese de Guldin chama a atenção para a luta interna de Flusser, no corpo mesmo do seu texto, entre o escritor e o filósofo - entre a ficção e a filosofia. A luta interna de Vilém Flusser não manifesta apenas a crise moderna das ciências e, extensivamente, da realidade; é como se ela nos alertasse da necessidade de lutar dentro de si mesmo e da língua, e não contra alguém ou algo.

Entretanto, semelhante ênfase na ficção é perigosa: pode conduzir tanto ao relativismo paralisante quanto à obsolescência da literatura. Se os discursos dos políticos e as falas dos locutores de telejornais se mostram estruturados por técnicas ficcionais, o circo e o show deixam de ser necessários à vida porque a vida passa a ser um show. O fenômeno foi comentado por Benjamin, que temia a estetização da política, e por Guy Debord, que criticou a sociedade do espetáculo. No filme Maridos e esposas (1992), dirigido por Woody Allen, o personagem representado pelo próprio diretor afirmava que "a vida não imita a arte - imita maus programas de televisão". Mostrava como a ficção pode denegar a realidade, ou melhor: como qualquer ficção, literária ou política, pode ter como objetivo eliminar as outras ficções e as outras realidades.

A objeção, porém, tem sofrido de simplificação excessiva. Alguns pesquisadores se apoiam no caso do historiador alemão Ernst Nolte, que levantou dúvidas a respeito da verdade do Holocausto, para refutar relacionamento mais estreito entre ficção e filosofia. Se tudo é ficção, ora, então Auschwitz é ficção; se Auschwitz é ficção, ora, então ou Auschwitz sequer existiu, ou, na melhor das hipóteses, não foi tão sério assim (não matou tantos judeus assim). Como a conclusão é claramente absurda, deduz-se que dizer que "tudo é ficção" seria um equívoco grave. Em conseqüência, a ficção filosófica, indistinguindo os campos, não seria fecunda. 11

O ponto fraco da objeção é pensar a ficção com conotação pejorativa, em oposição à realidade, que teria conotação ontologicamente positiva. Ainda que "a fumaça dos acontecimentos nuble a visão dos contemporâneos", como pensava Braudel, os documentos dos próprios arquivos nazistas atestam a tragédia dos campos de concentração. Supor Auschwitz como ficção não implica supor, de modo algum, que Auschwitz não existiu, porque implicaria supor ficção como igual a nada. O que se quer dizer é diferente e não implica relativismo fácil: afirmamos que Auschwitz e Hiroshima existiram inicialmente como ficções que se disfarçaram de verdades únicas, modelos de mundo que fingiram que não eram modelos mas sim o próprio mundo. Por isso, seus efeitos foram tão devastadoramente reais.

Loucura, então, não é entender que ficção seja realidade, que Auschwitz ou a bomba sejam ficções. A loucura reside na reificação da História e dos acontecimentos, horrorizando-se perante Auschwitz sem percebê-lo como um sintoma da sociedade do aparato que transforma todos em funcionários de uma função. Esta sociedade aperfeiçoa seu controle para dispensar até mesmo os controladores. Auschwitz não foi apenas um crime contra os judeus, foi um crime contra a humanidade. Nos termos de Flusser, Auschwitz não foi sequer apenas um crime contra a humanidade, porque representou uma conseqüência lógica do pensamento ocidental, isto é, da fé linear e absurda no progresso.

Logo, é preciso suspeitar das crenças que fabularam Auschwitz e Hiroshima; é preciso suspeitar de quaisquer crenças que fabulam sínteses totalitárias como se não fossem fábulas, para recuperar a fé: a fé na realidade.

Ficções são modelos necessários, porque sem eles não se tem acesso à realidade. Por isso, o filósofo preferia enxergar não apenas a obra literária como pergunta: a realidade também seria um espantoso ponto de interrogação. O conhecimento é uma relação concreta da qual o conhecedor e o que se conhece são suas extrapolações abstratas.12 Ao contrário da impressão usual, o conhecimento é um dos fatos concretos que fundam o mundo no qual vivemos. O sujeito e o objeto são não mais do que hipóteses - ainda que hipóteses indispensáveis. "Eu conheço esta mesa" denota uma intenção concreta e confirma que esse conhecimento, compartilhado por outros sujeitos, é ele mesmo concreto - o "eu" e a "mesa" é que permanecem como abstrações, ainda que necessárias. Se sinto dor no estômago, apenas a dor é fato concreto; "eu" e "estômago" não são mais do que extrapolações abstratas. Se considero o nazismo como um mal, apenas o juízo de valor "mal" é um fato concreto; "eu" e "nazismo" são igualmente extrapolações abstratas.13

Flusser não isolava a literatura dos demais processos de conhecimento, percebendo-a tão esforço de ciência quanto a ciência ela mesma. Trata-se sempre de querer saber, porque, como sempre, ainda não se sabe. Aristotelicamente falando, o conhecimento do possível deve preceder o conhecimento do real, porque o real se dá apenas enquanto virtualidade e possibilidade. Compreender o real como ele é implica observar algo em processo de realizar-se e atualizar-se - implica observar o que ainda não aconteceu ou, talvez, o que já não esteja mais acontecendo.

O problema é epistemológico e ontológico. Se a realidade não há, quem pode dizer que é? Em outras palavras, como aprender a ser real, isto é, a ser o que ainda está sendo? Essa é a questão que o ator (interpretado, por sua vez, pelo ator Jeff Daniels) coloca para o seu personagem (interpretado pelo mesmo ator) em A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen: "você não pode aprender a ser real. É como aprender a ser anão. Não é uma coisa que dá para aprender".

Aprender a ser real exige o aprendizado da ironia. Estamos sempre aprendendo a ser reais, porque ainda não somos. A ironia é a nossa arma lingüística contra o nada: ficção contra ficção. Para Flusser, “a vida é a ficção não há morte, e o pensamento é a ficção não há vida”.14 Vivemos negando a morte e construímos, entrementes, a civilização. Pensamos negando a negação anterior, tentando frear o fluxo do sempre diferente num quadro de categorias compreensíveis e comprimidas. Definimo-nos como os únicos seres vivos que se sabem mortais, mas, lembra Ortega Y Gasset, no íntimo não nos reconhecemos mortais. Em nenhum caso vivenciamos nascimento e morte: “meu nascimento é uma história, um mito que outros me contam, mas ao qual não pude assistir e que é prévio à realidade a que chamo vida, enquanto a minha morte é outra história, outro mito que nem sequer me podem contar. Resulta que essa estranhíssima realidade que é minha vida se caracteriza por ser limitada, finita e, não obstante, por não ter nem princípio nem fim”.15

A vida humana, nessa perspectiva, é uma ficção séria – um teatro triste. É quando se torna necessário assumir a ironia como atitude existencial. A ironia transparece nas paredes de vidro de “Axolotl”, conto de Julio Cortázar que fala da fascinação de certo escritor por um animal anfíbio em forma larval, provido de brânquias e com olhos de ouro, exibido em um aquário público. O personagem olha o anfíbio dia após dia, tentando compreender esse outro tão outro. Em determinado momento, o personagem descobre-se vendo seu ex-rosto do lado de fora do aquário: “eu era um axolotle e sabia agora instantaneamente que nenhuma compreensão era possível”.16 O homem agora é que passa a ser o outro, visto pelo lado de dentro do aquário com olhos de axolotle.

O axolotle de Cortázar é tão anfíbio e monstruoso quanto a ficção, fazendo par com o monstro do filósofo. O protagonista do romance de Flusser, o Vampyroteuthis infernalis, é um espécime raro de polvo, com vinte metros de diâmetro. O animal serve ao filósofo como o axolotle serviu a Cortázar: olha-o tão intensamente que de repente espanta-se olhando o próprio olhar. Flusser encarou esse outro-tão-outro para alcançar suficiente distância da condição humana e escrever fábula que fosse ao mesmo tempo “cientificamente exata e fantasia desvairada”. Reconhece a dificuldade de captar Vampyrotheutis nas redes de pesca e nas do conhecimento, porque vivemos separados por abismo: a pressão que ele habita nos achata, o ar que respiramos o asfixia. Se o prendemos em aquários a fim de observar seu comportamento, eles se suicidam devorando os próprios tentáculos. Ignoramos nosso próprio comportamento, se ele conseguisse arrastar-nos para a profundeza a fim de observar-nos.17

Mas a barreira que separa o ser humano do Vampyrotheutis pode ser compreendida através da fábula, que representa uma tentativa de criticar a nossa existência vertebrada do ponto de vista molusco. Como em toda fábula, fala-se sobretudo do homem, embora um “animal” sirva de pretexto. Esta fábula é programa científico: olhar buscando outro olhar e buscando captar o momento em que se olha. Esse programa é igualmente literário, ou seja, fabuloso: a fábula comparece no lugar da realidade e do objeto para que objeto e realidade sejam.

Assim ele classifica os animais em apenas duas categorias: os que evoluem em nossa direção, “homens imperfeitos”, e os que divergem de nossa direção, “homens degenerados”. Mamíferos são homens imperfeitos, enquanto que aves, répteis e moluscos moles representariam a degeneração do humano. Flusser apóia-se na seguinte hipótese, claramente irônica: “o nojo recapitula a filogênese”18 – ou seja, quanto mais afastado um animal do homem tanto mais nojo nos causaria. Quando a vida esmagada (sob o nosso sapato) é mole, sentimos nojo. Vampyrotheutis é animal mole, lento e viscoso, mas perturba-nos sobremaneira porque a sua estrutura revela-se complexa: “a espiralidade é o tema fundamental do organismo molusco”19 porque moluscos são animais retorcidos sobre si mesmos, tendendo a aparente involução em todos os detalhes e como um todo. Em Vampyrotheutis a tendência para a retorção é tão violenta que seu corpo se retorce até que a boca devore a cauda – como se o uroboro estivesse vivo o tempo todo no fundo do mar.

Da sua boca saem tentáculos que parecem pernas, mas ainda têm outro órgão de locomoção: o jato. Expelem água na água, propelindo-se para trás com grande velocidade. Alimentam-se e respiram provocando vórtice centripedal que aspira o ambiente, e locomovem-se expelindo a água provocando redemoinho; trata-se de animais-redemoinhos com respiração e locomoção sincronizadas. Os Vampyrotheutes têm dois olhos iguais aos nossos nos mínimos detalhes, mas funcionam de modo um pouco diferente: enquanto os nossos captam raios solares refletidos por objetos, os deles captam raios emitidos pelos próprios órgãos que iluminam as regiões abissais e são então refletidos pelos objetos. Isso significa que a sombra platônica, fundadora do mundo das idéias, não lhes é acessível!

O oceano, habitat do Vampyrotheutis, pode ser visto por dois modelos. Quem vive no mar o vê como paraíso tridimensional e fluido repleto de sons e luzes, noite eterna iluminada pelos raios emanados de seres vivos: “um jardim que sussurra, brilha e dança”. Mas nós não vivemos no mar. De nosso ponto de vista vemos um abismo, ou melhor, o inferno: “buraco preto e frio, sob pressão achatadora, repleto de temor e tremor, habitado por seres viscosos e repugnantes que se entredevoram com alicates e dentes”.20

Ambos os modelos são verdadeiros, mas ambos os modelos não podem dar conta do que descrevem. É preciso passar de um modelo a outro, suspendendo crenças e forjando outras crenças. Na verdade, como explica Flusser, é preciso libertar-nos da crença pia em modelos, sobretudo do modelo segundo o qual a existência seria encontro de um sujeito com objetos. Tal modelo pressupõe que poderia haver sujeito sem objeto ou o contrário, e que estes podem se encontrar como podem não se encontrar. Tal modelo traz por conseqüência o problema eterno do “realismo-idealismo” (quem vem primeiro: o objeto ou o sujeito?), que é problema eterno por ser problema falso. Se a existência é um estar-no-mundo, se sujeitos se relacionam com objetos e com outros sujeitos, a realidade é precisamente este relacionamento. Logo, toda modificação do objeto implica modificação do sujeito assim como toda modificação do sujeito implica modificação do objeto, porque o que se modifica é o relacionamento.21

A estrutura do mundo espelha a estrutura do organismo. Como isto vale para qualquer ser no mundo, vale para Vampyrotheutis: “seu organismo espelha o abismo, seu abismo o organismo”.22 Ao encontrarmos Vampyrotheutis e seu abismo, reconhecemos existência comparável à nossa que nos permite salto de mundo a mundo. Este salto, de mundo habitual para mundo fabuloso, é propriamente a metáfora.23

O filósofo não recusa nem o abismo nem o simulacro. Ao contrário, ele os abraça.

NOTAS

1 Gustavo Bernardo é professor de teoria da literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro A dúvida de Flusser, a ser publicado pela editora Globo em 2002. Uma variante do presente texto foi publicada em: SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco dos (org). Literatura comparada: interfaces e transições. Campo Grande: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2001; pp. 59-76. Em forma de conferência, ele foi apresentado no Seminário As Margens da Tradução, na UERJ, em agosto de 2001, no 4º Deutschen Lusitanistentages - 4º Congresso da Associação Alemã de Lusitanistas, em Germersheim, na Alemanha, em 12 de setembro de 2001, e no 10º Simpósio "Vilém Flusser: philosopher of multiplicity - plurilingualism and translation", no Monte Verità, em Ascona, Switzerland (Suíça), em 26 de outubro de 2001.

2 Conferir o artigo de Rainer Guldin, "Traduzir-se e retraduzir-se: a prática da escrita de Vilém Flusser", em KRAUSE, Gustavo Bernardo. As margens da tradução. Rio: Caetés, 2002 - e também na edição nº 1 do site "Dubito Ergo Sum", de janeiro de 2002: http://planeta.terra.com.br/arte/dubitoergosum .

3 Em NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte: editora da UFMG, 1999; p. 161.

4 O texto de Rainer Guldin, "Traduzindo e retraduzindo", estuda à exaustão e com perfeição o espantoso método de Vilém Flusser para pensar-se e criticar-se: submeter suas idéias ao crivo crítico-ontológico de outras línguas, através do processo de traduzir a si mesmo.

5 Conferir meu artigo "Da prece à literatura"; in KRAUSE, Gustavo Bernardo & MENDES, Ricardo (orgs). Vilém Flusser no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, e a conferência apresentada em Puchheim, na Alemanha, em Simpósio Internacional sobre Vilém Flusser, em 6 de março de 1999: Vom Gebet zur Literatur: Das Denken Vilem Flusser's (traduzida para o alemão por Edith Flusser).

6 Ribeirão Preto, SP: O Diário, 26 de agosto de 1966.

7 FLUSSER, Vilém. Da religiosidade. São Paulo: Comissão Estadual de Cultura, 1967; p. 59.

8 RAPSCH, Volker (ed). Überflusser: Die Fest-Schrift zum 70, von Vilém Flusser. Düsseldorf: Bollmann Verlag, 1990, p.53: "Vilém Flusser, einer der wichtigsten gegenwärtigen brasilianischen Philosophen, schlägt uns einen anderen, grundlegenderen Ansatz vor, einen, den wir Philosophiefiktion nennen wollen. (…) Das neueste Buch von Flusser schlägt uns allerdings einen Zugang zum Verhältnis der Philosophie und des Lebens vor, der dank einer mutigen Konstruktion den Kunstgriff des Abstandnehmens bis ins Äußerste treibt, was ja für die phänomenologische Einstellung grundlegend ist."

9 Carta que nos enviou em 9 de outubro de 2000.

10 Flusser started out with a view of himself as a writer (of literary texts?), but found out soon enough that the best thing for himself was to be a writer of essays. Whenever he attempted to write in a more literary way his style faltered becoming slightly pompous, even a bit kitsch - the style of historical romance, history as novel. Writing essays then was a way to reduce, to cut back this tendency. And it is this very effort to order and discipline the chaotic that gives form and strenght to his style.

11 - A objeção é levantada com bastante freqüência. O professor João Cezar de Castro Rocha, por exemplo, explicita a sua divergência propondo a seguinte distinção, em mensagem de e-mail que nos manda em 1 de setembro de 2001: “os modelos que automatizamos no comércio social, e de cuja engrenagem esperamos (e com razão) resultados pragmáticos, denominaríamos realidade, assim, com indicação precisa do seu estatuto ficcional, mas, no limite, tratar-se-ia, por assim dizer, de uma ficção coletiva na qual acreditássemos e em função da qual agiríamos. Já aos modelos que assumimos enquanto constructo reservaríamos o estatuto de ficcionais. Veja que se trata de uma distinção menos fenomenológica do que pragmática, como realizado pela sociologia fenomenológica de Alfred Schütz. Creio também que o argumento de Flusser – tal campo de concentração é uma ficção – é mais relevante do ponto de vista político do que filosófico. Explico. Do ponto de vista político, revelar a indistinção potencial entre nazismo e sociedade instrumentalizada pelo lucro capitalista, sobretudo se expressa por um judeu que perdeu a família em campos de concentração, possui uma força política invejável. Já do ponto de vista filosófico promove uma indistinção que creio, diminui a complexidade da questão.” A despeito da qualidade do argumento, creio que a distinção proposta seja precisamente outra ficção – no caso, uma ficção pragmaticamente conveniente.

12 - FLUSSER, Vilém. “On Edmund Husserl”. Publicado em New York, no primeiro volume da Review of the Society for the Czechoslovak Jews, em 1987: “Knowledge is a concrete relationship, of which the “knower” and the “know” are abstract extrapolations.”

13 - If I feel a pain in my stomach, only the pain is a concrete fact; “I” and “stomach” are nothing but abstract extrapolations from that concrete fact, extrapolations explaining the concrete fact. If I judge Nazism to be evil, only the value judgement “evil” is a concrete fact; “I” and “Nazism” are merely abstract extrapolations from this concreteness.

14 - FLUSSER, Vilém. Da religiosidade; p. 88.

15 - ORTEGA Y GASSET, José. Ideas sobre el teatro y la novela. Madrid: Alianza Editorial, 1999; p. 130: “sólo hay dos cosas que la vida – la cual es siempre la de cada cual – en absoluto no puede ser, que no son, pues, posibilidades de mi vida, que en ningún caso pueden acontecer. Esas dos cosas ajenas a mi vida son el nacimiento y la muerte. Mi nacimiento es un cuento, un mito que otros me cuentan, pero al que yo no he podido asistir y que es previo a la realidad que llamo vida. En cuanto a mi muerte es un cuento que ni siquiera pueden contarme. De donde resulta que esa extrañísima realidad que es mi vida se caracteriza por ser limitada, finita y, sin embargo, por no tener ni principio ni fin.”

16 - CORTÁZAR, Julio. Final del juego. Madrid: Alfaguara, 1993; p. 156: “Yo era un axolotl y sabía ahora instantáneamente que ninguna comprensión era posible.”

17 - FLUSSER, Vilém. Vampyroteuthis Infernalis; p. 1, na versão datilografada em português. Tivemos acesso à versão em português graças à gentileza de Edith Flusser. Na versão alemã, p.9: “Es ist nicht leicht, sich ihm taxonomisch zu nähern. Und nicht nur taxonomisch. Menschen und Vampyrotheutis leben getrennt voneinander. Wir werden von dem in seinem Abgrund herrschenden Druck zerschmettert, und er erstickt an der Luft, die wir atmen. Wenn wir seine Verwandten in Aquarien sperren, um sie zu beobachten und aus ihnen auf ihn zu schließen, bringen sie sich um: Sie verschlingen ihre eigenen Arme. Wie wir selbst uns betragen würden, wenn er uns in seine Tiefen mitrisse, in denen nur seine Leuchtorgane die ewige Nacht durchbrechen, bleibt offen.

18 - Idem; p. 5. Na versão alemã, p. 14: “Der Ekel rekapituliert die Phylogenese”.

19 - Idem; p. 6. Na versão alemã, p. 16: “Diese Spiralsymmetrie ist überhaupt das Grundthema des Molluskenkörpers”.

20 - Idem; p. 25. Na versão alemã, p. 33: “Wir sehen ein kaltes schwarzes Loch, das von Zähne – und Kieferklap – pern erfüllt ist und unter einem alles zermalmenden Druck steht.”

21 - Idem; p. 26. Na versão alemã, p. 34: “Konkret ist weder der Organismus noch die Umwelt, weder Subjekt noch Objekt, weder Ich noch Nicht-Ich, sondern das Zusammentreffen beider. Es ist absurd, sich ein objektloses Subjekt oder ein subjektloses Objekt vorstellen zu wollen, eine Welt ohne mich und mich ohne Welt. Da-sein heißt in der Welt sein. Wenn es also Veränderungen gibt, dann nicht, weil ich mich verändere oder weil die Welt sich verändert, sondern im Gegenteil: weil sich die konkrete Beziehung Ich-Welt verändert, und das zeigt sich phänomenal in Veränderungen meiner selbst und der Welt dort draußen. Das muß man im Auge behalten, will man sich dem vampyroteuthischen Dasein nähern.”

22 - Idem; p. 27. Na versão alemã, p. 35: “Der Organismus spiegelt die Welt und die Welt den Organismus.”

23 - Idem; p. 27. Na versão alemã, p. 36: “Nicht um eine Theorie handelt es sich also, sondern um eine Fabel. Es handelt sich darum, aus der tatsächlichen Welt in eine fabelhafte Welt hinüberzuwechseln.”  [topo da página]

# Helena Tornquist - Representação simbólica no regionalismo modernista

Para el escritor la memoria es tradicion. Una memoria impersonal donde se hablan todas las lenguas.
Ricardo Piglia

As palavras do escritor argentino, citadas na epígrafe, vêm a propósito quando se intenta explicitar, com apoio no conceito de cronótopo formulado por Bakthin,1 a singularidade de um discurso ficcional referido a certa continuidade de tempo e espaço, a saber, da literatura produzida no sul do Brasil, nas primeiras décadas do século XX.

Cabe ressaltar que, ao retomar aqui a temática da gauchesca, não se pretende apenas aproximar autores e obras sobre o tema, apoiadas num imaginário comum, mas destacar, na diversidade das estratégias ficcionais, formas relacionadas à notação da série histórica e geográfico-cultural do fato literário. De modo especial, procura-se atentar para as possíveis correspondências e semelhanças formais, temáticas e simbólicas, resultantes de uma atitude comum voltada para a escavação do passado, para a determinação e fixação da arkhé primordial.2

É amplamente conhecida a forte marca do tema da tradição nas representações simbólicas de autores regionalistas do continente sul-americano, mais especificamente dos estados que limítrofes da Argentina e Uruguai. Embora para a história literária a existência de temas e motivos comuns não impediu que os sistemas literários consolidados no decorrer do século XIX seguissem caminhos diversos, a presença do homem primitivo, desde as primeiras manifestações literárias, oferece elementos à discussão: por exemplo, uma leitura que se interesse precisamente pela problemática do trânsito de temas e motivos entre as diferentes nações e busque as razões de sua sobrevivência “apesar dos sistemas diferenciados que passam a integrar”.3 Em outras palavras, interessa saber até que ponto o imaginário comum interfere na construção do fazer literário do universo regional da campanha – os campos que se estendem do pampa argentino, passando pelo oeste uruguaio até à campanha sul-rio-grandense – um espécie de entre-lugar, marcado por um ethos primitivo comum, configurador, como lembra José C. Pozenato, de um universo regional preciso.4

A celebração da vida aventureira dos primeiros habitantes, que vinha dos tempos coloniais, estava presente nos chamados “cantos de monarquia” de origem portuguesa, como na poesia dos “payadores” do pampa cujo fulcro era o tipo humano autóctone sul-americano. Mas, como enfatiza Guilhermino César,5 a aura que passou a envolver o homem típico da região, entretanto, foi construída pelos românticos, tanto nos países do Prata como no contexto brasileiro. É o caso de Bartolomé Hidalgo, de Estanislao del Campo, de Jose Hernández, autores oitocentistas mencionados por Jorge Luís Borges em seu ensaio sobre a gauchesca, que vivem em Montevideo ou Buenos Aires, numa comprovação da origem culta dessa poesia apresentada como popular.6

No Brasil, não seria diferente, pois além de José de Alencar que concebeu O Gaúcho dentro do projeto de fixação dos diferentes tipos humanos que integravam a identidade nacional, há que lembrar O Vaqueano, escrito por Apolinário Porto Alegre, membro da Sociedade do Partenon Literário. Logo adiante, já na fase pré-modernista, o tema ressurge com o escritor Simões Lopes Neto, em contos que tiveram origem na pesquisa folclórica do homem letrado.

Se o tema da gauchesca teve papel destacado na formação das diferentes literaturas, as vanguardas estéticas do século XX não conseguiram (ou não pretenderam) apagá-lo; assim, é possível encontrar escritores identificados com essa temática em diferentes pontos do sul do continente, tanto nos países de língua espanhola (basta lembrar Ricardo Güiraldes e o próprio Borges), como no Rio Grande do Sul, onde, além de Simões Lopes (que teve sua reconhecida tardiamente), se destacaram, num primeiro momento, Roque Callage, Alcides Maia e Darci Azambuja

Numa demonstração de que a temática campeira efetivamente circulava entre os que interessavam pela realidade local, ultrapassando as fronteiras entre os países,7 praticamente todos esses textos davam destaque ao que é identificado com o “modo de ser gaúcho”: o gosto da ação enérgica, o espírito de fronteira, o alarde de coragem – um ethos fortalecido pela extensão territorial e o isolamento dela decorrente, e pelo caráter das lutas da Independência.

Levando-se em conta que, a exemplo das formas de comunicação lingüísticas, as representações artísticas permanecem, apesar das demarcações de fronteira, sejam elas externas ou internas, é possível ver as manifestações literárias como elementos formadores de uma comunidade cultural, pois, se há um caráter heteróclito acentuado nas diferentes regiões que integram o continente latino-americana, com a modernização capitalista, este foi sensivelmente atenuado pelo estabelecimento de canais internos de comunicação.8

Ademais, confirmando constatações de Benedict Anderson àcerca da língua enquanto elemento de consolidação das comunidades imaginadas, é visível nessas narrativas a preocupação com a linguagem, razão por que é para essa dimensão do texto que vai se orientar a análise das obras selecionadas: a saber, o romance Memórias do Coronel Falcão9 de Aureliano de Figueiredo Pinto, fixando aspectos típicos da vida agro-pastoril da região da campanha, próxima das Missões e o livro de contos intitulado Bulha d’Arroio,10 do catarinense Tito Carvalho, cujo olhar se volta para a paisagem cultural dos campos de Lages, região integrante do planalto catarinense.

Com o título de Memórias do Coronel Falcão, Aureliano de Figueiredo Pinto narra a saga de um proprietário rural que, à instância de amigos, aceita participar da vida política e se transfere para a cidade, onde acaba se dando mal, perdendo ainda quase todos seus bens. Quando retorna ao campo, é a memória que vai dedicar os último anos de sua vida, onde passa a trabalhar em companhia de um afilhado no quinhão de terra que lhe havia legado. Como Dom Casmurro dedica-se à rememoração do passado, tentando “atar as pontas” dos fatos vividos para melhor compreender o que ocorreu. Na verdade, em seu discurso temos a confirmação de que a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.

No entanto, a evocação dos acontecimentos em que se envolveu não representa toda a matéria de seu discurso: esta se constitui de modo mais amplo, representando a evocação do passado distante, seja através de formas de representação que povoam o imaginário da campanha, seja através da assimilação dos modelos literários que escolheu, como se percebe em passagens claramente alusivas a Simões Lopes Neto e Alcides Maia, bem como na citação de autores de língua espanhola, entre os quais Ricardo Güiraldes. Coincidentemente, nos textos destes escritores, a memória representa o elo de ligação com o universo da gauchesca. Dizendo de outro modo, nesses textos a evocação do passado mítico, por uma voz repassada de nostalgia, confere um caráter de oralidade a discursos cujo denominador comum é tornar presente uma época caracterizada pela vida rude e primitiva, época em que os campos ainda não haviam conhecido as marcas da modernização.

No romance Don Segundo Sombra de Güiraldes, a narrativa se estrutura no desdobramento da memória do narrador-personagem Fabio Cáceres, que decide rememorar os fatos vividos. Observa-se que ele o faz conscientemente, procurando pesar suas atitudes, julgá-las com a isenção que o distanciamento do tempo assegura. Esse procedimento é também o do Coronel Falcão, com a diferença de que a evocação quase lírica do narrador criado por Güiraldes, dividido em contemplador e contemplado, em um ser que viveu11 uma aventura plena e outro que evoca do plano futuro, o passado feliz que viveu tem efeito muito distinto no caso do escritor rio-grandense. O recurso formal do duplo registro nada tem de lírico: a voz de Falcão, ao contemplar o presente, apresenta o tom desiludido, irônico, de um ser revoltado com os homens, que contamina todo seu discurso.

Mas o romance de Aureliano apresenta outras características que sugerem a inexistência de fronteiras nacionais. A cena de abertura é emblemática – homens do campo em plena atividade, falam entre si em espanhol (-Cayó el velo/-Cayó la felpa) num tom de refrão vão contanto as aparas de lã que cortam das ovelhas. Don Juan, Don Medina, Velén são homens típicos desse entre-lugar, que, despedidos dos saladeiros, não têm emprego fixo e vão andando entre as estâncias para tarefas ocasionais.

A ambientação na região da fronteira é palpável também nas referências do narrador a autores da literatura argentina, através de obras largamente conhecidas, a músicas que ali chegavam nas ondas do rádio, e mesmo, a histórias que integravam a tradição popular. (Quadras do Martin Fierro são declamadas e letras de tango servem contraponto ao sofrimento do narrador).

Já no que diz respeito à linguagem, chama atenção a presença constante de termos em língua espanhola. Entre outras ocorrências, temos: “escucha”, “santafecino,” “tempraneras”, “cochonilho”. A referência ao código da tradição do gaúcho se manifesta também nos níveis de língua: sendo a oralidade a marca do discurso narrativo, ela atua no sentido de reforçar o caráter intercultural que o falar gauchesco assume na região fronteiriça. Há, por exemplo, falas inteiramente em espanhol, contribuindo para compor os tipos humanos que atuam nas estâncias. A propósito, deve-se registrar que, homem de muitas leituras, o autor valia-se freqüentemente de alusões e citações em língua estrangeira, destacando-as no texto mediante o recurso das aspas; entretanto, nos diálogos em língua espanhola, ele deixou de fazê-lo, e assim orientou expressamente seu editor, sob o argumento de que pertenciam a um campo lingüístico comum. Em seu entendimento, o mundo da campanha era unificado pelo linguajar comum,12 ao qual, nem o rio Uruguai, nem o Quaraí nem a “linha” ofereceriam barreiras.

(Re)criando o passado comum
Os textos escritos por Tito Carvalho são representativos de uma região distante da campanha gaúcha, mas que, por suas peculiaridades, aproxima-se pela atividade agro-pastoril ao modus faciendi da região sul-rio-grandense. Sendo natural de Orleães, cidade situada ao pé da Serra do Mar, a permanência do escritor em São Joaquim, por certo tempo, possibilitou-lhe o contato com a zona rural e o gosto pela vida livre do homem do campo. Efetivamente, essa região se destaca no planalto catarinense – os chamados campos de cima-da-serra – pela topografia semelhante à da campanha gaúcha, o que favoreceu a prática da criação de gado em extensão.

Demonstrando ter assimilado o ethos típico da campanha, seus textos passam a priorizar o tema da gauchesca. Datam da fase da vida em que Tito Carvalho conheceu de perto os costumes rurais, o romance campeiro Vida Salobra e os contos de Bulhas d’Arroio.13 Se nessas narrativas, a memória não recebe tratamento idêntico ao que foi percebido nos romances de Figueiredo Pinto e de Güiraldes, assinala-se a presença de uma voz narrativa que fala de uma época pretérita, evocando acontecimentos singulares, os quais, reunidos no tecido narrativo, descrevem um quadro rural que, em tudo, intenta reproduzir o passado da campanha.

Efetivamente, a leitura desses contos sugere a atmosfera das narrativas de Simões Lopes Neto (especialmente das que integram os Contos gauchescos ) na ênfase ao falar e ao agir do tipo humano da campanha. Há, por exemplo, um claro diálogo intertextual entre “Valentia” e “Nego Bonifácio” e, no que se refere à crueza e a violência próprias de desavenças pessoais, entre “Contrabandistas” e “Santa Luzia”, ao registrar, em contraponto com esses aspectos certos costumes antigos, como o namoro e as festas de casamento. Há ou, ainda, os contos “Baitatá” e “Entrevado” que lembram as assombrações registradas em Lendas do Sul, para só ficarmos em alguns exemplos.

Assim, é possível afirmar que, passadas cerca de quatro décadas, Tito Carvalho olha a região em que vive com os mesmos olhos do rapsodo do Sul; nela identifica os traços do homem rural fixados nas narrativas de Simões Lopes Neto – desde o dia-a-dia do homem do campo, envolvendo desde o trato com o gado, a alimentação, o vestuário, até às atividades domésticas mais restritas a mulher, e festas e crendices populares.

Entretanto, convém ressaltar, que, assim procedendo, Tito Carvalho não realizou um mero decalque. Escritor consciente de seu ofício, se acolheu o imaginário do universo ficcional fixado pelas narrativas referidas aos campos do sul, é visível que teve cuidado de registrar as particularidades da paisagem local. Ao leitor atento, por exemplo, não escapará que, a certos momentos, os campos não têm como limite a linha que demarca as fronteiras nacionais, mas a serra e seus despenhadeiros, configurando, de modo preciso, os campos do planalto catarinense, situados a mais de 800m do nível do mar.

Mas a força paradigmática da literatura gauchesca manifesta-se nos contos de Tito, exercendo-se claramente em dois níveis: no nível da linguagem regional, cuidadosamente reproduzida, e no nível do imaginário, que preside as histórias narradas. Chama atenção nesse trabalho de recriação, o registro, observado na obra de Aureliano, de muitos espanholismos, tais como, bichará, buenacho, cachicholo, chibarro, guasca, manotaço, gaudério, piá, posteiro, pinguancha, trancucho, entre outros. E o glossário de cerca da 500 palavras, no final do livro, não deixa de ser sintomático: é a prova de que Tito Carvalho tinha consciência da dificuldade que seus leitores, vivendo em outra região, encontrariam diante de um linguajar do campo com variantes que não eram praticadas na região.

Embora não haja um narrador como o velho e experiente Blau Nunes dos contos de Simões Lopes, tão integrado à narrativa que o mundo começa a existir quando ele começa a falar14, também podem ser apontados nesses textos, os motivos conhecidos da narrativa gauchesca, centrados, como se disse, na exaltação da figura do gaúcho típico, bem como nas características fixadas no imaginário popular: o amor à liberdade, a honradez, a coragem, a bravura alardeada, a afeição pelo cavalo. Chama atenção um aspecto: a luta que sustenta contra os que ameaçam a paz tem como inimigo os espanhóis, o que, por certo, não teria respaldo na história da região. A propósito, convém lembrar que as narrativas centradas no tipo humano da campanha quase nunca utilizam o termo gaúcho. Isso já ocorrera no texto pioneiro de Apolinário Porto Alegre, tanto que ele preferiu intitular seu romance de O Vaqueano; o mesmo se constata no romance de Aureliano Pinto:15 a figura do gaúcho é apenas sugerida, como uma espécie de modelo distante, contribuindo, por exemplo, para construir a auto-imagem de homem poderoso que se faz visível nas ruas da vila, montado garbosamente em seu cavalo. Já Tito Carvalho, além de tomar por modelo o tipo humano idealizado da gauchesca, explicita a referência no personagem do conto “Santa Luzia,” o que não deixa de ser uma representação dialetal às avessas, pois, ao que consta, o termo gaúcho não é usual no falar da região do planalto catarinense.16 Se a representação simbólica que vincula à figura mítica do homem primitivo persiste nos contos referidos à uma região situada muito além dos limites da campanha sul-rio-grandense, é possível concluir que o modelo narrativo adotado pelo escritor, ainda que com apoio nas vivências do escritor, foi responsável pela permanência de elementos do imaginário do sul: a convenção literária superou, assim, a força da mimesis.

Cabe destacar ainda que, Aureliano F. Pinto, mais próximo do palco das ações do homem da campanha, ironicamente, não faz uso do vocábulo gaúcho. Os “heróis” mencionados em seu romance, Dom Quixote e Napoleão, no retiro da ilha de Elba, são símbolos da derrota, da perda de ideais, numa clara alusão ao momento histórico em que escreve, quando o mundo do campo passava por radicais transformações, a figura do gaúcho não seria mais que sombra do passado.

Às narrativas examinadas pode-se aplicar a observação de Ricardo Piglia a propósito de autores da gauchesca rio-platense: Un escritor trabaja en el presente com los rastros de una tradición perdida.17 O trabalho do memorialista consistiria, pois, em fixar essa tradição, sem deixar de pensar no sentido de seu ato. Aproximando a produção de dois escritores, que, por razões diversas, ficaram um tanto à margem do processo literário de seu tempo, é possível afirmar que com suas criações eles não deixaram de comprovar que as obras literárias contribuem para a dissolução dos limites criados pelos homens.

NOTAS

1 - Para Bakhtin, cronótopo, ou correlação do tempo e do espaço históricos e reais, é indissociável do fenômeno literário. Cf. BAKTHIN, M.Questões de Literatura e de Estética. 2ed São Paulo: Huicitec, 1990.
2 - DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2201.p.7-8
3 - Para Guilhermino César há apenas uma coincidência de temas, pois a literatura que se constrói no Rio Grande do Sul afirma a herança portuguesa, não apresentando em comum com a dos países vizinhos mais que essa coincidência de temas e motivos. Cf. CESAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul. 2ed.Porto Alegre: Globo, p 30..
4 - Para o autor, a regionalidade repousa sobre uma temática e um modus faciendi regionais, entendido este último não como toda a maneira de se posicionar frente ao mundo (o estilo de vida), mas como o conjunto que engloba a praxis e o ethos. Convém lembrar que a argumentação de Pozenato segue outra direção, já que seu interesse está voltado para as questões do regionalismo e sua repercussão no contexto brasileiro. POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura gaúcha. Porto Alegre: Movimento, 1974, p. 20 et sqq,
5 - Os “os cantos de monarquia” que se encontram nos Cancioneiros coletados por Simões Lopes Neto e Augusto Meyer centravam-se na vida errante do homem primitivo da região, que, como uma monarca altaneiro, percorria os campos montados em seu cavalo. CESAR, G. Op. Cit. p. 48.
6 - Cf. BORGES, Jorge Luís. El Martin Fierro. Buenos Aires: Emecê, 1979. p. 11.

7 - Sabe-se que as relações entre as literaturas podem se dar por circulação, contato ou transmissão. Cf. CIONARESCU, A Principios de Literatura Comparada. Barcelona: Universidad de la Laguna, 1961.
8 - Como lembra Valdés, não se pode esquecer que, se tal situação tinha o mérito de aproximar o que permanecia distante, ela trazia em si a contradição, pois seu modo de atuar funcionava também como elemento desmembrador do sistema literário. VALDÉS, Mario. Apresentação. In: POLAR, Cornejo. O Condor Voa. Belo Horizonte: EDUFMG, 2000.
9 - PINTO, Aureliano de Figueiredo. Memórias do Coronel Falcão. Porto Alegre: Movimento, 1973.
10 - CARVALHO, Tito. Vida Salobra e Bulhas d’Arroio. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1975.

11 - Cf. TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra: Almendina, 1983.

12 - O editor C. J. Appel refere esse fato, afirmando que consultado sobre o procedimento, Aureliano preferiu não destacar os enunciados, por pertencerem à língua da fronteira. Cf. Memórias do Coronel Falcão. Apresentação, p 15.
13 - Este é o único ângulo da produção do escritor que a crítica em geral registra, pois a coletânea de crônicas de Gente do meu caminho publicadas semanalmente na imprensa, só foi reunida recentemente em livro, numa co-edição da Fundação Catarinense de Cultura: CARVALHO, Tito. Gente do Meu Caminho. Florianópolis: EDUFSC, 1998.

14 - POZENATO, J. Op,cit. p. 47.
15 - MEYER, Augusto. Gaúcho, história de uma palavras. In: Prosa do Pagos. Porto Alegre: Globo, 1978.
16 - Se o adjetivo gauderiando é usual, a designação de gaúcho para o homem que exerce as atividades nas propriedades rurais não é comum entre os falantes dessas região. Esta observação tem caráter empírico, pois se trata de testemunho de antigo morador da região.
17 - PIGLIA, Ricardo. Memoria y Tradición, In: Revista ABRALIC. Anais do 2 CONGRESSO ABRALIC. Belo Horizonte: 1991. v. 1.p 61
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# Ilva Maria Boniatti - A representação do regional na obra de José Clemente Pozenato
A Literatura Comparada aponta para além das fronteiras de um país específico e para além dos limites impostos pelas diferentes áreas do conhecimento. É nesse sentido que se pode pensar na ampliação das perspectivas de abordagem das obras literárias, de modo a perceber não só as diversas culturas nacionais, mas também as relações que se estabelecem entre a Literatura e as demais esferas da atividade humana.

O projeto A Representação do Regional Na Obra De José Clemente Pozenato propõe o estudo da diversificação regional. Através da re-leitura pretende-se revisar alguns conceitos operatórios, ampliando-os através da pesquisa bibliográfica. Nesse percurso, tem-se buscado pesquisar, progressivamente, a questão da identidade e do nacional, com ênfase aos estudos teóricos organizados por Raul Antello, em Identidade e representação ( 1994); por Ana Luiza Andrade, em Leituras do Ciclo (1999); e ainda por Eneida Maria de Souza e Wander de Mello Miranda, em Literatura Comparada – ensaios (1996) . Também , nos Anais da ABRALIC, as questões da identidade e do nacional vem sendo tratadas com consistência teórica, abrangendo e ampliando o conceito do regional.

A obra literária de Pozenato é formada por livros de poemas, ensaios culturais, novelas e romance, como se pode ler em sua bibliografia. Para avançar na investigação, pretende-se examinar a correspondência do escritor com outros escritores ou pessoas ligadas à vida literária, as entrevistas que concedeu, as reportagens sobre vida e obra, além da fortuna crítica.

A leitura crítica da obra de Pozenato corresponde, na prática, aos entendimentos comparatistas de que os gêneros paraliterários complementam o conjunto produtivo de um escritor, oferecendo dados importantes para a pesquisa. Esta posição teórica contraria o entendimento disseminado pelos textualistas e formalistas, para quem a biografia e a subjetividade do autor deveriam ser desconsiderados nos estudos literários.

A partir dessa perspectiva, a Literatura Comparada se constitui como um campo permanentemente aberto, em constante interação interdisciplinar e interdiscursiva. Assim, se a intertextualidade surge, nos estudos comparatistas, como uma exigência metodológica, ela se transforma, na prática, no cotidiano construtor da pesquisa. O trabalho em desenvolvimento serve-se, pois, da leitura intertextual para definir seu corpus de modo contrastivo, aproximando textos literários e paraliterários e ressemantizando, nessa trajetória, os conceitos de nacional e literário.

A metodologia proposta baseia-se, portanto, no estabelecimento de relações intertextuais que permitem investigar transformações, tensões e diálogos entre textos. Desse modo, vem sendo lidos textos críticos de autores, como Antonio Candido, Roberto Schwartz, Silviano Santiago, Beatriz Sarlo, Ángel Rama, Nestor Garcia Canclini, Antonio Cornejo Pollar, Haroldo de Campos, Walter Mignolo, Homi Bhabha e outros, com vistas a identificar a recepção das teorias. Especificamente, este projeto pretende questionar o modo como os textos paraliterários, referentes à obra e à fortuna crítica de José Clemente Pozenato (biografias, entrevistas, textos críticos, roteiros para cinema e para mini-séries de TV, cartas e diários) dialogam com os textos literários consagrados. Além disso, propõe-se também a examinar esse encontro intertextual e sua contribuição para o entendimento teórico do nacional e do literário. Assim, a pesquisa procura incorporar à análise textual a leitura de gêneros paraliterários, como as biografias, os depoimentos, as entrevistas e a correspondência entre escritores e artistas estudados. Tal incorporação consiste no reconhecimento de que toda interpretação das práticas culturais tem que levar em conta o envolvimento subjetivo, como também o espaço social em que atuam os agentes culturais.

Uma pesquisa comparatista caracteriza-se pela investigação bibliográfica e pelo exame dos conceitos teóricos que melhor correspondem às necessidades operacionais e metodológicas exigidas pelo “corpus” examinado. Nesse sentido, a pesquisa ora proposta toma como hipótese secundária o fato de que os arquivos de um escritor fornecem documentos importantes para a releitura de sua obra, uma vez que iluminam aspectos teóricos essenciais para a valorização da diferença comum às culturas híbridas.

Além disso, outra hipótese secundária é a de que os gêneros paraliterários possibilitam re-conceituar noções canonizadas, como a do nacional e do literário. A datação e o deslocamento são válidos para a interpretação contemporânea, uma vez que possibilitam interpretar um conjunto de obras à luz das circunstâncias regionais de sua produção.

Este projeto, que vem mapeando e interpretando a obra de Pozenato, situa-se na perspectiva de identificar a ação e o papel dos diversos mediadores culturais como elementos de inter-relação comuns a universos sócio-culturais distintos, nos processos de construção de valores e de avaliação crítica.

Dentre as conclusões parciais deste projeto, encontra-se o estabelecimento da relação entre o discurso da história e o discurso literário. No contexto da região de Cima da Serra, o escritor José Clemente Pozenato dá voz aos colonos italianos, fixando sua história e o percurso de adaptação cultural na região colonial de Caxias do Sul. Suas obras de ficção ilustram a preocupação em registrar para melhor compreender o doloroso processo de êxodo dos italianos que deixam a miséria e a desesperança do Velho Mundo em busca de um paraíso de bonança, riqueza e fartura: o país da Cuccagna.

BIBLIOGRAFIA DE JOSÉ CLEMENTE POZENATO

Livros
POZENATO, José Clemente. Conversa solta. Caxias do Sul: Mercado Aberto, 1999.
_____.O Limpador de fogões. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998.
_____.Canti Rústeghi. Caxias do Sul: ECIRS, 1993.
_____.O Jacaré da Lagoa. Caxias do Sul: Ed. De Zorzi, 1991.
_____. Processos culturais na região de colonização italiana do Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: EDUCS, 1990.
_____. O Caso do Loteamento Clandestino. São Paulo: FTD, 1990.
_____. O Caso do Martelo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
_____. O Quatrilho. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
_____. Contos, Crônicas e Poesias. (Vários Autores). Caxias do Sul: Gráfica da Universidade de caxias do Sul, 1982.
_____. Meridiano. Caxias do Sul: Gráfica da Universidade de Caxias do Sul, 1982.
_____. Carta de Viagem. Caxias do Sul: Editora da Universidade de Caxias do Sul, 1981.
_____. Regional e Universal na Literatura Gaúcha. Porto Alegre: Movimento, IEL, 1974.
_____. Vária Figura. Bento Gonçalves: Publicações 2001, 1971.
_____. Matrícula. (Coletânea Coletiva). Caxias do Sul: Edições Paulinas, 1967.
_____. Conversa solta. Caxias do Sul: Mercado Aberto, 1999.

Artigos em periódicos - Jornais

Blau, Porto Alegre (BL)
POZENATO, José Clemente. É tudo um jogo. mar. 1996. p. B.

Contato Editorial, Porto Alegre (CE)
POZENATO, José Clemente. Editora Mercado Aberto. Abr e mai. 1998.

Cooper AÇÃO, s.l. (CA)
POZENATO, José Clemente. Ação Conjunta. Inverno de 1999. p. 3.

Folha de Hoje, Caxias do Sul (FH)
POZENATO, José Clemente. O Núcleo Universitário de Farroupilha. 10 jun. 1993.

Jornal Porto & Vírgula (Jornal da Secretaria Municipal da Cultura), Porto Alegre (JP)
POZENATO, José Clemente. Páginas Futuras. 2 nov. 1995.

Maturidade, Caxias do Sul (MA)
POZENATO, José Clemente. Vida mais longa, com qualidade. abr. 1997.

Pioneiro, Caxias do Sul (PI)
POZENATO, José Clemente. Verdes Anos. 25 mar. 1987.
_____.Agradecimento. 12 mar. 1995.
_____. ‘Na fila para O Quatrilho’. 29 e 30 jul. 1995.
_____. Thales e outros baianos. 12 e 13 ago. 1995.
_____. O ‘Senhor Cinema’. 19 e 20 ago. 1995.
_____. A força da imagem. 30 set. e 1º out. 1995.
_____. Dedos cruzados. 23 e 24 mar. 1996. p. 3.
_____. Elogio da diversidade. s.d.

Zero Hora, Porto Alegre (ZH)
POZENATO, José Clemente. Chegamos Lá. 14 fev. 1996. Contracapa.
_____. A emoção de participar da Copa do Mundo do cinema. 17 fev. 1996. p 7.

BIBLIOGRAFIA TEÓRICA
ANTELO, Raul et al. Declínio da arte, ascensão da cultura. Florianópolis: Letras Contemporâneas/Abralic, 1998, p. 11-23.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira; momentos decisivos (1750-1836). São Paulo: Livraria Martins, 1969.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1980.
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KALIMAN, Ricardo. La resistencia de lo imaginario: reflexiones sobre la naturaleza de la identidad. In: CARVALHAL, Tania Franco (Org.) . O discurso critico na America Latina. Porto Alegre: IEL: Editora da Unisinos, 1996. P. 123-132.
KALIMAN, Ricardo. La palabra que produce regiones: el concepto de región desde la teoria literaria. Tucumán: Facultad de Filosofia y Letras; Instituto de Historia y Pensamiento Argentinos, 1994.
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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
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SANTIAGO, Silviano. Atração do mundo (Políticas de identidade e de globalização na moderna cultura brasileira). Gragoatá, Niterói (EDUFF), n. 1, p.31-54, 2 sem. 1996.
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SCHWARZ, Roberto. Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
SCHWARZ, Roberto. Seqüências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.86-105: Um seminário de Mar; p. 61-85: Discutindo com Alfredo Bosi. 
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# Lea Masina - Mediações de um tema: A violência da voz nas literaturas de fronteira

O que tenho diante dos olhos, impresso ou manuscrito, é apenas um pedaço do tempo, coagulado no espaço da página ou do livro. Enfrento aí uma dificuldade dupla. De um lado, o afastamento proveniente da historicidade de meus conceitos críticos e de seus pressupostos, projetando sobre um objeto diferente minha própria identidade cultural. De outro, minha ignorância (tratando-se de um texto sobre o qual pesa o presumir-se uma oralidade) do modo de articulação do auditivo sobre o visual numa civilização de forte dominância oral. Somente a prática permite, se não resolver, ao menos esclarecer empiricamente essas contradições., Por cruzamento de feixes de informações, por deslocamento de perspectiva e de visada, a partir de um ponto de vista intuitivamente escolhido, esforçarmo-nos para sugerir um acontecimento: o acontecimento-texto; “representar” o texto-em ato, integrar essa representação no prazer que se sente na leitura.
(Paul Zumthor, A Letra e a Voz).

A etapa de trabalho que ora desenvolvo no projeto de pesquisa “Influxos platinos na literatura brasileira”1 consiste em identificar as mediações da voz nas literaturas de fronteira. Nessa perspectiva, busco resgatar a voz que se manifesta de modo nem sempre claro e muitas vezes latente nos textos de narradores gaúchos considerados pela crítica como regionalistas ou neo-regionalistas.

A revisão do regionalismo gaúcho é, portanto, questão decorrente dessa perspectiva crítica. Para apreender o registro literário das falas locais foi preciso romper com as hierarquias entre os subsistemas literários e comparar os diferentes falares, examinando as relações entre a literatura oral e a escrita. Curiosamente, a grafia da fala das personagens foi um dos principais argumentos de que se serviu a crítica modernista para desvalorizar a literatura regionalista gaúcha considerando-a anacrônica e reacionária. Segundo as tendências dominantes no Brasil nos anos setenta e oitenta, a fala das personagens, grafada com suas diversidades fonéticas, acentuava a distância entre o narrador culto e as personagens rudes e incultas, evidenciando o afastamento eles, eis que o autor, ao contemplar de longe as suas personagens, as reificava.2 Nesse mesmo sentido, liam-se as descrições das paisagens campeiras como “manchas” que contaminavam o texto, estratificando-o e transferindo para ele a imobilidade de uma visão de mundo congelada no tempo. Assim, concluía-se que as literaturas regionalistas e neo-regionalistas eram conservadoras e reacionárias por serem saudosistas de um passado épico perdido e, também, por registrarem a fissura entre as vozes do narrador e das personagens, com isso acentuando seus desníveis sociais e culturais.

Não obstante o consenso da época, que considerava as manifestações regionalistas no Rio Grande do Sul como sendo “velha praga” ou “insidiosa presença”3, elas sobreviveram mediadas por outras linguagens. Além de sua representação no discurso de epígonos provincianos, tais manifestações podem ser lidas nos textos de artistas plásticos, de escritores, músicos, teatrólogos e cineastas que retomam o filão sob novas perspectivas. Assim, a permanência da temática regionalista pode ser entendida como índice de diferenciação e de resistência à homogeneização ditada pela cultura globalizada, o que se acentua na segunda metade do século XX. Nesse sentido, é possível pensar as articulações possíveis entre intertextualidade e retórica, eis que a distância cronológica com relação aos textos literários dos primeiros regionalistas permite perceber com maior clareza as oposições culturais que se configuram nos diferentes modos de dizer.

Por outro lado, além de confundir-se, hoje, com o conceito amplo de literatura fronteiriça, o regionalismo está presente nos textos que diferenciam as etnias formadoras o substrato cultural do Rio Grande do Sul. Ele se acentua quando a nostalgia e o sofrimento de um sentir transitório articula-se na linguagem. Embora não seja este o enfoque do meu trabalho, refiro, como exemplo, a expressão dos imaginários das literaturas judaica, alemã, portuguesa e outras, presentes no Rio Grande do Sul e também em outras regiões culturais do Brasil e de outros países, que sugerem um mapeamento temático e identitário para a produção literária em geral.. Muito mais do que diversidades locais, o regionalismo, assim entendido, expressa tensões culturais e processos de apropriação e transformação de bens simbólicos que representam um nicho importante para os estudos comparatistas.

O exame da literatura de fronteiras permite supor que o desejo de definir e preservar uma identidade local, objeto de inúmeros estudos comparados e transdisciplinares, está presente na orquestração de múltiplas vozes. A partir do século XIX, essa heterogenia foi o modo proposto pelo escritor regionalista para dar conta da função social que a comunidade discursiva do seu tempo atribuía à literatura. Cabe lembrar, a esse respeito, as reflexões do crítico peruano Antonio Cornejo Polar com relação ao paradoxo latino-americano decorrente do surgimento da modernidade num corpo social historicamente atrasado: a voz dominante do escritor, comum nas narrativas regionalistas e costumbristas brasileiras e platinas, está a apontar para la simultaneidad contradictoria de dos tiempos diversos com sus racionalidaddes diferenciadas, en la conciencia de un solo sujeto (um sujeito social constituído pelos criollos independentistas)4. A busca da harmonia vocálica, uma das facetas da modernidade, impôs ao escritor o dever de falar como um sujeito social, ainda que, muitas vezes traído por ideologias de classe. Assim, nos textos fundadores do regionalismo gaúcho, a correspondência entre a intenção do escritor e o desejo de atender a um imperativo ético, decorrente de seu papel na mediação de idéias e culturas, teve por conseqüência o predomínio de sua voz sobre as demais. Convém lembrar que os escritores eram provenientes da oligarquia sul-rio-grandense, tendo vivido na campanha e residindo, depois, nas capitais do país. Do mesmo modo ocorreu no Uruguai e na Argentina, onde o escritor era o jornalista, o homem de letras, o político, cuja voz e liderança se alojavam no texto literário, entendido como espaço de exposição e defesa da modernidade. Como já tive ocasião de desenvolver em livro5, o escritor Alcides Maya exemplifica essa tendência. No entanto, a conseqüente intenção propedêutica dessa expressão literária virá a ser transformada, no Rio Grande do Sul, pela Geração Gaúcha de 306, representada por escritores que substituem a voz dominante e patriarcal por outras, irmanadas e conjugadas em torno do constructo teórico de povo. Cabe, aqui, lembrar as transformações sociais que ocorrem no Brasil nos anos 30, muitas delas ligadas à ditadura de Getúlio Vargas e ao aproveitamento das mitologias locais como elementos de propaganda demagógica e propagação de idéias nacionalistas e populistas.

Por outro lado, uma visada ampla da literatura gaúcha permite ver que o fronteiriço absorve o constructo teórico do regionalismo e o transforma sob o influxo das culturas platinas. A identidade ibérica e as analogias históricas e sociais entre o Brasil e os países do Prata tiveram por conseqüência uma similitude de temas e motivos comuns às literaturas rio-platenses e brasileira. Dentre esses, impõe-se a violência que, sob diferentes formas, está presente na constituição dos imaginários dominantes. Conforme divulguei em ensaio recente7, o sofrimento que advém da condição de ser fronteiriço decorre da incerteza do pertencimento, eis que o locus de enunciação do escritor situa-se entre diferentes mundos. Operar a aproximação teórica dos conceitos de gauchesca e regionalismo de fronteiras torna--se obrigatório porque as regiões fronteiriças articulam a superposição e a inclusão de diferentes culturas, em permanente tensão. Nas regiões de fronteira, a busca do entendimento da identidade passa, necessariamente, pela indagação: quem são os “nós” e quem são os “outros” cujas vozes promanam de um espaço em que se multiplica a heterogeneidade. Ao fazê-lo, o texto literário transforma a língua, incorporando a oralidade à escritura.8

No Rio Grande do Sul, o “mal estar” do homem fronteiriço está presente na obra de muitos escritores. Nascidos e criados em cidades da fronteira, como Alegrete, Livramento, Quaraí, Uruguaiana, e emigrados para a “cidade letrada”, para usar a expressão de Ángel Rama, suas obras trazem a marca lingüística da diferença que se acentua se lida em sua polifonia e, portanto, numa relação de intervocalidade, tal como concebeu o antropólogo e medievalista francês Paul Zumthor. Para ele, nas mediações da “tradição” ocorre o domínio da variante. A partir desse elemento, impõe-se a noção de “movência”, segundo a qual pode-se ouvir uma rede vocal imensamente extensa e coesa (...) que seria o murmúrio dos séculos; do mesmo modo, pode-se também ouvir, isolada, a própria voz do intérprete9.

Na literatura sul-rio-grandense, o registro escrito de expressões orais, ou os textos escritos com a intenção de preservar e representar a oralidade, sugerem examinar a polifonia, recuperando a recepção dos destinatários do texto, quaisquer que sejam as modalidades e o estilo de performance que se manifesta exclusivamente pela voz10. Além disso, é preciso observar a margem de liberdade deixada pelos textos à voz de cada um de seus intérpretes, eis que contornos frouxos os limitam de modo imperfeito; fronteiras mal traçadas, muitas vezes incompletas, unem-nos a outros textos mais do que os separam11.

As hipóteses traçadas por Zumthor, com relação à rede mediadora das comunicações intervocálicas, sugerem novo entendimento com relação à literatura sul-rio-grandense de fronteiras. Se a corrente intervocal repercute literal e sensorialmente o eco de outros textos, podendo transformá-los, a voz do narrador e a voz das personagens representam um conjunto social diversificado, porém homogêneo e coerente em suas profundeza, eis que a poesia engloba e representa todas as práticas simbólicas do grupo humano; aqui, convém lembrar que alguns textos fundadores da literatura gaúcha, como o Martín Fierro, de Hernández, o Tabaré, de Zorrilla de San Martín, e, ainda, textos registrados e recolhidos em diversos cancioneiros regionais brasileiros, põem em circulação uma rede de memórias compartilhadas. Além disso, se a intervocalidade atua ainda com mais evidência quando os poetas em causa viveram no mesmo território, cabe pensar que a relação entre os escritores fronteiriços obriga a contemplar o aspecto performático. Nesse sentido, seu repertório temático renova-se sob os influxos das analogias sociais e históricas, como representação dos imaginários de culturas limítrofes.

Embora a performance passada não possa mais ser reconstituída e, portanto, fuja à exatidão do intérprete, os estudos da literatura de fronteiras devem considerar a “movência” dos textos e suas transformações, eis que da palavra ao escrito, ou vive-versa, há uma descontinuidade12. Além disso, a voz não tem modelo mas, porque ocorreu, ela tem valor. Este identifica-se com a experiência mediada, porque toda palavra pronunciada constitui, enquanto produto vocal, um signo global e único, tão abolido quanto percebido.13 Então, se o texto literário é fruto de uma pulsão psíquica que se articula em palavras, são estas o espaço de convergência de sentimentos, visíveis, perceptíveis, recalcados que se transformam em imagens em busca de representação. A pulsão, por sua vez, decorre de experiências e de situações limites, arquivadas ou borradas na memória, que se atualizam para que o escritor possa respirar. Na região das fronteiras gaúchas, a violência da lide cotidiana, impressa no comportamento e nos procedimentos diários das estâncias e das regiões que fazem a divisa entre os países meridionais da América do Sul, potencializou-se nos imaginários das guerras e, principalmente, na indefinição do espaço de pertencimento do sujeito. Entretanto, a mediação da violência, que ocorre na voz, não se limita à diacronia dos acontecimentos. As guerras de demarcação de fronteiras, as lutas entre oligarquias dos campos, os embates pela dominância política das regiões, o caudilhismo, as charqueadas, as práticas rudes, os cometimentos que amesquinham o homem ou que o vitimizam – seja ele o índio charrua e guarani, o negro escravo, o criollo, ou o gaúcho brasileiro e rioplatense - determinam um espaço fronteiriço e seus imaginários.

Nesse sentido, estudar a mediação da violência implica examinar o processo de transformação das narrativas orais em textos escritos e o desejo, subjacente a estes, de reproduzir a força original de vozes subjugadas pelo tempo. Acredita-se, desse modo, que a mediação da voz para o texto literário, embora transforme os significados, mitigando a violência primordial, expõe as marcas dessa origem. Cumpre rasteá-las para contextualizar a voz que grita, denuncia, argumenta ou silencia, eis que o texto literário possui diferentes registros com os quais procura dar conta de compromissos éticos e estéticos que o escritor mantém com o seu tempo.

Por outro lado, sabe-se que o “entre-lugar”, o “fronteiriço”, o “híbrido” e constructos similares são conceitos teóricos já bastante saturados por conotações diversas. Têm eles em comum o fato de se fundamentarem os estudos comparados latino-americanos, representando a contribuição teórica de críticos e pesquisadores cujo pensamento e cuja visão convergem para a constatação do compromisso ético da América Latina com o conhecimento e o respeito à diferença. As duas últimas décadas de estudos comparados enfatizaram a importância das teorias pós-coloniais para o entendimento e a reavaliação crítica da cultura latino-americana. Sem perder de vista a importância da literatura, os estudos comparados estão, em sua maioria, recuperando o contexto como condição indispensável para a avaliação crítica de um processo cultural. Grupos de investigadores latino-americanos vêm-se reunindo em congressos e eventos acadêmicos, patrocinados por centros de pesquisa europeus, com a finalidade de operacionalizar projetos integrados que pesquisem, dentre outras coisas, a cultura das fronteiras. O desejo de contribuir para a compreensão desses processos estimula a escuta das vozes silenciadas pela história; mas exige também a revisão do processo hermenêutico que, com fundamentos epistemológicos datados, muitas vezes contribuiu para encerrar debates ou dar por concluídas questões às quais o tempo veio a dar continuidade. É o caso da tendência à expressão regional, que se metamorfoseia e amplia.. Essa persistência do elemento regional pode ser entendida também como resposta à “ameaça” da globalização e do cosmopolitismo decorrente da imigração de alemães, italianos, judeus, poloneses e castelhanos. Esta outra face seria o desejo de preservação de uma identidade aglutinadora gaúcha, o que explica o fato de os imigrantes participarem ativamente de centros de tradição e cultura, que funcionam como núcleos de transculturação.

O projeto que desenvolvo propõe ouvir outras vozes que, fazendo eco aos lamentos de Martín Fierro, ocupam já por dois séculos as fronteiras gaúchas. No seu percurso, tenho constatado que a violência da voz não é, apenas, metáfora da exclusão social ou do cerceamento da expressão verbal. A dominância de particularidades da voz, na leitura performática e, portanto, sintonizada com o contexto de produção, permite a hipótese de que ela recobre a dor de um corpo violado. Nele, destaca-se a profunda interação telúrica com o espaço geográfico e com a natureza transgredida. E, muito mais do que um ardil romântico, a interação dos sujeitos com seu objeto texto manifesta um desejo de pertencimento e de identidade.

Atropelados pelo capitalismo que chegava ao Brasil e pelo avanço do poder hegemônico regional, desaparecem as personagens que narraram as primeiras histórias regionais. No entanto, seu registro mnemônico opera a “tradicionalidade” não apenas como “assimilação do mesmo” mas como nova articulação de arquivos. É preciso, pois, reler e aproximar esses arquivos e, assim, recuperar a força performática das vozes de um tempo perdido que, ainda hoje, insistem em se fazerem ouvir.

NOTAS

1 - O projeto integra o projeto coletivo Arquivos brasileiros, arquivos argentinos: confluências, Linha de Pesquisa Memória e Representação Literária na América Latina, coordenado pela Profa. Dra. Maria Antonieta Pereira, GT de Literatura Comparada da ANPOLL.
2 - Os estudos de Ligia Chiappini : Regionalismo e Modernismo (1978) e No entretanto dos tempos (1988) constituem referência obrigatória quando se trata o Regionalismo Gaúcho. Neles a autora estabelece uma tipologia da narrativa regionalista, aprofundando o estudo da obra de Simões Lopes Neto.
3 - Essa opinião era também partilhada por Ligia Chiappini e Walnice Nogueira Galvão, que representaram um dos segmentos mais representativos e importantes da crítica brasileira nos anos 70 e 80.

4 - POLAR, Antonio Cornejo. La literatura hispano-americana del siglo XIX. In: STEPHAN, Beatriz Gonzales et all. Esplendores y miserias del siglo XIX: cultura y sociedad en America Latina. Caracas: Monte Avila, 1995. 11-23. p. 19.
5 - MASINA, Léa. Alcides Maya, um Sátiro na Terrra do Currupira . Porto Alegre: IEL/Unisinos, 1998.
6 - O assunto é tratado em diferentes ensaios em: MASINA, Léa e APPEL, Myrna Bier. A Geração Gaúcha de 30. Porto Alegre: EDURGS, 2000.

7 - Refiro-me ao artigo As exéquias da crueldade, cujo resumo apresentei no encontro preparatório para o Congresso da ANPOLL ,realizado em outubro de 2001, em Porto Alegre, e que foi pubicado pela Revista de Literatura Brasileira da FAPA em 2001.
8 - A propósito: TORRES, Maria Inés de. Los otros/los mismos: periferia y construcción de identidades nacionales en el Río de La pLata. In: STEPHAN, Beatriz et all: 1995, p. 243-260.
9 - Para Menéndez Pidal, a “tradicionalidade, ou “assimilação do mesmo”, procede da “ação contínua e interrupta das variantes”. Combina (contrariamente à transmissão puramente escrita) reprodução e mudança: a “movência” é criação contínua.. ZUMTHOR, 1993, p.145.
10 - Segundo Zumthor, a intervocalidade se desdobra simultaneamente em três espaços: aquele em que cada discurso se define como o lugar e transformação (mediante e numa palavra concreta) de enunciados vindos de outra parte; o de uma audição, “hic et nunc”, regida por um código mais ou menos rigorosamente formalizado, mas sempre, de algum modo, incompleto e entreaberto ao imprevisível; enfim, o espaço interno ao texto, gerado pelas relações que aí se amarram. Id. ibidem.
11 - ZUMTHOR, op. cit. p. 147.

12 - ZUMTHOR: 1993, p. 220.
13 - Id. Ibidem.

BIBLIOGRAFIA
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ZUMTHOR, Paul. A encruzilhada dos “rhétoriqueurs”. Intertextualidade e retórica. Poétique. Revista De Teoria E Análise Literárias. Coimbra, Almedina, 1979. 109-169.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000.  
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# Lyslei Nascimento - O corpo, a tradição e o arquivo: Jorge Luis Borges e Moacyr Scliar

Segundo um comentador medieval do Talmude, as quatro cores principais eram o vermelho, o preto, o branco e o verde, as cores do pó do qual o homem foi criado: vermelho do sangue, preto das entranhas, branco dos ossos e verde da pele pálida.
Alberto Manguel

Não há arquivo sem o espaço instituído de um lugar de impressão. Externo, diretamente no suporte, atual ou virtual. Em que se transforma o arquivo quando ele se inscreve diretamente no próprio corpo?
Jacques Derrida

No contexto contemporâneo, uma pseudo-expressiva democracia parece estar cooptada por um poder de consumo e de exibição do corpo que se apresenta, invariavelmente, quer no espaço público, quer no espaço privado, sob a mira de poderosos refletores, empanado de maquiagens, travestimentos espetaculares e performances de sentimentos e ações. Alheia a essa fascinação do indivíduo pela imagem do corpo – próprio e alheio – nos chamados “shows de realidade” – a crítica é, muitas vezes, falsamente tolerante às performances do corpo que se exibe e se oferece ao olhar do outro como mercadoria prêt-à-porter, alienada nos célebres minutos de fama de que já nos falava Andy Warhol.

Cada vez mais, o corpo é manipulado como suporte e objeto. No afã do consumo, ele parece perder contornos e a especificidade do ser, do indivíduo, comprometendo, assim, sua talvez ilusória corporeidade. Por isso, o corpo é submetido à máscara, à encenação e a simulação. É claro que aqui não estamos falando do teatro e da representação dramática, mas no simulacro de uma realidade que se auto-apresenta como verídica e espontânea.

O corpo, dessa forma, é encenado numa tentativa de virtualizar o que de humano ainda resta nesse tipo de representação. O braço erguido, a partir dessa perspectiva, não é mais o braço e o tronco pode oferecer-se como página, tela ou massa de modelar. A espetacularização do objeto-corpo faz com que a leitura do corpo, antes confinada aos limites da pele, migre para o domínio do obsceno, daquilo que está fora da cena, paradoxalmente, para além do corpo.

A contrapelo da exibição narcísica e consumista do corpo-objeto, alguns artistas se empenham na recuperação de uma memória do corpo abrindo tensões, abalando pseudo-anatomias e reavaliando o conceito de corpo diante de um mundo que perdeu, de uma certa forma, a memória do próprio corpo. Os fragmentos dessa arqueologia dá-se através de traduções quase arcaicas do passado. O corpo é, assim, resgatado do frio esquecimento do objeto, exumado do arquivo morto da metáfora para, alucinado e delirante, propor um viés. O corpo resgatado pode se apresentar, paradoxalmente, no instante fugaz dessa recuperação, como um arquivo desmemoriado e amnésico, arquivo primitivo e ancestral que ressurge no corpo, inscrito na pele, através de vestígios e tatuagens: cicatrizes da memória.

No fabuloso livro dos seres imaginários2, numa espécie de manual de estranhos seres, uma miscelânea incompleta, como o são todas as miscelâneas e todos os arquivos, Jorge Luis Borges anuncia que é seu desejo que os curiosos que porventura viessem a freqüentar aquelas páginas, pudessem, de alguma maneira, brincar com as formas variáveis da sua escrita reveladora de um mundo que se apresenta, como no nosso tempo, um caleidoscópio.

Borges dedica um dos seus verbetes ao Golem. A lendária criatura da tradição judaica, cujo relato mais célebre é aquele construído pelo Maharal de Praga, o Rabi Judá Leon, no século XIV. As informações contidas no verbete expõem alguns detalhes de sua criação através da combinação de letras. Essa possibilidade, que tanto provocou a alma investigativa dos cabalistas, afiançava que no Livro ditado pela inteligência divina, as Sagradas Escrituras - nada podia ser admitido como casual, nem sequer o número das palavras ou a ordem dos signos. Assim, eles se dedicaram a contar, combinar e permutar as letras da Escritura Sagrada, urgidos, afirma Borges, pela ânsia de penetrar nos arcanos do Eterno e recriar o mundo.

Conta-se, na velha lenda judaica, que quando o gueto de Praga estava sendo saqueado, as mulheres violadas e as crianças queimadas, o rabino Judá Leon (1525 – 1609), moldou um corpo humano de argila. As assoprar nas suas narinas, esse corpo, antes sem vida, começou a se mover. Então, o rabino sussurrou no ouvido da criatura uma palavra mágica e escreveu na sua testa (algumas versões dizem que a escrita foi na mão ou num pequeno pergaminho que foi introduzido na boca do homem de barro) a palavra hebraica ‘met, que significa verdade. Alguns relatos afirmam que a palavra escrita e assoprada pelo rabino é o Nome perdido de D´us, o selo da verdade.

O Golem, depois de adquirir fôlego de vida, saiu do gueto e atacou os agressores, massacrando-os. Há inúmeras variações, também, do que se segue na narrativa. Uma afirma que o Golem, aspirando a ser homem, apaixona-se pela filha do rabino e este, temeroso dessa união, decide destruí-lo; outra assinala o caráter torpe do Golem quando o rabino, ao se esquecer de retirar o selo do Golem, este, em frenesi, corre pelas vielas do gueto destruindo tudo que havia a sua volta até que o selo, a palavra mágica, é quebrado e o corpo orgânico do Golem se transforma em pó. Ainda em outra versão, o Golem é destruído apagando-se da palavra/selo ‘emet, a letra inicial, o Aleph. Ao se apagar o som aspirado do da primeira letra do alfabeto hebraico, o som vocálico desaparece e ‘emet se torna met, que significa morto.

No corpo do Golem, as palavras e as coisas adquirem outras significações. Elas recuperam os desígnios da vida e da morte, os registros ancestrais da criação. O caráter de falibilidade e mortalidade da criatura, porém, espelha as incompletudes tanto desse corpo criado pelas mãos e pelas palavras do rabino, emulando a criação do homem por Deus, quanto da escrita. O jogo com as letras e as palavras, com as combinações e os remanejamentos do alfabeto, espelham, misteriosamente, a escrita de D´us ao criar o homem.

No poema de Borges, o caráter místico e sacralizado da lenda é filigranado pelos jogos entre palavra e criação e entre criador e criatura; pelo caráter reduplicador dos relatos, das imagens, dos temas e, também, pelo acúmulo de classificações, listas, ordenações que estão sempre assinalando a impossibilidade de um arquivo fechado, de um corpo fechado. O tom de fábula que o poeta simula no poema confere um desdobramento mágico entre o tempo da escrita e o tempo narrado em que Adão e as estrelas conheciam o Nome misterioso e terrível de D´us.

A insinuação de uma dúvida poética, dizem os cabalistas, referenda menos a citação do que a ela põe crédito. O pecado, dizem, rasurou o nome poderoso, o verbo da criação, o Nome terrível. Dessa rasura resulta o esquecimento de como pronunciá-lo. A inscrição e sua rasura provocam, pois, uma perda: o esquecimento do Nome, o esquecimento do ato criador.

Através de procedimentos de busca do saber, os exercícios narrativos, na esfera das práticas combinatórias, o artificioso, Rabi Leon, tal qual um escritor quando se debruça no ofício de escrever, se deu a permutações de letras e a complexas variações. Por esses exercícios cabalísticos, se esforçava em descobrir o que julgava perdido entre as páginas da Escritura ¾ o Nome que é a Chave. A construção do Golem ¾ esse corpo informe, amorfo ¾ no poema de Borges, visa flagrar o homem em seu desejo de resolver o mistério e o enigma do Universo e da criação a partir da escrita e do saber inscrito no corpo. O rabino, por isso, tenta ensinar ao Golem as misteriosas configurações das Letras, a concepção ilusória e convencional do que se pode chamar de Tempo e a conformação do Espaço.

A transmissão desse saber se mostra infrutífera e impossível. O Golem levantava as sonolentas pálpebras e nada entendia, perdido em meio ao que para ele não passava de rumores. O espelhamento, tão peculiar aos textos borgianos, dá-se, então, quando o Golem é encenado, tal como o homem, aprisionado na rede sonora do Antes, do depois, do ontem, do agora, da direita, da esquerda, do tu e do vós.

Esse rol complexo, que abarca quase todo o infinito de especulações, pouco a pouco se reduz ao apelo, entre infantil e perverso, do rabino que aponta para o pé e a corda, para os princípios primários do que é próprio e do que é alheio. Como uma espécie de consciência do infinito saber e da impossibilidade do homem que, em sua finitude, não pode abarcar tudo.

Borges, entre parênteses, chama a atenção do leitor para a exata referência a Scholem e ao seu estudo sobre a Cabala junto à imprecisa localização: em um douto lugar de seu volume. Essa tensão entre o exato e o que se perde entre as páginas de um livro, considerado de referência, relativiza a visão do leitor e o alerta para a dificuldade de se fixar qualquer saber, mesmo que um corpo esteja sendo conclamado ao testemunho.

A tensão refletida na incapacidade do Golem (aqui em efeito especular com o homem) para aprender o que há de mais simples encontra no texto uma justificativa: talvez tenha havido um erro na grafia ou na articulação do Nome Sagrado. Esse Nome perdido constitui-se como o mistério da criação do homem e da escrita. Só se pode conceber esse tipo de arquivo da memória de forma parcial, provisória, rasurada ou errada. A imperfeição determina falibilidade da criação do rabino, mas, também, a possibilidade de multiplicação e de resistência da narrativa ao repetir, infinitamente, o ato de recombinar, reinscrever e recapitular a tradição.

A derradeira e irônica posição de Borges denuncia não só a apropriação feita pelo escritor do arquivo judaico, mas também revela sua prática de intervir e redimensionar as tradições. Um elemento estranho é assim trançado à lenda dentro do poema: Algo anormal e tosco ocorreu ao Golem, já que a seu passo o gato do rabino se escondia (esse gato não está em Scholem, mas, através do tempo, eu o adivinho.).

O gato do rabino, inserido por Borges no texto, é um elemento que compõe a cena enxuta da narrativa da lenda e agrega a ela esse detalhe outro. A Borges não interessa somente repetir a lenda em forma poética, mas entretecer nela novos e inusitados elementos que são dissimulados, referenciais ou adulterados, como a referência a Scholem e a imprecisão das citações, ou como o gato do rabino que, ao detectar algo que, subliminarmente assombra o corpo do Golem, abre o texto poético para outras narrativas possíveis. Cada um desses elementos interfere no texto da lenda (não há que se dizer original, visto que ele próprio é volatilizado em um sem-número de versões que filigranam o sentido de texto primeiro, original ou verdadeiro).

O rabino de Borges tem consciência que, embora falho, o seu ato imperfeito de criação gerou mais um símbolo que, por sua vez, gera novos efeitos e novas causas. A astúcia e a ironia de Borges brilham na pergunta final do poema: Quem nos dirá as coisas que sentia Deus ao olhar para seu rabino em Praga? Dessa forma, Borges também suplementa a lenda judaica na medida em que oferece uma versão (seu gato), sua letra, sua inscrição.

Como uma caixa dentro da caixa, o Outro judaico em Praga, nos tempos do Rabi Judá Leon, cria um Outro de si mesmo, o Golem, e sobre ele inscreve a tradição, a língua hebraica, a fórmula cabalística. Arquivada no corpo do Golem, essa palavra/verdade precisa ser controlada e, constantemente, reavaliada. Num outro texto, o romance O centauro no jardim, de Moacyr Scliar, o corpo – estranho e híbrido – também é suporte para a tradição que ali se inscreve e se escreve, desta feita de forma incerta e amnésica.

A narrativa se inicia com uma falsa alegria e não sem um certo alívio: somos, agora, iguais a todos. Já não chamamos a atenção de ninguém. Passou a época em que éramos considerados esquisitos. Essa frase inquietante de Guedali, um ex-centauro, assombra e, de uma certa forma, coloca o leitor diante de um enigma: pode ser que, no fundo, todos, judeus e não-judeus, sejam centauros, sacrificando peculiaridades, diferenças e características individuais para serem aceitos por uma sociedade absolutamente hipócrita. Guedali passara por uma série de cirurgias plásticas para perder sua aparência de centauro. Seu corpo meio humano, meio cavalo é modelado de forma a exibir o que se concebia como normal: a nova aparência normal esconde, no entanto, sob a pele, a outra natureza. Para Regina Igel, “a incômoda situação é resolvida por uma operação cirúrgica que vai eliminar as patas eqüinas, os cascos e o couro cavalar dos dois. Sua condição fundamental é transformada em outra: em troca dos galopes da liberdade, os passos miúdos da mediocridade” 3.

A história, no entanto, não começa ali naquele exótico restaurante tunisiano, em Porto Alegre, onde ex-centauros se sentam para jantar, mas numa pequena fazenda, no interior, no Distrito de Quatro Irmãos/RS. As primeiras lembranças de Guedali são, como ele mesmo afirma, viscerais, arcaicas, vagas e confusas:

Estou deitado sobre a mesa. Um bebê robusto, corado; choramingando, agitando as mãozinhas – uma criança normal, da cintura para cima. Da cintura para baixo, o pêlo de cavalo. As patas de cavalo. A cauda, ainda ensopada de líquido amniótico, de cavalo. Da cintura para baixo, sou um cavalo. Sou – meu pai nem sabe da existência deste substantivo – um centauro.

Os pais de Guedali eram judeus russos. Com pogroms ou não, gostavam da aldeia onde viviam. Porém, uma invasão dos cossacos deixaram-na cheia de cadáveres mutilados e as casas em ruínas fumegantes, diante disso, resolvem aceitar a ajuda do Barão Hirsch que, em seu castelo, em Paris, acordava no meio da noite, assustado, ouvindo o tropel das patas dos cavalos sob os corpos dos judeus. A visão desses cavalos não o abandonava, então, arquiteta um plano para salvá-los: com dois milhões de libras ele poderia trazer os judeus para a América do Sul. Em seu sonho, afirma o narrador, via campos cultivados, casas modestas, mas confortáveis, escolas agrícolas. Via crianças brincando nos bosques... nunca, no entanto, o Barão poderia, em sua mais fantasiosa utopia, imaginar que, nos bosques do Brasil, galoparia um menino centauro, um centauro judeu.

O estranho menino cresce. É preciso crescer e se adaptar. Também é preciso que o menino seja introduzido no judaísmo. O pai de Guedali é homem de poucas luzes, porém descende de uma família de rabinos e ele sabe da Lei. Ele confia no bom senso, no instinto; sabe interpretar as próprias reações – o arrepio dos pêlos do braço, o bater do coração, o calor no rosto, tudo isto lhe diz coisas. Às vezes, tem a impressão de que a voz de Deus lhe fala de dentro, de um ponto situado entre o umbigo e a boca do estômago.

Por isso, é preciso circuncidar o menino. A família está reunida na sala de jantar. O mohel cumprimenta a todos e pergunta pelo bebê. O pai o tira do caixote e o coloca sobre a mesa:

Meu Deus, geme o mohel, deixando cair a bolsa e recuando. Dá meia-volta, corre para a porta. Meu pai corre atrás dele, segura-o; não foge mohel! Faz o que tem de ser feito! Mas é um cavalo, grita o mohel, tentando soltar-se das mãos forte do meu pai. Não tenho obrigação de fazer a circuncisão em cavalos. Não é cavalo, berra meu pai, é um menino defeituoso, um menino judeu!

O mohel se aproxima, o pai afasta as patas traseiras do menino e ali estão, frente a frente, o pênis e o mohel, o grande pênis e o pequeno mohel, o pequeno e fascinado mohel. Cavalo ou não, há um prepúcio e ele fará o que a Lei prescreve. Em poucos minutos, a coisa está feita e apesar de tudo, a lei foi cumprida.

Algo da ordem do absolutamente fantástico jaz nessa narrativa. O corpo monstruoso de Guedali, a sensação de diferença, de bizarria, se incorpora ao seu modo de viver. Além de judeus, ele é um centauro. O estranho e estrangeiro se justapõe dentro do estranho outro. Guedali é estranho para o seus e para os outros, no entanto, a Lei precisa ser cumprida no corpo para que a memória possa ser, mesmo que parcialmente, ativada. O Brit Milá (o pacto da circuncisão) simboliza o sinal da Aliança de Deus com Abraão, com o povo judeu. Essa Aliança implica o reconhecimento de D´us e de Sua palavra. Cada vez que um recém-nascido é iniciado na Aliança, o povo de Israel é lembrado da possibilidade de se alcançar a luminosidade espiritual perdida desde tempos imemoriais.

O brit é uma marca de pertinência gravada e inscrita no corpo e na alma judaica, um mandamento que vem sendo cumprido há cerca de 3700 anos com fidelidade quase absoluta. Apenas durante os 40 anos no deserto, após o Êxodo, é preciso registrar, os judeus não observaram a circuncisão. O risco para a vida dos hebreus, naquelas condições, teve primazia sobre a lei. Em muitos outros momentos da história, apesar de perigos extremos, os judeus se mantiveram fiéis ao Brit Milá. Durante o domínio grego na época de Chanuká, na Inquisição, durante o Holocausto e nas prisões da Rússia stalinista, muitos arriscaram suas vidas e as vidas de seus filhos por sua lealdade a essa Aliança. Mesmo as famílias mais profundamente assimiladas, muitas vezes sem compreender porque, mantêm o ritual como único elo com a tradição.

Dessa forma, a circuncisão, torna-se um arquivo inscrito no corpo judaico. Perpetuado esse arquivo se desenha no corpo e o fere, estabelecendo com a tradição uma marca permanente, uma cicatriz que sobrevive para além do esquecimento. O corpo registra impassível sua condição de Outro, testemunha, memória e arquivo da tradição.

Scliar, no entanto, exacerba esse contrato com a Divindade, com a memória e os ritos de passagem onde o corpo é modificado e, apesar disso, configura-se como um arquivo. A diferença essencial judaica é multimensionada no corpo meio-homem, meio-cavalo de Guedali e em sua ânsia de ser um como os outros. O centauro exibe, dentro da diferença, uma diferença crucial que é o estranhamento de si mesmo. No espelho do mundo, o estranho precisa entrar na norma para ser aceito. Desnorteando os sentidos, porém, a Lei é cumprida para que a memória permaneça no corpo através de vestígios, marcas perdidas sobre a pele.

NOTAS

1 - Cf. SELIGMAN-SILVA, Márcio. Do delicioso horror sublime ao abjeto e à escritura do corpo. In: ANDRADE, Ana Luiza, ANTELO, Raul, CAMARGO, Maria Lúcia de Barros. (Org.). Leituras do ciclo. Florianópolis: Grifos, 1999. p. 123-136.

2 - BORGES, Jorge Luis e GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. Trad. Carmem Vera Cirne Lima. Rio de Janeiro: Globo, 1985. p. 77.

3 - IGEL, Regina. Emigrantes judeus, escritores brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1997. p.151.  [topo da página]

# Maria Antonieta Pereira - Entre-lugar e ex-tradição – as picadas do discurso latino-americano
Em Tristes trópicos, ao relatar suas impressões relativamente aos primeiros contatos com os índios Nambiquara, Lévi-Strauss trabalha a partir de um título disseminador do sentido. O título “Na linha” remete ao cabo telegráfico instalado pela expedição Rondon ligando a capital federal, via Cuiabá, ao extremo norte do Brasil e, simultaneamente, à picada aberta na floresta ao longo do trajeto dessa linha:

A pista sumariamente desmatada que acompanha [a linha telegráfica] – a “picada” – fornece o único ponto de referência em setecentos quilômetros (...) o desconhecido principia nas duas beiras da “picada”, supondo que seu traçado seja ele próprio indistinguível da selva. É verdade que há o fio; mas este, que perdeu a utilidade logo depois de instalado, está frouxo entre os postes que não são substituídos quando desabam de podres, vítimas dos cupins ou dos índios que confundem o zumbido característico de uma linha telegráfica com o de uma colméia de abelhas selvagens trabalhando. Em certos lugares, o fio se arrasta no chão; ou foi pendurado com displicência nos arbustos próximos. Por mais espantoso que pareça, a linha aumenta, mais do que desmente, a desolação do local. (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 256)

Na descrição de Lévi-Strauss, a picada na terra funciona como uma réplica do fio suspenso no ar: intermitentes, inúteis e margeadas pelo desconhecido, essas linhas se configuram mutuamente e seguem adiante, selva adentro, evocando um desejo para sempre ali inscrito e o trabalho sobre-humano de se tentar obter o tráfego das muitas vozes que então circulavam pelo território nacional. Materializado também nos postes em ruínas, o duplo risco desdobra-se num terceiro elemento, numa outra forma do mesmo fio que avança pelo interior da floresta, passo a passo, poste a poste. Sendo madeira e ao mesmo tempo distinguindo-se da floresta, os postes estão perfilados - como um exército que se petrificou na fronteira entre civilização e barbárie - ou derrubados por minúsculos cupins.

Contudo, o fato mais curioso dessa cena talvez seja a leitura que dela fazem os índios, ao confundir seu zumbido com o som de abelhas em febril atividade. Por evocar a possibilidade de obtenção de nutrientes, o ruído do telégrafo provoca a ação destruidora da tribo que, ainda sendo coletora de alimentos, já é forçada a conviver com as tecnologias da modernidade. Assim, o que para a expedição Rondon foi um projeto de integração nacional, para os índios significou uma possibilidade de nutrição frustrada, à medida que constituiu uma simulação perfeita de colméia. Dessa forma, o sentido das vozes registradas por Lévi-Strauss permanece “frouxo entre os postes” – pode ser vítima de cupins, às vezes desaba de podre, ou se arrasta no chão e nos arbustos, com displicência. Interpretado pelos Nambiquaras como algo que pode ser comido, o som familiar é também o ruído de uma linguagem estrangeira, cuja significação está suspensa entre selva, terra e céu.

Construído como um idioma sucinto e inteiramente destituído de uma história natural, o código Morse foi feito para ser lido. Ao se constituir como inscrição, ele reitera a ausência como um pressuposto de sua própria fatura e, portanto, como elemento questionador do fonocentrismo. Contudo, ao preservar certos vestígios da presença – operando com ruídos e ritmos que recordam a phoné – o código Morse apresenta-se como uma linguagem tão própria do Ocidente que chega a ser chamado de “alfabeto Morse”. E é justamente nesse sentido que tem sua aparente universalidade ironizada pela audição nambiquara. Perdido na mata virgem, o idioma tem seu sentido ocidental corrompido e constitui-se como um jogo entre presença-ausência, no sentido derridiano da expressão, tal como se encontra registrado em Gramatologia, quando seu autor elabora, a partir de Lévi-Strauss, um sentido para “picada”:

(pista grosseira cujo “traçado” é quase “indiscernível do mato”: seria preciso meditar conjuntamente a possibilidade da estrada e da diferença como escritura, a história da escritura e a história da estrada, da ruptura, da via rupta, da via rompida, varada, fracta, do espaço de reversibilidade e de repetição traçado pela abertutra, pelo afastamento e espaçamento violento da natureza, da floresta natural, selvagem, selvagem (...) a via rupta escreve-se, discerne-se, inscreve-se violentamente como diferença, como forma imposta na hylé, na floresta, na madeira como matéria; é difícil imaginar que o acesso à possibilidade dos traçados viários não seja ao mesmo tempo acesso à escritura). (DERRIDA, 1973. p. 133.Grifos do autor.)

Enquanto forma de ruptura da floresta, a picada funciona, para Derrida, como uma evidência de escritura, como um risco que “põe em risco” qualquer cultura: a ocidental, que a erigiu – fraturando o espaço contínuo da selva – e a marginalizou - à medida que a transformou imediatamente em ruína -, e a nambiquara, que a sonhou como um corredor por onde passava o zumbido do alimento e, certamente, como uma diferença radical a violar a paisagem. Além disso, a linha de Rondon mergulha ambas as culturas no paradoxo de criar, a partir de rastros próprios - alimento ou telégrafo –, uma estranha referência, sob a forma de uma inscrição cujo traçado é praticamente “indistinguível” da selva. Enquanto pista, embora “grosseira”, a via rupta configura um guia e, ao mesmo tempo, confunde-se com a natureza cuja selvageria cuida interromper. Nesse caso, o traçado viário é um instrumento de orientação e perturbação: embora configure a possibilidade de um marco seguro no labirinto verde, acaba por comprometer tal distinção já que ele mesmo pouco se distingue desse espaço, que é sempre igual para os não-índios. Portanto, a via fracta acaba por exercitar, através do princípio de auto-semelhança, a inviabilidade de si mesma como marco diferencial. Assim também, embora atue como índice de progresso, integração nacional e modernidade, a picada já nasce como ruína, seja porque a selva volta a ocupar o terreno de onde a expulsam, seja porque a tecnologia do telégrafo foi considerada obsoleta, logo após ter sido instalada1. Portanto, enquanto “espaço de reversibilidade e de repetição”, a estrada também pode ser lida como uma forma que permite ao Ocidente repetir-se, mas revertendo-se. Por isso mesmo, pode-se perceber a picada como o espaço em que a floresta começa a ser outra coisa, sem deixar de ser floresta. Contudo, aquilo que constitui a diferença – a picada – “inscreve-se violentamente” no continuum da selva. Cria-se, portanto, uma tensão permanente entre pista e floresta, ambas em estado de agressão mútua. Enquanto um indecidível, a escritura também configura a estrada por onde o sentido se propõe como repetição e diferença, “como forma imposta na hylé” seja ela uma selva-selva ou uma selva-civilização.

Segundo Evando Nascimento, a relação entre as duas linhas, proposta por Derrida, configura

uma boa ilustração do devir-signo da natureza (abertura do caminho como inscrição do rastro), e do devir-natureza do signo (uma vez inscrito, torna-se a marca própria e essencial de uma cultura). Nem propriamente selvagem, nem propriamente civilizado, o signo é a coisa que se inscreve, rastro escrito de um aparelho nem finito, nem infinito, indecidível. (NASCIMENTO, 1999. p. 186. Grifos do autor)

A natureza indecidível do signo está presente não apenas nos resultados inegáveis de intervenções concretas da cultura – como um caminho artificial - mas sempre que algo signifique algo para alguém, ou seja, em toda circunstância em que circule um sujeito capaz de construir processos simbólicos. Sendo assim, a própria natureza configura-se como signo que, sofrendo a inscrição da picada, exacerba sua sujeição à potência do rastro. Noutras palavras, enquanto devir do próprio signo, a natureza também funciona como um rastro cuja virtualidade é desencadeada pela atuação de processos simbólicos e, por isso mesmo, ela também se constitui como um indecidível, “nem propriamente selvagem, nem propriamente civilizad[a]”. Como sombra uma da outra, natureza e picada coexistem, estranham-se e mantêm-se na fronteira do sentido, sob um olhar que lhes atribui significação.

Frouxa no ar e semi-apagada na terra, a inscrição realizada pelo cabo telegráfico e pela picada constrói um sentido, ainda que ele permaneça no campo do indecidível, apresentando-se, portanto, como rastro, razão pela qual também se constitui como uma referência na vasta região selvagem. Contudo, trata-se de uma referência precária à medida que, além de ser o único marco possível para níveis não-índios de saber, também não garante a observância de determinados elementos do ritual do conhecimento do mundo ocidental, tais como universalidade, previsibilidade, logicidade. Condenada ao silêncio, à inatividade, ao desaparecimento e incapaz de expandir para seu entorno suas propriedades modernizadoras, a linha mostra-se incompatível com a selva e a civilização, e “aumenta, mais do que desmente, a desolação do local”. Apesar disso, ela constitui a única referência num raio de setecentos quilômetros, numa região do tamanho da França, e que recorda a estranheza da Lua (quando a Lua ainda não tinha sido pisado por astronautas).

Embora a picada constitua um ponto geográfico estável, em termos culturais ela se move e, assim, torna-se um instrumento compósito, um conceito-metáfora capaz de auxiliar na leitura do lugar e da função da crítica latino-americana contemporânea2. Nesse caso, seria interessante retomarmos uma produção sobre a qual já nos debruçamos inúmeras vezes e que nos parece ainda merecedora de várias abordagens, à medida que vem configurando, ao longo de anos, um pensamento crítico capaz de permitir a leitura da América Latina não mais como espaço geográfico, mas como região cultural. Sendo assim, consideramos que o trabalho ensaístico de Ricardo Piglia e Silviano Santiago extrapola o campo específico da crítica literária e propõe novas formas de localização desse texto, as quais, freqüentemente, constituem justamente processos de des-localização da memória, com o intuito explícito de promover novas formas de resistência cultural. Ambos os autores redimensionam, portanto, o locus de enunciação latino-americano, seja quando o liberam do grande peso da dívida em relação aos centros europeus, seja quando o situam num contexto mundial, relativizando seu valor como espaço de uma identidade fixa.

Mais uma vez, remetemos aos conceitos de memória, tradição e exílio, propostos por Ricardo Piglia, em 1990, quando ele já afirmava que o escritor

é como o rastreador do Facundo, busca na terra o rastro perdido, encontra o rumo nas pegadas confusas que ficaram na planura. (...) Um escritor trabalha no presente com os rastros de uma tradição perdida.
Um escritor trabalha com a ex-tradição. Por um lado o que foi, a história anterior, quase esquecida e por outro lado a obrigação semijurídica (...) de ser levado à fronteira. Ou trazido a ela: sempre pela força. A extradição supõe uma relação forçada com um país estrangeiro. (PIGLIA, 1990. p. 61)

Poucas vezes um autor demonstrou tanta clareza sobre a situação da literatura na América Latina. Ao mesmo tempo em que ele pensa o lugar do texto nacional - cujas especificidades estão ligadas à História do país, à tradição que se desenvolveu dentro de certas fronteiras geográficas, lingüísticas e culturais - também pensa seus atributos como formas de desterro e, portanto, de criação de um espaço não-nacional. Ao trabalhar com uma memória cujos rastros fragmentados potencializam uma nova produção, o escritor explora as fronteiras da tradição nacional, em seus muitos sentidos – como algo que já se concluiu, que muitas vezes se transformou em paradigma e, justamente por isso, remete ao que lhe é exterior, serve como medida de avaliação do que o excede. Nesse caso, o conceito de fronteira coloca em operação a simultaneidade do dentro/fora: a fronteira propõe-se, então, não mais como um continente do conteúdo fixo da identidade, mas como obstáculo a ser ultrapassado. Ela mesma se encarrega de municiar o escritor com a dinâmica da memória seja ressaltando a existência virtual do passado, seja operando por falhas e panes que instigam a investigação ou mostrando as possibilidades de reconstrução das cenas, através do rearranjo das ruínas. Confundido com a fronteira, o passado convoca aqueles que o evocam, no sentido em que Borges já definiu os precursores de Kafka.

A dinâmica da ex-tradição não se desenvolve, segundo Piglia, senão pela força, pela relação forçada com um país estrangeiro. No entanto, nem sempre podemos pensar o país estrangeiro como um território fora da geografia nacional. Especialmente em tempos de globalização, os limites entre os países não se prendem apenas à superfície terrestre, mas às fronteiras culturais e às relações entre regional, local e global. Megacidades como New York, São Paulo, Buenos Aires e Tókio funcionam como centros urbanos cuja pulsação pode ser sentida em espaços muitos distantes de suas fronteiras geográficas, em outro hemisfério, do outro lado do mundo. Certas culturas, ao liderarem a revolução tecnológica da atualidade, irradiam seu poder para além do próprio planeta e vão riscando, no vasto espaço sideral, uma escritura orbital e incessante, que atua como o relato de fundação de um tempo que não pode ser medido pelas convenções da Terra, de uma consciência espacial não-geográfica (do grego “ge” = Terra). Nesse contexto, a tradição literária sofre o impacto de novas linguagens e tematiza seu próprio drama: entendida como um bem simbólico da nação, seu discurso, todavia, não pode mais corresponder ao modelo de nação do século XIX, em cuja base havia conceitos excludentes – origem, raça, língua, território – os quais revigoraram velhas formas de escravidão sob a novidade do colonialismo. No mundo contemporâneo, o estrangeiro está dentro da nação, através de telas, linhas e antenas que garantem a comunicação em tempo real entre quaisquer partes do planeta. No caso do Brasil, desde sempre, a forte mesclagem étnico-cultural construiu a nação a partir de uma verdadeira guerra de linguagens, em que a categoria estrangeiro alojou-se dentro do próprio conceito de nacional.

De qualquer forma, o rastro perdido no pampa argentino equivale à picada na floresta brasileira. Em ambos os espaços, a nação encontra obstáculos para se realizar enquanto projeto de modernidade e progresso. Na vastidão desses desertos verdes, os interesses nacionais gaguejam e zumbem, à procura de modelos próprios. Estrangeiras a si mesmas e tardiamente modernas, as vozes exiladas da tradição correm o incessante risco de romperem as fronteiras próprias e alheias, realizando-se como objetos compósitos, híbridos. Como um rastreador, o escritor coleta os restos confusos de um passado onde sempre ressoaram várias línguas, construindo sua recordação a partir de ausências, falhas, traduções e citações. Essa “relação forçada com um país estrangeiro” – que é seu próprio país – transforma o escritor naquele que preserva a tradição do outro. A tradição européia que, hegemonicamente, conformou as literaturas da América Latina sobrevive, entre nós, graças à releitura que dela faz a memória cultural do continente. Sendo assim, ao rastreador latino-americano é atribuída a função simbólica de criticar/transformar/conservar a memória do colonizador. Ao desempenhar sua função, ele o faz em conflito permanente consigo mesmo e com as culturas afro-ameríndias, cujas memórias também requisitam sua atenção de forma eloqüente, com a força do que está obstruído e deseja escapar do recalque.

Erigindo-se como uma picada na mata, o pensamento crítico de Silviano Santiago também se orienta por meio de referências móveis. Comentando Keith Jarret no Blue Note, (SANTIAGO, 1996)3 o escritor mostra como seus contos não são apenas uma homenagem ao pianista, mas principalmente uma apropriação do critério de improvisação do jazz. Para Silviano, desde a paródia da modernidade até o pastiche da pós-modernidade, os autores têm desenvolvido propositadamente um texto de segunda mão, fato que os leva ao paradoxo de exercitar a criação enquanto citação. Em seu caso particular, o autor opta por elaborar um texto sem transparência e, ao invés de citar um trecho de outra obra, ele prefere citar o próprio estilo de seu autor. Essa proposta estética, inaugurada no romance Em liberdade (SANTIAGO, 1981) também pode ser pensada a partir da teoria do hipertexto, especialmente no que diz respeito ao sexto princípio elaborado por Pierre Lévy, o da mobilidade dos centros (LÉVY, 1993, p.26).

Na paródia, os textos estabelecem uma relação dual, previsível e hierárquica, em que o texto parodiado permanece visível no texto que o parodia e, assim, conserva seu lugar de texto primeiro. No pastiche, não mais se encontram relações entre textos, mas entre estilos de se fazer textos. Quando Silviano Santiago escreve seu romance, ele não está simplesmente escolhendo um texto de Graciliano Ramos para como ele dialogar: Memórias do cárcere funciona como o elemento deflagrador do processo de escritura e não como seu centro. Na verdade, Santiago efetiva o mesmo modelo textual que está presente em A cidade ausente (PIGLIA, 1993). Tanto o escritor brasileiro quanto o argentino elaboram um projeto ficcional que libera seus precursores do sofrimento causado pelas memórias do cárcere ou pelas recordações da mulher amada e perdida. Os estilos de Graciliano Ramos e Macedonio Fernández, dessa forma, permanecem em pauta à medida que interferem na fatura do texto contemporâneo.

Numa relação mais arriscada e complexa, contudo em liberdade, Silviano Santiago toma para si o estilo alheio e assume, ao mesmo tempo, dois papéis autorais. Nesse sentido, ele precisa recuperar uma memória cultural e nacional, que lhe vem por meio da memória de Ramos, por ele apropriada. Contudo, ao pretender resgatar uma memória pessoal e escritural que, rigorosamente, está sendo reinventada, Silviano Santiago constrói um labirinto mnemônico – mescla seu próprio recordar ao recordar de Graciliano Ramos que, por sua vez, em sua condição fantasmagórica de personagem, evoca o estilo de Cláudio Manuel da Costa. À medida que essa cadeia narrativa também constitui um memento à morte de Vladimir Herzog, uma curiosa memória do presente insinua-se no âmbito das recordações e serve para atualizar situações narrativas de outros tempos.

Assim, ao leitor de Em liberdade não é dado acesso direto a nenhum texto de quaisquer dos autores tematizados no romance. A proposta escritural de que participa convoca-o a ler estilos de texto: junto com escritores pertencentes ao cânone brasileiro, ele desenvolve uma reflexão sobre esse mesmo cânone, dessa forma considerado assim não como uma forma engessada da literatura, mas como a própria tradição nacional – a ex-tradição proposta por Piglia. Essa forma de contar estórias desenvolve-se criando uma espécie de vertigem narrativa: desloca o texto literário do centro das operações lingüísticas, mas preserva-o como elemento relacional, que permite a costura entre redes de significação disseminadas no tempo, no espaço, nos indivíduos, nos estilos. Portanto, se nesse processo o literário não funciona mais como referência privilegiada, por outro lado, ele permanece como o meio que permite a interação entre as memórias evocadas – ele sai do centro, mas não sai da roda. Pelo contrário, ele faz a roda rodar. Ao azeitar a junção de textos – da cultura e da memória - até então desconexos, a literatura permite a emergência de outro jeito de narrar, liberando o sentido para que se componham novas trajetórias discursivas. Nesse rumo, a dinâmica da literatura, sempre des-centradora na perspectiva derridiana, encontra na metáfora do hipertexto uma forma nova de se realizar: seus diversos centros

são como pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de um nó a outro, trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas raízes, de rizomas, finas linhas brancas esboçando por um instante um mapa qualquer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar mais à frente outras paisagens do sentido. (LÉVY, 1993. p. 26)

Pensar o texto literário como um hipertexto só é possível porque essa metáfora se afirma num contexto pós-estruturalista, em que as considerações de Lévi-Strauss já foram suficientemente debatidas, criticadas e relidas pelo pensamento crítico ocidental. Nesse espaço, em que se percebeu que o civilizado/moderno pode ser selvagem e vice-versa, a América Latina parece ter iniciado um processo de liberação de sua memória, assumindo sua hibridez como instância de alta produtividade crítica e literária. O trabalho ensaístico-ficcional de Piglia e Santiago contribui, assim, para liberar a memória latino-americana de sua tradição de penúria intelectual e dependência cultural - para que ingresse em outro estado, em que o rastro perdido no pampa ou a picada na selva signifiquem o enfrentamento produtivo de uma ex-tradição.

NOTAS

1 - Logo que Rondon terminou, por volta de 1922, a instalação da linha telegráfica, esse sistema de comunicação foi superado pela radiotelegrafia. Cf. LÉVI-STRAUSS, op. cit. p. 246.

2 - No Brasil, a produtividade crítica da picada vem desde o Romantismo. Na “Carta ao Dr. Jaguaribe”, quando justifica alguns procedimentos usados na construção de Iracema, José de Alencar refere-se a ela para explicar o conceito de piguara ou “senhor do caminho”: “O caminho no estado selvagem não existe; não é coisa de saber; faz-se na ocasião da marcha através da floresta ou do campo, e em certa direção; aquele que o tem e o dá é realmente senhor do caminho.” (ALENCAR, 1988. p. 90).

3 - Diálogo desenvolvido entre Silviano Santiago, professora e alunos da disciplina “Seminário de literatura e outras artes”, em 10/02/2000 (PósLit/FALE/UFMG).

Bibliografia
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. M. Schnaiderman, R. J. Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 1973.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Trad. R. F. D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência – o futuro do pensamento na era da informática. Trad. C. I. Da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura – “notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. Niterói: EdUFF, 1999.
PIGLIA, Ricardo. Memoria y tradición. Anais 2O. Congresso ABRALIC. v.1. Belo Horizonte, ago. 1990.
PIGLIA, Ricardo. A Cidade Ausente. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras, 1993.
SANTIAGO, Silviano. Em Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
SANTIAGO, Silviano. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
SANTIAGO, Silviano. Keith Jarret no Blue Note – improvisos de jazz. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. 
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# Maria Luiza Berwanger da Silva - Paisagens poéticas compartilhadas em tristes trópicos de Claude Lévi-Strauss
Em Tristes Trópicos, a constante alternância entre descrição do real e produção de escritura sintetiza de modo exemplar o curso da pesquisa intitulada Paisagens Poéticas Compartilhadas: o olhar do estrangeiro (no caso o do Prof. Claude Lévi-Strauss que aportara no Brasil para cumprir missão na Universidade de São Paulo), tanto grava o desenho de um território mesclado, figurando o horizonte fugidio, quanto inscreve, na página, o sujeito como estrutura dissipativa, mas diversa e múltipla.

Deslocamento, relocalização e ressignificação, eis, em síntese, as modulações do trânsito que Claude Lévi-Strauss efetiva do etnógrafo inconformado ao escritor confesso que busca captar, decifrando, o visto e o sentido. "Interpretar horizontes"1, diz o autor de Tristes Trópicos, conferindo legitimidade à sua prática de escritura que percebe, superpõe e dissemina o produto, híbrido, de um olhar que confunde, involuntariamente, Próximo e Longínquo, Mesmo e Outro, Uno e Diverso. Como se, ao redesenhar a paisagem poética, fragmentado, o sujeito articulasse, ao mesmo tempo, esse exercício do recartografar o "clavier des sensations" e ressimbolização do próprio "eu". Dito de outro modo: como se tornado imemorial pela filtragem de presenças estrangeiras, o sujeito se desdobrasse em agente de sedução e em objeto seduzido, compondo e recompondo a singularidade da paisagem poética que é, pois, pelo menos dupla: paisagem com figuras (a das comunidades indígenas descritas ) e paisagem sem figuras, itinerário poético demarcado pela surpresa de assistir à subversão da voz cujo vigor e certeza da magia encantatória dissolvem-nas o enigma dos trópicos:

"Assim como o indivíduo não está sozinho no grupo e cada sociedade não está sozinha entre as outras, o homem não está só no universo. Quando o arco-íris das culturas humanas tiver terminado de se abismar no vazio aberto por nossa fúria; enquanto estivermos aqui e existir um mundo, esse arco tênue que nos liga ao inacessível permanecerá, mostrando o caminho contrário ao de nossa escravidão, e cuja contemplação proporciona ao homem, ainda que este não o percorra, o único favor que ele possa merecer: suspender a marcha, conter o impulso que o obriga a tapar, uma após outra, as rachaduras abertas no muro da necessidade e a concluir a sua obra ao mesmo tempo em que fecha a sua prisão; esse favor que toda sociedade ambiciona, quaisquer que sejam as suas crenças, o seu regime político e o seu nível de civilização; no qual ela coloca o seu lazer, o seu prazer, o seu repouso e a sua liberdade; oportunidade, vital para a vida, de se desprender, e que consiste – adeus, selvagens!, adeus, viagens! –, durante os curtos intervalos em que nossa espécie tolera interromper seu labor de colméia, em captar a essência do que ela foi e continua a ser, aquém do pensamento e além da sociedade: na contemplação de um mineral mais bonito do que todas as nossas obras; no perfume, mais precioso do que os nossos livros, aspirados na corola de um lírio; ou no piscar de olhos cheio de paciência, de serenidade e de perdão recíproco, que um entendimento involuntário permite por vezes trocar com um gato"2.

Neste sentido, Tristes Trópicos estampam o percurso seguido no projeto Paisagens Poéticas Compartilhadas, com base na reflexão do crítico francês Michel Collot, voz que responde à indagação teórico-crítica de Gérard Genette em Figures I, II, III e IV, vozes cuja intersecção converge na visualização dos estudos da paisagem como imagem transtextual e interdisciplinar. Modela esse olhar convergente o acréscimo da "pensée paysage" de Collot (2001) *, no rastro dos pressupostos de Merleau-Ponty em, principalmente, Phénoménologie de la Perception, aproximadas a perspectivas colhidas da geografia e da psicanálise, a que se cruzam obras recentes de G. Genette, focalizando o literário como artístico e cultural: L'Oeuvre d'Art (Immanence et transcendance) (GENETTE, 1994) e La Relation Esthétique (GENETTE, 1997), sintetizadas exemplarmente em Figures IV (GENETTE, 1999), como noção "barthésienne d'aventure sémiologique", uma aventura que, como ele próprio o diz, "n'est pas terminée"3. Por sua vez, tal indagação teórico-crítica já se encontra em Regarder, Écouter, Lire de Claude

Lévi-Strauss (1993), ensaio que revisa e reescreve, de outro modo, o projeto poético de Tristes Trópicos. Se nessa obra, bem anterior, mas não menos lúcida, o prazer da transgressão consiste em superar a pesquisa etnográfica por uma certa reescritura do real, em Regarder, Écouter, Lire (1993) o acento na poética das relações lega aos estudos da Paisagem essa postura que revitaliza o simbolismo da distância e o da fábula do lugar pelo suave convívio com a Alteridade:

"Ces correspondances baudelairiennes ne relèvent pas d'abord de la sensibilité. Leus retentissement sur les sens dépend d'une opération intellectuelle (méconnue par Diderot dans sa théorie des hiéroglyphes): 'Ce n'est pas à l'oreille proprement que l'on peint en musique ce qui frappe les yeux: c'est à l'esprit qui, placé entre ces deux sens, compare et combine leurs sensations", et qui saisit des rapports invariants entre eux. Ces rapports n'ont pas besoin qu'on leur cherche un contenu: ce sont des formes: 'Un ordre diatonique des notes qui descendent, ne peint pas plus la chute des frimats [sic], que la chute de tout autre chose'. Un musicien veut-il évoquer le lever du jour? il peint 'non pas le jour et la nuit, mais un contraste seulement, et un contraste quelconque: le premier que l'on voudra imaginer, sera tout aussi bien exprimé par la même musique, que celui de la lumière et des ombres'. Les termes ne valent pas par eux-mêmes; seules importent les relations"4.

Acrescente-se a essa intertextualidade crítica a produção de George Steiner em cujo fundo da perspectiva crítica ocultam-se transparências de Maurice Blanchot, definitivas para a articulação do eixo Literatura/Espaço/Alteridade, intermediado pelo sentimento da paisagem. Desse modo, a afirmação de Steiner em Réelles Présences,

"Toutes les représentations, jusqu'aux plus abstraites, impliquent un rendez-vous d'intelligibilité, ou du moins, une atténuation de l'étrangeté, par l'observation d'une forme délibérée. L'appréhension (a rencontre avec l'autre) signifie à la fois peur et perception. Le continuum entre ces deux éléments, la modulation de l'un à l'autre sont à la source de la poésie et des arts"5.

corresponde à de Blanchot em Le Pas au-delà (1973), quando diz:

"Évoquons l'obscur combat entre langage et présence, toujours perdu par l'un et par l'autre, mais gagné sons faute par la présence, même que ce ne voit que présence du langage"6.

Esse conjunto de vozes imbricadas demarcam o caminho a ser seguido e que busca dar continuidade ao projeto Paisagens Poéticas Compartilhadas, com base na dupla atividade do sujeito como aquele que tece e que se deixa tecer pelas memórias da paisagem, na transparência das figuras do Outro. Sob esse prisma, Tristes Trópicos concorrem para a construção de uma paisagem singular: matriz de confluência poética, pictural e musical a oscilar entre presença e ausência e vice-versa, cedendo espaço à reinvenção.

No fragmento final, o diálogo com o gato, lembrança baudelairiana – "Amis de la science et de la volupté"7 –, favorece a passagem do poético ao espaço musical centrado em Chopin:

"Por que Chopin, a quem minhas preferências não me conduziam especialmente? Criado no cunho wagneriano, eu descobrira Debussy em data bem recente, inclusive depois que as Núpcias, ouvidas na segunda ou terceira apresentação, tinham me revelado em Stravinski um mundo que me parecia mais real e mais sólido do que os cerrados do Brasil central, fazendo desmoronar meu universo musical anterior. Mas no momento em que saí da França, era Peléias que me fornecia o alimento espiritual de que eu necessitava; então, por que Chopin e sua obra mais banal impunham-se a mim no sertão? Mais ocupado em resolver esse problema do que em me dedicar às observações que me teriam justificado, eu dizia a mim mesmo que o progresso que consiste em passar de Chopin a Debussy talvez seja amplificado quando ocorre no sentido contrário. As delícias que me faziam preferir Debussy, agora eu as saboreava em Chopin, mas de um modo implícito, ainda incerto, e tão discreto que eu não as percebera no início e fora direto para a sua manifestação mais ostensiva. Realizava um duplo progresso: ao aprofundar a obra do compositor mais antigo, eu lhe reconhecia belezas destinadas a permanecerem ocultas para quem não tivesse, primeiro, conhecido Debussy. Eu gostava de Chopin por excesso, e não por escassez, como é o caso de quem nele parou sua evolução musical. Por outro lado, para favorecer dentro de mim o surgimento de certas emoções, já não precisava da excitação completa: o sinal, a alusão, a premonição de certas formas bastavam"8.

Desse modo, a Alteridade aqui traduzida pela passagem musical representa-se como agente ou elemento de intermediação que, ao ressimbolizar o sujeito, dilui a frase inaugural ("Odeio as viagens e os exploradores"), substituindo-a pela arqueologia da memória, resíduos da lembrança que a fisionomia do eterno viajante sulca no etnógrafo inconformado: "É assim que me identifico viajante, arqueólogo do espaço, procurando em vão reconstituir o exotismo com o auxílio de fragmentos e de destroços"9. Justamente o escritor aflora no avesso da magia negada e ocultada pela pontualidade etnográfica: completa-a a certeza de registrar, na página, como o nomeia Claude Lévi-Strauss, a "alquimia do impenetrável", a exemplo da produção textual intitulada Escrito no barco subseqüente aos apontamentos de Pôr do Sol e que incidem na alusão a Chateaubriand como figura exemplar do imaginário das viagens, em perfeita intersecção com a lembrança recomposta: "Cada homem – escreve Chateaubriand – traz em si um mundo composto de tudo o que viu e amou e onde ele entra em permanência, ao mesmo tempo em que percorre e parece habitar um mundo estrangeiro", ao que completa Lévi-Strauss: "Doravante a passagem é possível. De forma inesperada entre mim e a vida o tempo alongou seu istmo"10, o que significa, do ponto de vista da escritura/ reescritura poética, liberar a palavra poética, elegendo-a expressão, a mais genuína, da superação do etnográfico com base no jogo de Alteridades revisitadas ou, como o menciona Collot:

"C'est en abdiquant toute signification et représentation préalables, en acceptant d'être hors de soi dans l'abstraction lyrique du geste d'écrire, en se projetant dans la matière des mots et des choses, que le poète se révèle à lui-même et aux autres"11.

Assim, pois, a presença estrangeira relocaliza o sujeito da percepção: decantada, a perplexidade da errância e do horizonte restitui à paisagem o desejo de ressimbolizar (ad eternum) a subjetividade do Mesmo que, diversa e transpessoal, aposta na reciclagem dos Tristes Trópicos:

"Supprimer au hasard dix ou vingt siècles d'histoire n'affecterait pas de façon sensible notre connaissance de la nature humaine. La seule perte irréparable serait celle des oeuvres d'art que ces siècles auraient vu naître. Car les hommes ne diffèrent et même n'existent que par leurs oeuvres"12.

* O estudo crítico intitulado La Pensée Paysage de Michel Collot representa a conferência de encerramento do Colloque Le Paysage État des Lieux realizado em Cerisy ( France ) de 30 de junho a 7 de julho de 1999 cujos Anais estão publicados pela Éditions OUSIA, Bruxelles, 2001 e do qual participei com a comunicação Passages et Paysages Poétiques Brésiliens ( op, cit. p. 214-228 )

NOTAS

1 - LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes tropiques. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.46.
2 - Ibid., p.392.
3 - GENETTE, Gérard. Figures IV. Paris: Seuil, 1999. p.45.

4 - LÉVI-STRAUSS, Claude. Regarder, écouter, lire. Paris: Plon, 1993. p.93-94.
5 - STEINER, George. Réelles présences. Paris: Gallimard, 1991. p.171.
6 - BLANCHOT, Maurice. Le Pas au-delà. Paris: Gallimard, 1973. p.67.
7 - BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1975. t. I, p.66.
8 - LÉVI-STRAUSS. Tristes tropiques. Op. cit., p.357.

9 - Ibid., p.39.
10 - Ibid., p.41.
11 - COLLOT, Michel.
In: RABATÉ, Dominique (Org.). Figures du sujet lyrique. Paris: PUF, 1996. p.124.
12 - LÉVI-STRAUSS, Claude. Regarder, écouter, lire. Op. cit., p.128. 
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# Miriam Volpe - O papel mediador do intelectual latino-americano na formação de nossas nações, identidades e tradições culturais

ABSTRACT: Focusing on the critical works of relevant Latin American intellectuals from Uruguay, Argentine and Brazil, this work intends to confront their positions to the academical discourse on our nations, identities and cultural traditions elaborated by the Latin American Studies in Europe and the United States.
KEY WORDS: intellectual, culture, tradition, archive, Latin American studies

Negociar o espaço de enunciação e definir seu papel nas relações de trocas e arranjos culturais que o ofício de escrever implica têm se revelado como preocupações fundamentais do intelectual latino-americano. Sua mediação como parte da elite letrada foi detectada por Ángel Rama após os movimentos emancipatórios, quando foram feitos novos traçados sobre o continente e criaram se fronteiras delimitadoras de nações, dentro das quais se inventaram subjetividades diferenciadas e consciências nacionais. Nesse momento, essas divisas passaram a ser tomadas como o alfa e o ômega da identidade, a diferença com os "outros", que não existia previamente à sua criação, só se tornou realidade no discurso elaborado pelos nosotros (nós-outros) criados dentro dessas fronteiras. Junto aos mapas e às fronteiras, segundo Rama, se fez necessário escrever as ordenanças dos governantes das novas nações para determinar as estruturas econômicas e socioculturais sob as quais haveriam de se organizar as sociedades compostas pelo emigrante europeu e o autóctone - exilado em seu próprio território. Escreventes, escriturários e escritores foram cooptados a mediar e a legitimar essa ordem imposta.

A participação do intelectual, tão relevante no rico cenário do nascimento das nações do novo continente, que coincidiu com a origem política dos estados, aparece marcada na maioria dos estudos referentes ao próprio conceito de nação. As teorias de Benedict Anderson - que têm encontrado importante repercussão nos estudos latino-americanos - a definem como comunidade política imaginada, que adquire forma nas letras1. Segundo o crítico, a linguagem escrita teria permitido o acesso a verdades ontológicas, possibilitando, assim, à elite letrada, fazer interpretações e abstrações que transcendem o real e o cotidiano do sentido concreto e fixar essas idéias nos textos. A linguagem, através do discurso histórico e, principalmente, do literário, teria propiciado que se imagine, se consolide e se dissemine a nação enquanto forma de comunidade pois, através da linguagem, é possível o registro de uma história, de uma genealogia, de uma vida nacional, de laços sociais, políticos e culturais que lhe dão existência.

Um paralelo entre o conceito de origem antropológica da nação como comunidade imaginada de Anderson e o de tradição inventada, de que nos fala o historiador britânico Eric Hobsbawm2 - que analisa o papel representado pelas tradições na origem e no desenvolvimento da nação - poderia ampliar a reflexão sobre o papel do intelectual no contexto latino-americano. Para Hobsbawm, a nação seria um fenômeno dual, pois embora seja construída de cima para baixo, pela elite governante, ela só pode ser compreendida se analisada de baixo para cima, considerando as idéias, sentimentos e mudanças que se desenvolvem no povo, e que os intelectuais captam e transmitem em suas narrativas.

As tradições, segundo Hobsbawm, criam formas de vínculos humanos que a história haveria de legitimar mais tarde. Muitas delas aparentam ser antigas mas, na verdade, são de origem recente e, amiúde, inventadas. Pertenceriam a três tipos superpostos: as que simbolizam união social ou pertença a um grupo (hinos, bandeiras, escudos); as que legitimam estruturas institucionais e relações de autoridade (leis, organismos administrativos, educacionais e a religião); e aquelas cujo principal propósito seria o de promover a socialização, inculcar sistemas de valores e acordos de conduta (costumes, metas e ideais). As tradições culturais não só refletiriam as diferentes formas de relacionamento entre os habitantes de um território determinado, mas também, através de sua continuidade, com o tempo, converter-se-iam nos traços abstratos necessários para definir a nação como comunidade imaginada nas letras e narrada pelos intelectuais.

O caráter textual da nação, assim como o papel do intelectual como narrador, é analisado também por Homi Bhabha3, que apresenta duas tessituras narrativas na estrutura discursiva do texto nacional. Uma delas seria a pedagógica, ou construção textual histórica com origem e objetivos definidos, que permite direcionar o projeto nacional. O perpetuamento desse projeto nacional necessitaria de uma espécie de afirmação e reconhecimento contínuo por parte dos indivíduos que compõem a nação, através de um plebiscito, em que esses indivíduos expressem seu desejo de nação e reconheçam sua própria identidade articulada a esse projeto. A narrativa pedagógica operaria através de uma escolha de fatos cronológicos, eliminando aqueles que não oferecem uma continuidade discursiva ao projeto como um todo. A outra, a narrativa performática, estaria constituída pelos retalhos descartados da narrativa anterior que não desaparecem, mas, como sombras, se projetam sobre o texto pedagógico e perturbam as estratégias ideológicas que conferem às comunidades imaginadas uma identidade essencial. Essa idéia das sombras relaciona-se à noção de literatura menor, desenvolvida por Gilles Deleuze e Felix Guattari4, segundo a qual é possível minar o discursototalizador de uma tradição hegemônica através de uma tradição considerada marginal dentro dela, dado que a consciência nacional, incerta ou oprimida, passa pela literatura.

Para o caso da América Latina, as teorias explicativas oriundas da metrópole, passíveis de serem aplicadas em alguns aspectos, não parecem dar conta do peculiar fenômeno da criação de nossos estados-nações. No estudo mencionado acima, Benedict Anderson, por exemplo, dedica o capítulo, "Pioneiros crioulos", para tentar explicar o surgimento quase uníssono das nações nos movimentos independentistas hispano-americanos. Expõe, como possíveis motivos: a rebeldia das classes dirigentes diante da opressão excessiva da metrópole; a melhoria nos meios de comunicação que, junto ao idioma comum, permitiu que se disseminassem, entre os integrantes da elite; as idéias revolucionárias vindas da independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa e a divisão, já existente, das colônias ibéricas, em unidades administrativas, que facilitavam sua governabilidade. Ao contrário do que aconteceu na África, por exemplo, em que a partilha arbitrária do continente entre seus colonizadores resultou em uma instabilidade de conflitos étnicos que continua até hoje, a divisão, considerada por Anderson também fortuita e arbitrária, passaria a se constituir, com o transcurso do tempo, em um conjunto de firmes realidades unidas por fatores geográficos, políticos e econômicos, que favoreceu, não só o fortalecimento da união interna das mesmas, bem como sua divisão política em novos países.

A partir dessas leituras pode ser proposto que a tentativa de ruptura da continuidade do passado em comum com o país colonizador (Espanha ou Portugal) pode ter gerado, nessas novas entidades assim criadas, um vazio no sistema administrativo, nas tradições culturais que o apoiavam, assim como na consciência coletiva de pertença que deveria existir entre a comunidade. Para substituir as tradições perdidas, teriam sido inventadas novas, baseadas nas de outras nações européias, o que lhes outorgaria a antigüidade necessária para sua legitimação. Ler, importar, imitar parece ter sido o método seguido pelos primeiros intelectuais para preencher o vazio deixado pelo sistema colonial. Como resultado, a tentativa de independência de um passado imposto resultaria em sua substituição por outras tradições alheias, que foram transplantadas de outros solos. Desse original processo de fundação das nações americanas surgiria também uma situação inédita de "outridade" que tem marcado tão profundamente a problemática da identidade latino-americana: ao não pertencer nem ao passado indígena, nem à Península Ibérica, se era parte da nação, sem sê-lo totalmente; estava-se dentro, mas, ao mesmo tempo, fora, em uma situação fronteiriça.

Não são muitos os ensaios teóricos sobre a nação escritos por autores latino-americanos, que tenham chegado ao debate internacional em que se discute a sobrevivência da mesma no mundo globalizado. No Brasil, Roberto Schwarz, Darcy Ribeiro, Silviano Santiago, e alguns outros, trabalham com a idéia de uma nação espoliada que é, de uma certa forma, possível de ser reabilitada, não como o centro, mas como margem. Um possível motivo da carência desse tipo de crítica seria o fato de que, como não existem motivos graves que ameacem a integração, ou desintegração, de nossos países, não são, portanto, muitos, os intelectuais dedicados a esta problemática. Poderia ser acrescentada, também, a circunstância de que o estudo crítico do ensaio da América Latina, em geral, tem sofrido um certo descaso, pelo desvio do interesse despertado para com o exotismo da ficção (em especial durante o boom) das letras do continente: se, por um lado, o caráter especializado e abstrato dos conceitos tratados nesses ensaios - separados da realidade concreta - afasta os leitores, por outro, a escassez de produção e a falta de traduções das obras desses teóricos, os mantém afastados do diálogo acadêmico internacional. Todas essas circunstâncias contribuiriam, de certa forma, para perpetuar a dependência ideológica nas idéias dos pensadores da Europa e dos Estados Unidos que muitos ensaístas latino-americanos têm se esforçado por combater.

Román de la Campa5 aponta para as limitações, principalmente econômicas, que pesam sobre a intectualidade latino-americana: para poder exercer a crítica literária e cultural são obrigados a depender de bolsas, projetos internacionais ou empregos no exterior. Comenta, também, a difícil problemática do surgimento de uma nova equipe de cartógrafos pós-coloniais para desenhar as geografias culturais da América Latina: o problema de definição de fronteiras legitimadoras para o discurso da crítica cultural originada na América Latina e a do latino-americanismo elaborado a partir da academia dos Estados Unidos.

Segundo o escritor e crítico uruguaio Hugo Achugar6, a maioria da comunidade de intelectuais periféricos radicados na academia euro/norte-americana parece aplicar à América Latina um discurso formulado originariamente por intelectuais diaspóricos, de origem geralmente asiática, como Bhabha, Said, Appadurai, Spivak, que, embora tenha um caráter original e inteligente, pode ser questionado no que se refere aos aspectos que tangem a especificidade da nação e ao papel do intelectual no continente7. O colonialismo que a América Latina sofre, desde sua independência, por vias indiretas e disfarçadas, em muito difere da forte presença de uma longa tradição imperial que predominou até muito recentemente nesses países asiáticos.

Abril Trigo propõe que as fronteiras que causam assimetrias de poder entre o que se fala desde e sobre América Latina8, em vez de serem consideradas linhas divisórias entre coisas diferentes - limites, (borders) - fossem transformadas em frontería, antigo sinônimo, em espanhol, para fronteira, que indicava criar novas frontes, construir, abrir caminhos. Não mais uma linha, mas um espaço fronteiriço (borderline) onde predominam a ação, a mobilidade, o avanço,

Porque la frontera define territorios, la frontería dibuja paisajes; la frontera fija identidades, la frontería abre relaciones; la frontera delimita espacios, la frontería articula lugares; la frontera hunde raíces, la frontería esparce un rizoma; la frontera legisla la razón de Estado, la frontería es indiferente a la Nación; la frontera es marca de la Historia, la frontería habilita memorias fragmentadas9.

Nesse sentido, o posicionamento do escritor e crítico uruguaio Mario Benedetti pode trazer uma contribuição muito pertinente:

El desarrollo no es en sí mismo una calidad moral, ni una categoría ética [...] por lo tanto, el mundo del subdesarrollo no sólo debe crear su ética en rebeldía, su moral de justicia, sino también proponer una autointerpretación de su historia y también de su parcela de arte, sin considerarse obligado a aceptar que siempre el diagnóstico que sobre tales problemas elabora el mundo del desarrollo, así sea através de la porción más espléndida de su intelligentsia [...] Por suerte ese tipo de crítica ya ha empezado a hacerse. Algunos ensayos del colombiano Jaime Mejía Duque, del brasileño Antonio Candido, del peruano Antonio Cornejo Polar, del cubano Fernández Retamar, del chileno Nelson Osorio, del argentino García Canclini, publicados en los últimos años, plantean una dimensión y un punto de vista básicamente latinoamericanos, tanto en la crítica literaria como en la historia de las ideas, dimensión y punto de vista que de ningún modo desdeñan el aporte europeo o de los Estados Unidos (esa si sería una estupidez del subdesarrollo), mas bien lo comparten o rechazan sin asomo de autocolonización, es decir de igual a igual.

Ao recorrer ao discurso bíblico, En el principio era el verbo - que intenta dar uma resposta à eterna preocupação de ser humano com o momento e o lugar de suas origens -, Hugo Achugar também discute o papel "fundacional" da palavra na origem da nação latino-americana no século XIX e a posição central do letrado como sacerdote da ordem dos signos e executor do poder. A idéia de Fundação por la palavra, escolhida para o título de seu ensaio, parece implicar que esse momento "fundacional" foi produzido (inventado?, imaginado?) pelo homem enquanto homo fabulator e não resultado de uma vontade divina. Destaca-se, nesse texto, a reflexão do intelectual que fala sobre o papel de outros instrumentos, que não só as letras, na fundação da nação latino-americana, após a independência. Haveria também, segundo o crítico, um importante lugar para as armas das cruzadas libertadoras, que tanto contribuíram para a construção do imaginário nacional - como atestam, entre outras manifestações, os rituais dos desfiles militares nas festas pátrias:

La centralidad de la letra y del letrado acompaña la centralidad del poder, lo protege y lo perpetúa. Esta centralidad del poder era también la de las armas, sin embargo los letrados, a la vez que celebraban el poder militar - mediante la consagración de la épica independentista - impidieron, aunque casi de seguro no deliberadamente, la posibilidad de una perspectiva de nuestra historia exclusivamente militarista [...] Los militares y letrados del siglo XIX construyeron los nuevos estados/naciones. En muchos casos estos militares fueron también letrados y la fundación que realizaron no se limitó a la de las armas11.

Esse seria o caso dos heróis da independência, como San Martín, Bolívar, e, no Uruguai, José Artigas. Fez-se necessário uma manifestação letrada desses chefes militares - assim como a de outros que foram chefes políticos, legisladores, presidentes, ministros, como Sarmiento, Martí, José Pedro Varela - dado que se requeria que fosse analisado e definido, com linguagem clara e precisa, a problemática das novas circunstâncias, assim como também que se formulassem as direções e os processos necessários à implantação das idéias germinais das novas nações. O ensaio, gênero escolhido por esses seres híbridos (líderes e letrados), parece definir-se como o mais apropriado para estas formulações, por seu caráter também híbrido, entre o discurso ficcional e o não ficcional, como forma de escrita sensível à ambigüidade inerente ao discurso da nação12. Pode ser acrescentado, que embora as pátrias de América não tenham nascido unicamente dos fuzis, é importante ressaltar que nelas há mais monumentos e símbolos bélicos do que homenagens a valores cívicos.

O caso uruguaio pode ser considerado exemplar dentro destas considerações, dado que a gestação do imaginário nacional só se realizou plenamente, pela força, na organização e consolidação do Estado moderno imposta, manu militari, pelo exército profissional surgido a partir da Guerra da Tríplice Aliança e liderado pelo coronel Francisco Latorre, em 1876. Com o apoio do patriciado montevideano, que se sentia ameaçado pela "desordem" em que se encontrava o território além dos muros da cidade de Montevidéu, em contínuos alzamientos liderados pelos caudilhos, Latorre haverá de efetivar a "unificação" do país. Ironicamente, essa unificação se deu através da fragmentação da estancia cimarrona (as grandes extensões de terra sem fronteiras precisas) pelo alambramiento, estabelecendo, com cercas de arame, os limites que definiriam e protegeriam as propriedades privadas. Como resultado de uma rigorosa ação militar, o caudilhismo local - que pode ser considerado como o verdadeiro intérprete e orientador dos sentimentos populares contestadores da ordem imposta pelas letras - foi fraturado e houve uma desapiedada repressão social da região rural.

Parece importante assinalar, neste momento que o Uruguai surgiu, como estado-nação independente, em 1825, por vontade do império britânico, interessado em estabelecer uma fronteira, através de um "tampão", entre duas potências que se perfilavam no continente: Brasil e Argentina. Como região fronteiriça, borderline, e não simplesmente linha demarcadora, assumiu seu destino de frontería. Sendo uma região pouco povoada, ficou aberta a uma geocultura sedimentária, de caráter aluvional, que se constituiu através de uma política que promoveu uma imigração massiva. A esses imigrantes foi proposta a adoção de uma identidade, que se configurou como lugar de demarcação do outro para a constituição do nosotros nacional.

A esse respeito, Abril Trigo, que elabora um interessante estudo em que faz dialogar os mais variados textos da historiografia uruguaia - considerados como estrategias ideológicas que componen la textualización de esta obra plástica que somos - para buscar a legitimidade da nação, afirma:

Las profundas transformaciones operadas por el gobierno Latorre, coincidentes con el ensimismamiento de Argentina y Brasil en su respectiva labor de organización nacional - bendecido todo desde una redituable pax britannica - conducen hacia la concentración y unificación del Estado. El juego pendular que ordenara nuestra vida alternativamente regulada por la conminatoria opción entre Buenos Aires y Río, insertos en la fina malla diplomática de Londres y, por momentos, París, (Washington observaba), parece haber concluído. La consolidación del estado (liberal en lo económico, prusiano en lo político y romántico en su estilo) ha posibilitado la maduración de una Intelligentsia que, marginada del quehacer político, se impone la tarea de repensar el país, de inventar la nación sobre nuevas bases13.

No Brasil - como assinala Reinaldo Marques em seu estudo sobre a mediação da atividade letrada com o aparelho estatal colonial no século XVIII - também houve um momento em que a academia local celebrou as armas. Os registros dos discursos da fundação da Academia Brasílica dos Esquecidos, na cidade de São Salvador, na Bahia, em 1724, denunciam as estreitas conexões dos letrados com o poder colonial, nos elogios ao Vice-rei, seu protetor, e na decisão de que cabia às letras coroar as armas, em uma união fraterna de letras e armas, visto que ambas "são filhas de um mesmo parto, ou parte de um mesmo corpo, conselho, e forças, olhos e mãos"14.

Também se deu, nos países da América Latina, que durante o exercício do poder das letras, ao mesmo tempo em que se estabeleciam as bases dos futuros estados nacionais através da lei escrita nas Constituições - imitadas das exemplares surgidas com as revoluções americana e francesa - surgiam os Parnasos "fundacionais" ou primeiras antologias de caráter nacional. Alguns letrados entenderam que, junto ao discurso jurídico, deveria ser estabelecido outro discurso que desenharia o imaginário poético de suas respectivas comunidades. À Constituição do Brasil, em 1821, seguiu o Parnaso Brasileiro de Januário da Cunha Barbosa, em 1829; a Constituição da Argentina coincidiu, em 1824, com a Lira Argentina, de Ramón Díaz; à Constituição do Uruguai (1830), seguiu o primeiro volume do Parnaso Oriental, de Luciano Lira. Em outros países, o Parnaso não existiu em forma de livro, mas em publicações em jornais e principalmente performances artísticas. Nesse sentido, caberia perguntar-se, junto a Achugar, se o caráter monumental desses textos chamados "fundacionais", pois passaram a pertencer à tradição de leitura da nação, não deveria ser revisado:

Me pregunto ¿si nuestros letrados de la Independencia no llegaron a la letra y a la escritura sino después que nuestras sociedades habían realizado otro tipo de actos poéticos o artísticos fundacionales de la nación? [...] ¿Si el modo de construir emotiva, estética, teatralmente la nación no necesitó antes que de la escritura, de la representación? ¿Y qué, si la representación de la nación [...] no se materializó como representación, de otra manera, con otros códigos?15

A análise, tanto dessas constituições, como das antologias poéticas, revela que elas excluem mulheres, índios, escravos, e criollos analfabetos, ao construir o referente de um país onde só os homens brancos livres são cidadãos. Mas, na criação das nações latino-americanas, houve também os hinos, as bandeiras, as esculturas, os poemas, as pinturas, as moedas e as festas pátrias. Estas últimas, junto a outras manifestações festivas, podem ser classificadas como atividades performativas do nacional que, pelo seu caráter público e popular, permitiriam a participação dos grupos excluídos do âmbito das armas e das letras, (embora os que eram donos da memória e da palavra fossem, também, os régisseurs dos espetáculos). Segundo o escritor uruguaio:

El hombre y la mujer que contribuyeron a forjar estas imágenes - poemas, banderas, escudos, billetes - realizaron un esfuerzo sostenido para dar forma a esa nación que en muchos casos no existía más que en el deseo [...] En esa tarea, la más de las veces contruyeron una nación ideal que no correspondía a la realidad étnica, social y cultural de los países en que vivían [...] lo que hicieron fué regirse por los ideologemas de la nación deseada, que eran los propios de la ciudad letrada16.

A construção de um imaginário social ficcional, idealizado com base em idéias e razões européias, que não correspondiam à realidade latino-americana, reporta aoque Roberto Schwarz define como "idéias fora do lugar"17. A confluência dos projetos da elite com os anseios da classe subalterna aponta para o prevalecimento do "desejo", a que se refere Ernest Renan,18 - mais do que a raça, a língua, a cultura, o território - como elemento fundamental para que se constitua e se perpetue a nação em um conjunto tão heterogêneo. Esse posicionamento se aproximaria também dos conceitos de Jacques Derrida, para quem o nacionalismo pode ser considerado um filosofema, fundação filosófica da nação, uma construção teórica que sustenta a comunhão de interesses de um grupo de indivíduos.19 O vínculo que os une não decorreria de espaço, raça ou língua comum, mas da vontade e do acordo de participar em uma construção teórica com uma origem e destino definidos.

Além do caso específico do Uruguai, deve ser considerado também o poder da letra nas regiões latino-americanas de culturas andinas. Essa situação foi analisada por Walter Mignolo, quanto aos decires latino-americanos que, segundo o autor, foram exilados, desenraizados, desterritorializados, a partir da descoberta do continente em 1492, quando começou o diálogo conflitivo entre europeus e ameríndios, e o ocidente impôs (e ainda tenta impor) formas universais de pensar. Esses dizeres, como sugere o título de seu ensaio Decires fuera de lugar: sujetos dicentes (aquele que faz ao dizer), papeles sociales (quem está em condições de dizer o quê) y formas de inscripción (qual é a materialidade em que se inscrevem os atos "dizentes") são discutidos, tanto a partir do colonizado quanto do colonizador. Assim, para o autor,

los sujetos dicentes en situaciones coloniales son sujetos desterrados, sujetos que están fuera de lugar con respecto y subsuelo de sus decires, pues la llegada del conquistador y religiosos creó descontinuidades con las tradiciones pre-colombinas [...] Fuera de lugar estaban las poblaciones andinas porque el ámbito de sus diceres se vió alterado por la violencia de las instituciones hispánicas y fueron obligados a incorporar una escritura alfabética y una mediación desconocida entre hablar y escribir.20

Nesse sentido, estar bem em um lugar, seria estar no hábito e nos costumes e nas tradições, um conceito que remete a um domicílio no mundo, a um domo, a uma casa onde se consegue amparo e onde se mora. Por tanto, decires fuera del lugar também teriam sido os dos letrados e soldados hispânicos, porque eram proferidos fora desse território em que o costume se faz hábito e a memória acomoda as ações.

A alfabetização imposta por um aparato de poder da cidade letrada colocou os dizeres das populações andinas fora do lugar, ao calar suas vozes e exilá-las em uma condição subalterna. Mignolo sugere que, um remédio efetivo para essa ação nociva, seria juntar as migalhas da cultura alfabética e refuncionalizá-la para liberar o que ela teria suprimido a possibilidade de dizeres arraigados que conduziriam à descolonização intelectual e à regionalização daquilo que o ocidente impôs como formas universais de pensamento.

Se ainda hoje, na América Latina, continua uma guerra entre o dizer tecnológico da homogeneização global e o dizer desenraizado das margens, haveria que se pensar na possibilidade de que o papel mediador do intelectual se centrasse em uma oposição e resistência que libere suas forças criativas como novos loci de enunciação, um pensamento que se construa nos interstícios, nos entre-espaços engendrados pela expansão do pensamento hegemônico ocidental.

NOTAS

1 Cf. ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Londres: Verso, 1991.

2 Cf. HOBSBAWM, Eric; TERENCE, Ranger. The invention of tradition. Cambridge: University of Cambridge Press, 1983.

3 Cf. BHABHA, Homi. Dissemination: time, narrative and the margins of the modern world. In: _____. Nation and Narration. Londres: Routledge, 1990. p. 291-322.

4 Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka, por uma literatura menor. Trad. Julio C. Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

5 Cf. CAMPA, Román de la. Latinoamérica y sus nuevos cartógrafos. Revista Iberoamericana. Stanford, p. 697-718, jul.-dez. 1996.

6 Cf. ACHUGAR, Hugo. La biblioteca en ruinas: reflexiones culturales desde la periferia. Montevidéu: Trilce, 1994.

7 Alberto Moreiras, espanhol, radicado nos Estados Unidos, em livro lançado recentemente: A exaustão da diferença. Belo Horizonte: UFMG, 2001, discute o estado atual da reflexão latino-americanista, faz uma reflexão diferente em relação à propriedade do discurso elaborado apartir da academia norte-americana.

8 Como apresentado por: RICHARDS, Nelly. Intersectando latinoamérica con el latinoamericanismo: saberes académicos, práctica teórica y crítica cultural. Revista Iberoamericana, Pittsburg, n. 180, p. 345-361, jul.-set. 1997.

9 TRIGO, Abril. Fronteras de la epistemología: epistemologías de la frontera. Papeles de Montevideo, Montevidéu, n.1, junho, 1997. p. 81.

10 BENEDETTI, Mario. El escritor y la crítica en el contexto del subdesarrollo. In: _____. El ejercicio del criterio: obra crítica 1950-1974. Buenos Aires: Seix Barral, 1995. p. 43. PIGLIA, Ricardo. Memoria y tradición. In: CONGRESSO ABRALIC, 2, 1991, Belo Horizonte.: p. 43.

11 ACHUGAR , Hugo. La fundación por la palabra. Montevidéu: FHCE/Universidad de la República, 1998. p. 28.

12 Cf. SOUZA, Eneida M. Literatura comparada: o espaço nômade do saber. Revista Brasileira de Literatura Comparada. São Paulo, n. 2, p. 19-24, maio 1994.

13 TRIGO, Abril. Caudillo, estado, nación: literatura, historia e ideología en Uruguay. Gaithesburg: Hispamérica, 1990. p. 38.

14 MARQUES, Reinaldo. Arcádias, utopias, secularização, dissidência. Pré-publicação para o "Projeto História Comparada das Formações Culturais na Literatura Latino-Americana", Toronto, Canadá. (Xerox)

15 ACHUGAR, 1998, p. 67.

16 ACHUGAR, 1998, p. 27.

17 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992, p. 17.

18 Cf. RENAN, Ernest. Que'est ce qu'une nation? Paris: Calmann Levy, 1882.

19 Cf. DERRIDA, Jacques. Onto-theology of national humanism: prolegomena to a hypothesis. The Oxford Literary Review, v. 14, p. 3-23, 1992.

20 MIGNOLO, Walter. Decires fuera de lugar: sujetos dicentes, roles sociales y formas de inscripción. Revista de Crítica Literaria Latinoamericana. Lima/Berkeley, n. 41, p. 9-31, 1995.  [topo da página]

# Patrícia Flores da Cunha & Sara Viola Rodrigues - Literatura Comparada e Tradução: A Prática da Diferença

RESUMO: Os trabalhos desenvolvidos no Núcleo de Estudos de Tradução Olga Fedossejeva do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul inserem-se em linhas de pesquisa da área de Literatura Comparada do PPG Letras –UFRGS, a saber Literatura Comparada e Relações Interliterárias, Literatura Comparada e Teoria da Literatura e Literatura e Interdisciplinaridade. Através dos Projetos de Pesquisa “O texto literário estrangeiro: leitura, tradução e produção” e “A práxis tradutória, a teoria comparatista e os estudos de tradução”, com base nos enfoques teóricos contemporâneos que perpassam as relações entre literatura comparada e tradução, busca-se redimensionar criticamente o papel da intermediação entre culturas inerente a essas disciplinas, valorizando-se a tradução como prática da diferença e o tradutor como transfingidor no processo de apropriação e transcriação do texto literário.

Os projetos de pesquisa sob a responsabilidade das Professoras Patrícia Lessa Flores da Cunha e Sara Viola Rodrigues desenvolvem-se no NET- Núcleo de Estudos de Tradução Olga Fedossejeva do Instituto de Letras da UFRGS.

O Net foi fundado em 26/04/1996; desde então mantém diferentes projetos que objetivam refletir sobre as questões da tradução através de uma perspectiva intertextual e interdisciplinar. O Núcleo está cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil no CNPq; as informações constantes nessa base dizem respeito aos recursos humanos participantes nos grupos, às linhas de pesquisa e projetos em andamento; às especificidades do conhecimento e setores de atividades envolvidos, aos cursos de mestrado e doutorado com os quais o grupo interage e à produção científica e tecnológica nos dois anos imediatamente anteriores à época da coleta de dados.

Configura-se como órgão integrador, pela sua natureza dialógica, e apresenta-se como um centro de investigação e de prestação de serviços, cujas propostas básicas refletem a busca de excelência na pesquisa, na formação do profissional e nos serviços prestados à comunidade no campo da tradução, em língua inglesa, francesa, espanhola, alemã, italiana e japonesa (correspondentes às ênfases do Curso Bacharelado em Letras). Surgiu da solicitação dos alunos em nível de graduação e de pós- graduação das diversas linhas de pesquisa constitutivas das áreas de concentração maiores, representadas pelos Estudos de Linguagem e pelos Estudos Literários, e do interesse pela pesquisa e pelo desenvolvimento de projetos relacionados aos Estudos de Tradução, demonstrado por um número significativo de docentes dos três departamentos do Instituto de Letras (Letras Vernáculas, Línguas Modernas e Lingüística, Filologia e Teoria Literária).

Os projetos a seguir explicitados vinculam-se também `as linhas de pesquisa desenvolvidas pela Área de Literatura Comparada do Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS, a saber: Literatura Comparada e Relações Interliterárias; Literatura Comparada e Teoria da Literatura, e Literatura e Interdisciplinaridade.

O projeto de pesquisa “O texto literário estrangeiro: leitura, tradução e produção” iniciou em 1996 e desde 1998 tem a coordenação da Profa. Patrícia Lessa Flores da Cunha. Busca a articulação entre os Estudos de Tradução e os Estudos Literários na discussão sobre o lugar da tradução na Literatura Comparada, na questão do Outro no texto, nos pressupostos teóricos comuns às duas áreas, na prática da tradução em sua relação leitura, tradução e produção textual, na contribuição da tradução para a formação dos sistemas literários, incindindo conseqüentemente na configuração de comunidades interliterárias. No que concerne especificamente à relação entre os princípios que norteiam a teoria da tradução e à teoria da literatura comparada, evidenciam-se as questões de mediação e de apropriação, do cânone e da originalidade, dos conceitos de autoria e de reescritura, da relativização das fronteiras políticas, culturais e textuais, da relevância do contexto histórico na análise textual.

Entre os objetivos imediatos do projeto, situam-se a tradução e análise de textos literários em língua estrangeira, especialmente em língua inglesa, considerados relevantes tanto para o sistema de origem quanto para o sistema local, a partir da conceituação de Itamar Evan –Zohar (1976); a tradução e análise de textos teórico- críticos considerados relevantes da literatura em língua estrangeira (inglês); a correlação crítica entre a Teoria da Literatura Comparada e a Teoria da Tradução, tendo em vista a recepção do texto em tradução – abrangendo inclusive o texto paraliterário-, a prática intertextual, a prática interdiscursiva, com ênfase na produção e na reescritura criativa so mesmo, para determinar a função da tradução nos diferentes sistemas literários e seus desenvolvimentos.

Dentre os trabalhos de pesquisa desenvolvidos em nível de graduação, destacam-se os projetos dos bolsistas Amanda Francisco e Fabiano Gonçalves, ambos trabalhos-destaque no Salão de Iniciação científica da UFRGS na área de tradução e literatura comparada, em 1999 e 2001, intitulados respectivamente “Tradução e Intertextualidade: Machado de Assis e Shakespeare” e “As Traduções de Poe no Brasil”.

Em nível de pós-graduação, duas dissertações de mestrado já defendidas refletem e discutem as questões teórico- práticas das áreas de conhecimento citadas, a saber: “Dom Casmurro em tradução: uma abordagem comparatista”, de Alba Olmi (2000) e “A recepção das traduções dos contos de Oscar Wilde no Brasil”, de Samuel Frison (2000). Da mesma forma, as teses de doutoramento de Lucia Sá Rebello, sobre estudos comparativos das traduções da Ars Poetica de Horácio, recentemente defendida, e de Neusa Matte, tratando do sentido da tradução na poesia de Elizabeth Bishop, ainda em fase de elaboração, atestam a pertinência e produtividade do Núcleo.

O projeto de pesquisa “ A práxis tradutória, a teoria comparatista e os estudos culturais” desenvolve-se no NET desde 1999, sob a coordenação da Profa. Sara Viola Rodrigues. Trata-se de investigação desenvolvida com o propósito de colaborar, através do oferecimento da tradução de textos fundamentais do ponto de vista da literatura comparada, com os estatutos mais atualizados da crítica literária. A relação entre crítica e tradução propicia um espaço privilegiado de questionamento e produção textual, capaz de corresponder às expectativas e necessidades dos investigadores e estudiosos de literatura preocupados com a contemporaneidade de seus referenciais teórico-críticos.

O projeto é definido, por um lado, pelo interesse dos pesquisadores de de literatura comparada que buscam registrar criticamente o desenvolvimento da área, reexaminando conceitos e redefinindo rumos e fronteiras com o objetivo maior de esclarecer o próprio conceito da disciplina. Por outro lado, os Estudos Culturais emergem como área relevante de investigação acadêmica neste início de século com tal vigor que, contaminando as pesquisas realizadas em outros campos do conhecimento estão a exigir dos especialistas maior consideração de suas especificidades.

Visando à dimensão pragmática do projeto, há que considerar sobretudo a carência de textos fundadores traduzidos para o vernáculo, cuja consulta é relevante para o desenvolvimento e atualização do pensamento crítico nos cursos de graduação e pós-graduação, levando-se em conta o caráter de investigação em progresso que define os estudos científicos contemporâneos.

Dentre os textos já traduzidos, como parte das atividades desenvolvidas pelo bolsista Augusto Buchweitz, destacam-se ensaios selecionados a partir da leitura do livro Comparative Literature in the Age of Multucuturalism, organizado por Charles Bernheimer ( Boston: The John Hopkins University Press, 1995):

·          “Comparative Literature and Global Citizenship”, de Mary Louise Pratt;

·          “On the Complementarity of Comparative Literature and Cultural Studies”, de Michel Rifaterre;

·          “The Function of Criticism at the Present Time – The Promise of Comparative Literature”, de Ed Ahearn e Arnold Weistein;

·          “Literature in the Expanded Field”, de Marjorie Perloff;

·          “Comparative Literature, at Last!” de Jonathan Culler.

A presente etapa do projeto prevê a tradução dos seguintes textos:

·          “Defining the Postmodern”, de Jean- François Lyotard;

·          “Space, Power and Knowledge”, de Michel Foucalt;

·          “Questions of Multiculturalism” , de GayatriC. Spivak e Sneja Gunew;

·          “The New Cultural Politics of Difference”, de Cornel West;

·          “From Culture to Hegemony”, de Dick Hebdige.

Ao final do projeto, previsto para 2003, pretende-se a publicação dos textos traduzidos com introdução critica e respectivos comentários das professoras envolvidas na sua realização. No intervalo, houve a publicação de um fascículo dos Cadernos de Tradução do Instituto de Letras (n.11, julho- setembro de 2000), com a apresentação de textos críticos e textos traduzidos privilegiando os enfoques do projeto de pesquisa.

Finalmente, o projeto institucional “Memória ABRALIC”, a ser desenvolvido em parceria do Instituto de Letras com a Biblioteca Central da UFRGS, também terá interfaces produtivos com o Núcleo de Estudos de Tradução Olga Fedossejeva, com a recente criação do Núcleo de Documentação e Pesquisa da ABRALIC, a partir do acolhimento da proposta da UFRGS pela atual Direção da associação, de manutenção e guarda do acervo, apresentada pela professora Tania Franco Carvalhal no Colóquio de Literatura Comparada da UFMG em agosto de 2001.

Com uma dimensão interdisciplinar, o objetivo do Núcleo é o de promover condições de armazenamento seguro à documentação existente e à que será incorporada, garantindo sua estabilidade física e o competente tratamento bibliográfico e arquivístico dos dados coligidos pelos técnicos da Biblioteca Setorial de Ciências e Humanidades da UFRGS.

Sendo assim , o Núcleo abrigará toda a documentação relativa à história da ABRALIC enquanto associação acadêmica de reconhecimento nacional e internacional, constando de publicações, como Anais de Congressos, revistas e Boletins especializados, estatutos, correspondência e documentos administrativos em geral.

A disponibilização das informações aos estudiosos da área, inclusive via internet, torna o acervo material valioso para a realização e manutenção de pesquisas em Literatura Comparada, sobretudo pela possibilidade de futuro acesso eletrônico às publicações.

Nesse sentido e já como parte das atividades regulares do Núcleo, insere-se agora o desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado “Literatura Comparada e Tradução nos Anais da ABRALIC”, orientado pela professora Patrícia Lessa Flores da Cunha, com a participação da bolsista Jane Reginato.

Trata-se de pesquisa bibliográfica que busca mapear o desenvolvimento dos Estudos de Tradução e o conseqüente relacionamento com a área da Literatura Comparada nos registros acadêmicos da produção intelectual da ABRALIC – num primeiro momento, nos Anais de Congressos, e após, nas Revistas e Boletins especializados – visando a uma reflexão consistente sobre os pressupostos teórico-críticos utilizados nesse percurso.

A implementação do projeto Memória ABRALIC na UFRGS, sob a coordenação geral da Direção do Instituto de Letras na pessoa da Professora Sara Viola Rodrigues pode ser acompanhada através do acesso à página eletrônica do Instituto de Letras: www.ufrgs.br/iletras  [topo da página]

# Paulo Sérgio Nolasco dos Santos - Margem de papel ou corpo despedaçado do texto
Reportando-nos aos trabalhos que vimos discutindo no âmbito da profícua “limiares críticos”, do GT de Literatura Comparada da ANPOLL, propomos desenvolver neste XVII Encontro Nacional uma reflexão que toma como ponto de partida a figura emblemática da “margem”, ou do “corpo despedaçado” como paradigma para o nosso objetivo que é o de refletir sobre as representações de identidade em diferentes textos da cultura sul-mato-grossense. Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa que desenvolvemos em nossa Universidade, cujo título “Nomes e Faces: a literatura Comparada no extremo oeste do Brasil”, objetivos e justificativa já anunciavam o nosso interesse pela questão dos “mediadores” que vai se tornar o tema geral do congresso da ABRALIC, em julho próximo.

Assim, iniciando com textos literários e/ou escritores já alçados ao lugar de ícones culturais, passando por nomes não canonizados, ou menos representativos, e considerando a existência de nomes e/ou mediadores tacitamente vinculados à crítica cultural, à historiografia e às artes de um modo geral, postula-se, aqui, o lugar de uma identidade cultural cujo tecido reflete a imagem emblemática do corpo e do Texto despedaçados. Alguns textos-fontes dessa crônica despedaçada, corpo-fantasma que revive o impasse do sujeito frente ao espelho, foram referenciados em um trabalho anterior; dentre esses textos-fontes retomo aqui as crônicas que se utilizaram da seriema _ conhecida ave da região e motivo da famosa canção folclórica intitulada “A seriema de Mato Grosso”_ para se autointitularem “Pra quem fica a seriema?” e “Estado do PT e a seriema”. Publicadas à época da divisão, essas crônicas serviram de veículo à repercussão da pergunta “pra quem fica a seriema?” por todo o estado, numa clara exposição não só de um certo maniqueísmo, mas, sobretudo, pela razão que nos interessa, numa forma de exposição da fragmentação e da divisão do corpo, da matriz identitária.

Nesta perspectiva, retomo, de saída, uma passagem pouco explorada, porém rica em significação, presente no texto da professora e agente cultural do Estado, Idara Duncan, por acreditar que justamente ali, onde a “coisa” não é percebida, apesar de anunciar-se, é que podem brotar as mais instigantes análises sobre a crítica cultural. A citação é a seguinte: “Com referência a nossa identidade cultural, a separação criou-nos um inusitado impasse quando impeliu-nos frente ao espelho a indagar: – E agora, quem somos?” (Duncan Apud Couto).

A citação, assim formulada e aqui recolocada no contexto desta análise, evoca uma outra citação, que, no macrotexto da divisão, toma a forma de citação em exergo, uma vez que está inscrita na lápide da sepultura do grande herói/mártir da emancipação do sul do Mato Grosso: o Coronel João Ferreira Mascarenhas, ou, simplesmente caudilho Jango Mascarenhas. A lápide em sua sepultura, no cemitério de Aquidauana, traz o seguinte epitáfio inscrito em francês: “Passant ne pleure pas ma mort, can je suis vif même quand je suis mort” - (Ao passares por aqui, não chores, porque mesmo morto, continuo vivo) (Ibidem).

Assim escrito, o epitáfio torna-se o testemunho lapidar que sintetiza o mal-estar do morto/fantasma que, ainda que morto, continua a viver. Da época da inscrição/morte, 21/10/1901, até os dias de hoje, cruzando com a citação de Idara Duncan, o sintoma pode ser assim transcrito na grande crônica contemporânea que especula acerca do melhor gentílico para batizar o corpo morto / vivo que constituiria a identidade e representação cultural desta unidade da federação: se morto continua a viver, ou, ainda que morto continua a viver passa a constituir o lugar fantasmático do espelho que nos obriga à pergunta, ao mesmo tempo que nos coloca no lugar de impasse, indecisão, frente a(s) alternativa(s) da escolha de um gentílico. Ora, o ato de escolha, por si só, não seria problemático e nem objeto de “pendengas”; só o é, na medida em que a própria história da criação do novo estado se dá com sobressaltos e de açodado, acabando por deslanchar vários atos pomposos e medidas rompantes à maneira de uma cruzada, espécie de jornada ou maratona física que assim justificariam ou refletiriam a hegemonia do tecido cultural, que, como se verá, em se tratando de um “tecido” é também um “complexo”, portanto “complexo cultural”, cuja representação resistiria àquelas demandas que parecem resultar muito mais na eficácia de um ato político do que numa busca da construção realmente identitária do novo estado de MS. Engrossando o lugar comum desta crônica da construção identitária, constata-se o equívoco de articulistas e homens de letras que lêem de maneira equívoca e/ou redutora os materiais, a vida cultural e os produtos da cultura, cujo tecido cultural se mostra dinâmico, resistente e volátil como toda matriz representativa, rotativa como a própria ciranda dos “Nomes”, que originariamente foi MT, tornou-se Maracaju, passou a ser MS e quer se tornar PT (Pantanal) ou Guaicuru.

A partir daquelas duas citações – do impasse frente ao espelho, e da lápide no cemitério – ocorrem-me alguns vetores que configuram a metáfora que passa a operar sobre o corpo despedaçado da representação e da própria identidade cultural. Assim, alguns destes textos podem ser agora referenciados. Penso, p.ex., na letra da música do douradense Almir Sater, “Sonhos guaranis”, em que o próprio título pode condensar a metáfora do sujeito que revela este lugar sintomático de quem vive à margem: “Ao revelar que eu vim/ Da fronteira onde o Brasil foi Paraguai”. Com efeito, o fato de sermos da fronteira onde o Brasil foi Paraguai torna agudas as noções de extremo, de transição e de limiar que balizam as nossas reflexões nesta linha de pesquisa em Literatura Comparada, fazendo ressonância às reconfigurações sobre identidade e literaturas de fronteira ou, também, sobre os questionamentos de limites culturais num conceito de região que compreende, neste caso específico, o entorno do pantanal mato-grossense; que compreenderia, atualmente, na discussão dos limites geopolíticos, tanto do Paraguai como da Bolívia enquanto países fronteiriços, como também dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no território brasileiro. Há 25 anos, desde a divisão, MS ensaia um lugar de pertencimento, muitas vezes crítico, ora porque o olhar do analista deixa-se marcar, enviesadamente, pelo fenômeno da pertença, que não deixa ver além da fronteira física, ora pela constatação simplista e comprometida com estereótipos binários: se de fato MS foi parte do território de MT, o ato de emancipação não pôde, por si só e a priori, deslindar um fato cultural, uma história que se confunde nas bases mesmas em que se fundamenta todo um território.

Em tais circunstâncias, aqui essenciais, é que se poderia compreender a complexidade de nossos “nomes de letras”, ou de pessoas que tiveram suas vidas comprometidas com a arte e com o solo cultural em nosso estado. Historicamente, a distância e o isolamento foram fatores que dificultaram não só a conformação de nossa representação cultural, sempre híbrida e propensa à outras ampliações, fruto mesmo da expansão econômica, das sucessivas levas de imigrantes de dentro e de fora do país, como também fatores que colocaram nossos “homens de letras” – agentes culturais; mediadores – eles mesmos como signos de uma representação em pedaços, divididos no seu desejo e recompondo uma espécie de gesta da ex-tradição. Lugar de despertencimento, sentimento de não estar em casa, são formulações possíveis de serem constatadas e comparadas tanto em nossa artista plástica maior, Lidia Bais, quanto no poeta corumbaense, Lobivar Matos, cujo cognome “poeta desconhecido” bem sintetiza o processo de marginalização sofrido por esses artistas no início do século.

Desde o nascimento de Lidia, em 1910, passando pelo seu aprimoramento na pintura, no Rio, com Henrique Bernadelli, sua viagem de estudos à Europa, o retorno ao Brasil e à cidade natal, Campo Grande, sua vida deixa-se desenhar no bosquejo de uma gravura que a própria artista não compreendeu. Deixando para os seus contemporâneos e geração futura a tarefa de resgatar de dentro do “pequeno internato religioso”, para onde foi mandada na adolescência, os significados perdidos e /ou esquecidos na vida e na obra que mistura o experimentalismo das vanguardas do início do século e a procura inquieta de uma explicação místico-religiosa de uma obra e de um Nome – Lidia Bais – que vai representar genuinamente o drama da mulher artista, pintora, numa sociedade patriarcal, vigente num lugar ermo e distante como o que a artista vivia. Tanto Lidia quanto Lobivar Matos, na pintura e na literatura respectivamente, elaboraram suas obras tendo caminhado além do tempo e do espaço em que viviam, e, por várias razões, a condição de “poeta desconhecido” e a ausência de estudos à altura desses dois Nomes inscreve-se de igual modo sob o signo do “corpo morto”.

Mais recentemente, compondo o perfil de uma literatura regional, o poeta-performer, douradense, Emmanuel Marinho, vem realizando significativa produção artística que privilegia expressões da realidade e do cotidiano da região. Num dos textos de Emmanuel, mais amplamente conhecido e explorado, “Genocíndio”, propõe-se uma vigorosa denúncia da condição de expropriação e espoliação a que tem sido submetido o índio e sua cultura em toda a região sul do Estado; “Genocíndio”, poema-apólogo do quase extermínio da população indígena local. Também o poema “Índia velha”, outro símbolo do clamor indígena torna patente a metáfora do “corpo despedaçado” na medida em que a representação do regional constrói-se sobre os signos do arcaico e do moderno: de um lado, o universo indígena, sofredor do processo de aculturação (cheiro verde; teus colares; lençóis de flores na aldeia; cheiro verde; água boa; fonte limpa), de outro, o mundo urbano, criado pelo homem branco (vestido encardido; sapatos; asfalto e areia; bares). (Cf. Parentel). A preocupação com o elemento indígena, aspecto já patente na obra de Emmanuel, ganha exponencialidade na concretude da escultura de Conceição dos Bugres. Conceição, principal escultora de MS, é reverenciada nacionalmente pela singular caracterização de suas esculturas; a artista esculpiu diversificadas fisionomias dos “bugrinhos”, de tal forma que suas caracterizações, ao mesmo tempo que representam a caracterização da nação guaicuru, também ganham relevo artístico e se aproximam, numa visão universalizadora, do elemento aborígene, rústico, e do elemento autóctone, remetendo para a cultura maia, inca e/ou asteca. Para Conceição, os bugres de madeira parecem formar uma série de obras que se recomeçam em outras, o que equivale a dizer que suas personagens iguais são profundamente diferentes, diversas e de mil fisionomias. Apesar de ser lembrado, regionalmente, como o autor dos versos de “Genocíndio”, o poeta Emmanuel Marinho mereceria antes ser celebrado como o autor de Margem de papel e pelo mais recente trabalho publicado, o disco “Teré”, em que o próprio Emmanuel lê e declama alguns de seus poemas _ uns já conhecidos, outros novos e originais . No caso deste disco merece destaque especial o redirecionamento que o autor passa a imprimir não só ao processo de reelaboração de sua temática regional, mas sobretudo pelo surgimento de um registro artístico que de modo objetivo torna-se a formulação e a constituição de uma matriz poética resistente ao rótulo de literatura regional, tout court. Neste nível, o poema “Genocíndio” compõe-se de um outro texto cujos sentidos entranham-se na análise do próprio poema: “a poesia é suja de som? De sonhos/ de sangue de signos./ (...) a poesia lê o mundo/ inventa outros/ mofa nas gavetas / arranha paredes/ perturba a ordem pública/ e protesta nas praças pela paz”. A partir daí, pode-se avaliar nitidamente a evolução da obra de Emmanuel, que, vindo de um sistema regional inicialmente articulado com uma realidade político-literária, encaminha-se para o polissistema nacional, não anulando a tensão entre o regional e o nacional (Cf. Cosson: 1998.). Conforme se percebe nestes outros versos, pelos quais o poeta é nacionalmente reconhecido : “poesia não compra sapato mas como andar sem poesia?”. Entretanto, tal evolução que aqui se constata não pressupõe, ainda, um distanciamento do poeta a uma temática própria da literatura regional, uma vez que o conjunto de sua obra , e o próprio título Margem de papel, deixa-se indexar ostensivamente sob os restos, as margens e as multifaces do conturbado solo que constitui a representação cultural: ou seja, o corpo despedaçado do texto, na sua matriz representativa, atua sobre o emaranhamento da problemática identidade versus representação, e o texto acaba atuando, ainda, como margem de papel, e da folha, indicando o macrotexto sócio-político-cultural que compõe aquela região – o entorno do pantanal mato-grossense. Aliás, o próprio processo de reduplicação de um único tema, o genocíndio, evidencia deslocamentos reveladores de possibilidades plásticas, na medida em que o os dois textos escritos sob um mesmo título (Genocíndio) desdobram o eixo temporal em sua simultaneidade de passado e presente. Com isso, não só o espaço e o tempo recuperam-se em seu nomadismo, volatilidade plástica, mas sobredeterminam o próprio universo do discurso, ou da representação. Quer dizer, a partir do paratexto-título “genocíndio”, Emmanuel Marinho escreve dois poemas comprovadamente diferentes, quer seja no que se refere ao espaço que cada um ocupa na ordenação e paginação das respectivas obras, na série-conjunto das obras do autor, quer seja com relação ao objeto e signos aí representados. No entanto, a análise comparativa dos dois textos resulta extremamente produtiva na atualização dos sentidos que se encontram e se cruzam, compartilhando seus respectivos espaços de significação. Da perspectiva do poeta-artista-ator, o refrão “ tem pão velho?” ( ato perfomático de crianças indígenas batendo palmas nos portões), que se repete ao longo das seis partes do poema, dramatizando a dilaceração do elemento indígena, finda, no segundo texto e segunda versão de “Genocíndio”, absorvido plenamente pela matriz poética, lírica, do poema, que, agora encerra em si o espaço e o tempo da sua representação, onde a temática da realidade, o elemento indígena potencializado já pelo paratexto-título, permite-se ler na própria materialidade do ser poético, uma vez que “a poesia é suja de sangue e de signos”.

Assim, executando o labor criativo na própria materialidade da folha ou da página em branco, Emmanuel Marinho realiza em Margem de papel uma espécie de ato performático, oriundo da dupla experiência do poeta que é também ator; exigindo do leitor um olhar em movimento, ou seja, a leitura do poema transborda o espaço do próprio olhar visual para lançar-se sobre os elementos contextuais e regionais de que o livro como um todo sintetiza metonimicamente os nomes e as faces de uma região particular. Nessa perspectiva, é interessante observar o “Prefácio” que Sérgio L.R. Medeiros escreveu para o livro, já intuindo esse aspecto plástico visual da poesia do autor: “ (...) - a sua palavra é também pintura, forma desenhada na página. Ler Emmanuel Marinho é a oportunidade de descobrir uma outra dimensão da sua arte, a da palavra-coisa, que pode ser vista e admirada. Neste livro, o poema visual é a outra face do poema oral, escrita oriental, ambas presentes no livro”.

Com efeito, Margem de papel traduz-se na provocação do olhar e da sensibilidade do leitor, que deve recompor os sinais gráficos na busca de imagens e figuras que a textualidade plástica espalha, numa forma lúdica, por entre as páginas. Idéia e estrutura tornam-se inseparáveis, são o significante único. Só acompanhando os retalhos que compõem a obra no seu todo é que se pode apreender as interrogações que o texto de Emmanuel faz eclodir: eclodir, p.ex., a questão da identidade, do autor, do leitor, de um mundo em perplexidade. Desse significante brota a certidão, registro de nascimento, que abre a própria obra: na folha, despedaçada, está a certidão de nascimento. Seria a certidão do poeta? Registro e/ou certidão recortados, como a escrita esfacelada e fragmentada da “cartilha” e de outros textos que também compõem a obra; todos retalhos de um fio de navalha que vai cortando cada página até a des/configuração plena das folhas em branco, sem escrita, assumindo de vez a descoloração da escrita para ganhar, no final, o colorido do arco-íris. Não transigindo com uma gramática, a obra é margem de papel, margem de palavras, que resgatará a identidade extraviada dos seres e das coisas – “papel sem margem como eu”, como diz o poeta. Ao lado de uma denúncia pelas margens e entrelinhas do próprio texto, corre também uma citação constante, o retalho de outros textos com os quais Emmanuel trava um diálogo poético-performático: Manoel de Barros, Borges, Dali e Mallarmé. Nesse gesto de apropriação, Emmanuel brinca com o papel, jogando com as estereotipias do estabelecido como se quisesse gritar, com suas palavras, que nada existe, que é para além da margem da identidade oficial e aparente que se deve olhar. Ou, não seriam as coisas feitas apenas de papel, não seríamos nós todos apenas seres de papel? A questão da identidade cultural, hoje, parece estar vicariamente ligada ao que Stuart Hall caracteriza como algo que flutua livremente, decorrente de uma sociedade regida por imagens da midia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados (Hall: 2001, p.71-75). Para esse sistema de identidade cultural, o sujeito é o que se vê espelhado nos fragmentos e nas fraturas e sua identidade resultaria num plano de “geografias imaginárias”. Não seria mais apropriado, então, localizar a questão de nossa identidade cultural para além das esculturas de bichos que abrigam as cabinas de telefone, para além do embelezamento e do empalhamento que pré-moldaram a questão da identidade e da representação? Adotando, assim, a perspectiva da escritora sul-mato-grossense, Raquel Naveira, que no poema “Limites” explora os “trópicos imaginários ”, questionando o frágil, a fronteira, o extremo, que des/limitam essas geografias? Algo, “que escapa de meus dedos / Como um pássaro sem pluma.” Não estaria entranhada nesses versos, na vigorosa metáfora do movimento que eles engendram, a possibilidade de refletir acerca da construção identidade do MS?

Referências Bibliográficas
COUTO, Carlo Magno. O Guizzo é que tinha razão. Jornal O Progresso. 11/06/99.
COSSON, Rildo. “Notas à margem de uma fronteira móvel”. In: Continente Sul/Sur, Porto Alegre: Instituto Nacional do Livro, v.7, p.85-94, 1998.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: DP&A Editora, 2001.
MARINHO, Emmanuel. Teré. Manaus: Compact disc, 2002. 1 CD (80 min): digital, stéreo.
MARINHO, Emmanuel. Margem de papel. Dourados: Manuscrito Edições. 1994.
NAVEIRA, Raquel. Casa de Tecla. São Paulo: Escrituras Editora, 1998.
NOLASCO-SANTOS, Paulo S. “Notas à margem: fato e ficção na construção identitária de MS”. In Anais. I Colóquio Sul de Literatura Comparada e Encontro do GT de Literatura Comparada da ANPOLL. UFRG. Porto Alegre: 2001.
NOLASCO-SANTOS, Paulo S. “Um outdoor invisível: imagens do pantanal sul-mato-grossense” .In: CARVALHAL, T.F. (Org.). Culturas, Contextos e Discursos – Limiares críticos no comparativismo. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS.1999.
NOLASCO-SANTOS, Paulo S. “Sobre Emmanuel Marinho”. In: Jornal O Progresso. Dourados, 29 nov. 1994.
NOLASCO-SANTOS, Paulo S. Nomes e faces de uma região. In: NOLASCO-SANTOS, P.S. (Org.). Literatura Comparada: Interfaces e Transições. Campo Grande: Editora UFMS; Editora UCDB, 2001. p.101-112.
NOLASCO-SANTOS, Paulo. “Sobre um inédito de Lobivar Matos”. In: GT de Literatura Comparada da ANPOLL, Seção Fórum da home-page, 1999. www.letras.ufmg.br/gt/index.htm.
PERENTEL, Erenildes de Rodrigues. O lirismo e a dramaticidade em Emmanuel Marinho. Dourados: UFMS, 1999. (Monografia, Especialização em Literatura Comparada).
REVISTA MS Cultura. Identidade Cultural: São os bugres de Conceição a nossa mais completa tradução? FCMS: Campo Grande, n.9, 1996. 
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# Rachel Esteves Lima – Memória da crítica

Analisando as diferentes estratégias de resistência ao controle exercido pelo sistema capitalista adotadas pelos movimentos modernistas europeus e norte-americanos e pelos atuais defensores da sensibilidade pós-moderna, Andréas Huyssen (1997, p. 222-255) destaca que estaríamos vivendo um processo contrário ao que marcou a querelle des anciens et des modernes. Se, naquele momento, as armas da guerrilha cultural das vanguardas se voltavam contra o museu, enquanto instituição que possibilitava a articulação entre a nação e a tradição, no cenário pós-moderno, ocorre uma revivescência do processo museológico, que beira uma verdadeira obsessão na esfera da cultura. A “museumania” contemporânea configuraria, segundo o crítico, a ultrapassagem de um momento no qual essa instituição assume uma concepção conservadora e elitista, cedendo lugar ao hibridismo que rege a produção e a recepção dos bens simbólicos numa sociedade de massa.

Sem se prender a posições excludentes, que implicariam a simplista defesa das propostas vanguardistas ou pós-modernistas, Huyssen ressalta o caráter paradoxal que sempre cercou o museu - também ele um produto da modernização -, insistindo na natureza dialética desse lugar que privilegia a atividade do colecionador e na possibilidade de politização da arte e da cultura (assim como dos discursos teórico-críticos sobre tais esferas), aberta pela recente concepção do museu como um espaço de contestação e negociação cultural. No ensaio “Escapando da amnésia”, afirma o crítico:

Os museus foram criados para serem instituições pragmáticas que colecionam, salvam e preservam aquilo que foi lançado aos estragos da modernização. Mas ao se fazer isso, o passado inevitavelmente seria construído à luz do discurso do presente e a partir de interesses presentes. Fundamentalmente dialético, o museu serve tanto como uma câmara mortuária do passado – com tudo que acarreta em termos de decadência, erosão e esquecimento -, quanto como um lugar de possíveis ressurreições, embora mediadas e contaminadas pelos olhos do espectador. Não importa o quanto o museu, consciente ou inconscientemente, produz e afirma a ordem simbólica, pois sempre haverá uma sobra de significados que excedem o conjunto das fronteiras ideológicas, abrindo assim um espaço para a reflexão e a memória contra-hegemônica. (HUYSSEN, 1997, p.225)

O mesmo empenho em fugir ao reducionismo crítico se pode perceber num  ensaio posterior de Huyssen, intitulado “Passados presentes: mídia, política, amnésia”. Se, no primeiro texto, lança-se a hipótese de que a revalorização do museu assume, na pós-modernidade o sentido libertário de instauração de um espaço de convivência entre “múltiplas narrativas de significado” (HUYSSEN, 1997, p.251) e de desconstrução das hierarquias instauradas na arena cultural - ainda que, em alguns momentos, isso se processe sob a forma espetacularizada da arte como mercadoria – já no segundo, o autor procura analisar mais detidamente as motivações que levaram à atual obsessão museológica e os riscos de, com ela, se recair numa visão neo-conservadora dos discursos da memória enquanto estratégia política. Lembrando que a emergência de uma “cultura da memória”, a partir dos últimos anos da década de 1970, decorre de um quadro político-econômico de crise da utopia socialista e da reconfiguração geo-política-cultural imposta pela intensificação do processo de globalização, Huyssen, recorrendo a Hermann Lübbe, para quem a “musealização” encontra-se, hoje, infiltrada em todas as esferas da vida cotidiana”, afirma que tal estratégia constitui um artifício para domar a ansiedade gerada pelo processo acima mencionado e pela velocidade com que se tornam obsoletos os produtos tecnológicos, científicos e as tradições culturais. A “cultura da memória” cumpriria, diante desse quadro, o papel de compensar a “entropia das experiências de vida estáveis e duradouras” (HUYSSEN, 2000, p.27), a perda da racionalidade e a compressão espaço-temporal, vivenciadas na atualidade.

           

A mitificação dos discursos da memória, considerados por Huyssen como substitutivos incapazes de, por si só, gestarem uma proposta política que supere a ansiedade decorrente da instabilidade política e econômica e da perda dos referenciais identitários nacionais e comunitários, na atualidade, é apontada pelo autor como uma ideologia simplista, que não considera a inserção também desses discursos nas redes midiáticas, responsáveis, em última instância, pela desestabilização das tradições  culturais, no capitalismo tardio. Tal processo é exemplificado pelo autor tanto através do acirramento das políticas de identidade, geradoras dos atuais conflitos étnicos, quanto pela paradoxal necessidade de se formarem, hoje, os “arqueólogos dos dados”, responsáveis pela decodificação dos primeiros programas de computadores, e pela ameaça da perda de memória cibernética vivenciada, recentemente, pelo chamado “bug do milênio”, que nos levou a perceber o quanto “a ameaça do esquecimento emerge da própria tecnologia”. (HUYSSEN, 2000, p.33)

É também a uma certa despolitização que Ítalo Moriconi associa o retorno ao passado, empreendido pela crítica universitária brasileira, na atualidade. Contrapondo-a à crítica que se praticava nos anos 70, período áureo do investimento dos cursos de pós-graduação na teoria literária, no qual se gestou uma das últimas polêmicas no meio acadêmico, o crítico afirma:

Tantos anos são passados, mas as questões então levantadas nunca chegaram a ser realmente aprofundadas por um debate coletivo específico. Sabe-se o que não se deseja. Mas não se sabe muito bem o que se deseja. Na área dos estudos literários, tornou-se hegemônica uma postura anti-teórica. O ensaísmo criativo almejado hoje serve de capa para abordagens descritivas, para catálogos e paráfrases que testemunham, é certo, uma enorme energia de pesquisa, em geral histórica, freqüentemente voltada para resgatar textos menores, esquecidos pelos cânones consagrados da tradição. O pesquisador em Literatura tornou-se arquivista, arqueólogo de papéis perdidos. Isso não é melhor nem pior que na época da teoria, em que os textos acadêmicos repetiam teorias estruturalistas ou pós-estruturalistas com disposição de papagaio. Mas a monotonia de hoje é causada pelo desinteresse por idéias, levando ao isolamento e despolitização da crítica universitária.  (MORICONI, 1996, p.55-56)

É certo que se pode discordar do exagero e da generalização da afirmação de Moriconi, mas talvez ela, assim como a exposição do pensamento de Huyssen, possa nos auxiliar a nos questionarmos se realmente o trabalho acadêmico que vimos empreendendo tem nos oferecido a oportunidade de promovermos um diálogo com nossos pares ou se nós não estaríamos também participando da formação de uma cultura da memória como forma de compensar, de forma despolitizada, a perda do referencial identitário que conferia um lugar ao intelectual, na sociedade, ao mesmo tempo em que cobrava dele definições e tomadas de posição. Se nos ativermos ao nosso grupo de trabalho e passarmos os olhos nos títulos dos ensaios a serem apresentados neste Encontro, incluindo o que ora lhes está sendo lido, perceberemos que a obsessão museológica (sem nenhum sentido pejorativo) aqui marca presença, muitas vezes através da metáfora do arquivo. Ainda retomando Moriconi, isso, por si só, não é bom nem mau. Mas impõe-nos a inadiável tarefa de refletirmos sobre as motivações que nos levaram, também, a optar por essa compulsão memorialística e sobre a forma como nosso trabalho vem se desenvolvendo.

           

Podemos começar pela constatação de que o objetivo de transformarmos o GT de Literatura Comparada num verdadeiro grupo de trabalho parece estar encontrando obstáculos para ser concretizado. Ainda que alguma linha de pesquisa possa considerar que as tarefas que se propôs vêm sendo realizadas a contento, o que temos verificado é que, de modo geral, os resultados ainda parecem apontar para o trabalho dos pesquisadores no isolamento de suas instituições. Vários fatores podem ser listados para justificar tal situação. Dentre eles, destaca-se a dificuldade de se promover encontros periódicos para sistematizar as discussões, seja em decorrência de falta de financiamento, seja por falta de tempo dos membros das linhas para participarem dos encontros do GT. Mas parece-nos que esse não é o elemento central a dificultar o nosso trabalho. Isso porque muito se poderia avançar, caso se manifestasse a disposição em utilizarmos os recursos informacionais que propiciam a interatividade.

O fato é que parece haver, hoje, da parte dos professores e pesquisadores universitários, uma acomodação às exigências impostas pelos órgãos responsáveis, no Brasil, pelas políticas educacionais e pelas regras de concessão de fomento à pesquisa. O padrão de excelência da universidade dos tempos neoliberais rege, hoje, a atividade intelectual, praticamente reduzida aos rituais acadêmicos que, em grande parte, não propiciam a prática do diálogo e da negociação dos sentidos. Assim, mesmo em encontros como os nossos, que, segundo o que foi decidido pelo grupo há aproximadamente quatro anos, deveriam priorizar a discussão dos projetos de pesquisa, acaba-se sempre recaindo na apresentação de papers, numa demonstração de que não conseguimos fugir ao funcionamento autista do sistema intelectual brasileiro. Nosso interesse pela memória cultural talvez decorra justamente da instabilidade que sentimos, enquanto partícipes desse sistema. Uma instabilidade gerada, por sua vez, pela mudança ocorrida na própria noção de cultura nacional, que nos impede de seguir as mesmas estratégias de representação utilizadas pelo intelectual moderno, mas que, ao mesmo tempo, não nos tem levado a perceber realmente as aporias em que se enredaram o nosso discurso teórico e crítico. 

Em um livro polêmico, Bill Readings nos força a enxergar que, paradoxalmente, a emergência dos estudos culturais é acompanhada pela perda da função da universidade moderna, justamente organizada em torno da noção de cultura nacional. A emergência da universidade de excelência teria como pano-de-fundo o declínio do Estado-Nação e a inserção da educação e da pesquisa nas redes globalizadas do capital. Nelas, a produção do pensamento se mostra dispensável e, talvez mesmo, indesejável. Sigamos o raciocínio do autor:

Devemos ser claros a respeito de uma coisa: nada intrínseco à natureza  da instituição  irá consagrar o pensamento ou protegê-lo dos imperativos econômicos – e tal proteção seria, na verdade, altamente indesejável e danosa ao próprio pensamento. Mas, ao mesmo tempo, se o pensar deve permanecer aberto à possibilidade do pensamento, assumindo a si mesmo como indagação, ele não deve procurar ser econômico – ele se insere melhor na economia do desperdício do que na economia restrita do cálculo. O pensamento é trabalho não-produtivo, e por isso ele não figura nas folhas de balanço senão como desperdício. A questão colocada para a Universidade não é como transformá-la em refúgio do pensamento, mas como pensar a instituição cujo desenvolvimento tende a tornar o pensamento mais e mais difícil, menos e menos necessário.(READINGS, 1996, p.63)

Para Readings, a retomada do pensamento só pode ser vislumbrada se forem abandonadas posturas nostálgicas que insistem em recompor o espaço de atuação do intelectual moderno e que nos impedem de aceitar a necessidade de, pragmaticamente, habitarmos as ruínas da universidade, construindo nela uma comunidade de pensadores, desvinculada da tradição organicista da corporação medieval. Ao invés de considerar a comunidade como um microcosmo em que se reproduziria a organização do Estado-Nação, o crítico defende a formação de uma comunidade de pesquisa que rompa com a idéia de unidade, identidade e consenso, instaurando, antes, o dissenso, a descontinuidade e a inconclusão do processo de aprendizagem. Tal proposição parece ir ao encontro dos últimos escritos de Michel Foucault, que apelam para a formação de comunidades organizadas em torno da amizade, entendida como um processo agonístico de convivência e experimentação. Longe de conceber as relações de amizade como destituídas de hierarquias e de conflitos, Foucault as compreende como “incitação mútua e luta, tratando-se não tanto de uma oposição frente a frente quanto de uma provocação contínua”. (ORTEGA, 1999, p.168)

As considerações do autor de As palavras e as coisas e, em menor medida, de outros pensadores, sobre o tema da amizade são objeto de análise de Francisco Ortega, que, em seu livro Amizade e estética da existência em Foucault, comenta a importância da ética da amizade no desenvolvimento do conceito de “auto-estilização” do filósofo. A noção de subjetividade desenvolvida por Foucault em seus últimos trabalhos não desprezaria a imprescindível presença da alteridade na constituição do si-mesmo. O cuidar de si implicaria, segundo ele, a possibilidade de estabelecimento de trocas intersubjetivas.  Nessa tarefa, a crítica compareceria com uma função formativa, como se pode depreender de suas palavras:

É a própria função do trabalho crítico que foi esquecida [hoje]. Nos anos 50, com Blanchot, com Barthes, a crítica era um trabalho. Ler um livro, falar de um livro, era um exercício ao qual as pessoas se dedicavam, de certo modo, para si mesmas, para seu próprio benefício, para se transformarem a si mesmas. (ERIBON, 1996, p.129)

É essa função constitutiva do sujeito, compreendido como um ser em devir, como um ser que, ao se desdobrar no cuidado do outro, acaba cuidando de sua própria formação, que nos interessa resgatar no desenvolvimento de nosso trabalho. Num dos primeiros encontros para discutirmos o funcionamento da linha “Literatura e memória cultural” e a forma de encaminhamento de seu projeto de pesquisa, ressaltou-se a necessidade de seus membros se colocarem em diálogo, corajosamente, de modo a possibilitar a renúncia à autoria individual, em nome de uma obra que se ofereceria como resultado de um trabalho coletivo. Nessa proposta intervinha, ainda que não nominada à época, a concepção “parrhesística” de produção da verdade, desenvolvida por Foucault. Por parrhesía, compreende-se a possibilidade de se vivenciar uma relação com uma alteridade dotada do direito de tudo dizer, aberta e livremente, como forma de promoção do crescimento, no caso intelectual, de todos os participantes do projeto. Infelizmente, definido o objeto da pesquisa, tal objetivo ainda não se concretizou. E só nos resta nos perguntarmos se ainda teremos a coragem de investir numa experiência que recuse o isolamento em nome da construção de um mundo compartilhado em uma comunidade que não desconhece o fato de também se instituir numa relação de poder, mas que procura “jogar dentro das relações de poder com um mínimo de dominação e criar um tipo de relacionamento intenso e móvel, que não permita que as relações de poder se transformem em estados de dominação.”(ORTEGA, 1999, p.168)

A proposta, aprovada pela linha, de se promover a análise da rede de imagens e conceitos operatórios tecida como recurso para se compreender o intercâmbio cultural entre o centro e as margens  do capitalismo, em sua fase tardia, oferece-nos a possibilidade de compreendermos a nossa prática e a nossa função na sociedade que se está construindo através de um processo de globalização autoritário e excludente. Longe de se prender ao passado, importa-nos construir uma memória que considere não apenas o momento, a forma e o local em que foram produzidos os conceitos que têm possibilitado à crítica latino-americana a reflexão sobre as relações culturais processadas na região, mas, principalmente, o valor residual de tais formulações para se entender os impasses que a atual situação geo-política, econômica e cultural apresenta, atualmente, às narrativas de identidade.   Através desse trabalho, procura-se investigar a participação do intelectual no processo de modernização das sociedades periféricas, enfatizando as ambigüidades e contradições inerentes à sua atuação enquanto mediador entre temporalidades e espaços diversos e as narrativas legitimadas pela sua intervenção na esfera da educação e da cultura.

A ênfase na memória e não, propriamente, na história insiste justamente na atualidade dos processos que se deseja estudar, num empreendimento melhor descrito pelas palavras de François Dosse:

A memória pluralizada, fragmentada, extravasa hoje por todos os lados o território do historiador. Importante instrumento dos elos sociais da identidade individual e coletiva, ela está no cerne de uma questão essencial. Depois de ter sido instrumento de manipulação durante muito tempo, ela pode ser reinvestida numa perspectiva interpretativa aberta para o futuro, fonte de reapropriação coletiva, e não simplesmente museografia desvinculada do presente. A memória, supondo a presença de um ausente, continuará sendo o ponto de união entre passado e presente, no difícil diálogo entre o mundo dos mortos e o dos vivos. (DOSSE, 2001, p.36-37)

Espera-se, portanto, que a memória da crítica que se pretende construir não recaia numa visão passadista e imobilista, mas que se mostre consciente dos riscos inerentes a essa empreitada. Talvez seja necessário, ainda, recuperar a posição de Huyssen, que, reconhecendo a complexidade das questões envolvidas no tema da memória, descritas nos ensaios citados, parece construir em sua reflexão um espaço intervalar no qual são consideradas tanto as estratégias modernistas quanto as pós-modernistas, voltadas para a política da memória. Pois, para o autor não se trata de se defender uma política da memória de base essencialmente localista nem tampouco de se recusar o teor subversivo das práticas de memória nacional na luta contra o processo de globalização. Longe de desprezar o trabalho da rememoração, trata-se, antes, de buscar compreender as contradições incorporadas, hoje, por essa prática, com o objetivo de construir memórias que consigam distinguir “os passados usáveis dos passados dispensáveis” (HUYSSEN, 2000, p.37), posição que corre o risco de comportar, ainda, uma visada teleológica.  A noção de futuro, tão cara às vanguardas modernistas, faria, dessa forma, sua rentrée, podendo, entretanto, ser suplementada pela articulação promovida com as noções de “passado escovado a contrapelo” e de “agoridade” benjaminianas. (BENJAMIN, 1985, p.222-232)

Propõe-se a construção de uma história da crítica literária e cultural, num contexto que não quer se definir nem como nacional nem como puramente transnacional ou universal e no qual o recorte apresentado assume o risco de uma escolha, se não arbitrária, pelo menos ciente de suas limitações. A participação na consolidação de uma “cultura da memória”, para usar a terminologia de Huyssen, não deve assumir, portanto, a ingenuidade ou o desconhecimento das aporias enfrentadas, na atualidade, por um exercício intelectual, que não pode mais furtar-se a reconhecer o caráter parcial de suas reflexões e a instabilidade de quaisquer paradigmas sobre os quais se baseie.

A remissão a Huyssen assume, sobretudo, a função de defender o caráter híbrido apresentado por uma pesquisa que se pretende interdisciplinar e interinstitucional, como instrumento de fuga aos binarismos e ao regime de identidade da ciência moderna. Acredita-se que é justamente através da criação de um lugar teórico para o qual convergem as diferenças e as contradições inerentes à enunciação de intelectuais situados em sociedades multiculturais, na periferia ou no centro do capitalismo tardio, que se torna possível abrir espaço para a “reflexão e a memória contra-hegemônica”, objetivo primeiro de uma pesquisa que, para ser realizada, demanda muito mais do que suporte técnico e financeiro. Pois, como afirma o entusiasta adepto da tecnologia, Pierre Lévy,

Os dispositivos materiais em si, separados da reserva local de subjetividade que os secreta e reinterpreta permanentemente, não indicam absolutamente nenhuma direção para a aventura coletiva. Para isto são necessários os grandes conflitos e os projetos que os atores sociais animam. Nada de bom será feito sem o envolvimento apaixonado de indivíduos. (LÉVY, 1993, p.131)

            Resta-nos responder se continuamos despreparados para enfrentar esse desafio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Obras Escolhidas, 1)

DOSSE, François. A história à prova do tempo. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.

ERIBON, Didier. Michel Foucault e seus contemporâneos. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

HUYSSEN, Andréas. Memórias do Modernismo. Trad. Patrícia Farias. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

MORICONI, Ítalo. Ana Cristina César; o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Prefeitura, 1996. (Perfis do Rio, 14)

ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

READINGS, Bill. Universidade sem cultura? Trad. Ivo Barbieri. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.   [topo da página]



 

# Rildo Cosson - Gênero e Representação
Admito que em tempos de crítica feminista e estudos dedicados à produção de minorias sexuais, o título de meu ensaio pode conduzir a expectativas equivocadas. Por isso, adianto-me em esclarecer que pretendo tratar aqui de gênero em um sentido que remete à disposição de textos e discursos, estando, portanto, mais próximo da antiga noção de gênero literário do que das questões de identidade genérica. Apesar do risco, mantenho esse título porque me interessa justamente ressaltar uma correlação entre os dois termos.

Ao colocar gênero e representação lado a lado quero chamar a atenção para uma relação aparentemente esquecida na agenda atual dos estudos literários. Embora gênero e representação estejam presentes nos mesmos textos de Platão e Aristóteles com que costumamos marcar a origem de uma reflexão sobre a literatura, o desenvolvimento contemporâneo dos dois conceitos os coloca em trilhas diferenciadas. Falar de gênero diz respeito ao funcionamento interno da literatura e dos discursos em geral em termos de organização de textos, taxonomias e hierarquias que não têm mais lugar em um uma cultura mundializada. A queda dos muros, a hibridização, a interdisciplinaridade, as diásporas, o desafio das fronteiras canônicas e tudo o mais que se pensa como próprio do pós-moderno demandam movimentos de cruzamento e intercruzamentos que os gêneros nas suas concepções tradicionais não conseguem operar. Não obstante, o uso da categoria de gênero persiste nos mais diversos contextos, ainda que se procure dela escapar com novas denominações que não deixam de funcionar como tal1. Já a representação está ligada à relação mundo e texto, envolvendo não apenas o dizer mimético, como também as definições de ficção, literatura, papel da linguagem, entre outras questões. A sua definição vai além da literatura e requer que se adote perspectivas de ordem diversas, tais como filosófica, sociológica e política, até porque se tornou também um conceito-chave nas ciências humanas como um todo, como o demonstrou exemplarmente Foucault. Além disso, os novos aportes críticos, quer sejam vistos como pós-modernos, pós-coloniais ou pós-estruturalistas, tomam a representação literária como ponto de partida para tratar de tópicos como raça, nacionalismo, gênero (gender), ética, classe social e diversidade cultural.

Essa presença obsedante da representação e o relativo apagamento do gênero pode ser, entretanto, uma miragem causada pela altura dessa quase torre de babel que é a atual crítica literária. De fato, quando correlacionamos os dois termos, percebemos que o funcionamento de um está condicionado pela existência do outro, ou seja, não há representação sem gênero e são os gêneros que organizam as representações. Para desenvolver essa nossa percepção, vamos, em um primeiro momento, analisar alguns aspectos de duas definições literárias de representação. Depois, buscaremos ligar esses aspectos com a teoria dos gêneros do discurso, de Michail Bakthin, e a frame analysis, de Erving Goffman.

Duas definições de representação literária: o paradoxo e a convenção
O ensaio Literatura e representação, de Jean Bessière, faz parte de um levantamento do estado da arte da Teoria da Literatura, reunindo estudiosos reconhecidos e questões fundamentais da disciplina. O livro onde está inserido funciona, assim, a meio caminho entre o manual e a atualização do que é estudar literatura contemporaneamente. Essa localização transfere-se para o texto através de um percurso extensivo entre teorias diversas que procuram explicar a obra literária como representação, auto-representação e anti-representação. É dentro desse quadro que o autor passa por vários tópicos, tais como mímesis, realismo, referente, signo puro, simbolismo social, simulação e estatuto literário, tendo sempre como guia a divisão entre a representação e a autonomia da obra. Ao final do ensaio, a proposta de Bessière é de que se suspenda a divisão e se aceite que “a síntese que a obra constitui realiza-se contra a dominação do logos e da mediação; não instaura nem o seu próprio logos nem o seu próprio mito; dá-se por unidade provisória no interior dessas mediações e desse logos e, assim, por capaz de manifestar um modo próprio de objetividade” (Bessière, 1995:396).

Com as mesmas características de publicação do texto de Bessière, o ensaio Representation, de W. J. T. Mitchell, tem uma estratégia um tanto diferenciada de abordagem do tema. O autor parte de Platão e Aristóteles para tentar definir como e porque a representação é um conceito fundamental não apenas na literatura e nas artes, mas também no mundo da política. Ao aproximar estética e política, o autor chama a atenção para os dois eixos básicos de sustentação da representação: de um lado, temos um processo de substituição que está na base de qualquer representação, ou seja, a representação é sempre uma troca de A por B; de outro, temos o imperativo da comunicação, a substituição que deve ser compreendida e aceita como legítima. É no cruzamento desses dois eixos que a representação pode se tornar um problema e tem sido discutida ao longo dos estudos literários, quer em questões centradas sobre o objeto, os modos e os meios da representação, quer na recusa da representação pelo modernismo e pelas teorias formalistas. Por fim, após analisar a questão da representação no poema My Last Duchess, de Robert Browning, Mitchell conclui que “Browning’s poem should make it clear why there would a strong impulse in literature, and in literary criticism, to escape from representation and why such an escape can never succeed. Representation is that by which we make our will known and, simultaneously, that which alienates our will from ourselves in both the aesthetic and political spheres” (Mitchell, 1995:21). Na política, essa transferência pode gerar a democracia ou o totalitarismo; na arte ela nos oferece a literatura.

A despeito de suas diferenças de percurso e estratégias de leitura, as duas definições terminam com o que pode ser lido como o paradoxo da representação. No caso de Bessière, trata-se de aceitar que a obra é ao mesmo tempo uma mediação do mundo e um mundo em si mesma. Para Mitchell, representar é fazer presente o que está ausente em um processo complexo de interação e transferência política e artística. Na explicitação desse paradoxo, os autores recorrem a argumentos diversificados. Um deles, porém, é de grande importância para a nossa correlação entre gênero e representação. Trata-se do uso mais ou menos extensivo que a noção de convenção encontra nos dois ensaios.

Em Literatura e representação, por exemplo, Bessière diz que a divisão da representação e da auto-representação supõe “as modalidades e as convenções da elaboração da obra e do reconhecimento que a representação veicula” (Bessière, 1995:381). Mais adiante, tratando da simbolização social, entrelaça as convenções da linguagem às convenções sociais ao afirmar que “a representação é sempre, por um lado, interpretativa da maneira como uma cultura se representa e, por outro lado, sempre uma metaforização, através da propriedade do escrito, dessa representação” (Bessière, 1995:390). De modo semelhante, Mitchell entende que “when something stands for something to somebody, it does so by virtue of a kind of social agreement” (Mitchell, 1995:13). Depois, o autor procura distinguir entre os códigos, que são os meios da representação, e as convenções, que são as maneiras de representar, incluindo aqui os gêneros e os estilos literários. Ambos são produtos de concordâncias sociais, mas entre eles pesa o grau de especialização que as convenções têm sobre os códigos, de modo que “we might think of language as one medium of representation, ‘literature’ as the name of the aesthetic use of that medium, and things like poetry, the novel, and drama as very large genres within that medium” (Mitchell, 1995:14). A despeito do desdobramento dos dois termos iniciais (código e convenção) em três (linguagem, literatura e gêneros), essa distinção é importante porque nos mostra que, seja no objeto, nos meios ou nas maneiras, para acompanhar a divisão de Aristóteles da mímesis atualizada por Mitchell, toda representação precisa de convenções para ser aceita como tal. Essas convenções podem ser percebidas tanto como determinações para a elaboração e a leitura das obras, quanto as configurações culturais que reafirmam simbolicalmente o que somos, conforme se depreende das citações de Bessière. Podem do mesmo modo ser tomadas como os limites daquilo que uma sociedade considera como possível no seu entendimento do mundo, ou, nas palavras do autor, “the social agreement” que subjaz a toda representação.

O gênero como moldura
As convenções que dão suporte às representações no campo literário receberam o nome de gêneros. Por uma conhecida tradição, que muitos fazem voltar a Aristóteles e a Platão, os gêneros foram repartidos em três: épico, lírico e dramático e a eles foram acrescentados espécies e formas variadas à medida que a literatura se diversificava através dos séculos. Para alguns estudiosos, a tripartição clássica representa mais do que uma taxonomia de classes de textos literários, pois são indicadores dos aspectos essenciais da existência humana (Staiger, 1975). Para outros, o conceito de gênero não pode ser restringido a uma tripartição, nem mesmo ao campo literário. É isso que propõe Bakthin com os gêneros do discurso.

Já amplamente adotada também na área da lingüística e da educação, a teoria dos gêneros do discurso toma os gêneros como “um tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico” (Bakthin, 1992:284). Essa definição apresenta pelo menos três aspectos inovadores no tratamento dos gêneros. O primeiro deles é estender a noção de gênero para os discursos, conforme já nos referimos. Quebra-se, assim, os limites tradicionais dos gêneros literários e afirma-se a heterogeneidade dos gêneros, um fenômeno sempre percebido, mas dificilmente explicável pela tripartição clássica. O segundo é que mesmo diante dessa heterogeneidade e da sua relativa estabilidade, os gêneros adquirem uma descritibilidade que não lhes nega historicidade, quer seja em termos diacrônicos, quer seja em termos sincrônicos. Nesse sentido, contam tanto as marcas de ordem temáticas, composicionais e estilísticas, quanto os processos de formação dos gêneros que vão de primários a secundários numa relação dinâmica de absorção e transmutação. São os gêneros e suas passagens intergenéricas que, para usar a metáfora de Bakthin, funcionam como correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da língua. O terceiro aspecto diz respeito à estabilidade dos enunciados que inscrevem os gêneros dentro dos discursos. Ao realizar essa estabilidade, os gêneros estão funcionando não apenas como uma seleção e uma organização dos enunciados, conforme costumamos perceber a função dos gêneros, mas também, e sobretudo, como categorias de mediação cultural. Dizendo de outra maneira, concebidos por Bakthin entre a atividade e a comunicação humana, os gêneros são linhas que recortam linguagem e sociedade para formar o tecido dos discursos.

É por essa condição de categoria de mediação cultural que os gêneros estão relacionados à noção de convenção conforme discutida no conceito de representação. Para tornar mais clara a relação entre gênero, convenção e representação, vamos tomar emprestado alguns dos pressupostos básicos da frame analysis de Erving Goffman (1998). É certo que Goffman não estava preocupado com definições de gênero e representação, mas acredito que seu conceito de frame pode ser um elo iluminador da questão que estamos tratando. Para Goffman, o sentido que damos a nossa experiência e o modo como interagimos dentro da sociedade é organizado por princípios que ele denomina de frames. Enquanto princípios de organização das maneiras como entendemos e participamos do mundo, os frames são articulados segundo as convenções, as regras e as normas de uma sociedade, sendo que convenções, regras e normas revelam graus diferentes e progressivos de aceitação desses frames no processo de interação humana. O desrespeito a uma norma não custa o mesmo que a recusa de uma convenção. O desconhecimento de um frame ou sua transposição inadequada de uma situação a outra pode levar a situações cômicas, mas também a sérios curtos-circuitos comunicacionais.

Dispostos dessa maneira, não é difícil perceber que um frame corresponde a um gênero do discurso. Ambos organizam os modos como dizemos nossas experiências de mundo. Ambos são mediadores entre as várias maneiras de dizer a experiência de mundo. Ambos determinam os limites e a ultrapassagem deles na construção do sentido do que somos e do que vivemos. Igualmente, o frame pode ser visto como uma explicitação mais adequada à noção um tanto vaga de convenção enquanto concordância social. De fato, como os frames distinguem os diferentes modos de convencionalizar a experiência, podemos compreender melhor porque certas convenções são mais facilmente rompidas e porque outras parecem resistir ao tempo.

Se o frame é o elo que faltava entre o gênero e a convenção, agora nada mais nos impede de perceber que a representação nunca acontece apenas no simples exercício do desejo ou na criatividade genial de um artista, mas sim numa rede complexa de convenções que são frames que são os gêneros dos discursos. Toda representação passa necessariamente pela mediação dos gêneros, pois é através deles que tornamos legíveis e legítimas nossas inscrições na cultura. De tal forma que, se é verdadeiro o conhecido aforismo de que a representação cria o representado, também é verdadeiro que essa criação depende da configuração dos gêneros para se efetivar como tal.

1 - Veja-se, nesse sentido, as considerações de Marjorie Perloff e Ralph Cohen sobre a persistência dos gêneros na coletânea organizada pela primeira com o título de Postmodern Genres (1989).  [topo da página]

# Rosani Ketzer Umbach - A representação da experiência de autoritarismo. Considerações Preliminares
O autoritarismo de Estado caracteriza-se essencialmente pela supressão das liberdades individuais – de expressão, organização social e política, etc. Nesse tipo de regime, o Estado postula o princípio da autoridade para impor sua ideologia. Freqüentemente faz uso de um aparato repressor, que inclui a censura aos meios de comunicação, a prisão por motivos políticos e a tortura. Levando-se em conta essas características, observa-se que o autoritarismo pode ocorrer tanto no sistema econômico capitalista como no comunista, mesmo que ambos se denominem democráticos.

O autoritarismo de Estado é uma constante no processo histórico brasileiro, como mostra José Antonio Segatto em seu texto “Cidadania de ficção”1. Impondo-se sobre a sociedade civil ao longo da história, o Estado, organizado pela classe dominante, sempre exerceu seu domínio pela coerção. Com a instauração da República em 1889, inaugura-se, de acordo com Segatto, “um traço que seria constitutivo e que marcaria profundamente a história republicana: a intervenção dos militares na vida política”, o que equivale a dizer, “nos rumos e na configuração do poder”2. Foi assim também em 1964, quando ocorreu a interferência direta dos militares na constituição do governo brasileiro.

As ciências políticas estabeleceram a designação ‘democracia autoritária’ para sistemas de governo que, como no Brasil pós-64, são anticomunistas, firmando-se na supremacia do poder executivo em relação aos demais poderes. Durante o regime militar brasileiro, o Estado tentou implantar uma ideologia nacionalista e ufanista – “Brasil: ame-o ou deixe-o” -, muitas vezes pela coerção e violência. Houve censura institucionalizada, repressão a manifestações e tortura. Em seu estudo sobre a censura à imprensa escrita durante o regime militar no Brasil, Maria Aparecida de Aquino3 afirma que a censura política – aquela “exercida pelo Estado que, para proteger seus interesses, interfere na divulgação de informações, determinando o que pode ou não ser veiculado” – tinha um caráter “multifacetado e não-aleatório”, ou seja, a censura agia de forma sistemática e variada, “de acordo com o momento histórico e com o periódico sobre o qual atua[va], e sempre de acordo com os objetivos do regime militar brasileiro”4. Entre 1968 e 1978, a censura política à imprensa escrita no Brasil agiu de duas formas: através de telefonemas, anônimos ou não, de ordens escritas, apócrifas ou não, encaminhados às redações dos jornais, e de acordos fechados com os proprietários de grandes órgãos de divulgação, ou através de censura prévia.5

Além da censura aos órgãos de comunicação, havia um serviço secreto, que espionava os cidadãos considerados subversivos pelo regime, prendendo-os e torturando-os, em muitos casos até a morte. Censura, perseguição política e espionagem também caracterizaram o regime socialista da extinta República Democrática Alemã (RDA), que vigorou entre 1949, ano de criação do “primeiro Estado socialista em solo alemão”, conforme slogan da propaganda oficial, e 1989, ano da queda do Muro de Berlim. As ciências políticas utilizam a expressão ‘democracia popular’ para designar sistemas de governo como o da RDA, que são monopartidários e dominantes nos países da área socialista.

O regime socialista implantado na RDA sob a influência da então existente União Soviética não poupou seus cidadãos da dominação pelo medo e opressão. Através de sua rede de espionagem e conspiração, o ‘serviço de segurança do Estado’ – Staatssicherheitsdienst – tornou-se um aparelho de absoluto controle da sociedade, que se infiltrou em todos os seus campos, incluindo a igreja, a literatura, a juventude e os grupos críticos.6 Para a RDA, vale a descrição que Ralph Miliband fornece sobre os regimes comunistas: eles “procuravam sufocar e suprimir todas as manifestações de vida que não pudessem ser rigidamente controladas pelo Partido e pelo Estado”, valendo-se de um “gigantesco corpo policial investido de poderes amplos e arbitrários”.7

Experiências de perseguição e prisão, essencialmente traumáticas para quem as vivencia, freqüentemente são representadas na literatura. Considerando-se a representação literária como mediação, torna-se necessário discutir questões relacionadas a conceitos como ficção, referencialidade e mímesis.

Os estudos literários que tratam de questões relacionadas à representação freqüentemente buscam em Aristóteles e seu conceito de mímesis as origens para suas considerações. Quase sempre esses estudos também chamam a atenção para o fato de que o mundo conhecido por Aristóteles era estruturado de outra forma, sofrendo ao longo do tempo modificações enormes, constantes e cada vez mais aceleradas, de modo que o conceito imaginado pelo autor já não dá conta da fragmentação típica do mundo contemporâneo. Se o conceito aristotélico de mímesis sugeria imitação ou representação do real na arte literária, essa concepção já foi bastante questionada ao longo dos séculos, tornando-se evidente que a recriação da realidade na literatura é impossível. Por outro lado, a biografia do clássico escritor alemão Goethe, para citar apenas um exemplo, mostra que ele realmente vivenciou alguns fatos descritos em seu Werther, considerado o primeiro romance moderno. Assim, nota-se em Goethe um certo compromisso com a ‘realidade’, uma tentativa não só de representar situações reais, mas também de, conforme Beutler, “lavar a alma” das atribulações e inquietações pelas quais havia passado8, mesmo que depois disso tenha evitado seu romance.

A questão da referencialidade é abordada em um ensaio de Octávio Ianni, que trata dos cruzamentos entre o discurso literário e o sociológico.9 Segundo o autor, a construção de tipos e tipologias, tanto na narrativa literária como na sociológica, seria um indício importante de como ambas estariam fascinadas pela ‘realidade’. Mesmo porque a realidade histórica ou virtual, dada ou imaginada, revela-se um vasto e fecundo manancial de matéria de criação para cientistas, artistas e filósofos. E os tipos e as tipologias revelam-se algo como que uma decantação do que se imagina que possa ser a ‘realidade’; ou de como se gostaria que ela fosse ou parecesse.10

Representar a ‘realidade’ seria, então, fornecer uma visão particular do mundo, mediada pelo texto, com seus elementos sintáticos e semânticos, figuras de linguagem, símbolos, com a ressalva de que “o todo representado pela narrativa é antes de mais nada o do texto”.11 Em seu ensaio intitulado “Representation”, Mitchell12 entende a representação como uma espécie de convenção, como algo que tem sentido apenas mediante acordo recíproco entre o autor e o leitor: “When something stands for something to somebody, it does so by virtue of a kind of social agreement – ‘let us agree that this will stand for that’ – which, once understood, need not be restated on every occasion.”13 Nesse jogo de faz de conta, entretanto, a representação tem um custo, ou seja, perde em “imediatismo, presença, ou verdade, na forma de um fosso entre intenção e realização, original e cópia”.14

Da mesma forma que Mitchell, também Bessière enfoca “a ambivalência de toda a representação”.15 Para ele, a representação “define-se por uma certa autonomia frente ao real e por um certo encerramento em si própria, e relativamente à historicidade e à mediação simbólica social”. Bessière entende a obra literária como um “sistema construído de símbolos”, que se compreende “no conjunto social e cognitivo de uma cultura e de uma História, das quais propõe um paradigma de leitura”.16

No entanto, se a ‘realidade’ do mundo moderno se torna cada vez mais uma construção fictiva, uma irrealidade, se cresce a disposição para a ilusão, não seria natural que a ficção se tornasse antificção? Com o argumento de que “a realidade moderna recebe, de modo crescente, aquela tintura de meia-irrealidade, na qual ficção e realidade se tornam indiferenciáveis”17, Odo Marquard levanta essa tese: “Quando a própria realidade se transforma num conjunto de ficções, a arte, por sua vez, torna-se antificção”.18

1 - In: Sociedade e Literatura no Brasil. Org. José Antonio Segatto e Ude Baldan. São Paulo: UNESP, 1999, p. 201-221.
2 - Idem, p. 203.
3 - Maria Aparecida de Aquino. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 222.
4 - Idem, p. 32.
5 - Idem, p. 222.
6 - Cfe. Joachim Gauck. Die Stasi-Akten. Das unheimliche Erbe der DDR.Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1991, p. 62.
7 - Ralph Miliband. Socialismo & Ceticismo.Trad. Ivone Castilho Benedetti. Bauru: EDUSC, 2000, p. 75.
8 - Ernst Beutler: Posfácio. In: Johann Wolfgang Goethe. Die Leiden des jungen Werthers. Stuttgart: Reclam, 1977, p. 154: "Goethe hat seinen Roman, nachdem er ihn sich von der Seele geschrieben, gemieden".
9 - "Sociologia e Literatura". In: Sociedade e Literatura no Brasil. Org. José Antonio Segatto e Ude Baldan. São Paulo: UNESP, 1999, p. 9-42.
10 - Idem, p. 39.
11 - Idem, p. 40.
12 - In: Critical Terms for Literary Study. Org. Frank Lentricchia and Thomas Mc Laughlin. 2.ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1995, p. 11-22.
13 - Idem, p. 13.
14 - Idem, p. 21: "Every representation exacts some cost, in the form of lost immediacy, presence, or truth, in the form of a gap between intention and realization, original and copy" (Tradução própria).
15 - Jean Bessière. "Literatura e representação". In: Teoria Literária.Org. M. Angenot, J. Bessière, D. Fokkema, E. Kushner. Lisboa: Europa América, 1995, p. 394.
16 - Idem, p. 390.
17 - Odo Marquard. "Kunst als Antifiktion".
In: Funktionen des Fiktiven.Hrsg. Dieter Henrich und Wolfgang Iser. München: Fink, 1983, p. 48.
18 - Idem, p. 54: "... die Kunst wird – wo Wirklichkeit selber zum Ensemble des Fiktiven sich wandelt – ihrerseits zur Antifiktion" (Tradução própria). 
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V Encontro Intermediário do GT de Literatura Comparada da Anpoll – Salvador 2006

Ângela Maria Dias – Os Estudos Culturais e a deriva dos conceitos

 

            Apresentar e comentar o texto pródigo em referências teóricas, misturas e conjugações filosóficas de Román de la Campa constitui tarefa trabalhosa, além, imagino eu, de um desafio à paciência da platéia, tarefa que, espero, não ultrapasse determinados limites.

            Para começar, há a epígrafe[1], impossível de descarte, menos pelo tamanho e pela importância emblemática do autor – José Lezama Lima – que pelo protagonismo que a ela vai sendo atribuída, como uma espécie de súmula da visão descortinada por De La Campa, na medida da leitura dos caminhos abertos por seu texto.

Como se pode constatar, ela se refere à fábula poética intertextual do escritor, que figura a América como era imaginária, dentro da cultura ocidental, produzida pela soma e transformação de fragmentos de outros imaginários. Nesta ficção histórica, a estética barroca constitui um autêntico começo ao engendrar uma síntese hispano-indígena e hispano-negróide, como eixo para um devir que transcende as próprias culturas apropriadas pelo “fato americano”, numa direção trans-geográfico-histórico-cultural.

Por outro lado, os heróis do século XIX invocados (Frei Mier, Simon Rodriguez, Francisco de Miranda e Bolivar), em suas trajetórias tomadas romanticamente, encarnam, como os outros atores da fábula, a “poiesis demoníaca”, entendida por Irlemar Chiampi “como uma rede de imagens que recortam a astúcia e a magia, a curiosidade e o prazer, a apetência e a devoração, a rebeldia e a liberdade, a malícia e o engenho” (LIMA, 1998, p.31). Em outros termos, todos eles podem confluir, ainda nas palavras da crítica, na figura de Caliban, “irreverente, corrosivo, rebelde e devorador”.

            Como atesta o final da citação, o destino da América, “mais feito de ausências possíveis que de presenças impossíveis”, está então ficcionalizado por estes heróis “românticos desterrados”, capazes de unir “a mais remota autoctonia” à “futuridade da expressão americana”, por seus projetos totalizantes de fundação e de integração (LIMA, 1998, p.129).

Começa então o texto pelas perguntas cruciais de nossa época: “Como pensar a súbita mutação de imaginários e modelos intelectuais?” – ou ainda, “Como cifrar a passagem do (...) “Occidente y sus Otros” até a chamada “Nova Ordem Global?”. Em seguida, propõe-se a pensar a situação atual a partir da noção de “imanência”, desdobrada numa espécie de lamento sobre a endogenia “de mercados que suprem sua própria hermenêutica, de um telos capaz de auscultar-se e renovar-se a si mesmo, anulando os modelos conceptuais que separavam a economia da arte e da cultura”. Adiante, com indisfarçável nostalgia, o autor constata a dificuldade de entrever na “interioridade hermética do capitalismo (...) o futuro sem as saídas utópicas da arte ou da política, sem a transcendência habitual que sustém a função do intelectual”. Saudades do intelectual público, investido de um poder pedagógico e missionário, como porta-voz da coletividade e como detentor de uma razão universalista? Assim é se lhe parece.

            O próximo segmento desta primeira parte, aliás denominada “Sujetos a la deriva”, é crucial para o desenvolvimento do argumento do texto, já que o ensaísta se põe a caracterizar o “pensamento imanente” a partir de uma alternativa binária, disposta com alguma ambigüidade, entre o que denomina de a “filosofia espectral” de Jacques Derrida, em Spectres de Marx, e “a recente obra de Antonio Negri e Michael Hardt”, os volumes Empire e Multitudes.

            Ora, do meu ponto de vista, a abordagem de Derrida, e do “messianismo desencantado” a ele atribuído, se processa francamente da perspectiva de Negri / Hardt, além de revelar-se decididamente simplificada, tanto em nível da reflexão, quanto do espaço a ela dedicado, de apenas um parágrafo – num texto tão longo e tão pleno de referências. As expressões utilizadas, tais como “um dos registros mais agônicos”, ou ainda “esta espécie de messianismo desencantado”, bem como o comentário quase irônico a respeito dos “encantamentos fantasmagóricos que oscilaram indefinidamente entre a memória, o afeto e o desejo” revelam a adoção da perspectiva de Negri. Em Ghostly Demarcations (SPRINKER, 1999), o pensador italiano atribui a Derrida uma aura de nostalgia ou ainda lamenta o “trabalho de luto” que Espectros de Marx intenta fazer diante da alegada “morte de Marx” e seus ideais: “Por que a desconstrução acompanha a eficácia deste esforço crítico com uma pausa regressiva (a imersão no trabalho do luto)? Por que a desconstrução adota uma aura de nostalgia que torna a consistência ontológica da nova dimensão espectral, elusiva e francamente impalpável?” (SPRINKER, 1999, p.8)[2].

            A seguir, o ensaísta, então, dedica-se a resenhar, em duas páginas, a proposta da dupla Negri&Hardt. De saída, declara, o que, de fato o interessa: “Depois de uma abordagem do império capital, examinam o enorme aporte do legado desconstrutor e crêem vislumbrar um momento mais imanente (radical?) ainda, de sujeitos sociais possíveis, de certo modo herdeiros, porém posteriores ao conceito de povo”. Mais abaixo, torna novamente à questão do sujeito: “Resta ver se o conceito de multidão restitui o sujeito revolucionário procurado por Hardty&Negri, (...) porém não há dúvida que os pressupostos de Empire mobilizam um diálogo oportuno com a filosofia espectral, que tem tido um impacto considerável na produção teórica dos últimos anos”.

            Ora, a busca de um novo sujeito da história não constitui propriamente o objetivo do trabalho de Derrida, em nenhum momento da sua respeitável obra, que, muito ao contrário, dedicou-se radicalmente a desconstruir uma ontologia da presença. Evitando a redundância de repisar o consabido, limito-me apenas a citar uma breve passagem do artigo do próprio Derrida, na coletânea citada em torno da sua obra, tentando responder aos seus debatedores:

 

Acima de tudo, a reontologização que Negri propõe é bem pouco propícia a trazer de volta a alegria que ele imagina que eu tenha roubado. Nem a sua nova ontologia - emancipatória ou emancipadora - irá persuadir-me a reconsiderar, pelo menos por agora, tendo em vista os argumentos avançados, a inteira desconstrução do motivo ontológico em si, em sua raiz. (...)

         Mas Negri talvez me permita dizer que é o seu empenho em reabilitar ontologia, mesmo que a ontologia em questão seja pós-desconstrutiva, como ele o afirma, que me parece guardar as marcas do luto, da nostalgia e, inclusive, da melancolia. Ontologia envolve, aliás é, do meu ponto de vista, trabalho de luto (às vezes condenado ao fracasso e à melancolia - o bem conhecido tema da melancolia de Aristóteles e Heidegger - que incidentalmente, fala da melancolia peculiar aos filósofos) - levado a efeito com vistas a reconstituir, salvar, redimir uma plena presença de um ser-presente, onde aquele ser-presente, de acordo com o que não é meramente uma falta ou fenda, mas também uma oportunidade, apresenta-se como ausência: differance. (SPRINKER, 1999, p.260-261)

 

            Como se constata, fica difícil aproximar Negri do trabalho derridiano da desconstrução, sem, pelo menos uma discussão a respeito das posições do próprio Derrida sobre o assunto. Finalmente, ao encerrar esta 1ª parte do texto, De La Campa se propõe a interrogar sobre, até que ponto, “os pressupostos da pós-modernidade generalizada (...) abordam as ausências possíveis que rodeiam o estudo da literatura e da cultura latino-americana”. Convém lembrar que o sintagma estava na epígrafe de Lezama Lima e nela designava os heróis românticos desterrados de sua fábula.

            Na 2ª parte, intitulada “Bordas / Margens Confinadas”, o ensaísta repisa a sua perplexidade diante do que pondera como “uma crise que se pode resumir simplesmente dizendo que ‘o estado se transmuta no mercado’”, para dispor-se então a traçar o que define como “uma aproximação oblíqua às matrizes do tempo e do espaço”, a partir da década de 60, na América Latina, “não tanto porque marca o começo do boom, nem pelo esquerdismo cultural (...) mas porque é um momento chave para a apropriação de tendências textualistas”. Depois de fazer uma série de considerações sobre a “revolução textual” e “a idéia do texto-mundo”, “a textualidade indiferenciada dos estudos culturais”, reconhece a resistência atual a este paradigma e se volta para as repercussões do boom, no que tange à expansão dos “estudos latino-americanos que ocorre nos Estados Unidos (...) e à formação dos Area Studies na academia norte-americana”.

            A 3ªparte do ensaio, nomeada como “Política sem telos” se inicia pelo reconhecimento de que “a função do intelectual (...) hoje perde relevância ou se presta ao silêncio, para logo adiante constatar uma “correspondência imanente” entre o “objeto de estudo” e o “sujeito pensante”, relacionada, em seguida, à “primazia do gênero autobiográfico em nossos dias”, sobretudo creditada ao “mercado”.

            Mas, a par de muitas menções sem desenvolvimento, do tipo acima, sobre os anos 70 e 80 como “um momento em que a narrativa latino-americana adquire um valor ideal para a pós-modernidade literária”, ou ainda sobre o “desmonte dramático da ordem discursiva, da história literária ou da história em geral” processado pelos “grandes textos-modelos exemplares do excesso”, De La Campa, ao final do segmento chega à seguinte constatação:

 

A narrativa latino-americana cifrava um arquivo “inusual” para a vanguarda crítico-literária de finais dos oitenta: não só se apropriava do regime desconstrutivo da academia euro-norte-americana, o fazia rastreando a modernidade truncada (...) Vista assim, a importância do boom não radicava (necessária ou somente) em uma estética compensatória da utopia culturalista das elites crioulas, mas na exemplaridade negativa desse corpus, em sua capacidade de dar forma literária a uma cultura política que oscilava – recordando os confins de Lezama – entre a ausência possível e a presença impossível (...) Diminuíam assim – a partir da teoria da negação e do excesso literário – as distâncias e diferenças entre o centro metropolitano e suas margens, ou talvez se intuía que a hibridez, a heterogeneidade e a outridade restavam já subsumidas no enredo da significação literária.

 

 

            Considero esta aproximação entre a literatura do boom e a desconstrução bastante inusitada, já que, do meu ponto de vista, ela pode desembocar em duas ilações de pouco rendimento. A primeira é meio óbvia, caso se tome o “regime desconstrutivo” mencionado como metonímia do pós-estruturalismo e da textualização por ele promovida, para encetar a possível afinidade com o romance do boom, que, nessa hipótese, seria tomado então como “escrita antropológica” ou ainda como “etno-ficção”.

            A segunda é, em minha opinião, menos aceitável, já que qualquer acepção em que se tome o realismo mágico vai encará-lo como uma textualização voltada para algo, um tipo de interesse ideológico ou político, fora do seu próprio âmbito, além do seu próprio alcance e, por isso mesmo, estranha ao regime textual do pós-estruturalismo. Assim, se tomo o realismo mágico, por exemplo, na acepção de Jean Franco, como “um processo irreprimível de apropriação e desafio” no qual se pode pressentir “uma Utopia entrevista do outro lado do pesadelo de uma modernidade ainda inacabada” (MOREIRAS, 2001, p.229), ou ainda segundo a sugestão de Moreiras, como “representação transculturadora”, no sentido de Rama – isto é, como “integração das influências externas em um trabalho de preservação e renovação cultural” (MOREIRAS, 2001, p.224) – , em qualquer das hipóteses, o objetivo extra-literário se esclarece.

            Por sua vez, se escolho a leitura de Moretti, que, a partir de Cem anos de solidão, considera o realismo mágico como a “fusão da retórica da inocência (...) e da ideologia do progresso e da modernização” (MOREIRAS, 2001, p.232), até mesmo a crítica à racionalidade moderna e ao seu universalismo autoritário, inerente ao pós-estruturalismo, se esvaece. Além disso, o caráter de negação não me parece uma das características do realismo mágico, nem interpretado como “não-disjunção”, nem como “disjunção”, na medida em que, em qualquer dos casos, a afirmação do sistema literário latino-americano como campo de mediação entre culturas está assegurada. Penso que só se poderia falar verdadeiramente em negação, no romance Los Zorros, de Arguedas, segundo a interpretação de Moreiras, como ocorrência-limite: ou, em suas palavras, como “ruptura e esfacelamento epistemológico do realismo mágico entendido numa chave de subordinação das culturas indígenas a uma máquina de transculturação sempre já sob a hegemonia do Ocidente – a própria modernização” (MOREIRAS, 2001, p.242).

            Por fim, acho que a utilização fluida e imprecisa de conceitos como os enumerados ao final da passagem – hibridez, heterogeneidade, outridade – não acrescenta à reflexão teórica, já que indicia uma espécie de ecletismo, a meu ver, parente de um jargão planetário, em que toda diferença pode ser vista como exótica e passível de transformar-se em modismo intelectual e novidade para consumo.

            Na 4ª parte do texto, designada como “Embaixadas da fuga”, De La Campa, de início exemplificando com a obra de Jameson, faz uma espécie de reconsideração do “rumo “post-literário” (às vezes anti-literário) do legado textual que se iniciava a finais dos 80”, quando, “se inaugurava uma primeira aproximação aos estudos culturais que incluía elementos dispersos porém influentes da literatura e de novas epistemologias”.

Nesse sentido, “os departamentos de estudos literários das universidades norte-americanas, dado o seu peso e magnitude institucional”, constituem as “embaixadas da fuga” do título. O ensaísta relaciona, então, o “‘giro culturalista” (que) brotava da própria vanguarda textual” com “as exigências de produção simbólica do capitalismo global, que se fizeram sentir com grande afinco no aparato universitário dos anos 90”. Ao encerrar o segmento, constata “a profunda crise política da nação”, ao mesmo tempo em que se refere à América Latina, considerando-a, então, “mais acostumada a pensar a história literária continental, desde valores nacionais e a circunscrever o estudo da cultura às ciências sociais”.

            Finalmente, na 5ª e última parte do texto, denominada de “Imaginação planetária” - certamente numa alusão às eras imaginárias da fábula de Lezama Lima, citado na epígrafe - De La Campa se propõe a avaliar o panorama intelectual dos anos 90. De início, contrasta a contração do “subsídio à investigação” na América Latina com “todo um apogeu teórico articulado nos Estados Unidos”. A seguir, considera que “a literatura latino-americana manteve vitalidade durante os anos 90, enquanto, nos Estados Unidos, “crescia a migração de intelectuais latino-americanos e a influência da televisão latina”, além das “diásporas latino-americanas (...) (que) configuram um novo mercado de estudantes e o desenvolvimento de ‘uma indústria do idioma espanhol’”.

            Por outro lado, para comprovar o que percebe como “uma certa nostalgia pela função formativa que ocupava a literatura”, cita uma declaração de Nelly Richard, do ano 2000, na qual a crítica se posiciona contra determinados sintomas do momento, constando:

 

Tem-se consagrado uma indústria de papers que deixa obviamente fora de seus trâmites competentes, tudo que se relacione àquelas problemáticas formais e discursivas de uma prática de texto que, antes, caracterizavam a formação humanística. Ao exclusivamente perseguir a manipulabilidade do sentido com vocabulários desapaixonados, os estudos culturais deixaram de prestar atenção aos deslizamentos de sentido e aos jogos na escritura que convocavam a palavra “teoria”.

 

            A partir daí, o ensaísta constata:

 

O acervo desconstrutor quis difundir-se mais além da alta cultura, suscitando a possibilidade de um tipo de intelectual acadêmico armado para desmontar o poder discursivo em todos os terrenos da cultura, incluindo a política. Porém algo se perdeu no caminho O que primeiro parecia uma libertação teórica, agora confirma uma ameaça para a teoria.

 

            Em seguida, ao arrolar os motivos para a percepção “dos estudos culturais como um risco”, enfatiza a “sua proximidade com a cultura tecno-midiática” e, ao avaliar a extensão do que considera a tarefa do “legado textual (...) desde os 60”, define-a como sendo “a imaginação de uma teoria contra-hegemônica dentro da própria imanência do capital”, para então, retomar Hardt & Negri e o que consideram “um labor imprescindível”.

            Do meu ponto de vista, não se pode atribuir ao conjunto do pensamento pós-estruturalista a ambição de “uma teoria contra-hegemônica”, já que tal totalização contraria radicalmente todo o seu trabalho de sabotagem do universalismo humanista, através de subversões teóricas pontuais e múltiplas da tradição filosófica ocidental.

            Na conclusão de seu extenso ensaio, De La Campa encaminha uma postulação ampla e meio indefinida, abarcando a literatura e os estudos culturais, para, em seguida, citar dois teóricos: Andréas Huyssen, em suas palavras, “conhecido teórico alemão de literatura comparada”, e Masao Miyoshi.

            O penúltimo parágrafo do seu texto resenha de maneira bastante superficial e ambivalente o artigo “Literatura e cultura no contexto global”, do primeiro ensaísta, publicado em coletânea da UFMG, coordenada por Reinaldo Marques e Lucia Helena Vilela.

            Assim, inicialmente dispõe que Huyssen “sugere a necessidade de abandonar a divisão entre alta e baixa cultura que divide a arte séria e a cultura de massas”, como se até hoje alguém precisasse tomar tal providência. Ora, na verdade, o teórico pretende tomar “a problemática erudito-popular”, numa chave bem mais complexa: libertando-a “de suas conotações pós-modernistas um tanto quanto limitadoras” (MARQUES & VILELA, 2002, p.22) e, simultaneamente, recuperando, em suas palavras, “de um modo pouco mais que arquival”, “a divisão que separava o modernismo da cultura de massa”. E, entre inúmeras razões que enumera para legitimar o tópico, enfatiza a importância de:

 

revisitar a problemática num contexto transnacional (...) para reinscrevermos a questão do valor estético e da forma no debate contemporâneo e para repensarmos a relação, historicamente alterada, entre o estético e o político para a nossa época, em formatos que devem certamente ir além dos debates dos anos de 1930, mas também além dos debates de pós-modernismo e pós-colonialismo das décadas de 1980 e 1990. (MARQUES & VILELA, 2002, p.23)

 

            Entretanto, no desenvolvimento desta tarefa, ao contrário de propor, como afirma De La Campa, “um marco referencial interdisciplinar que rompa a divisão estanque entre letras e ciências sociais”, Huyssen acredita que:

 

a volta à disciplinaridade poderia desempenhar um papel salutar (...) se ela significa contrapor-se à antidisciplinaridade prematura de muitos estudos culturais e fundir a teoria recente com as práticas críticas tradicionais das disciplinas. (MARQUES & VILELA, 2002, p.19)

 

Por fim, no último parágrafo, a invocação de Masao Miyoshi, fala do “desmonte do humanismo, do nacionalismo, mas também do pensamento étnico e outras totalizações parcializadas”, em nome da “construção de novos imaginários, dos quais o mais urgente poderia ser uma cidadania planetária”. Ora, embora não tenha tido oportunidade de ler o articulista citado, posso constatar que a nova “era imaginária”, proposta por De La Campa, não faz por menos, distende o mais possível o sentido da totalidade e abraça, apenas, o planeta. E assim, bem hiperbolicamente e sem nenhum molho poético-ficcional, nos vemos de volta à epígrafe.

 

 

Notas:



[1] Todas as referências ao texto de Román De la Campa são do artigo “Imperio, Inmanencia y literatura”, retirado da Internet, onde não mais se encontra disponível. Segundo o autor do texto, ele foi publicado com o título “America Latina y el imperio da inmanência”, no número 25/28 da revista Nuevo Texto Crítico, Stanford, p.35-53. A tradução é de responsabilidade da autora deste artigo.

 

[2] Todas as passagens citadas da presente coletânea foram traduzidas pela autora deste artigo.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DE LA CAMPA, Román. América Latina y el imperio de la inmanencia. Nuevo Texto Crítico, Stanford, n.25/28, Anyo XIII-XIV, p.35-53.

 

LIMA, Lezama. A expressão americana. Trad., introdução e notas Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988.

 

MARQUES, Reinaldo; VILELA, Lúcia Helena (org.). Valores Arte Mercado Política. Belo Horizonte: Ed. UFMG / ABRALIC, 2002.

 

MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

 

SPRINKER, Michael (edited by). Ghostly Demarcations. New York / London, New Left Books, 1999.

 

 

Eduardo F. Coutinho – Leituras sobre a transculturação: a proposta de Abril Trigo

 

            Em um texto rico e denso do ponto de vista teórico, Abril Trigo procede a uma revisão do conceito de “transculturação”, criado por Fernando Ortiz na área da Antropologia, e apropriado por Angel Rama para o estudo da produção literária latino-americana, examinando as críticas por que aquele teria passado ao longo das décadas que se sucederam a sua formulação, e termina propondo a sua releitura no plano do “transnacional”, o que resgataria a sua validade ao levá-lo a superar as noções de “autoctonismo” e “nacionalismo” sobre as quais se havia erigido e que constituíram o alvo principal dessas críticas.  O conceito, segundo Trigo, devidamente atualizado como “transculturação no transnacional”, ou ainda “transculturas híbridas” ou “heterogeneidade transcultural”, termos criados com base em alterações feitas a propostas alternativas da crítica, serviria para expressar com vantagem o caráter processual dos fenômenos culturais do presente, mas seria preciso levar em conta algumas questões que ele discute no final, como a substituição da noção de “mestiçagem” pela de “migrância”, ou a de “fronteira” pelo que designa de “frontería”, ou ainda por uma atenção especial para com os novos modos de hegemonia e de produção cultural.  Antes, contudo, de examinarmos a proposta ou propostas de Trigo, lançaremos uma mirada ao conceito na visão de Rama e procuraremos acompanhar a reflexão que o primeiro desencadeou a respeito de suas diversas implicações e das críticas que lhe foram tecidas pelos estudiosos que o antecederam.   

            Surgido em contraposição à noção de “aculturação”, em que, no embate de culturas, uma suplanta a outra, resultando na assimilação da menos poderosa pela mais forte, o conceito de “transculturação” foi criado pela Antropologia latino-americana para designar um processo mais complexo que implica, nas palavras de Fernando Ortiz, “também necessariamente a perda ou o desligamento de uma cultura precedente -- uma parcial ‘desculturação’ – e . . . a conseqüente criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser denominados de ‘neoculturação’” (Cit. Rama, p. 33).  É um processo em que ambas as partes da equação são modificadas, e do qual emerge uma nova realidade, composta e complexa, que não é nem a mera aglomeração mecânica de caracteres, nem simplesmente um mosaico, mas um fenômeno novo, original e independente.  O conceito foi elaborado, segundo a visão de Angel Rama, sobre uma dupla comprovação: de um lado, implica que a cultura presente na comunidade latino-americana está composta de valores idiossincráticos, que atuam desde épocas remotas, e, de outro, reitera a energia criadora que a move, tornando-a muito distinta de um simples conjunto de normas, comportamentos, crenças e objetos culturais, pois se trata de uma força que atua com desenvoltura tanto sobre sua herança particular, conforme as situações próprias de seu desenvolvimento, quanto sobre os aportes provenientes de fora.  E é justamente essa capacidade de recriação que demonstra que a transculturação é própria de uma sociedade viva e criadora. 

            Tomando de empréstimo o conceito da Antropologia e aplicando-o à produção literária do continente, para referir-se às obras que buscaram romper com a velha dicotomia entre a importação indiscriminada de modelos europeus, ou euro-norte-americanos, e um autoctonismo voltado de modo exacerbado para as condições locais – como se pode observar em movimentos como o criollismo, o regionalismo, o indigenismo e a negritude, este último no Caribe francês –, Angel Rama afirma que é preciso estabelecer algumas peculiaridades, dentre as quais uma espécie de “seleção” ou de “filtro crítico”, que diz respeito não só à cultura estrangeira, mas também à própria, onde se verificam as alterações mais significativas.  O processo de transculturação literária se verifica geralmente em três níveis – o da língua, onde se registra, por exemplo, um fenômeno de unificação estilística, que neutraliza a dicotomia entre a fala dos personagens e a do narrador; o da estruturação literária, onde se verifica uma recuperação de estruturas da narração oral e popular; e finalmente o da cosmovisão, onde se observa um retorno regionalista às fontes locais, extraindo-se da herança cultural contribuições valiosas, como o extrato mítico da cultura latino-americana.  E em qualquer dos três casos se verá que o produto resultante do contacto entre a cultura da modernização e as fontes tradicionais próprias constitui um discurso literário novo, que não se rende à modernização nem se prende ao autoctonismo, mas, ao contrário, se utiliza de ambos para o próprio benefício.  

            Essa tentativa, presente na noção de “transculturação”, de resolução de conflitos, através da configuração de algo novo, original, resultante da mescla, ou até mesmo fusão, de elementos antagônicos, foi um dos aspectos que mais contribuíram para as críticas que o processo recebeu posteriormente.  Para Cornejo Polar, por exemplo, a “transculturação” de Ortiz foi projetada por Rama como o dispositivo teórico que oferecia uma base epistemológica mais sofisticada para as variadas ideologias da mestiçagem; daí Rama ter recorrido à categoria de “plasticidade cultural”, proposta por Vittorio Lanternari como resposta ao impacto da modernização. Mas esta noção, muito próxima do sincretismo e da mestiçagem, não impede a resolução essencialista da espiral ocasionada pelos binarismos em jogo.  Formulada no campo ideológico da teoria da dependência, à sombra da crítica neo-adorniana do imperialismo cultural e da já claudicante análise estrutural, e herdeira da centenária tradição autonomista hispano-americana, o conceito de Rama propunha ao mesmo tempo uma teoria da modernidade e uma estratégia de modernização cultural para a periferia, que evoca no fundo um sentido impreciso, mas generalizado, de autoctonia e autenticidade.  Mesmo admitindo que se trata de um conceito bem mais sofisticado do que o de “mestiçagem” e que tem, conforme suas próprias palavras, uma aptidão hermenêutica notável, a “transculturação” não constitui para Cornejo Polar uma proposta epistemológica que supere, mas ao contrário, continua, aprofunda e refina as teorias da mestiçagem. 

            Buscando formular outro dispositivo teórico que pudesse dar conta de situações socioculturais e de discursos em que as dinâmicas dos entrecruzamentos múltiplos não operasse em função sincrética, mas, ao contrário, enfatizasse conflitos e alteridades, Cornejo Polar propõe o conceito de “heterogeneidade cultural”.  Seu objetivo era formular um conceito que, em vez de representar uma totalização hegemônica, expressasse uma pluralidade antagônica, a tensa coexistência de culturas diversas, cuja heterogeneidade se realiza através da participação segmentada em sistemas dissímiles de produção.  O crítico parte da premissa de que existem entidades culturais discretas portadoras de uma discursividade alternativa, porque em uma sociedade dividida em classes e grupos étnicos nem todas as culturas terão o mesmo valor a respeito do conceito de “nação”, e nesse sentido ele se aproxima da concepção de Rama.  No entanto, enquanto o último busca apreender na literatura a “heterogeneidade cultural” de espaços, tempos, movimentos, que reproduz as descontinuidades dos processos de modernização cultural, Cornejo se volta para um plano mais amplo, descrevendo os efeitos histórico-sociais da modernização na periferia. 

            Outro conceito que também funcionou, dentro do aparato crítico cultural latino-americano, como alternativa para o de “transculturação” foi o de “culturas híbridas”, proposto por García Canclini.  Segundo o crítico, a “hibridez” consistiria em uma espécie de complexificação – propiciada pela manutenção dos conflitos e das diferenças sob o impacto do transnacional – da heterogeneidade anterior, complexa articulação de tradições e modernidades diversas, desiguais, onde coexistem múltiplas lógicas de desenvolvimento.  Não há dúvida de que o conceito registra melhor que os anteriores a ruptura epistemológica sob o impacto do transnacional – trata-se de uma articulação complexa de tradições e modernidades sob a hegemonia da macrocultura transnacional – e nesse sentido se aproxima bastante da noção de “hibridez” desenvolvida por Homi Bhabha, mas, para Abril Trigo, “a densidade fenomenológica da ‘hibridez’ reduz claramente sua precisão analítica, a ponto de que, ao abarcar tudo, não qualifica nada.” (Trigo, p. 157).  Segundo ele, García Canclini confere estatuto de cultura ao que descreve como uma “heteróclita associação de elementos estratificados que regem praticamente a conduta e as crenças das classes subalternas” (Trigo, p. 158), e chega a conclusões empiricamente evidentes, como a de que “o mercado substitui o Estado, pelo menos parcialmente, enquanto espaço de disputa hegemônica e de negociação de identidades” (Trigo, p. 160).  Finalmente, termina por legitimar o paradigma clássico liberal, com sua redefinição da “nação” como uma “comunidade interpretativa de consumidores” (Trigo, p. 160).    

            Um terceiro conceito, discutido por Abril Trigo, é o de “heterogeneidade cultural heterônoma”, cunhado por José Joaquín Brunner.  Para este, a heterogeneidade cultural latino-americana, que se reflete na colagem, no pastiche, nos enxertos e nas alegorias pós-modernistas da nossa modernidade é, assim como esta última, um produto do mercado internacional.  A heterogeneidade registra, segundo ele, um duplo fenômeno: o de “participação segmentada no mercado mundial de mensagens e símbolos” e o de “participação diferencial segundo códigos locais de recepção” (Trigo, p. 161).  A “heterogeneidade” para Brunner seria um subproduto das sucessivas modernizações por que passaram as sociedades periféricas; portanto, o efeito de uma diferença e não a sedimentação da diversidade cultural.  A crítica de Brunner aos essencialismos (autoctonismos, indigenismos, mestiçagens, canibalismos) e às soluções ideológicas correspondentes (mascaramento, esquizofrenia, neocolonialismo, dependência e utopias diversas) se resume no que denomina de “macondismos”:  “Macondo” seria a metáfora do misterioso, ou mágico-real da América Latina, “sua essência inomeável pelas categorias da razão e pela cartografia política, comercial e científica dos modernos” (Trigo, p. 161).  

            Tomando como base de sua crítica o par nacional x transnacional, Trigo se pergunta então, a partir dos posicionamentos de Brunner, onde estaria o diferencial latino-americano.  Fica claro, na proposta deste último, que a coexistência de sociedades, tempos históricos distintos e modos de produção dissímiles não constitui de modo algum um traço específico da América Latina, mas uma constante das modernidades periféricas.  A “heterogeneidade cultural” latino-americana, assim entendida, fica então limitada a uma relação transnacional/ nacional, sem dar conta da multiplicidade de conflitos nem das matrizes culturais historicamente constituídas (produto de diferenciações e não ontologicamente diversas) no interior das sociedades nacionais, regionais ou locais.  E Trigo conclui que talvez a resposta pudesse residir no rastreio das respostas/ propostas locais à transnacionalização, como propõe George Yúdice, pois a heterogeneidade seria, assim, não o simples resultado de uma inserção diferencial no nível estrutural, mas a conseqüência de operações nos níveis macro e micro. 

            Levando em conta que as principais e mais procedentes críticas à “transculturação” de Rama residiram sobre a tentativa de síntese dialética que esta propunha e sobre o seu viés de autoctonia ou nacionalismo, o que, segundo Trigo, devidamente atualizado no plano do transnacional, voltaria a conferir utilidade ao instrumental hermenêutico presente no conceito, ele procede a algumas retificações, chamando atenção para a necessidade de substituição dos conceitos de “mestiçagem” pelo de “migrância”, de “fronteira” pelo de “frontería”, termo corrente, por exemplo, na crítica chicana, e de “identidade mestiça” pelo de uma “id/ entidade agonística”, situada sobre um fio.  A noção de “migrância”, extraída de Cornejo Polar, na verdade, não substitui a de “mestiçagem”, mas a acolhe, pois amalgama no presente da memória as instâncias e estâncias diferidas, invertendo assim o seu “afã sincrético”.  Nas palavras do próprio Trigo, “enquanto o mestiço trataria de articular sua dupla ancestralidade em uma coerência instável e precária, o migrante, ao contrário, se instalaria em dois mundos de certa maneira antagônicos pelas suas valias: o ontem e o lá, de um lado, e o hoje e o aqui, de outro” (Trigo, p. 164).  Dessa maneira, a “migrância” não conduz a sínteses, fusões e identidades estáveis, mas a um prolongamento de culturas em conflito, o que promove uma identidade dual (a double consciousness), uma vez que o migrante fala de dois ou mais lugares e – o que ainda é mais comprometedor – duplica (ou multiplica) a índole mesma de sua condição de sujeito.  A diferença do imigrante, sedentário e moderno, cujo fim, dentro do espaço internacional em que se move, é aclimatar-se, assimilar-se, identificar-se, com a sociedade receptora, o migrante transnacional sempre se está indo (em mudança), mesmo quando permanece para sempre no lugar.  É alguém que deixa um grupo social ou cultural sem ajustar-se satisfatoriamente a outro e se encontra sempre à margem de cada um, mas nunca um membro de nenhum deles. 

            Do mesmo modo que o conceito de “migrância”, os conceitos de “fronteira” e de “identidade homogênea” também cedem, na visão de Trigo, seu lugar a outros, que ele escolheu chamar de “fronteria” e de “id/ entidade agonística”.  A “migrância”, no sentido acima discutido, adquire uma dimensão cultural que excede a mera trasladação geográfica (campo-cidade, interior-exterior, periferia-centro), e configura um locus enunciativo instável, portátil, a partir do qual geram-se usos particulares da cultura ou culturas à mão, e nos quais se constituem sujeitos desagregados, difusos e heterogêneos, ou ainda trânsfugas e transculturados.  São sujeitos pluralizados, cuja práxis cultural não se formula em termos metafóricos (mestiçagem, transculturação), mas metonímicos (migrância, fronteria), que transgridem a problemática da integração nacional ou da “nação” como corpo social uniformemente homogêneo, para instalar-se em um espaço pós-nacional.  E a “fronteira”, convertida, segundo Trigo, em habitat migrante, torna-se “fronteria”, isto é, mais espaço do que linha, mais âmbito do que marco, mais liminalidade do que limite, em suma, a inscrição de caminhos, múltiplos e borrados, sobre um lugar desterritorializado pelo contrabando e pela transmigração”.  A fronteira, por sua vez, não fomenta uma identidade mestiça, síntese acabada de entidades discretas, mas uma “id/ entidade agonística” e agônica, excêntrica mais do que descentrada, sempre sobre o fio; é uma identidade circunstancial, portátil, articuladora, mais produtividade do que ethos.  Este é o sentido que adquire hoje, por exemplo, a observação de Rama sobre a intersticialidade fronteiriça dos personagens de Arguedas.              

            Finalmente, quanto aos novos modos de hegemonia e de produção cultural a que se referira Trigo, ele afirma que se a “transculturação modernizadora” de Rama constituíra, como quiseram alguns críticos (vide Larsen), “um substituto para a hegemonia ao invés de uma cultura hegemônica” (Trigo, p. 167), a “transculturação (no) transnacional” deveria então ser reconsiderada como a produção cultural de articulações hegemônicas, processos nos quais agentes sociais antagônicos negociam novas formações político-culturais inerentemente instáveis, relacionais, de sutura impossível.  E conclui que “esta concepção de hegemonia como um movimento totalizador incessantemente destotalizado, devidamente corrigida para dar ênfase adequada ao conflito sócio-cultural, nos permitiria superar o telos dialético e a aporia fundacionalista que amarrava Rama, e munir-nos de um instrumental idôneo diante da transnacionalização” (Trigo, p. 167).  A teorização da “transculturação (no) nacional”, a proposta que apresenta, já visível no título de seu texto, pela ótica da “produção consumidora” evitaria a um só tempo a fetichização invertida da mercadoria e a reificação do consumo como instância autônoma nos processos de produção.    

            A proposta de Trigo de deslocamento da questão para a instância do transnacional é sem dúvida um avanço com relação à teoria de Rama, criada nos anos de 1970, num momento em que a questão do nacional ainda se impunha de modo contundente.  Além disso, ela tem a vantagem de dialogar com o conceito anterior, demonstrando a sua utilidade ainda hoje, contanto que devidamente atualizado, de modo a poder considerar as diferenças contextuais de uma época para a outra.  Para isso, foi indispensável a revisão a que procedeu Trigo das diversas posições da crítica, que já havia discutido e reformulado o conceito, propondo muitas vezes a sua substituição por outros que ela considerou mais idôneos.  Suas leituras da crítica, ou melhor, crítica da crítica, não só contribuíram para elucidar melhor o conceito de Rama, como também trouxeram à tona contradições resultantes do próprio afã de querer refinar a proposta inicial e prestaram nesse sentido importante apoio para o desenvolvimento de uma reflexão mais ampla sobre a questão.  A proposta de Cornejo Polar da “heterogeneidade cultural” é bastante enriquecedora, sobretudo no que se afasta da síntese presente no conceito de Rama, mas ainda encerra, mesmo que de modo mais suave, referências à questão do nacional; a de García Canclini das “culturas híbridas”, por mais que busque articular-se com a questão da transnacionalidade, refugia-se com freqüência nas metáforas que embasaram a mestiçagem; e a proposta de Brunner, com sua crítica virulenta ao “macondismo”, incide numa generalização, que faz ver a modernidade latino-americana como réplica, e pior, encolhida e opaca, da modernidade ocidental.  A proposta da “transculturação”, como Trigo bem percebeu, tem o trunfo de frisar o diálogo intercultural, e, superando a referência do sentido de nacionalidade que o embasou, poderá ainda vir a dar frutos não só na esfera da criação literária, como dos discursos sobre a literatura e sobre a cultura na América Latina. 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

RAMA, Angel.  Transculturación narrativa en América Latina.  México: Siglo XXI, 1982.

 

TRIGO, Abril.  De la transculturación (a/en) lo transnacional.  In: MORAÑA, Mabel (Ed.). Ángel Rama y los estudios latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana/Universidad de Pittsburgh, 1997, p.147-171.

 

 

Eneida Leal Cunha – O intelectual astucioso

 

Em ensaio breve escrito há mais de uma década, Silviano Santiago faz ao professor universitário e ao “escritor literário” um enfático convite para “participarem de maneira sistemática – em benefício da literatura, da universidade, da imprensa, do público e até em benefício próprio – das páginas dos grandes jornais e revistas de circulação nacional e internacional”. Como bom intelectual cosmopolita, adverte que o relacionamento entre produtor/produção literária e imprensa escrita não especializada  “é moeda comum nos países hegemônicos”. Como bom intelectual periférico, acrescenta: “Na América Latina, faz-se urgente a discussão dos problemas que envolvem essa reaproximação no momento em que o escritor se profissionaliza enquanto tal e o professor universitário começa a ter questionada, pelo processo de democratização por que passa o país, as quatro paredes do campus, onde encontrou salvaguarda durante o regime militar.”[1] Para justificar o convite, Santiago traz uma sucessão de argumentos que expõem os impasses vários da contemporaneidade e poderiam ser arrolados na rubrica das “políticas da cultura”, desde que entendamos por isto muito mais do que a ação (ou, às vezes, a inércia) do Estado na gerência dessa esfera da vida pública. 

            A aproximação entre a crítica universitária e a grande imprensa, para Santiago, pode promover o enfrentamento, e talvez a superação, de duplo impasse: “o beco sem saída em que se encontram, por um lado, o gênero ensaio”, “por excesso de pedantismo e notas de pé de página”, e, por outro, a “crítica literária participante”, “imersa em indagações de caráter teórico-metodológico especializadíssimas”. Após historiar brevemente a intensa intimidade entre a literatura e a imprensa, desde a publicação dos folhetins até o atual contexto de proeminência da indústria cultural e dos meios massivos audio-visuais, elenca as forças que progressivamente produziram a separação e até o litígio, provocado pelos professores universitários, a partir da entrada da Teoria da Literatura e das prestigiosas vertentes críticas da segunda metade do século XX (o new criticism, o formalismo russo, o estruturalismo, a fenomenologia heideggeriana) na cena acadêmica brasileira.

O artigo, embora tenha sido publicado em livro do autor apenas em 2004, pela Editora da UFMG (O cosmopolitismo do pobre), teve boa circulação ao longo dos últimos anos, entre os estudiosos das letras que compartilham as inquietações de Silviano Santiago. Recomenda-se a leitura aos que não o conhecem, pois trouxemos aqui apenas as suas linhas preliminares, das quais se desdobra uma acuradíssima análise tanto do processo de “desliteraturalização” da mídia impressa quanto das alternativas que se impõem aos críticos literários na contemporaneidade latino-americana.

“A crítica literária no jornal” serve aqui como introdução ao “depoimento” que nos pedem nesta homenagem. Poucas semanas atrás, chegou às minhas mãos o mais recente livro publicado por Silviano Santiago, com um título inesperado (Ora (direis) puxar conversa), mesmo para quem conhecia o ensaio sobre Mário de Andrade escrito em 1993, que está na coletânea, e com subtítulo mais insperado ainda – Ensaios Literários – se lembramos que desde Uma literatura nos Trópicos; ensaios sobre dependência cultural, de 1978, o autor vêm marcando, nos subtítulos, a sua diferença ou a sua divergência em relação ao que, disciplinadamente, é considerado da competência de um professor de literatura. Assim ocorre com Vale quanto pesa; ensaios sobre questões político-culturais, e, em 2005, já com alguma atenuação, em O Cosmopolitismo do Pobre: crítica literária e crítica cultural.

Confesso que a novidade pode surpreender, mas não me desagradou. E pelas mãos desse chamariz, iniciei a leitura do livro na contra-mão do sumário. Provavelmente porque a sequência dos ensaios publicados em jornais brasileiros de grande circulação (Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e o Estado de São Paulo), no final do volume, tenha evocado o artigo de 1994. Ou seja, estavam disponíveis textos conhecidos, mas perdidos de vista na perecebilidade teimosa dos recortes de jornais e, principalmente, o ensaio “Manuel Puig: a atualidade do precursor”, que o sistema de defesa das versões on line da grande imprensa não me permitiu acessar, à época da publicação, na condição de não-assinante do Estado de São Paulo.

A minha leitura de trás para a frente, entretanto, ganhou fôlego de reflexão avaliativa já nas primeiras páginas, com a proximidade deste encontro e a obrigação (prazerosa) do depoimento aos colegas do GT de Literatura Comparada da ANPOLL.

Desde 1990 e em especial no biênio 1994/1996, quando coordenei o GT, tenho me visto empenhada na “causa” da Literatura Comparada. Trata-se, a meu ver, indubitavelmente, de uma “causa”: em algunas circunstâncias, uma causa como no plano jurídico – com acusadores, defensores e alguns crimes ostentados nos debates, o principal deles, quase imperdoável, o de não se ter sabido dizer, a tempo e hora, exata e estritamente, o que é (ou o que era) a nossa Literatura Comparada; acusações sobre o uso de um nome, de uma designação disciplinar tradicional e respeitável, para algo que se apresentava indisciplinadamente outra coisa, há quase duas décadas atrás, na cena universitária brasileira.

Em outras circunstâncias a “causa” se instalou no plano político-institucional e os embates diziam respeito às expectativas de cidadania acadêmica para a minoria oprimida pelas vertentes de abordagem do literário instituídas nos currículos – a Teoria da Literatura, a Literatura Brasileira, as Literaturas Estrangeiras. Em muitas instituições de ensino brasileiras, como o nosso Instituto de Letras da UFBA, a Literatura Comparada não chegou a alcançar sequer o status de disciplina optativa nos cursos de Graduação. A causa se tornou mais grave, beirando o plano moral, quando foi flagrado um episódio de travestimento ou de contaminação, quando sob o nome – já então legitimado – da Literatura Comparada, insidiosamente, alguns professores de Letras praticavam os espúreos e anglófonos Estudos Culturais.

(Tenho que pedir desculpas, aos colegas, por esta forma pouco acadêmica de trazer aqui o enredo disciplinar, mas outra não me ocorre, sem o tédio do déjà vu. E registrar que continuo creditando as dificuldades maiores de funcionamento do nosso GT a esse enredo, que nunca enfrentamos com rigor.)

Se os embates entre comparatistas, culturalistas e literatos não arrefeceram, pelo menos se deslocaram da cena principal para os bastidores, onde, como bem registra Fredric Jameson (em “Sobre os estudos da cultura”[2]), estão os jovens pesquisadores, os estudantes pós-graduandos, que precisam de cobertura disciplinar. O saldo positivo da disseminação do debate existe, pode ser constatado por quem se der ao trabalho de analisar as definições de àreas de concentração, linhas e projetos de pesquisa que estão disponíveis nos registros da CAPES sobre a área de Letras e Linguística. Mas existem formas menos áridas de flagrá-lo, como, por exemplo, na leitura de boas teses que vêm sendo produzidas nos Programas de Pós-graduação por todo o país pela geração intelectualmente formada da década de 80 para cá, nas quais o investimento intelectual e analítico é claramente insubordinado em relação às prescrições de limites – de objeto, de metodologias, de leitura –, e invasivo de domínios disciplinares. E existem oportunidades instigantes de leitura dos saldos desse embate, em livros como o Crítica Cult, de Eneida Maria de Souza, por exemplo.

O que elegi para este depoimento, entretanto, não é exatamente a amplitude do leque de interesses que vem se impondo nos investimentos críticos contra o privilégio do texto literário, no campo das Letras. O que mais me apraz na leitura dos livros recentes de Santiago, que reúnem trabalhos escritos entre 1990 (ano da publicação de Nas malhas da Letra, e julho de 2005 (data da publicação de “Manuel Puig; a atualidade do precursor”), especialmente no último livro, é o retorno – o “eterno retorno” em diferença – à grande literatura e à visada comparatista, na aventura jornalística do crítico.

Ou seja, o reencontro com uma crítica literária e uma visada comparatista perpassadas, por um lado, pelos compromissos ético-políticos e analíticos que constam das agendas mais dignas dos estudos culturais aclimatados ao hemisfério sul; por outro lado, impregnados pelas estratégias solidárias de comunicação com o leitor não especializado que marcaram a nossa melhor tradição da crítica literária não-acadêmica ou anterior à crítica universitária, que pode ser resumida aqui pelos nomes próprios sintomaticamente evocados mais de uma vez no conjunto de ensaios que compõem a coletânea de Silviano Santiago: Machado de Assis, Sergio Milliet, Mário e Oswald de Andrade.

Para ler os três romances de Puig traduzidos no Brasil – Boquinhas pintadas, Buenos Aires affair e O beijo da mulher aranha  Silviano Santiago reativa o seu repertório de antigo crítico de cinema e, principalmente, o repertório que compartilha com o escritor argentino e é comum a “toda criança que cresceu e se educou em qualquer cidade da América Latina durante a II Grande Guerra, [que] desde cedo [foi] um consumidor da cultura de massa, que então começava a nos chegar de maneira avassaladora  dos Estados Unidos.” Estas palavras, com feição de testemunho pessoal, abrem o ensaio “Literatura e cultura de massa” (Palestra na SBPC em 1993)[3], no qual avalia, como diz a epígrafe tomada às Seis propostas para o próximo milênio, de Calvino,  “o destino da literatura e do livro na era tecnológica, pós industrial”.

Para Santiago, “Manuel Puig é o primeiro grande autor latino-americano que trabalha com a forma do escombro derivado do excesso de excesso da indústria cultural estadunidense e argentina, ou seja, com o quase lixo – filmes ultra-sentimentais, radionovelas, tangos e boleros”.  A garimpagem dos escombros, aliás, é apontada pelo crítico como uma quase compulsão do escritor periférico e não se resume ao entulho das linguagens massivas; Borges, por exemplo, seria uma contrapartida da mesma experiência de fascínio pelos escombros, embora tenha eleito como manacial para a sua aventura literária o “entulho da erudição de fundo europeu”.  É se emaranhando e, ao mesmo tempo, desvencilhando-se desconstrutoramente dos constrangimentos, dos restos, dos excessos, da reiteração ou reapresentação incessante dos produtos culturais do “chamado Primeiro Mundo” – seja a cultivada erudição livresca (que “tem pouco contato com os problemas imediatos da nação, apresentando-se como uma espécie de excesso inútil”, como observa); seja  o consumo compulsivo da cultura de massa – é do “entre-lugar”, agora redefinido, alocado no âmbito da criação literária, que o escritor latino-americano pode encontrar uma alternativa de originalidade.

Toda a apreciação crítica dos romances de Puig se desdobra neste eixo: uma especulação acerca da originalidade possível. Na paisagem hoje mais visível da crítica universitária e, com destaque, no âmbito dos nossos exercícios comparatistas, a reivindicação da originalidade tornou-se praticamente interditada, pela sua dupla imbricação, com os rescaldos da valoração etnocêntrica e com a santíssima trindade da modernidade estética: autonomia, transgressão, originalidade.

Neste sentido, a leitura da obra de Puig por Silviano Santiago pode trazer aos debates programados para este Encontro – que “visa à construção de uma memória da crítica cultural latino-americana, através do estudo dos conceitos, temas e autores que constituem a base da prática comparativista na região” –, um destaque ou uma questão suplementar: como a crítica latino-americana se vê compelida a redefinir, e vem redefinindo, conceitos e valores exauridos pelo uso (adversário) da tradição comparatista do grande Ocidente que recusamos, como o conceito e o valor de originalidade.  Para isto, talvez seja necessário, preliminarmente, admitir que existe um “Ocidente menor”, embora ele não esteja necessariamente confinado deste lado de cá do mundo, como evidencia o ensaio “O cosmopolitismo do pobre”, que é, em princípio, a leitura de um filme de Manoel de Oliveira[4] ou dos saldos da experiência de emigração portuguesa. Esse outro Ocidente é bem provido de potência criativa, a enorme potência da literatura menor, de Franz Kafka, de Graciliano Ramos, de William Faulkner e outros “bichos do subterrâneo”, que os ensaios publicados em primeira mão na imprensa e agora reunidos por Silviano Santiago em Ora (direis) puxar conversa, com pedagogia generosa, sensibilidade de bom mediador e inteligência crítica, apresentam, machadianamente, ao “jovem leitor”, cujo horizonte de expectativas literárias é provavelmente curto.

Na leitura do crítico, a originalidade (e o sucesso) de Puig estão plantados numa forma astuta de repetição, a repetição deslocada. Ao introduzir “com êxito surpreendente a trama sentimental (por definição: barata e melodramática) no sofisticado romance moderno [em 1969], sua atitude artística original foi logo elogiada e apropriada por muitos em virtude da maré montante da indústria cultural norte-americana”. A originalidade literária de Puig também se deve também ao estilo “chapado”[5] de sua escrita,  “sem cintilações, ou rasgos de ironia ou de cinismo”, sem interferências espertas do narrador. Este seria o estilo aprendido com e apreendido dos escombros da indústria cultural, próprio da dicção cinematográfica hollywoodiana, reforçado, em The Buenos Aires affair, pelas epígrafes que permeiam o romance com citações de películas americanas.

Mas a originalidade de Manuel Puig, segundo Silviano Santiago, sofre por sua excessiva “responsabilidade”. Esta  é a afirmação mais instigante e, a meu ver, a sua contribuição ‘mais original’ ao resgate do conceito de originalidade ou da atualização do valor da originalidade (desculpem a redundância). Desde a tradição vanguardista ou modernista da primeira metade do século XX, os criadores estão compelidos à “irresponsabilidade” com suas próprias invenções. Irresponsabilidade, explica o crítico, significa o abandono da solução formal que foi em dado momento inventiva e, imediatamente a seguir, é absorvida, paralisada, como clichê cultural.  Os exemplos que dá são expressivos: Marcel Duchamp, Pablo Picasso, Graciliano Ramos.

Esses três grandes artistas, entretanto, não conviveram, como Puig, com a vertiginosa capacidade de absorsão e repetição conquistada pelos sofisticados meios da reprodutibilidade técnica de nossos dias; também não conheceram a voracidade competente da indústria cultural e da mercantilização do produto estético. A inovação de Puig, como já visto, foi rapidamente assimilada. Escreve Santiago: “seu ovo de Colombo foi imitado, copiado ou reinventado, com e sem talento, [a tal ponto] que, no último quartel do século 20 ele se tornou praticamente um lugar-comum na produção de filmes, telenovelas, romances, peças de teatro e obras de arte.” A responsabilidade pela qual é criticado o romancista argentino é paradoxal: para assegurar a condição de best seller, repete a forma, segue o curso geral que a transmutou em fórmula de sucesso na indústria cultural. A conclusão é cabal: “Se Manuel Puig fosse um artista irresponsável não teria escrito O beijo da mulher aranha e teria sido, certamente, o melhor escritor latino-americano da segunda metade do século 20. Foi responsável. Quis escrever e escreveu um best-seller”. (Grifos dele.)

Só como lembrete, nota de pé de página para os estudantes da ficção de Silviano Santiago: se o crítico-escritor em pauta fosse responsável não teria descartado a forma – que também fez fortuna nas nossas letras – de Em Liberdade.

O ensaio sobre “Literatura e cultura de massa” pode retornar aqui para nos ajudar a dar conta do que, para Silviano Santiago, está em pauta no resgate e na revisão atualizadora do conceito de originalidade. Para expor a diferença entre cinema e literatura, o crítico pretere os habituais confrontos entre a linguagem verbal e visual e, com o aval de Benjamin, dedica-se a caracterizar seus diferenciados modos de produção e circulação – entendida a produção no seu estrito sentido econômico, como os investimentos financeiros necessários à fatura de ambos. De um lado, os altos investimentos indispensáveis à produção do filme, que exigem retorno imediato, e repercutem na necessidade de sua difusão larga e rápida. Por isto o cinema rapidamente se transforma em uma indústria e a indústria cinematográfica também rapidamente se internacionaliza. Por isto também a fórmula, que assegura o consumo fácil e imediato, é a tônica do cinema, salvo as conhecidas exceções inspiradas nas prerrogativas da autoria e do baixo custo da fatura literária.  Até aqui, nada de muito novo se considerado o âmbito acadêmico bem informado, embora se deva registrar a simultânea clareza e sofisticação do exposto, para o público amplo dos jornais, menos familiarizado com a temática.

A argumentação construída por Santiago em prol da originalidade e da literatura, a partir da pergunta que a introduz, é contrastante no contexto dos debates eruditos sobre a arte na atualidade – se recordamos, por exemplo, o vaticínio sobre o esgotamento da capacidade de invenção nos produtos culturais pós-modernos[6] :

 

Por que alguém ainda decide ser escritor? Por que solitária e artesanalmente decide a trabalhar com palavras com vistas a um livro, livro que se torna mais e mais um objeto obsoleto na época da cultura de massa? (...) Em outras e finais palavras: existe ainda função social para a literatura neste final de milênio?

 

A defesa da literatura soa alusiva ao famoso binômio cunhado por Stuart Hall quando define os Estudos Culturais britânicos como expressão simultânea de um pessimismo da razão e do otimismo da vontade[7]. Para Santiago é possível “ter uma atitude cética” com a recepção da obra literária na contemporaneidade que em tudo lhe é adversa e, “paradoxalmente”, otimista – “bastante otimista”, como diz –, “quanto ao futuro da literatura e seu papel social”. Exatamente porque em atrito com a hegemonia da produção cultural massiva do presente, porque “intempestiva” – no duplo sentido de sofrer menos a pressão da difusão e consumo imediato (do retorno financeiro) e, por isto mesmo, poder trabalhar criticamente, conflituosamente, com a atualidade, a literatura se beneficia (e se justifica) pelo fato de poder oferecer

 

na futura leitura da obra uma visão presente do passado e uma visão passada do presente. Todo texto literário, por mais alheio aos valores do passado, movimenta direta ou indiretamente formas de tradição que são o palco onde se desenrolam os acontecimentos presentes que real e virtualmente se representam no tempo anacrônico e no espaço atópico da escrita.

 

Num dos seus desvios ou montagens habituais, que desconsertam o leitor acostumado com os rigores da cronologia (sempre alvejados pelo crítico Silviano Santiago), traz de Machado de Assis, da abertura do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, que por sua vez estava retomando Stendhal, o testemunho dessa intempestividade fecunda, duradoura: se para o romancista francês a previsão de 100 leitores é um alento, para o escritor brasileiro do século XIX é lícito contar com “Talvez cinco”.

A originalidade demandada ao escritor latino-americano contemporâneo, constituída pela intempestividade, não significa, portanto, resguardar-se, ficar alheio ao fluxo da indústria cultural, às linguagens que falam mais alto (e mais claro) no seu tempo. Ou seja, não pressupõe criar imunidade em relação ao presente. Pressupõe, sim, a deliberação para a simultaneidade do atrito e da troca que pode alimentar a invenção possível e até, aquela que, no seu surgimento, apresenta-se como impossível à decodificação imediata.

A tarefa nobre do crítico literário latino-americano contemporâneo corre em paralelo ao requerido do criador. Reaproximando-se da grande mídia impressa (ou expondo-se nos meios de recepção ainda mais ampla e indiferenciada, como as entrevistas televisivas), fica instado a revisar e esclarecer o estoque de instrumentos e estratégias da leitura crítica pelo mesmo processo de atrito e troca, para oferecer ao “leitor comum” a ponte, a mediação entre dois universos culturais que apenas nas elocubrações universitárias tradicionalistas ou conservadoras agem por repulsa mútua, pois, de fato, estão interconectados, asperamente interconectados, nos melhores casos.

Exemplo disto é a leitura de Lolita (1955), de Vladimir Nabokov (“Lolita & outras ninfetas”) que também está no último livro de Santiago, mas foi publicada pela primeira vez na Folha de São Paulo, quando lançada a reimpressão do romance pela Companhia das Letras, em 1999. Antes de qualquer menção ao romance de Nabokov, Silviano Santiago retoma com detalhes a matéria “Uma união polêmica em Macaé”, da edição do jornal O Globo de 20 de março do mesmo ano, que relata a convivência marital entre um aposentado de 58 anos e uma menina de dez anos de idade.  Mas não o faz para explorar a afinidade do escândalo, seu alvo principal é expor a estratégia narrativa do romancista e circunstancializar o seu abundante e hiper-erudito processo de citação. Ao fazê-lo cumpre o seu compromisso de intelectual engajado na democratização da alta cultura literária. Em paralelo, prepara futuros leitores para seus próprios “livros literários”, plenos de intertextualidades e transgressões acintosas. Coisas de intelectual sagaz, astucioso.

 

Notas



[1] SANTIAGO. A crítica literária no jornal. In Cosmopolitismo do Pobre. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p.157-67.

 

[2] JAMESON, Frederic. Sobre os estudos da cultura. In Novos Estudos CEBRAP, n.39, p.11-48, julho 1994.

 

[3] In O Cosmopolitismo do pobre, p. 106.

 

[4] Viagem ao fim do mundo, de 1997.

[5] O autor esclarece que o termo vem do jargão das artes plásticas.

 

[6] Ver, a propósito, JAMESON, Fredric. Pós-modernismo e sociedade de consumo. In Novos Estudos CEBRAP, n.12, p. 16-25, jun. 1985.

 

[7] Cf. HALL, Stuart. Estudos culturais e seu legado teórico. In: Da diáspora:identidade e mediações culturais. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003.

 

Eneida Maria de Souza – A crítica literária e o neolatino-americanismo

 

Discorrer sobre a crítica literária e sua relação com o latino-americanismo terá que passar, obrigatoriamente, pelo lugar ocupado por Silviano Santiago nesse quadro. A sua posição como crítico e escritor revela a preocupação com a definição de uma literatura que ultrapassa o âmbito local, fechado, e se abre para uma reflexão americana e latino-americana. Como ensaísta, a sua posição no debate literário e cultural se manifesta de forma desconstrutora e distanciada frente aos objetos de análise, reiterando opiniões já registradas na ficção. O ensaio se desvincula do estudo acadêmico, por adquirir liberdade criativa e optar por uma dicção mais dramatizada e em diálogo com o leitor. Distingue-se da ficção, por ainda respeitar protocolos e pactos da escrita ensaística, embora se perceba de que se trata de um discurso intervalar, híbrido e em simetria com o universo fabular do escritor. A reflexão sobre manifestações culturais do presente ou do passado requer a escolha de uma estratégia comparativa capaz de problematizar certezas e apontar contradições. Leituras bem-comportadas tendem a repetir o que o conceito de tradição guarda de mais conservador e intocável, como muito bem assinala Mário de Andrade. Leituras desconstrutoras têm o mérito de deslocar saberes consolidados, de se entregar à prática do jogo ambivalente dos conceitos e de optar pelo excesso produzido pelo olhar suplementar do ficcionista ou do ensaísta.

Essa leitura exercitada por Silviano ao longo de sua trajetória intelectual é tributária da teoria da desconstrução de Jacques Derrida, que consiste no duplo gesto de denunciar, em determinado texto, tanto o que ele diz, assim como o que, sob o olhar do presente, foi dissimulado e recalcado. Transgredir é o gesto herdado por excelência, invenção, o esforço do leitor na criação do texto que desconfia das origens e acredita na repetição como sinal de diferença e resistência. Cabe ao leitor de cada época reinventar tradições, romper com a cômoda atitude do senso comum, reprodutora fiel do discurso alheio.

Privilegia-se a descrição da obra em perspectiva, no lugar da análise do quadro, do texto isolado, considerando que toda obra se inscreve a partir de determinados modelos que ampliam os espaços particulares em que foi gerada. Nenhum texto se impõe como produto singular e autônomo, por manter compromissos com outros que lhe serviram de suporte e com os futuros leitores. Desses lugares de enunciação, canônicos ou não, é de onde parte Silviano no seu trabalho de desconstrução, por meio da utilização do conceito de entre-lugar,[1] segundo o qual “o lugar de observação, de análise, de interpretação não é nem cá nem lá, é um determinado “entre” que tem que ser inventado pelo leitor”. [2] A criação desse espaço teórico relacional se aproxima da dobra leibniziana, desprovida de avesso e direito, de interior e de exterior, tendo o deslocamento como movimento instaurador da categoria nômade da escrita. A definição do conceito de entre-lugar se alimenta ainda da lição de Borges, legítimo representante de um escritor das margens. Ao adotar esse espaço intermediário de reflexão, Silviano descarta “o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o “lugar-fetiche do aristocrata saber europeu”. Desconsidera ainda o rancor próprio da teoria marxista da dependência, por meio da qual se evidencia o descompasso temporal e a consciência trágica do atraso dos países periféricos em relação à cultura metropolitana. [3]

A desconstrução dos princípios universalistas erigidos pela civilização européia, com forte impacto nos estudos contemporâneos, é vista por Silviano como herança do modernismo, pois, embora se pensasse na consolidação de uma nacionalidade artística, Mário e Oswald de Andrade lutaram pelo reconhecimento da civilização indígena e pela abertura a outras civilizações. Na percepção da América Latina como cultura híbrida, isenta de radicalismos relativos aos sentidos de pureza e unidade, e por essa razão, capaz de transgredir modelos e inventar respostas próprias, o ensaísta remete à lição de Oswald sobre o tema, introduzindo-o como um dos seus precursores teóricos no artigo “O entre-lugar do discurso latino-americano”. O argumento encontrado é a mistura de raças, a “mulatização”, que, comparado às novas formas do multiculturalismo, não se vincularia à posição defendida por Gilberto Freyre: “A Alemanha racista, purista e recordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru e do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se.”[4]

Mário de Andrade fornece também ingredientes para o sustento do pensamento multicultural contemporâneo, ao ser citado em ensaio dedicado à tolerância racial em Oswald de Andrade. Neste texto, salienta a lucidez do escritor paulista que, em 1924, ainda que defendesse o nacionalismo como primeira preocupação, se abre para a compreensão da existência de várias etnias. O emprego do plural para o termo civilização serve como abertura para a multiplicidade cultural e funciona como previsão para o debate atual do tema: ‘Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e S. Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há civilizações”.[5]      

O multiculturalismo dos dias atuais recebe do crítico (“O cosmopolitismo do pobre”) tratamento diferenciado daquele anunciado na obra de Gilberto Freyre, por este se associar à fórmula do Estado-nação. Não resta dúvida de que se apóia na lição legada pelos modernistas para “ir mais além”, com o cuidado de não reproduzir noções criadas em tempo diferente e segundo intenções que se distanciam das atuais. Nesse sentido, torna-se evidente o comportamento analítico de Silviano diante do texto dos modernistas, ao acatar e ao mesmo tempo avançar na reformulação do nosso repertório teórico e cultural. No ensaio “Atração do mundo”, essa contribuição é ressaltada: “Com olhos livres, o modernista rechaça a idealização e o recalque do passado nacional, acima referidos, para adotar como estratégia estética e economia política a inversão dos valores hierárquicos estabelecidos pelo cânone eurocêntrico. Essa estratégia e economia de pensamento, necessariamente periféricas, ambivalentes e precárias, tanto aponta para o resgate da multiplicidade étnica e cultural da formação nacional quanto para o vínculo que esta mantém com o pensamento universal não eurocêntrico.” [6]

 A convivência sistemática do escritor com o modernismo, além de ser distinta da vertente canonizadora de grande parte da crítica, contribui também para o aproveitamento de conceitos operatórios fornecidos pela obra de Mário e de Oswald de Andrade quanto para o exercício da escrita ficcional. Sem se entregar a critérios binários de exclusão de um autor por outro, vale-se da posição de Mário sobre a questão da dependência cultural, a “traição da memória”, assim como do conceito de antropofagia de Oswald. Em artigo de 1981, “Apesar de dependente, universal”, amplia o conceito de “entre-lugar” com a apropriação das teorias modernistas, uma vez que estas iniciaram o diálogo transcultural, ao transformarem o atraso e o subdesenvolvimento das nações periféricas em resposta eufórica e positiva às questões da dependência. Considera ainda o concretismo como o terceiro antídoto proposto para se repensar a cultura nacional segundo critérios que reforçam o conceito de defasagem temporal entre o produto da cultura dominante e a da dominada, resultado do descompasso entre modernidade e modernização. [7] Dos textos de Mário de Andrade, Silviano irá se valer na sua totalidade, mas de forma mais rentável no que se refere à quebra de barreiras entre a cultura erudita e popular, aos temas referentes à criação literária, à relação entre arte e vida, à linhagem fraterna como substituição da paterna e ao papel do intelectual moderno.

Em texto de 2004, intitulado “O público, é preciso em primeiro lugar que a literatura seja”, Silviano reitera a preocupação de se pensar num espaço literário que rompa com a noção estreita de território e prenuncie a tendência contemporânea de muitos escritores brasileiros, que ao escolherem o estrangeiro como espaço ficcional, acenam para a ineficácia das retóricas identitárias. A encenação realizada pelos livros Em liberdade, Stella Manhattan, Viagem ao México e Keith Jarret no Blue Note, apenas a ficar nesses exemplos, protagonizada por personagens que assumem papel duplo na narrativa, personagens-dobradiça, concebidos segundo o molde de personagens- anfíbios. Essa intenção possibilita ainda a contextualização de sua obra no espaço igualmente ambíguo e intervalar. A citação é longa, mas necessária:

 

Não há como não concordar com o fato de que, na década de 1980, era necessário retirar a literatura daqueles limites estreitos e jogá-la para a arena das novas discussões e conquistas, em pauta no mundo desde os anos 60. Alcançada a liberdade, ainda que precária, chegado era o momento de liberar o ser humano das micro-estruturas de poder e de repressão. (...) Afastávamos do contexto por demais estreito da nacionalidade, para entrar no quadro dos movimentos de liberação que, oriundos das campanhas de universitários contra a guerra do Vietnã, se estenderam de Berkeley a de Woodstock até a Paris de maio de 68. Afastávamos também do contexto por demais machista do partidarismo político latino-americano, para acreditar numa política do corpo, em que este não aspire ao eterno, mas esgote o campo do possível. (...)

Os personagens do romance não poderiam ser só brasileiros. A graça estaria em jogar compatriotas na cena cosmopolita de Nova Iorque e ver como reagiam. Retratar não apenas o velho cosmopolitismo, dos guerrilheiros exilados ou mutilados pela repressão, dos pobres do terceiro mundo e dos rejeitados pela intolerância comportamental. O cosmopolitismo dos diplomatas e adidos militares. E também o dos desempregados no seu país, aqueles que foram atirados nos torvelinhos do dólar pela insensibilidade dos capatazes neocolonialistas. E ainda o dos perseguidos pelos militares, que tentavam aliciar amigos e aliados em terras estranhas, e finalmente o cosmopolitismo dos homossexuais latino-americanos, que, pela intolerância da família e do meio machista e patriarcal, eram jogados no estrangeiro pelas aventuras do avião e do acaso.

Nos caminhos trilhados no romance por brasileiros, cubanos e portoriquenhos exilados, por norte-americanos infelizes com o estado de coisas naquele país, surgia uma espécie de novo homo americanus, autêntico e erotizado, que impedia as leituras capciosas de cada país levantadas pela ideologia nacionalista em vigor nos diversos regimes militares. Ao impedi-las, o novo homo americanus alavancava a possibilidade de uma reflexão que neutralizasse as forças retrógradas do passado que ainda nos perseguiam, como o escravismo negro e indígena, as forças das repressões minúsculas, que guillhotinavam desejo, sentimentos e emoções dos que transgrediam as normas comportamentais ditadas pela burguesia religiosa. Poderíamos ser, sim, cidadãos do mundo, mas nunca na condição de párias do capitalismo. [8]

 

Essa tomada de posição do escritor latino-americano se constrói ao lado do crítico literário, que se transforma, em vários momentos em sua ficção, em personagem e coadjuvante dos protagonistas de seus romances. A teoria crítica está o tempo todo em diálogo com a ficção, à medida que o crítico e o escritor se mesclam e procedem à leitura do espírito latino-americano que perpassa sua obra. O deslocamento passa a ser a estratégia utilizada pelo escritor: ao construir as personagens latinas em Stella Manhattan alocadas em Nova York e sendo vistas por olhares que já se encontram intermediados e afastados da situação brasileira. Brasileiros fora do país, jogados no contexto cosmopolita e multicultural de Nova York, se confrontam com outras personagens latinas e americanas do norte, pelo olhar também oblíquo do narrador. A triangulação de perspectivas, o deslocamento espacial e o afastamento de uma proposta nacionalista e reduzida traduzem o programa estético e político de Silviano, ao dramatizar situações e ao desvincular possíveis referências diretas aos protagonistas. A procura incansável desse entre-lugar do discurso latino-americano se alimenta, na ficção, de imagens e cenas capazes de dramatizar os problemas do continente, a crítica aos nacionalismos e a abertura pós-moderna para uma literatura que rompe com modelos estereotipados e etnocêntricos e se filia a uma linhagem libertadora e mais feliz. O corpo mutilado e ressentido cede lugar à aventura hedonística do prazer que é o resultado da dor, ao dispêndio de energias e ao gasto da força vital como promessa de liberdade. O direito de cidadania se realiza também na procura do prazer sem ressentimento e na tentativa de dotar o corpo homossexual de energia criadora, sem que as personagens tenham uma relação mais próxima com a nacionalidade.

Dois exemplos ilustram a proposta hedonística e marginal como formas de inserir o Terceiro Mundo num nível de reflexão política e participante. A primeira, refere-se ao narrador de Stella Manhattan, ao estabelecer com a cena dos músicos no metrô parisiense o elo entre a performance da negra no “Carnaval carioca”, de Mário de Andrade, assumindo a dívida teórica para com Bataille e retomando o conceito de “fazer milhor” de Mário. O melhor dos músicos, um mulato “retraído e gordo” no meio de brancos esfuziantes, “era todo equilíbrio” e “explodia nele um acúmulo de energia que fugia da norma que satisfaz a necessidade”. Percebe-se, na passagem, a metáfora do desperdício, retirada da cena doméstica de encher o leite numa xícara e deixá-lo transbordar até ensopar toda a toalha, assim como a interpretação musical do mulato no metrô. Introduz, com a ajuda de fragmentos de Bataille, a definição sobre a criação artística, ao considerar que “arte não é e não pode ser norma, é energia desperdiçada mesmo”. [9] A recriação do cenário musical no metrô parisiense, tendo como destaque a interpretação do mulato, redimensiona o significado da cena original, ao ressaltar a presença diferenciada da cultura periférica na metrópole. O excesso que a distingue diz respeito tanto à sua exclusão social como imigrante na comunidade, quanto à criatividade e energia existencial que extrapolam a ordem e o bem estar público. Imigrantes em Paris cantam no metrô como saída para a sobrevivência e como manifestação de uma arte que se distingue da européia, pelo grau de diferença e de investimento corporal e vital na interpretação. A resistência das minorias nas metrópoles colonizadoras constitui, sem dúvida, a imagem que traduz o lugar sempre deslocado e excluído do grupo imigrante. A cena é inserida com vistas a apontar a diferença como força revolucionária do Terceiro Mundo.

Viagem ao México narra, no capítulo VII sobre Cuba, situação oposta à cena original e à de Stella Manhattan, ao ser contemplado um grupo musical, apático e sem energia, comportando-se como se estivesse realizando um rito operário. A falta de engajamento dos intérpretes os coloca na situação de espectador e não de ator do espetáculo promovido e dirigido pelo governo autoritário. A recorrência da cena funciona como ilustração do cenário do regime socialista, de um espetáculo que nada motiva para quem o observa.  Destituído de vitalidade e de entusiasmo, a execução musical obedece ao ritual de trabalho e se apaga enquanto manifestação artística coletiva. O povo se contenta em ser o espectador de uma festa que não lhe reserva mais o direito de exercer o papel de ator na sociedade: “A maioria dos cubanos tira a graça e a alegria da vida sendo espectador. Não consegue mais participar como ator dos eventos públicos e dos espetáculos, das coisas do dia-a-dia. Foi um direito que lhes foi pouco a pouco dado e pouco a pouco roubado, talvez pela excessiva especialização profissional, talvez pela rotina do trabalho setorizado, talvez...”[10] A grande esperança revolucionária trazida por Cuba nos anos 60 se esgarça na representação de um sentimento latino-americano em ruínas, visto pelo narrador no final dos anos 90 e que reproduzo aqui:

 

Por algumas décadas, em Cuba, extraordinário e cotidiano se confundiam aos olhos da minha geração. Entrelaçados desenhavam o grande sonho latino-americano da liberação política e econômica do Terceiro Mundo. Um sonho que, em determinada época, tornou-se realidade na ilha e indicava que poderia ser também realidade nos demais países latino-americanos. Foi por isso que esse sonho se revestiu de contornos precisos e palpáveis para a minha geração. A alquimia revolucionária exportada por Che Guevara fez que muitos atores políticos das mais diferentes nações do continente ascendessem à condição de heróis sofridos e torturados da nuestra América. Muitos contemporâneos nossos falaram da liderança continental de Cuba, dessa fase heróica altaneira em que o impossível, como numa utopia, ia se banalizando dia após dia. [11]   

 

O vínculo de adesão à causa latino-americana e ao lugar ocupado pelo intelectual e escritor Silviano Santiago no espaço literário e político do continente se processa ainda pela construção de coincidências temporais existentes entre os acontecimentos ligados a escritores ou a épocas literárias, como o modernismo, ou a datas marcantes da política mundial, como a Segunda Guerra. A inserção se dá através de um gesto duplo de pertencimento e de experiência pessoal adquirida e construída pelo viés da voz do outro. O deslocamento de Artaud para o México serve de mediação para o narrador discorrer e contrapontear-se com a cultura européia e as leituras conservadoras e preconceituosas produzidas pelo etnocentrismo. A data de nascimento do autor – 1936 – reveste-se de teor simbólico, à medida que se processa a leitura enviesada e culturalmente engajada do escritor diante da literatura e da história, ao criar pontos de intercessão entre os seus projetos literários e intelectuais. Sem se prender a justificativas de ordem narcísica, esse sujeito que se constrói à sombra e à luz do outro adquire, contraditoriamente, o sentimento de perda, embora nesse gesto se explique todo o processo de desperdício e entrega desmesurada ao ofício – e à vida.

 Se no artigo “Fechado para balanço”, Silviano registra o ano de 1936 como a proclamação da morte do modernismo de 22 corporificada na crítica feita pelos colaboradores da revista Verde, a data remete tanto para o nascimento do escritor quanto para a prisão de Graciliano Ramos pela repressão do governo Vargas. A utilização do artifício autobiográfico cumpre função metafórica, ao serem aproximadas referências documentais que respondem, tanto pela ambigüidade e transfiguração do ficcional quanto pela contextualização da escrita de Silviano como intelectual. Procede-se à dupla releitura do modernismo, seja através da figura de Graciliano, seja através de Em liberdade, uma das primeiras manifestações da literatura pós-moderna entre nós. Diferentes procedimentos narrativos se constroem nesta obra - a estilização e o pastiche, gestos paradoxais de celebração e distanciamento quanto ao modelo - por meio dos quais se afasta do artifício parodístico exercido pelos modernistas. Embora se atualize textualmente o diálogo transgressor com a tradição literária brasileira, o livro rompe com o projeto radical de ruptura dos modelos fundadores.

No âmbito político-existencial, Em liberdade nasce simbolicamente do útero cerebral de Graciliano/Silviano, criação especular que evoca o processo de simbiose e afastamento do narrador, na escolha da difícil tarefa de falar de si através do outro, com vistas a refletir sobre um dos perfis do intelectual brasileiro. Ao invés de se valer da experiência carcerária do passado, produtora de discursos do ressentimento, o intelectual deveria se concentrar no compromisso livre e positivo com o presente. Nas palavras de Wander Melo Miranda, em Corpos escritos, ensaio pioneiro sobre a escrita memorialista de Silviano, a obra é a tradução de Memórias do cárcere, pastiche e reverência ao texto de Graciliano, traço de uma leitura que atualiza o conceito de suplemento derridiano: “a ficção de Silviano, ao propor-se como ‘acréscimo’ ou suplemento às memórias de Graciliano, - no sentido de multiplicar seus significantes e não de reduplicá-los -, não visa, à semelhança do texto primeiro, a atingir um significado último ou definitivo”.[12]

Em entrevista concedida à revista Imagem, Silviano declara, de forma eloqüente, que o século XX terminou “desastrosamente nos anos 30”. Para ele, a imobilidade registrada dessa época até os dias de hoje, dominada pelos nacionalismos econômicos, pela inutilidade da Segunda Grande Guerra e dos campos de concentração nazistas, coincide com a década de seu nascimento, em 1936. Em razão dessa coincidência temporal, o escritor procura, através de sua obra, interpretar “a inutilidade da vida vivida por mim ( e da vida vivida pela minha geração)”, reescrevendo o momento de experiência limite dos escritores-personagens: o de Graciliano Ramos, preso em 1936 em Maceió e o de Artaud, ao deixar a Europa em direção ao México. A experiência alheia a ser narrada supre o vazio da experiência pessoal, permitindo o nascimento do escritor pós-moderno a partir da morte do século moderno e do modernismo em 1936. A sobrevida do filho após a morte da mãe se vale da contingência de ter nascido da dor, com a responsabilidade de transformar a perda em alegria criativa.

O conto “Hello Dolly”, concebido em forma de carta a Walter Benjamin, narra a aflição da personagem em busca da identidade perdida, uma vez que se comemorava a primeira clonagem animal, o início da reprodução técnica não apenas da obra de arte, mas de seres. O texto remete, mais uma vez, para a coincidência irônica do nascimento do autor, pois o ensaio de Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” é de 1936. Fadado a repetir experiências do outro, a viver a ficção como filtragem e suplemento de obras alheias, o escritor se inscreve no texto, na figura do narrador, como produto clonado, exigindo carteira de identidade e a recuperação da aura perdida. Rebela-se por se transformar em “antepassado e prole de si próprio”, rompendo com a linhagem familiar tradicional e se perdendo no anonimato. De modo irônico, simula-se o nascimento do escritor Silviano Santiago, declarando-se contra o seu destino vaticinado por Benjamin no artigo de 1936, embora se esforce por se mostrar “avançado”:

 

Pergunto-lhe, meu caro Walter: Sou homem depois desse falimento? Não é a minha própria identidade que está sendo manuseada por profissionais incompetentes? Será que outro que não eu conseguirá me representar tão bem quanto eu me represento nas minhas crises e angústia, na montanha-russa da minha depressão e nos meus piques de euforia? Espero uma resposta honesta sua, e não me chame de retrógrado, por favor. Sou benjaminiano e pós-moderno, graças a Deus.[13]    

 

Notas



[1] SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1973.

 

[2] SANTIAGO, Silviano. Literatura é paradoxo. Entrevista concedida a Carlos Eduardo Ortolan Miranda. Trópico. P. 4. Site UOL.

 

[3] “Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal quando estava preparado (ou estavam me preparando) para os caminhos da racionalidade francesa numa terra onde os lugares-comuns nos impelem para o irracional. Nunca fui vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim Nabuco, nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas cores do carnaval nos trópicos. Fiquei com os dois e com a condição de viver e pensar os dois. Paradoxalmente. Nem o lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata saber europeu. Lugar-comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade latino-americana. Inventei o entre-lugar do discurso latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores escritores”. SANTIAGO, Silviano. Borges. In: SCHWARTZ, Jorge. (Coord.). Borges no Brasil. São Paulo: UNESP/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001. p. 434.

 

[4]ANDRADE, Oswald de. Sol da meia noite. In: Ponta de lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 63. Apud SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. Op.cit., p. 18. 

 

[5] SANTIAGO, Silviano. Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância étnica. Anais do 2o. Congresso Abralic. Vol. 1. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 1991. p. 77.

 

[6] SANTIAGO, Silviano. Atração do mundo. Art. Cit., p. 27.

 

[7] SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1982. Cf. ainda meus artigos: “Estéticas da ruptura” e “O discurso crítico brasileiro”, contidos em SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

 

[8] SANTIAGO, Silviano. O público, é preciso em primeiro lugar que a literatura seja. In: FILHO, Deneval Siqueira de Azevedo; MAIA, Maria de Abreu. Livros e idéias. Ensaios sem fronteira. São Paulo: Arte & Ciência Editora. 2004. p. 19-21.

 

[9] SANTIAGO, Silviano. Stella Manhatan. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 68-71.

 

[10] SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. p. 212.

 

[11] Idem, p. 196.

 

[12] MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992. p.118.

 

[13] SANTIAGO, Silviano. Hello Dolly. In: Histórias mal contadas. Op. cit., p. 156.

 

Evelina Hoisel – Migrações: as estratégias de atuação de um intelectual periférico

Na produção de Silviano Santiago, o tema das migrações inscreve-se através de diversos signos – migrações geográficas, migrações culturais, migrações discursivas, migrações metafóricas – e está associado ao tema da viagem, da mudança na localização geográfica, no comportamento, no interesse pelo outro. A condição de professor, de teórico, de crítico e de ficcionista faz proliferarem os fluxos dessas migrações, uma vez que cada uma dessas funções é exercida a partir de um determinado local e de uma instância discursiva que tem a sua própria ordem, mas que insistentemente tem as suas fronteiras e os seus limites deslocados e rasurados. As migrações fazem parte da história civil e literária desse intelectual. No “Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas d´angola”, ao se apropriar narcisicamente da estória de Zé-Zim, do Grande sertão: veredas, que é trazida para “testemunhar a vivência dos navegantes, metafóricos ou não, no grande sertão”, já que o sertanejo que transmigra é personificado no romance pelo meeiro Zé-Zim, Silviano exemplarmente declara que “semelhante desejo de mudar existe desde a mais tenra infância no menino da provinciana Formiga.”[1]  Por isso, na cena do Epílogo, ele acopla à sua própria história as estórias exemplares que sustentam a travessia romanesca de Riobaldo no Grande sertão, suplementadas pela “Terceira margem do rio”, narrativa de um filho abandonado pelo pai que, em uma canoa,  atravessa rio-abaixo, rio-acima.

O projeto de um saber nômade, em sucessivos processos de territorialização e desterritorialização, foi alentado desde a adolescência ainda em Belo Horizonte. Silviano Santiago faz parte de uma geração de intelectuais mineiros que, do ponto de vista político, ele define como anarquista. Ao contrário da geração precedente, cujos intelectuais estiveram compromissados com o serviço público e com o Estado, a sua rejeitava qualquer cargo público: “nenhum de nós entrou para uma secretaria ou foi assessor de político importante. Havia sempre uma preocupação de não fazer as coisas segundo o credo oficial”, afirma Silviano em entrevista a Helena Bomeny e Lúcia Lippi Oliveira.[2]

Além dessa postura, desde a sua formação, elegeu os contatos e os diálogos entre os aspectos díspares da vida intelectual: a disciplina do saber institucional e a maleabilidade do diálogo com os confrades mais experientes nas mesas de bares, na boemia da noite mineira, que gerava um saber nômade e transgressor, motivo que aparece em vários dos seus ensaios e serve de instigante pretexto para a apresentação das cartas de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, no livro intitulado Carlos & Mário, e da coletânea A República das Letras, ofertados ao público leitor como um entre-lugar da afetividade e do saber.

É assim que, do ponto de vista da autobiografia da personalidade civil desse intelectual, a viagem é vivenciada desde cedo, quando sai de Formiga e vai para Belo Horizonte, onde estuda e inicia uma carreira de crítico de cinema. Em seguida, transfere-se para o Rio de Janeiro e depois para Paris, em 1961. Passa um ano em Paris e segue para os Estados Unidos, onde, durante dez anos, transita por diversas universidades, ensinando literatura brasileira e literatura francesa. Inicialmente na Universidade do Novo México, em seguida na Rutgers University, em Nova Jersey, depois em Toronto, no Canadá. Em 1969, desloca-se para Buffalo, onde permanece durante três anos, exercendo também uma atividade administrativa: a de Chefe do Departamento de Francês.

A atividade de docente, de teórico e de crítico nos Estados Unidos é ampliada pela de mediador cultural, o que gera uma outra vertente das migrações: a das trocas culturais. Como Chefe de Departamento de Francês na Universidade de Buffalo, Silviano Santiago leva do Brasil para os Estados Unidos figuras da vida intelectual brasileira que, naquele período, realizam uma produção cultural transgressora em relação aos padrões vigentes, abalando uma tradição em vigor no campo das artes plásticas, do cinema e do teatro: Hélio Oiticica, Gláuber Rocha, o espetáculo Arena conta Zumbi. Por outro lado, intensificando estes diálogos culturais, envia constantemente para revistas brasileiras, como a  Revista Barroco, artigos de professores e intelectuais americanos, divulgando suas idéias no cenário brasileiro.

Longe do Brasil, o desejo de mudar é alimentado pela descoberta de quea maneira de fazer carreira nos Estados Unidos é mudando, não ficando no mesmo galho. Eu ficava dois anos, ganhava certo nome, publicava e apostava.”[3]

Essas migrações geográficas, vivenciadas durante o percurso de uma atividade docente exercida no exterior, conferem uma maior agilidade ao olhar crítico desse intelectual que se posiciona em um entre-lugar, categoria das mais fecundas do pensamento teórico de Silviano Santiago, para problematizar e compreender o lugar do intelectual latino-americano, de um país periférico e colonizado. Categoria disseminada a partir de um ensaio já antológico, “O entre-lugar do discurso latino-americano”, datado de 1971, e publicado na coletânea de ensaios Uma literatura nos trópicos, cuja repercussão pode ser atestada a partir de suas múltiplas reapropriações contemporâneas, principalmente no espaço da Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, nos Programas de Pós-Graduação nas áreas de Letras e Ciências Humanas de instituições brasileiras e estrangeiras. Na entrevista concedida a Lucia Lippi de Oliveira e Helena Bomeny, Silviano assinala a importância desses trânsitos acadêmicos no estrangeiro: “estou sempre desconstruindo os Estados Unidos pela França, ou desconstruindo a França pelos Estados Unidos, ou desconstruindo o Brasil pela França e pelos Estados Unidos. E fazendo esses jogos, de tal forma que qualquer escrito meu é inseparável da minha formação.”[4] Este gesto desconstrutor, que Silviano inaugura no cenário teórico-crítico brasileiro a partir do pensamento de Jacques Derrida e do pós-estruturalismo francês, a partir dos cursos ministrados na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na década de 70, é um dos elementos mais férteis da sua atuação intelectual, com repercussão nos vários campos do saber. É a partir desses jogos que Silviano abala as noções tradicionais através das quais a literatura comparada operava, modificando radicalmente o panorama dos estudos comparatistas no Brasil e na América Latina.

As migrações institucionais permanecem no Brasil como estratégias intelectuais de um saber transgressor, cuja prática docente abala também a concepção tradicional de cátedra, conforme modelo instalado nos centros hegemônicos do saber, como na Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Rio de Janeiro das décadas de 60 e 70. Em 1972, Silviano inicia suas atividades na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, como professor convidado e, em 1974, como professor contratado. Mas, em 1988, pede demissão da PUC/RJ e é contratado pela Universidade Federal Fluminense, onde já tinha atuado como professor convidado no período compreendido entre 1976-1980. Em seguida, vai para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde monta, com Heloisa Buarque de Holanda e outros pesquisadores, o Programa Avançado de Cultura Contemporânea - PACC. Coordena também o Centro de Pesquisa da Fundação Casa de Ruy Barbosa. Estando no Brasil, volta a desenvolver atividades no estrangeiro: Professor Visitante da Universidade do Texas, da Universidade de Indiana e da Universidade de Yale, e Professor Associado na Universidade de Paris III, Sorbonne Nouvelle.

Após se retirar da atividade docente regularmente exercida nas instituições brasileiras, Silviano Santiago, como Editor da Revista Margens/Márgenes, mobiliza uma outra possibilidade desses trânsitos e migrações interinstitucionais. O projeto da revista envolve cinco diferentes instituições – duas no Brasil: Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade Federal da Bahia, duas na América Latina: Universidade Nacional de Mar del Plata e a Universidade de Buenos Aires, e a Universidade de Roma -, tendo como objetivo discutir as perspectivas contemporâneas transnacionais nas artes, na cultura, na sociedade e na política, do ponto de vista da  margem.[5]

No Brasil, é a partir de uma intensa atuação docente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro que se registram as rupturas mais radicais, promovidas no contexto do ensino da Literatura Comparada, da Teoria da Literatura e da Literatura Brasileira. Ao ingressar na PUC/RJ, além do enfoque interdisciplinar, Silviano incorpora na atividade interpretativa outras linguagens: cinema, teatro, MPB, manifestações vanguardistas, demonstrando também uma aguda preocupação com os processos de democratização da cultura e da arte, tema que se torna recorrente nos seus ensaios. Por sua vez, as reflexões sobre a Literatura Brasileira são desenvolvidas a partir de um repertório de textos do período colonial que inclui desde a carta de Pero Vaz de Caminha. Esta eleição o diferencia dos demais estudiosos da história da literatura brasileira do período, cuja abordagem partia dos textos do século 17 ou do romantismo.

Outro viés bastante fecundo da prática acadêmica de Silviano Santiago na PUC/RJ  que passa a ter uma repercussão teórica e crítica para os estudos desenvolvidos atualmente em diversas instituições de ensino superior no Brasil, como a PUC/RJ, UFF, UFBA, UFMG, diz respeito à problemática da leitura, que perde seu caráter universalizante e passa a integrar as produções culturais ao seu contexto. Esta prática rompe com os estudos literários tradicionais, bem como com aqueles em voga a partir do método estruturalista, trazendo para o campo das letras e da literatura comparada a crítica cultural. Através de uma perspectiva multidisciplinar e transgressora para os parâmetros vigentes na época, privilegiam-se os diálogos e os trânsitos discursivos entre Letras e Ciências Humanas, mobilizados principalmente a partir da conjunção da história com a antropologia[6]. Esta postura gera uma aguda crise no campo dos estudos literários – na Literatura Comparada e na Teoria da Literatura – cuja fecundidade pode ser atestada a partir das vigorosas discussões travadas sobre os limites disciplinares nos programas de pós-graduação e, de maneira mais polêmica e ruidosa, no âmbito dos congressos da Associação Brasileira de Literatura Comparada - ABRALIC, da qual Silviano Santiago foi Presidente, no período 1992-1994.

É pelo viés da antropologia que se pode então compreender o desejo de dialogar com o outro na produção de Silviano Santiago. As migrações geográficas, até mesmo as migrações institucionais, fazem parte de uma estratégia intelectual de acercar-se do outro, deslocando-se por essa via os processos de centralização do poder, através de uma contundente “descentralização da fala do saber”. Nesse sentido, vale ressaltar a maneira como Silviano Santiago, em texto de 1984, “Prosa literária atual no Brasil” define o intelectual, tal como se encontra nos melhores romances e memórias da época: “é aquele que, depois de saber o que sabe, deve saber o que seu saber recalca. A escrita é muitas vezes a ocasião para se articular uma lacuna no saber com o próprio saber, é a atenção dada à palavra do Outro.”[7] A partir dessa perspectiva, Silviano Santiago desloca a figura do intelectual que se afirmara como uma consciência universal, assumindo a voz dos oprimidos e das minorias desprivilegiadas. O intelectual que dizia a verdade àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-la. O intelectual que luta contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso.[8]

Com estas considerações, passamos a focalizar uma outra estratégia de atuação desse intelectual que faz proliferar o fluxo das migrações, agora delineadas a partir das formações discursivas que podem ser identificadas sob a assinatura de Silviano Santiago. Neste contexto, migrar confunde-se com transmigrar, palavra que aparece configurada na cena do “Epílogo em 1ª. Pessoa: eu e as galinhas d’ angola”. No contexto desta cena, dentre outras tantas acepções, transmigrar deve ser entendida como uma espécie de categoria transgressora que configura determinados movimentos da escrita, impondo-se como um traço importante do processo de construção textual de Silviano Santiago. Transmigrar dramatiza e teatraliza as possibilidades de reelaboração das subjetividades e de constituição de alteridades na cena ficcional, em que um eu encorpa-se em um outro, uma primeira pessoa reconstrói-se narcisicamente em uma terceira, em um incessante jogo de máscaras, de trocas e de reinvenções de identidades e subjetividades. Transmigrar implica em assumir uma outra condição de fala: ser e não ser um eu e um outro, e faz parte da operação tradutória da contemporaneidade que se baseia na crítica da identidade autoral, desintegrando a noção de propriedade literária. Estratégia de atuação encontrada nos diversos textos ficcionais de Santiago, de maneira mais evidente em Viagem ao México e Em liberdade, textos que se apropriam “despudoradamente” – palavra do próprio Silviano – do eu, da vida, do estilo, dos amigos, das idéias, de Antonin Artaud e de Graciliano Ramos.

Iniciaremos as nossas indagações evocando o romance Viagem ao México, onde a problemática da viagem, das migrações e transmigrações, da mobilidade aparece como uma marca muito evidente, estampada desde o início da narrativa, através da fala do narrador:

 

Para escrever este livro, invento-me monstro, da maneira como só os navegantes sabem inventá-lo durante o transcorrer da viagem da descoberta (...). Venho de um antigo povo de marinheiros (...). Sou filho de lobos do mar e deles herdei a infindável tarefa de viajar e inventar monstros (...). Aprendi com um pensador latino, numa carta que não era dirigida a mim mas de que me tornei destinatário por obra e graça da leitura, que tudo se movimenta na natureza (...). Por que os seres não iriam se movimentar pela terra, enriquecendo antigas e novas cidades com o esforço individual, reconstruindo países em ruínas por causa das guerras ou reerguendo regiões decadentes em virtude de governos devassos, por que não iriam levantar diferentes casas de traçados arquitetônicos inesperados e construir laços familiares originais em distantes e inóspitos climas? Inaugurar novos antepassados em uma nova cidade (...). Alguns desses homens – me ensinou ainda a carta de Sêneca – são movidos pela ambição; outros são obrigados a migrar pelo dever de uma função pública; a uns poucos é a luxúria ansiosa de um lugar propício e rico de vícios que seduz e atrai ... muitos tiveram de migrar para melhor mostrar e vender inteligência e talento. [9]

 

Estão aqui colocadas algumas das idéias que compõem a prática escritural e intelectual de Silviano Santiago. Inicialmente, a concepção de que o romance se constitui como um texto em viagem, em sucessivas migrações. Forma nômade que, ao atravessar distintos territórios políticos e geográficos – pois a viagem é portuguesa, européia, brasileira, latino-americana – realiza-se em palimpsesto ou em hipertexto, congregando formas e gêneros   es, e a Universidade de Roma -________________________________________________________________________________________________- como o diário íntimo, a epopéia, o discurso crítico-ensaístico, a pesquisa histórica, a reflexão teórica e filosófica –  problematizando-os, expondo a fragilidade dos seus limites. Ficção_______________________________________________________________________________________________________________________________-limite é o termo utilizado pelo próprio Silviano ao se referir ao seu romance, Em liberdade, em entrevista concedida ao Estado de Minas Gerais, em 03 de outubro de 1981, que pode definir também o texto de Viagem ao México. Esta terminologia pode ser aplicada ainda à sua vasta produção ficcional, através da qual desloca os limites que têm contornado o conceito de ficção, vez que discute as fronteiras entre uma literatura auto-referencial, intransitiva, resultante do trabalho da linguagem, conforme o modelo estabelecido pelos realistas.

Silviano realiza uma modalidade de ficção histórica que articula o passado e o presente, espaço de reflexão acerca da sua própria constituição, bem como de discussão sobre questões contemporâneas. Em um mundo multiplicado e fragmentado em imagens e impressões, onde o declínio da arte e a ascensão da cultura representam também um certo desprestígio da palavra enquanto detentora de universalidade ou promissora de virtualidade, essa dispersão de escritas repete e fragmenta vozes, mas repete e confirma em constantes jogos de diferença uma postura que pode ser apreendida na confrontação problematizadora dos diversos textos.

A crítica de Silviano Santiago tem freqüentemente assinalado esses diálogos intertextuais, estes trânsitos, onde a economia das trocas simbólicas se faz pelo excesso, pelo transbordamento de códigos discursivos, pelas referências que transitam por cadeias temporais distintas, pelas citações que revertem seu contexto de origem. Fazem parte desse projeto escritural esse jogo de dispersão de falas e papéis, essas migrações e transmigrações, a dramatizarem trocas identitárias que entrecruzam distintos territórios subjetivos, geográficos e lingüísticos. “Ao dar forma de livro aos embates da vida cotidiana nômade, do corpo, idéias e sentimentos que transitam, que se deslocam como flecha de uma cidade para outra, de uma região para outra, de um país para outro, de um continente para outro,”[10]  constrói-se um forte aparato teórico e interpretativo que delimita seu próprio domínio discursivo (o discurso da crítica, do teórico, do historiador, do ensaísta, os quais atravessam também domínios disciplinares contemporâneos – o da antropologia, sociologia, história, psicanálise). Os estudiosos da vasta produção de Silviano, de maneira perspicaz e instigante, têm percorrido e mapeado estes sucessivos entrecruzamentos, no sentido de demonstrar como os textos literários e ensaísticos se intertextualizam e promovem uma recorrência de referências, que se reengendram de texto a texto.

É sob essa perspectiva que Lúcia Helena, em “Olhares em palimpsesto”[11], estabelece as interfaces entre o trabalho crítico, divulgado principalmente através de Uma literatura nos trópicos (1978) e Vale quanto pesa (1982), e os romances Em liberdade e Viagem ao México. A abordagem se desenvolve no sentido de mostrar como o ponto nevrálgico do trabalho de Silviano “consiste em dinamizar algo que se engendra na confluência, no lugar-entre, na cena do paradoxo,”[12]  esclarecendo que, nas reflexões de Silviano, o entre- lugar é um conceito que compreende a ambigüidade a que estão sujeitos os escritores e intelectuais situados em uma cultura marcada pela imposição dos códigos civilizatórios dos dominantes, possibilitando aos dominados um trabalho antropofágico que subverte os padrões ocidentais.

Ivete Lara Camargos Walty, em “O eu migrante: crítica e ficção em Viagem ao México,”[13] considera como, nesse romance/ensaio, Silviano desdobra-se em outros, como já o fizera em Stella Manhattan e Em liberdade, e, em busca da alteridade, exercita-se naquilo que teoriza na crítica da cultura latino-americana. Evidencia como a releitura que Silviano Santiago empreende da história do Brasil marca-se pela migração do eu ao outro, onde o motivo da viagem, mediatizada pela viagem dos portugueses, sobretudo a de Vasco da Gama em Os Lusíadas, constrói uma epopéia-pastiche, que se monta retomando o ensaio “Por que e para que viaja o europeu”, publicado em Nas malhas da letra, mas recorrendo ainda a outro texto de Silviano, “Relatos de viagem”, publicado no Jornal do Brasil. A título de acréscimo, lembramos que, na sessão de abertura do VII Congresso da Abralic, no ano 2000, em Salvador, o tema da viagem é retomado em conferência, a partir da viagem de Lévi-Strauss aos trópicos, fragmento de um longo ensaio publicado posteriormente no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, de 10 de setembro de 2000, e que integra a mais recente coletânea de ensaios Ora (direis) puxar conversa! . A direção assumida pela escrita de “o eu migrante: crítica e ficção em Viagem ao México” é mostrar como preocupações teóricas e culturais são postas em prática pela escrita ficcional. Ler e escrever, teorizar e ficcionalizar, historicizar e desficcionalizar tornam-se atividades interligadas, e é desse movimento contínuo que se tecem os papéis dos narradores dos romances bem como os do ensaísta, do pesquisador, do professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, em instituições de ensino superior no Brasil e como professor visitante em instituições estrangeiras.

É recortando estas interfaces que Ítalo Moriconi, em abordagem comparativa de Em liberdade e de Respiração artificial, do argentino Ricardo Piglia, considera estes textos que problematizam a relação entre escrita literária e escrita histórica, “borrando suas fronteiras” Moriconi direciona sua leitura percorrendo os territórios freqüentados por Silviano Santiago na sua “ficção pensante”, que, segundo ele, representa “uma síntese de suas discussões sobre o intelectual modernista brasileiro, realizadas ao longo de anos de pesquisa e memoráveis cursos ministrados na PUC do Rio. Um jogo de xadrez desconstrutivo em que Graciliano Ramos compôs quatrilho com três Andrades: Oswald, Mário e Carlos Drummond.”[14] No desenrolar de suas reflexões, Moriconi vai gradativamente estabelecendo as correlações entre o crítico/pesquisador e o ficcionista/poeta. Destaca, por exemplo, a “encenação ficcionada” das leituras que Silviano fez de Oswald de Andrade em Crescendo Durante a Guerra Numa Província Ultramarina, livro de poesia publicado na década de 70. Assinala ainda que Silviano Santiago e Ricardo Piglia, no quadro latino-americano, “operam a partir do lugar pós-moderno de uma vanguarda de escritores doublés de professores, doublés de críticos universitários.”[15]

Se continuarmos percorrendo os diversos ensaios que constituem a coletânea Navegar é  preciso, viver: escritos para Silviano Santiago, organizada por Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda, verificamos que a temática dos trânsitos, das migrações e das inter-relações entre as diversas atividades, sob perspectivas distintas, proliferam nos seus ensaios. Como estratégia de construção de nossas reflexões, ainda recorremos a alguns deles, como ao de Ana Maria Bulhões de Carvalho, “Ich Bin Der Und Der,”[16] que estuda as múltiplas personas em que se disfarçam o ficcionista e o poeta como suplemento de uma meia- máscara, a constituir o seu espaço autobiográfico. Através desse processo, a figura do autor vai sendo criada na mente do leitor, a partir do que ele mesmo diz de sua própria obra, somando traços públicos à sua biografia intelectual e literária.

 Rachel Esteves Lima, no ensaio “A crítica cultural na universidade,”[17] trata da atividade acadêmica de Silviano, correlacionando-a com as demais, e salientando, principalmente, como seu enfoque culturalista ou multiculturalista e interdisciplinar seria reforçado, na tarefa interpretativa, através da incorporação de outros sistemas discursivos – portanto, de outras migrações – como a música popular brasileira, o cinema, o teatro e as manifestações de vanguarda. Por outro lado, o trabalho de Silviano, como pontua Rachel, representa uma mudança nos rumos teóricos vigentes na Universidade Católica do Rio de Janeiro e em outras universidades brasileiras, nas décadas de 70 e 80, uma vez que dissemina uma perspectiva de leitura e de avaliação das manifestações artísticas, integrando-as ao seu contexto.

Marília Rothier Cardoso mapeia um outro lugar discursivo ao estudar os ensaios de Silviano publicados no Jornal do Brasil, considerando o papel de sua inserção na mídia. Através da atividade jornalística, Silviano Santiago estabelece uma comunicação com um público mais amplo e diversificado. Em “Lições de leitura,”[18] a questão da pluralidade de lugares é referida por Marília Rothier Cardoso, que recorre à dupla experiência de Silviano de escritor e de professor universitário para situar um dos temas recorrentes dos seus ensaios no Jornal do Brasil, que constitui uma das linhas de força de sua prática acadêmica e teórica: a necessidade de transformar a leitura do discurso poético em instrumento de democratização social.

No movimento traçado para verificar as trocas estabelecidas nesta pluralidade de perspectivas interpretativas aqui esboçadas, todas dramatizando percursos de migrações operados pela atuação do intelectual Silviano Santiago e apreendida através de suas práticas discursivas, chegamos à leitura que Wander Melo Miranda empreende em seu livro Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago,[19] na qual discute as relações entre memória e ficção, observando como ambas encenam a história. Tratando da ficção autobiográfica de Graciliano Ramos e da autobiografia ficcional de Silviano Santiago, Wander Melo Miranda recorta como núcleo motivador para a sua abordagem as relações entre o intelectual e o poder, apreendido pelo olhar que o intelectual Silviano Santiago lança sobre o intelectual Graciliano Ramos, após sua saída do cárcere. Portanto, em liberdade. Em uma minuciosa abordagem, traça as correlações entre o crítico, o teórico, o intelectual e o ficcionista, inaugurando a vertente crítica que considera os jogos intertextuais da produção de Silviano Santiago.

Em Corpos escritos, Wander focaliza estes jogos, definindo-os como uma “operação tradutora”. Sob esta perspectiva, compreende a atividade crítica e criadora pelo prisma borgeano do escritor como leitor, isto é, como tradutor. A leitura é uma operação transgressora que desintegra a noção de propriedade autoral, fazendo desaparecer o pai da escrita e a autoridade paterna, configuração chave para se destruir a noção pejorativa de plágio. Localizamos nessa operação transgressora os processos de transmigração acionados constantemente pela  escrita de Silviano.

Inicia-se assim uma tradição que encontra no simulacro a possibilidade de construção de uma literatura que não se determina pela expressão de um eu exclusivo, e que persegue a aventura do texto de se ler e reler. O aparato conceitual utilizado por Wander Melo Miranda está afinado com o campo do conhecimento em que se situa o pensamento do teórico e do professor Silviano Santiago – o pós-estruturalismo de Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze – o que propicia uma compreensão verticalizada das rupturas e reversões empreendidas pelo texto Em liberdade, desconstruindo gêneros e tipologias estabelecidas.

A recorrência desses diversos críticos a essas migrações traduz alguns aspectos que devem ser considerados. Em primeiro lugar, os trânsitos são estabelecidos pela própria produção de Silviano, sob perspectivas distintas. É ele, portanto, que embaralha e lança as cartas do jogo de remissões, e o faz de maneira vigorosa, em excesso, pois o movimento dos fluxos migratórios transborda em todas as direções – do teórico para o crítico, do crítico para o historiador, do historiador para o professor, do professor para o pesquisador do CNPq, destes para o ficcionista, para o poeta, para o dramaturgo, destes, por sua vez, para o teórico-crítico-historiador-professor-ensaísta, recorrendo, nesse movimento, a outras migrações que mobilizam trocas transculturais (a viagem ao México é portuguesa, européia, brasileira, latino-americana e africana), transdiscursivas (literatura e mpb e cinema e teatro e artes plásticas e política e cultura), transdisciplinar (antropologia e história e sociologia e filosofia e psicanálise), transmigratórios (ser e escrever com Graciliano Ramos, Antonin Artaud,  Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Oswaldo de Andrade, Guimarães Rosa, Jacques Derrida, Michel Foucault, Jacques Lacan, S. Freud, F. Nietzsche....) Compreendemos todos estes fluxos como estratégias de atuação de um intelectual periférico que se dão em diferentes instâncias, através das quais são revertidos valores literários e culturais, através de incessantes diálogos.

O descentramento que se constitui como um dos pressupostos das teorias contemporâneas é, para Silviano Santiago, uma obsessiva questão política e ética, como já frisou Ítalo Moriconi. A transdiscursividade operada em seus textos de maneira tão rigorosa e exuberante sustenta a possibilidade desses descentramentos, que se monta apelando para desterritorializações e reterritorializações textuais, existenciais e institucionais,  conseqüentemente, exigindo uma leitura que se faz acompanhando o seu nomadismo, no sentido de apreender as cenas de atuação desse sujeito que, para escrever, inventa-se monstro. Ou seja, inventa-se outro. Mas é por se constituir como outro, é por encorpar as marcas da diferença – aquelas que bordejam as margens da literatura e da cultura e que deixam vir a tona os temas ligados às microestruturas de repressão moderna , como as questões dos povos colonizados, dos loucos, dos homossexuais, e é também por habitar um entre-lugar enquanto possibilidade de diálogo transgressor com uma tradição, que a voz d desse intelectual das margens pode se deslocar e reverter valores.

 

 

 

 

Notas

 



[1] SANTIAGO, Silviano. Epílogo em 1ª.pessoa: eu & as galinhas d”angola. In: SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre; crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004,  p.242-252.

 

[2] Entrevista de Silviano Santiago, concedida à Helena Bomeny e Lúcia Lippi Oliveira. In: Estudos  Históricos, Arte e História. n.30.2002/2, p. 9.  (www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/336pdf , em 13/02/2005).

 

[3] Idem. p. 16.

 

[4] Idem. p. 26.

 

[5] Margens/Márgenes, Revista de Cultura. Belo Horizonte:Buenos Aires: Mar del Plata: Salvador: Roma:  n.1, julho de 2002;  n.6/7, jan./dez.2005

 

[6] Sobre esta problemática, ver a tese de Rachel Esteves Lima, A crítica literária na universidade brasileira. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 1997.

 

[7] SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra; ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 36.

 

[8] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 16ª.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

 

[9] SANTIAGO,  Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro:Rocco, 1995. p.11-18.

 

[10]  SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 18.

 

[11]  Lucia Helena. Olhares em palimpsesto. SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo. Navegar é preciso, viver: escritos para Silviano Santiago.Belo Horizonte:Editora da UFMG; Salvador:EDUFBA; Niterói:EDUFF, 1997. p.76-88.

 

[12] Idem, p. 80.

 

[13] Ivete Lara Camargos Walty .O eu migrante:crítica e ficção em Viagem ao México. Op.Cit. nota 13, p.157-169

 

[14] .Ítalo Moriconi. Improviso em abismo para homenagem. Cf. Op.cit. nota 13, ( p.53-60), p.55.

 

[15] Idem, p. 55.

 

[16] Ana Maria Bulhões de Cravalho. Ich Bin Der Und Der. idem,  p.197-216.

 

[17] Rachel Esteves Lima. A crítica cultural na universidade. Idem. p..170-186.

 

[18] Marília Rothier Cardoso. Lições de leitura. Idem. p.143-156.

 

[19] MIRANDA, Wander Melo.Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: UFMG. 1992.

 

Gustavo Bernardo – Breve leitura do conceito de mestiçagem

 

O ensaio que me coube comentar no presente encontro, intitulado “Mestizaje and the Inversion of Social Darwinism in Spanish American Fiction”, é assinado por Julie Taylor e George Yúdice e foi publicado em: VALDÉS, Mario J., KADIR, Djelal (eds.). Literary cultures of Latin America. New York: Oxford University Press, 2004 (Volume III, páginas 310 a 319). O ensaio examina o legado do Darwinismo Social nos discursos da mestiçagem e da transculturação na América Latina nas décadas de trinta e quarenta do século XX.

Pretendo inicialmente resumi-lo em suas principais linhas argumentativas, evitando detalhar seus exemplos, que o leitor deve procurar no texto propriamente dito. Em seguida a essa breve síntese, pretendo tirar algumas conseqüências para o campo de estudo do nosso Grupo de Trabalho, a saber, a Literatura Comparada. Em um terceiro momento, pretendo levantar uma outra possibilidade de abordagem teórica, comparando o texto com outros dois pensadores brasileiros que trataram do mesmo tema de maneira radicalmente diferente.

Antes de dar esses três passos, porém, cumpre alertar os ouvintes e, mais tarde, os leitores, quanto a minhas próprias limitações neste comentário. Primeiro, advirto que a visada do texto, de cunho eminentemente sociológico, é bem diversa daquela pela qual estudo e “enxergo”, se posso dizer assim, há tempos, a saber, uma abordagem bem mais filosófica. Segundo, advirto para o que pode ser observado a olho nu, a saber, que este que vos fala pode ser considerado mestiço de, no máximo, alemão com português, ambos “excessivamente” brancos. Logo, parece sensato que ouvintes e leitores mantenham um pé atrás quanto às considerações seguintes.

Dito isso, podemos começar.

 

Síntese do texto

 

Mesmo recentemente, o discurso da transculturação é caracterizado por muitos críticos, principalmente por muitos críticos literários, como um reconhecimento válido para a contribuição do oprimido (digamos como nos anos sessenta) e, em conseqüência, para a formação da nacionalidade na América Latina. Os autores do ensaio, entretanto, criticam essa concepção porque vêem nela uma concepção darwinista, inadequadamente importada da Biologia para a Sociologia. Eles observam que no imaginário dos discursos tanto de direita quanto de esquerda o elemento “oprimido e colorido”, ora condenado ora valorizado, acaba sendo de algum modo condenado, por instável, a algum tipo de extinção ou de incorporação pelo elemento branco, pelo elemento white.

Depois dessa introdução, no primeiro segmento do texto, intitulado “Modernity and Mestizaje”, os autores lembram que, no século XIX, via-se a mestiçagem como um obstáculo à modernização. Por volta de 1930 é que os intelectuais de muitos países começaram a inverter o valor da mestiçagem, incorporando-a a seus projetos de nação. O Darwinismo Social, entretanto, foi incorporado à nova teoria, só que com os sinais trocados. Ainda permanecia implícito, todavia, o valor negativo da raça supostamente inferior.

Pensadores latino-americanos do XIX, como o brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, o boliviano Alcides Arguedas e os argentinos Carlos Bunge e José Ingenieros (autor de um ensaio muito importante do pensamento de direita no continente, chamado El hombre mediocre), previram que as raças inferiores desapareceriam graças à sua inaptidão para se adaptarem à modernidade. Particularmente desacreditados seriam, antes dos negros, os mestiços, considerados degenerados e inapropriados para a vida moderna.

As supostas implicações patológicas da miscigenação podem ser melhor vistas nos primeiros trabalhos do cubano Fernando Ortiz, que mais tarde mudaria radicalmente de posição e se tornaria um campeão da transculturação. Nos seus primeiros trabalhos, ele dizia que a hibridização cultural não elevaria os negros e provocaria a regressão dos brancos: “in other words, whites turn black”.

Por volta de 1930, passa-se a se fazer um retrato afirmativo do mestiço, como nos escritos do mexicano José Vasconcelos, que cunhou a expressão “raça cósmica”, do brasileiro Gilberto Freyre, que cunhou a expressão “democracia racial”, e do cubano Fernando Ortiz, que em seus últimos trabalhos desenvolveu exatamente a “teoria da transculturação”, reconhecendo a contribuição fundamental dos negros à cultura cubana. Acompanhando esses pensadores, alguns movimentos latino-americanos passaram a celebrar aspectos da transculturação, como o Indigenismo no México, o Modernismo no Brasil, o Negrismo em Cuba e o Gauchismo na Argentina.

Esses retratos otimistas da mestiçagem estavam, é claro, diretamente ligados ao contexto político e econômico daqueles anos. O estímulo à imigração de trabalhadores europeus se dava também para compensar as massas “inferiores” de negros, índios e mestiços, vistos como inadequados para trabalhar nas indústrias e nas novas cidades. Para compensar, por sua vez, este discurso negativo, ainda que implícito, políticos e intelectuais propunham uma recriação da identidade nacional através da mestiçagem, de modo a legitimar, pela via populista de governos como os de Getúlio Vargas e Lázaro Cardenas, a continuidade da hegemonia das elites de sempre. A mestiçagem apresentava-se então como a máscara de um contraditório senso comum nacionalista que se quebraria apenas a partir dos anos cinqüenta, quando se evidenciou a necessidade de um projeto sócio-econômico diferente.

Na Venezuela, Rómulo Gallegos, dublê de romancista e político, endossava entusiasticamente a mestiçagem, que considerava parte central do processo civilizatório. Nele como em outros, no entanto, os retratos positivos da mestiçagem não escapavam dos preconceitos do Darwinismo Social. Teóricos como Gilberto Freyre acreditavam na mestiçagem, sim, mas ao mesmo tempo traíam forte esperança de que os traços brancos e da cultura branca predominassem ao final.

No segundo segmento do texto, intitulado “Mestizage and Literature”, os autores comentam que, de 1920 a 1940, proliferaram representações ficcionais da mestiçagem na América Latina, acompanhando, não por acaso, o crescimento de regimes populistas. Uma frase de personagem do equatoriano Adalberto Ortiz é emblemática: “ten siempre presente estas palabras, amigo mío: más que la raza, la classe”. No contexto da novela Juyungo, de Adalberto Ortiz, propunha-se fidelidade não à raça, mas à classe da pessoa, indicando um processo sutil de denegação da raça. Proposições como essa co-existiam com a manifestação de sentimentos anti-imperialistas e com o sonho, ora mais ora menos disfarçado, de branqueamento da população.

O Darwinismo Social se mostrava com mais força na abundância obsessiva de exemplos de degeneração dos personagens, em contradição franca com o retrato positivo da miscigenação. Nos romances, alguns mestiços eram bem sucedidos, mas em circunstâncias bem específicas que quase sempre envolviam fatores genealógicos, isto é, berço. Muitos personagens brancos tomavam para si a tarefa, como agentes esclarecidos, de tutelarem e ensinarem mestiços e mestiças para conduzi-los generosamente à civilização, o que reafirmava, mesmo que inconscientemente, a supremacia branca que se queria contestar.

No terceiro segmento do texto, intitulado “Music, Mestizaje and Melancholia”, os autores observam que a música e a língua tornavam-se os dois campos privilegiados da transculturação. Mas, à medida que se chega a meio do século XX, as esperanças de construção da identidade nacional a partir da transculturação diminuem, levando a finais, nos romances, cada vez mais melancólicos e pessimistas. Mulatos e mestiços, convocados a construir um projeto nacional progressista e para tanto induzidos a deixarem para trás antigas relações e modos de vida, decepcionam-se com o que encontram, assim como seus narradores parecem se decepcionar um pouco com eles. As soluções melancólicas apontam para um fracasso desse projeto nacionalista, mas também para a dificuldade de exorcizar o demônio do Darwinismo Social.

Esse último segmento do texto pareceu-me o mais fraco, quer porque a crítica deixaria o leitor numa espécie de impasse, quer porque os autores convocam, para ajudá-los a destrinchar e usar o conceito de melancolia, o psicanalista Sigmund Freud. Não tenho qualquer preconceito com o trabalho comparativo também de campos discursivos bem diferentes, se o faço com certa freqüência, mas creio que, no caso, os autores precisavam de mais espaço para fazer render o recurso e o psicanalista.

Em contrapartida, a hipótese central do texto, identificando traços de uma teoria de base darwinista inadequadamente importada da Biologia para a Sociologia, tanto na crítica racista à mestiçagem quanto na sua tentativa de recuperação para os projetos nacionalistas e populistas do século XX, me pareceu bastante forte e fecunda. O que me leva ao segundo momento do meu próprio comentário, em que pretendo esboçar algumas conseqüências para o campo de estudo do nosso Grupo de Trabalho, a saber, a Literatura Comparada. Essas conseqüências referem-se, basicamente, a impasses que ainda hoje afetam o ensino da nossa disciplina.

 

Problemas do Ensino

 

Digamos, bem grosso modo, que a disciplina Literatura Comparada venha construindo, com o tempo, três objetivos diversos mas complementares: primeiro, comparar literaturas de línguas diferentes; segundo, teorias da literatura de línguas diferentes; terceiro, comparar campos diferentes de saberes.

A minha prática pessoal tem me encaminhado para o terceiro objetivo, possivelmente o menos “puro”, ao comparar a Teoria da Literatura com a Filosofia, mais especificamente, no presente momento, com o ceticismo filosófico. Esse trabalho, salvo melhor juízo, vem se articulando bem com o segundo objetivo, que ora vem sendo objeto de estudo e discussão do Grupo de Trabalho de Literatura Comparada.

No entanto, não seria adequado esquecer, em nenhum momento, o primeiro objetivo da disciplina, que se pode dizer fundador e original. À comparação entre literaturas de línguas diferentes podemos realizar um exercício de transferência do paradigma crítico do texto ora estudado, entendendo que esta comparação enfatiza ao mesmo tempo dois caminhos teóricos que ora se complementam ora se opõem: se o estudo de literaturas de línguas diferentes, por um lado, valoriza a superação das diferenças regionais em nome de um cosmopolitismo intelectual mais do que necessário, por outro reforça as literaturas nacionais, em conseqüência, os discursos que sustentam as identidades nacionais.

De maneira equivalente, o ensino de Literatura Brasileira, da forma como se apresenta em especial nos níveis fundamental e médio, supõe antes o elogio ou a imposição da identidade “Brasil” do que a fruição ou o estudo da literatura propriamente dita, isto é, da ficção e da poesia de que nacionalidade for. Ora, como vimos no texto de Julie Taylor e George Yúdice, a construção da identidade nacional pela direita ou pela esquerda, pelo colonialismo branco ou pelo elogio, igualmente branco, da mestiçagem, recai em um apagamento das contradições semelhante ao que vimos no ensino de literatura.

Essa questão, que pode ser avaliada como “menor” pela academia universitária, não me parece de forma alguma irrelevante, apontando um nó teórico e pedagógico que, ao invés de ser desatado, vem se apertando cada vez mais. Os cursos de Letras vêm estudando a literatura de acordo com os mais recentes movimentos filosóficos, sempre preocupados em superar o seu ensino ora como “belas-letras”, ora como “aprendizado do amor pela língua-pátria” e, em decorrência, como “aprendizado do amor pela pátria ela mesma”. Num caso ou no outro o ensino é obviamente acrítico. Entretanto, os alunos desses mesmos cursos de Letras, quando voltam para trabalhar nas escolas de ensino fundamental e médio, como que desaprendem tudo para melhor se renderem aos livros didáticos, livros estes que não chegaram ainda sequer aos estruturalismos dos anos cinqüenta.

O quadro que se pinta é caricatural, por generalizar um tanto apressadamente, mas creio não estar muito longe da verdade caso a caso. Contento-me, no entanto, em apenas levantar o problema, que voltará logo adiante no terceiro momento do meu comentário, no qual tento esboçar uma outra possibilidade de abordagem teórica a partir da comparação do texto ora estudado com a obra de outros dois pensadores brasileiros que trataram do mesmo tema, mas de maneira bem diversa.

 

De Vicente a Flusser

 

No meu entender, o texto de Taylor e Yúdice sugere, através da crítica aos impasses do Darwinismo Social no elogio da mestiçagem, essa outra abordagem teórica, mas não a delineia nem a percorre. O discurso encobridor é relativamente bem descoberto pela reflexão dos dois autores, mas fica apenas sem roupa, sem saber direito o que fazer. No entanto, a filosofia, e em particular a filosofia brasileira, tem uma alternativa a esse discurso encobridor e à sua crítica, uma alternativa que podemos dizer dionisíaca e nietzschiana.

Esta alternativa, apesar de já contar com praticamente meio século de idade, não encontra muito eco nem na academia nem nos media, até porque se trata de uma alternativa difícil, provocativa, irônica e, é claro, nada linear. Ela tem dois nomes fortes, em termos do seu discurso incisivo e prolífico, mas fracos, se considerarmos o seu desconhecimento nacional.

O primeiro desses nomes é o do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva, morto precocemente em 1963 (lembre-se, entre parênteses, que Vicente foi marido de uma das maiores poetisas brasileiras, Dora Ferreira da Silva, que faleceu recentemente, em 2006). Per Johns chama Vicente de “o Dioniso Brasileiro”, ou “o Dioniso Sacrificado”, apontando para o recalque do seu pensamento entre nós.

Vicente tinha uma visão do brasileiro, portanto do mestiço e da mestiçagem, que passava pela festa mas não passava nem de longe pelo exótico para turistas que Gilberto Freire tangenciou. A festa ferreiriana implicava um teatro trágico e cotidiano que assumia a dor sempre na sombra do prazer, bem como o contrário, o prazer sempre na sombra da dor. Ele desejava ver o brasileiro menos como homo sapiens do que como homo ludens, do que como homem-do-jogo e homem-do-gozo.

O segundo dos nomes a que estou me referindo é o de um discípulo e, ao mesmo tempo, adversário de Vicente Ferreira da Silva. Trata-se do filósofo tcheco Vilém Flusser, que viveu no Brasil mais de trinta anos e se naturalizou brasileiro. Abraham Moles o considerava o maior filósofo brasileiro. Renato Janine Ribeiro, em diferentes palestras, como no Encontro da Anpoll em Gramado, recentemente, tem lembrado que Vilém Flusser é o único pensador brasileiro lido e citado freqüentemente no exterior.

Partiu de Flusser, o eterno migrante, a crítica mais contundente ao patriotismo e suas manifestações inevitavelmente kitsch. Para ele, o patriotismo é sintoma claro de enfermidade estética, porque fetichiza abstrações convenientes tão-somente a dominadores de direita e candidatos (de esquerda) a dominadores. Ora, aceitar o patriotismo como sintoma de enfermidade estética implica desconfiarmos fortemente do que ensinamos sob o rótulo de “Literatura Brasileira”. Implica desconfiarmos também, e com a mesma intensidade, do rótulo em si, da disciplina “Literatura Brasileira”, porque deixa suposto como algo já dado que exista coisa tal.

Este comentário não o impediu de se deter, como objeto privilegiado da sua investigação filosófica, não sobre o Brasil, propriamente, mas sim sobre o brasileiro, esse ser eminentemente mestiço. Ele o fez num livro meio perturbador e meio delirante, mas fundamental, chamado A fenomenologia do brasileiro. Vilém o escreveu primeiro em alemão, no Brasil, e depois ele mesmo o traduziu para o português, provavelmente quando já voltara para a Europa, em 1973. Ele foi publicado também nessa ordem lingüística: primeiro em alemão, em 1994 (post mortem), sob o título Brasilien oder die Suche nach dem neuen Menschen: Für eine Phänomenologie der Unterentwicklung, e depois em português, pela Editora da UERJ, em 1999, sob o título Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem.

É do lugar-entre que Flusser desenha a sua fenomenologia do brasileiro. Reconhecendo no homem ente essencialmente perdido, toma por bússola, paradoxalmente, a sensação de desorientação, a angústia do beco sem saída. Este momento, fugaz mas crucial, o obrigava a dar o passo para trás de si mesmo: retroceder, para imaginar, depois compreender e, por fim, agir decididamente. Ora, estas seriam as fases do encontro consigo mesmo: distância, imaginação, conceito e ato — as fases que configuram identidade e, por via de conseqüência, caráter. Configurar o caráter lhe permite configurar um novo mapa do Brasil e deste ser compósito chamado brasileiro, sabendo, muito claramente, que “mapas verdadeiros não podem existir e, portanto, não existem” — até porque seriam desnecessários, se existissem.

Para entender o brasileiro e entender-se brasileiro, Flusser precisava tomar distância e assumir sua estrangeiridade, como o mostra em trecho do ensaio Natural:mente (publicado em português pela Livraria Duas Cidades): “Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o do­mina. Mas o domina tragicamente: não se integra. O cedro é estran­geiro no meu parque. Eu sou es­trangeiro na França. O homem é estrangeiro no mundo.”

Esta condição — estrangeiro no mundo — lhe permitiu duvidar do sentido de termos como Primeiro Mundo, Terceiro Mundo, História, Fim da História, duvidando de todos sem, necessariamente, desesperar por nenhum. Para fazê-lo, foi preciso dar aquele passo para trás de si mesmo que outro passo não é do que o movimento de suspensão da crença, do que o movimento fenomenológico por excelência: a sua epoché brasileira. Assim, pôde iluminar vários setores da cena brasileira: “imigração”, “natureza”, “defasagem”, “alienação”, “miséria”, “cultura”, “língua”. No ensaio, realizou a sua descrição fenomenológica de um Brasil vivido, “para servir de mapa, por analogia e contraste, a uma humanidade tão perdida quanto o é o próprio ensaio”.

Para fazer o contraponto direto com o ensaio de Julie Taylor e George Yúdice que aqui comento, gostaria de trazer um pequeno trecho do capítulo de Fenomenologia do brasileiro chamado, justamente, “Miséria”. Com esse texto, tento deixar ouvintes e leitores eventuais em situação equivalente à minha, quando recebi um texto rigorosamente novo para comentar no Encontro do GT de Literatura Comparada.

Fecho meu ensaio, portanto, com o pensamento de Vilém Flusser sobre a miséria:

 

O termo “miséria” tem, em muitas línguas, inclusive em português, uma conotação que aponta avareza. Em alemão, no entanto, significa, em uso antigo, “viver alienado”— im Elend leben. Línguas são, entre outras coisas, tesouros de sabedoria das gerações, e não é o pior dos pontos de partida para resolver um problema consultar línguas a respeito.

Mas, no presente caso, como interpretar “miséria” enquanto alienação e avareza? Por exemplo assim: avareza é resultado da auto-entrega alienada a coisas (Selbstentaeusserung), que passam a serem acumuladas para reencontrar-se nelas, e isto é miséria humana. Mas tal miséria não é o que o termo pretende, via de regra. De modo que a sugestão lingüística deve ser arquivada para uso posterior, embora notada.

O termo significa, via de regra, em contexto econômico, carência acentuada. O aparente contrário seria excesso. Mas desde já a sugestão lingüística adverte: há miséria do excesso. A misère noir da riqueza excessiva, a couleur grise de l’argent que marca os rostos dos capitalistas, visível até na face, queimada pelo sol, dos playboys. De forma que excesso não é o contrário da miséria, mas sua outra forma. É importante notá-lo. O excesso é miséria, porque tem a ver com dependência de coisas. Tem a ver com reversão da relação “homem-coisa”, na qual a coisa deixa de funcionar em função do homem e o homem passa a funcionar em função da coisa. De forma que o homem deixa de possuir coisas e passa a ser possuído e possesso por elas. Este tipo de miséria é alienação por excesso. Portanto a miséria por carência, por ser miséria também, deve ter estrutura semelhante. A saber: também deve estar relacionada com dependência de coisas, com falta de liberdade. A estrutura pode ser assim formulada: na carência o homem é miserável, porque coisificado e apertado por coisas que lhe faltam, e neste sentido radicalmente escravo. No excesso o homem é miserável, porque coisificado e apertado por coisas em excesso, e neste sentido (embora secundário), tão escravo quanto.

(...) Viver comodamente no Brasil a rigor é possível apenas porque a imaginação humana é limitada. Não se imagina sempre a miséria simultânea dos milhões, e vive-se comodamente. Aliás, tal miséria é realmente inimaginável.

Mas quem procura imaginá-la descobre imediatamente que se trata de várias formas de miséria, incomparáveis entre si, e causadas por fatores incomparáveis. Serão dados quatro exemplos. A miséria do caboclo que vegeta no deserto à beira do rio São Francisco é o primeiro. Come feijão preto podre em lata de gasolina, bebe água verde-escura do rio, e sua mulher foge ao aproximar-se um jeep, por medo de jagunço. A miséria da família nordestina em São Paulo é o segundo. Acampa sob viaduto, vive de refugos da cidade e de mendicância, a roupa mal lhe cobre a nudez, seus incontáveis filhos expõem barrigas inchadas, suas mulheres de idades inadivinháveis esperam outros filhos, e todos executam os gestos mais íntimos e fisiológicos publicamente, como se não existissem os transeuntes (comerciantes e juventude escolar), os quais em certo sentido realmente não existem, já que os dois mundos se esforçam por não tomar nota um do outro. Esta gente foge de uma patrulha da polícia pouco provável como foge a mulher do caboclo de jagunço igualmente pouco provável. A miséria da mulher proletária é o terceiro exemplo. Carregada de compras duramente ganhas e exatamente calculadas procura passar ela por entre o caos de automóveis que buzinam loucamente para alcançar sua fila de ônibus sob calor inclemente, ônibus este que a transportará aos trancos e comprimida entre dezenas de sofredores como ela até a periferia da cidade. A miséria da mãe proletária é o quarto exemplo. Espera ela em delegacias inacreditavelmente sujas e desorganizadas para saber do filho que se perdeu possivelmente nos labirintos de um aparelho policial e judicial supercomplexo e mal administrado, e pede tal informação de um funcionário semi-alfabetizado, indolente e indiferente, que manifesta seu desprezo cavucando os dentes com palito e emitindo obscenidades.

 

 

Com Flusser e sua reflexão, quero, obviamente, chamar a atenção para o óbvio: o conceito e a questão da mestiçagem estão intrinsecamente atrelados ao conceito e à questão da miséria, e como tal devem estudados e pensados.

 

Luiz Roberto Cairo – Eneida Maria de Souza e o discurso crítico brasileiro

 

Poucos são os textos que apresentam um panorama analítico sobre a crítica literária brasileira da segunda metade do século XX. Dentre a escassa bibliografia sobre o assunto, vale lembrar os ensaios “A paixão crítica”, de João Alexandre Barbosa e “Rodapés, tratados e ensaios”, de Flora Süssekind, ambos publicados no final dos anos 80, inicialmente, no Folhetim, Suplemento cultural da Folha de São Paulo, e, mais tarde incluídos, o primeiro, na coletânea, A leitura do Intervalo, e o segundo, em Papéis colados. No entanto, Barbosa apresenta um panorama da crítica brasileira de 1870 a 1950 e 1960, Süssekind revê a tradição crítica da primeira metade do século XX, enfoca a polêmica dos rodapés e inventaria a crítica universitária da segunda metade deste mesmo século, sem apontar para a mudança paradigmática, em processo a partir dos anos 80.[1]

Neste sentido, é que o texto de Eneida Maria de Sousa, publicado inicialmente na revista Interventions, com o título “The debate on cultural dependence in Brazil”, em 2000, constitui um ensaio único, inscrevendo-se mesmo como um clássico da ensaística brasileira na linhagem de “Literatura e subdesenvolvimento”, de Antonio Candido, ponto de partida da reflexão da autora.

“O discurso crítico brasileiro” está estruturado em três partes: uma parte introdutória, outra, com o subtítulo “O mal estar da dependência e a alegria antropofágica” e uma terceira, com o subtítulo “Vanguarda e subdesenvolvimento”.

Na Introdução, Souza trata da metodologia, dos conceitos a serem operacionalizados no texto, deixando claro que

 

Quanto ao seu aspecto teórico, essa reflexão é ainda tributária da contribuição da crítica cultural, que entende ser a leitura dos conceitos um procedimento contextualizado, variando conforme as circunstâncias do momento em que foram elaborados.

 

Observando também que:

 

A operação analítica realiza-se através do gesto de ressemantização conceitual, direcionada não só quanto aos empréstimos, como em relação às diferentes reciclagens operadas na cultura nacional. Pretende-se analisar o discurso crítico a partir de parâmetros que o coloquem em situação de mobilidade frente ao olhar analítico do presente.

 

Partindo do princípio de que:

 

O estreito laço entre modernização e transculturação – uma das articulações teóricas a serem operadas neste texto – conduz a diferentes pontos de vista quanto ao tema da dependência, levando-se em conta ora o descompasso entre as idéias importadas e a sua atualização nos países periféricos, ora a aceitação do atraso como ardil para a aquisição dos empréstimos culturais. (SOUZA, 2002, p. 47)

 

O conceito de transculturação conduz o pensamento da crítica mineira ao uruguaio Ángel Rama, que, ao propor o estudo da “transferência” ou da “transitividade cultural”, enfoca “as relações entre universalidade e identidade nacional, modernização e projeto político de homogeneização social” e “a constituição de discursos contraculturais em sociedades neocoloniais, marginalizadas e dependentes”. (2002, p. 47)

As definições de Rama são ampliadas para a abordagem das “relações culturais de modo mais abrangente” (2002, p. 47-48), conforme revisão feita pela crítica latino-americana Mabel Moraña, uma vez que Rama se voltara mais para a série literária.

Considerando que “a substituição da hegemonia do mercado promove, nos dias atuais, modificações de ordem epistemológica, ocasionando a troca de paradigmas vigentes no período compreendido entre a década de 1920 e a de 1970” (2002, p. 48), Souza opta por tomar como parâmetro o que chama de “metáfora espacial”, ou seja, “a América Latina como produtora de uma epistemologia ligada à sua condição geográfica periférica e historicamente localizada”, (2002, p. 48) a que se poderão anexar outras metáforas, ou seja:

 

- metáfora temporal, em que se articulam a memória colonial e o esquecimento dos modelos, a recepção tardia da modernidade metropolitana, nos países periféricos e a ideologia do desenvolvimento e da dependência;

- metáfora econômica, construída pelo sistema de trocas entre culturas, dos ganhos e prejuízos trazidos pela colonização e interpretados pelo signo da riqueza, do lucro, da dívida e do empréstimo;

- metáfora orgânica, traduzida pelo sistema composto por elementos e processos naturais, transportados para a cultura, como raiz, árvore, frutos, rizomas, transplante, enxerto;

- metáfora comercial, compreendendo os desdobramentos da operação transcultural relativos ao tráfico e ao roubo de idéias, ao contrabando e ao plágio como estratégias de resistência à literatura dos países colonizados;

- metáfora alimentar/ritualística, que incorpora práticas indígenas para a construção de estratégias de forças nacionais na luta contra o outro da metrópole, como a antropofagia oswaldiana e a “estética da fome”, de Glauber Rocha. (2002, p. 48)

 

Na segunda parte, “O mal estar da dependência e a alegria antropofágica”, Souza irá revisitar e, conseqüentemente, analisar textos de intelectuais brasileiros, que, a partir dos anos 50, trabalharam de alguma maneira aquelas metáforas nomeadas. São textos emblemáticos da interpretação da cultura brasileira.

O primeiro deles, conforme já foi dito, é “Literatura e subdesenvolvimento”, de Antonio Candido, publicado pela primeira vez, em tradução francesa de Claude Fell, nos anos 70, na revista Cahiers d’Histoire Mondiale, e, em seguida, incluído na coletânea de ensaios intitulada América Latina en su literatura, coordenada por César Fernández Moreno e editada no México, em 1972, pela Siglo Veintiuno. Ambas, publicações sob a chancela da UNESCO.[2]

Candido aborda a questão da dependência, operando com uma divisão em duas etapas, emprestada de Mário Vieira de Melo: país novo, consciência amena do atraso, para o período de 1920 até a década de 1940, e país subdesenvolvido para a década de 50 em diante. Ao tomar este ensaio como ponto de partida, Souza acaba oferecendo ao leitor uma reflexão sobre a etapa seguinte, ou seja, a do país em desenvolvimento, ampliando a divisão de Melo e prosseguindo, sob perspectiva diversa, o panorama da crítica brasileira apresentado por Candido.

O texto do crítico carioca, radicado em São Paulo, leva a autora ao ensaio “Atração do Mundo” de Silviano Santiago, no qual ele interpreta a visão do autor da Formação da literatura brasileira como correlata à de Joaquim Nabuco, intelectual da passagem do século XIX para o XX, “dividido entre uma tradição cultural européia consolidada e a realidade brasileira, carente de uma tradição, e vista como inferior.”(2002, p. 50) O fato de Candido ter-se utilizado de uma metáfora orgânica no Prefácio à Formação, texto de 1959, reforça esta aproximação, e leva Souza ao texto “Para lá das fronteiras: literatura e subdesenvolvimento de Antonio Candido”, de Renato Cordeiro Gomes, no qual ele vai observar que “o vínculo com as literaturas européias é placentário, não é opção (...) É a maneira de nossa inserção no universal, visto como o ocidental europeu.” (2002, p. 51).

Esta observação faz emergir a persistência da discussão sobre a identidade nacional, condenada a oscilar entre o local e o universal, o mesmo e o outro, a civilização e o primitivismo, o moderno e o arcaico” (2002, p. 51) que, por sua vez, conduz a autora ao texto Sentimento da dialética (1992), de Paulo Eduardo Arantes, em que ele analisa as posições distintas quanto à valorização das vanguardas no processo de descolonização colonial do Candido (“desrecalque localista”) e de Roberto Schwarz (“poesia pau-brasil oswaldiana como representação literária centrada no mito progressista conservador”) frente ao

 

(...) dilema dos efeitos da transculturação que se manifesta ora através da dialética positiva – Oswald de Andrade e a poética pau-brasil, o tropicalismo dos anos 1960 – ora pela dialética negativa – Machado de Assis e a lição do descompasso entre a modernização capitalista  e a experiência brasileira. (2002, p. 51)

 

Isto leva Souza a nos trazer a formulação de Paulo Emílio Sales Gomes sobre “o mal-estar da sociedade brasileira diante do processo de modernização”, nas décadas de 1960 e 1970:

 

Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. (2002, p. 52)

 

O texto de Sales Gomes a conduz à resposta de Roberto Schwarz, em “As idéias fora do lugar” (1977). Para Souza,

Expressões como “descompasso”, “mal-estar”, “torcicolo cultural”, traduzem a preocupação de Schwarz em apontar a defasagem entre as idéias importadas e a sua recepção num contexto social diferenciado do europeu. Enquanto a modernização européia se baseava na autonomia do indivíduo, na universalização da lei e na ética do trabalho, no Brasil, a cultura do favor, antimoderna como a escravidão, prega a dependência pessoal, a exceção à regra e a remuneração de serviços pessoais. (2002, p. 52)

 

Cinco anos antes do ensaio de Schwarz, porém, Silviano Santiago havia escrito “O entre-lugar do discurso latino-americano” e, nele, Souza observa que o crítico mineiro

 

subverte as antigas antinomias e hierarquias próprias do discurso do colonizado e ocidental, propondo a reflexão sobre a dependência cultural com base no pensamento crítico da filosofia francesa e na grande lição americana de Borges, desconstrutor de origens e de modelos da literatura mundial. (2002, p. 52)

 

A lição relevante de Santiago, nas palavras de Souza está no fato de o entre-lugar não se tratar de “uma abstração filosófica fora do lugar, mas de uma posição que visa representar a cultura brasileira entre outras, retirando novos objetos teóricos das obras ensaísticas e ficcionais”. (2002, p. 52-53)

Em seguida, Souza registra a publicação de “Apesar de dependente universal”, ensaio de 1980, onde Santiago reforça sua posição frente à visão de Schwarz, que, em 1987, vem a publicar “Nacional por subtração”, reacendendo a polêmica também com Haroldo de Campos.

Antes disso, porém, Souza observa que, em 1981, Luiz Costa Lima publica “Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil”, no qual “repudia a tradição do discurso ensaístico brasileiro, pautado por um certo tipo de cultura auditiva, inimiga da exposição argumentativa e sistemática do pensamento”. (2002, p. 54)

Após as considerações sobre Costa Lima, o texto “Oswald de Andrade: ou o elogio da tolerância racial” (1990), de Roberto Corrêa dos Santos, ao ressaltar a leitura original da contribuição modernista de Santiago, acaba fornecendo um novo olhar sobre o projeto modernista, abrindo espaço para a interpretação centrada na metáfora alimentar ritualística que irá embasar e revitalizar a visão de Souza da antropofagia.

Prosseguindo, detém-se na discussão sobre o projeto modernista e os impasses de Mário de Andrade, encerrando “O mal-estar da dependência e a alegria da antropofagia” com o fragmento de Santiago, no qual ele diz

 

Oscilando entre o pioneiro e o que é etnocêntrico, aflora o nacionalismo pragmático de Mário de Andrade, que não é uma ‘resposta definitiva”, mas uma ‘solução provisória’, como alerta Gilda de Mello e Souza em “Vanguarda e nacionalismo na década de vinte”. Pelo sim e pelo não, é no nacionalismo pragmático que fica a lição de atualidade de Mário. Uma estratégia desconstrutora do processo infernal de ocidentalização do Brasil. (2002, p. 60-61)

 

A última parte do ensaio “Vanguarda e subdesenvolvimento” é centrada na leitura do momento desenvolvimentista dos anos 50/60, conseqüência da defasagem entre a transculturação e a modernização ocorrida nas décadas anteriores.

A retomada da consciência do subdesenvolvimento, já em germe no projeto antropofágico de Oswald de Andrade, pelo Concretismo na literatura, pelo Abstracionismo nas artes plásticas, pela Bossa-nova na música, pelo Cinema Novo e, no final dos anos 60 e início dos anos 70, pelo Tropicalismo, revisa a antropofagia, refuncionalizando a interpretação calcada na metáfora alimentar/ritualística, opção da autora.

Souza encerra o ensaio, dizendo:

 

Se a resposta se detiver no programa cultural modernizante do Estado, instaurado na década de 1930 no Brasil, com a ajuda dos mais importantes intelectuais modernistas, o outro lado da moeda transculturadora reflete não só o descompasso entre ideais literários e nacionalização estatal, como também a abertura dos países periféricos para a universalização cultural, marcada pela modernização indiferenciada e homogeneizadora. A consciência da complexidade conceitual que estrutura todo este raciocínio permite, portanto, o desdobramento infinito de posições pós-modernistas, responsáveis pelo encaminhamento da discussão em torno da transculturação. (2002, p. 64)

 

Antes de concluir este texto, gostaria de fazer duas observações a respeito do eventual diálogo do Modernismo e Pós-modernismo com a tradição crítica do século XIX.

A primeira diz respeito à origem da metáfora alimentar/ritualística que pode ser encontrada na tradição crítica brasileira do século XIX, na lei da obnubilação brasílica, inventada por Araripe Júnior (1848-1911), na tentativa de explicar a transformação por que passavam os europeus ao atravessarem o oceano Atlântico e a sua conseqüente adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo, por eles encontrado na América, principalmente, nas terras brasílicas.

Conforme se depreende da leitura do texto de Araripe Júnior, a lei da obnubilação brasílica se aplica não apenas ao modus vivendi dos europeus que fizeram a travessia do Atlântico para a América, mas também ao nível das idéias que, ao serem transplantadas, adaptaram-se ao meio ambiente, adquirindo uma certa originalidade, que se traduziu no que ele veio a chamar de estilo tropical, marca da brasilidade, da americanidade, que distingue as obras literárias produzidas no Brasil, na América, daquelas produzidas na Europa.

 

 (...) os poetas da nova geração brasileira, os novos romancistas que surgem, rebolcando-se no azul e na luz tropical, em um estilo doido de cores, de tintas gritadoras, ungindo-se, na sua proverbial indolência, nuns tons orgíásticos de imaginação inominada. (Araripe Júnior, 1960, II, p. 69)

 

Desta forma, a incorreção do estilo, falha reiteradamente apontada nos textos dos brasileiros pelos europeus, particularmente pelos portugueses, quando ligada à contextura do espírito da terra deixa de ser defeito e passa a ser qualidade, uma vez que constitui a marca da diferença, ou seja, o sinal que define o estilo tropical, característico dos textos produzidos no Brasil, e que os distingue do estilo dos textos europeus.

Para Araripe Júnior:

 

O tropical não pode ser correto. A correção é o fruto da paciência e dos países frios; nos países quentes, a atenção é intermitente. (...) O estilo, nesta terra,  é como o sumo da pinha, que, quando viça, lasca, deforma-se, e, pelas fendas irregulares, poreja o mel dulcíssimo, que as aves vêm beijar; ou como o ácido do ananás do Amazonas, que desespera de sabor deixando a língua a verter sangue, picada e dolorida. É esse estilo desprezado pelos rigoristas que justamente me apraz encontrar na mocidade que agora surge no Brasil; (...). (1960, II, p. 70-71)

 

Partindo do pressuposto de que os europeus, quando aqui chegavam, perdiam a sua identidade, adquirindo uma outra, por força do fenômeno da obnubilação, os textos por eles produzidos no Brasil já apresentariam, conseqüentemente, marcas de um novo estilo, o estilo tropical, característica definidora do gênero brasílico. Seriam, portanto, textos de literatura brasileira.

Desta forma, entende-se porque Araripe Júnior considerava importante a inclusão dos textos dos cronistas da época colonial na história da literatura brasileira. Assim vistos, constituíam, sem sombra de dúvida, textos de autores brasileiros:

 

Portugueses, franceses, espanhóis, apenas saltavam no Brasil e internavam-se, perdendo de vista as suas pinaças e caravelas, esqueciam as origens respetivas. Dominados pela rudez do meio, entontecidos pela natureza tropical, abraçados com a terra, todos eles se transformavam quase em selvagens; e se um núcleo forte de colonos, renovado para contínuas viagens, não os sustinha na luta, raro era que não acabassem pintando o corpo de jenipapo e urucu e adotando idéias, costumes e até as brutalidades dos indígenas. (Araripe Júnior, 1960, II, p. 407)

 

 

Sob a ótica da obnubilação brasílica, vale ressaltar a leitura por ele realizada de José de Anchieta, em que observou a diluição do misticismo do jesuíta em um curioso naturalismo e a transformação da teologia em fetichismo:

 

(...) a sua vida entre os selvagens e o seu prestígio contra os sacerdotes índios atestam que este padre, se não por imposição do meio ao menos por arte refinada, se fez um legítimo pajé. A missão do taumaturgo brasileiro, como o chamavam, nas florestas do Sul, não se pode explicar senão pelas feitiçarias, aceitas ou habilmente copiadas, dos piagas, e com que ele catequizou os seus caboclos. (Araripe Júnior, 1960, II, p. 407-408)

 

Ainda sob este mesmo ponto de vista, convém chamar a atenção para a leitura que fez da transformação por que passou o modelo naturalista europeu na literatura brasileira:

 

Zola, neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao sentimento do real, aqui. O fato é intuitivo, e eu direi por quê. A concepção do mestre, os seus métodos de expectação, os seus processos experimentalistas, tiveram em vista uma sociedade decadente, de natural tristonha, que decresce, míngua dentro das próprias riquezas, perante sua antigüidade, cansada, exausta, senão condenada a perecer. No Brasil, o espetáculo seria muito outro, - o de uma sociedade que nasce, que cresce, que se aparelha, como a criança, para a luta. Ora, nada mais natural do que uma inversão nos instrumentos. Um cadáver não se observa do mesmo modo que um ser que ofega de vigor. (Araripe Júnior, 1960, II, p. 71)

 

Ora, aí está a diferença que constitui a afirmação da originalidade e, portanto, a marca da nacionalidade da literatura que, no Brasil, os escritores produziam. Consciente de que o escritor brasileiro para afirmar a sua identidade precisava não só copiar o modelo estrangeiro, mas também recriá-lo e/ou até mesmo superá-lo, Araripe Júnior realmente antecipou o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, constituindo-se assim numa das eventuais tradições na qual se insere o pensamento deste polêmico escritor da vanguarda brasileira de 1922.

A segunda observação refere-se ao impasse apontado por Eneida Maria de Souza num crítico como Mário de Andrade, que já se encontrava também em críticos do XIX, como José Veríssimo (1857-1916) que oscilou com freqüência “na posição do intelectual, acuado entre a profissão de escritor e o apelo em participar da política restauradora do Estado nacional.” (2002, p. 57)

Concluindo, gostaria de enfatizar o prazer da leitura do ensaio de Souza, um importante panorama da crítica brasileira da segunda metade do século XX, que proporciona ao leitor uma revisão da tradição crítica brasileira, ao dialogar com o passado, permitindo uma ruptura com a visão oficial homogeneizante e abrindo perspectiva para a leitura da diversidade cultural que enforma nossa tradição crítica.

 

Notas



[1] Convém registrar a publicação do livro Sobre a crítica literária brasileira no último meio século, de Leda Tenório da Mota, publicado em 2002, pela Imago, bem como a existência da tese de Doutorado A crítica literária na universidade brasileira, de Rachel Esteves Lima, defendida em 1997, no Programa de Pós-graduação em Letras da UFMG. Ambos, textos que apresentam uma leitura menos panorâmica e, portanto, mais verticalizada da crítica de parte da segunda metade do século 20.

 

[2] Em português foi publicado pela primeira vez, no Brasil, em 1973, no n°  1, da revista Argumento, e, em 1979, pela Perspectiva, na edição brasileira da coletânea mexicana. Em 1987, o texto foi incluído no livro de Antonio Candido, A educação pela noite e outros ensaios, editado pela Ática.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Obra crítica (Dir. Afrânio Coutinho). V. II. Rio de Janeiro-RJ: Fundação Casa de Rui Barbosa/MEC, 1960.

 

BARBOSA, João Alexandre. A paixão crítica. In: A leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras; Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p. 37-62.

 

SOUZA, Eneida Maria de. O discurso crítico brasileiro. In: Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002, p. 47-66.

 

SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna. In: Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed.da UFRJ, 1993, p. 13-33.

 

Maria Cândida Ferreira de Almeida – Astúcias e dilemas da mestiçagem: a “raça infeliz” como incômodo

 

Ao Tamoio

 

 

A mestiçagem é uma de nossas idéias fundacionais, fruto do processo colonial europeu exercido sobre grupos muito diferentes, com direito a permanência nos discursos sociológicos, espaços epistemológico de sua elaboração, e com ressonâncias estáveis nos discursos estético-culturais. Uma teoria da mestiçagem pós-industrial será também um discurso da ambigüidade que traz implícita uma apologia à diferença e ao modelo de civilização eurocêntrica que tem como requisito a pasteurização da diversidade. A origem dos discursos sobre mestiçagem pode ser estabelecida nas relações coloniais, quando, por um lado, fomos vítimas do rigor contra a origem mestiça, proveniente dos conceitos de “pureza de sangue” da cultura ibérica, e por outro, da necessidade de reversão deste preconceito, já que somos, na maioria, mestiços ou não-brancos e a ocupação dos territórios colonizados dependia da mestiçagem para sua efetivação como forma de aliança das várias etnias implicadas no processo. Assim como, na atualidade, a exigência da promoção de relações cordiais entre os grupos étnicos que formam as nações modernas americanas é necessária para a estabilidade política. Estas questões formaram dois modos de condução do problema na América Latina, como distinguiu Silvina Carrizo: houve uma contínua afirmação da “inferioridade das populações indígenas e todo o seu passado cultural em virtude do progresso e do ingresso no concerto das nações ocidentais”; os intelectuais se debruçaram “sobre o problemas da assimilação dessas culturas e da problemática da mestiçagem cultural”[1], em uma perspectiva por vezes apologética, em outras, apenas resignada.

A permanente oposição entre civilizado e bárbaro, que na cultura pós-industrial e a partir da divulgação da antropologia ganha contornos de oposição entre avançado e primitivo, ou sociedade complexas e sociedades primitivas que subsidia a discussão sobre mestiçagem ganha maior visibilidade em momentos como o das efemérides dos Descobrimentos, quando a louvação da expansão ultra-marítima e, por conseguinte, dos valores ocidentais dá a tônica dos discursos. Mas não é só nestes momentos que eles são produzidos. Julie Taylor e George Yúdice, em um estudo sobre a mestiçagem e o darwinismo social na literatura da América Latina chegam a afirmar que: “Uma leitura atenta destes discursos revela que o diagnóstico degenerativo do darwinismo social do século XIX nunca foi plenamente exorcizado das construções celebratórias das identidades nacionais híbridas”. [2]

O desprestigio das etnias envolvidas no processo de mestiçagem tem uma expressão recorrente, toda vez que queremos dizer que algo não partilha da “universalidade” européia, dizemos que é “tupiniquim”: Tupi or not Tupi permanece como questão estruturadora, e, por conseguinte, hierarquizadora dos discursos culturais brasileiros.

Luis Duno Gottberg[3], lembra que “no Tesoro de la Lengua Española (1611) mestiçagem se define como o produto da mescla de diferentes animais”; literalmente: “o que é engendrado de diversas espécies animais”. As colônias se regeram em consonância com esta definição, e uma complexa estratificação racial, codificada e regulada pelas autoridades imperiais ibéricas, conviveu com um contínuo rechaço institucional às misturas étnicas. A oposição à mistura de raças era empreendida tanto pela Igreja quanto pela Coroa; mas quando acontecia a mescla racial era percebido como “melhoraria” ou como uma “piora” da prole, dentro de um continuo que se aproxima ou se afasta do branco, e neste movimento, como uma aproximação ou como um afastamento da civilização. Duno lembra que as séries de pinturas do século XVIII conhecidas como “As Castas Mexicanas”, dão uns proveitosos exemplos da taxionomia recorrente das classificações coloniais hispano-americanas, ali são mostradas as muitas combinatórias da mestiçagem, assinalando-se um valor social muito explícito ao resultado de tais uniões inter-raciais.  Uma desta obras, uma tela de Ignácio Maria Barredas (1777), foi exibida no Brasil, na XXIV Bienal de São Paulo (1998)[4]; nela são representadas as famílias mestiças compostas por pai, mãe e um filho ou filha, cada cena é acompanhada por uma legenda indicando o tipo de miscigenação que foi encenada: “De espanhol e índio é  mestiço ou cholo”; “De espanhol e mestiça é castiço ou cuarterón”, e assim por diante, configurando dezesseis possibilidades de relações interétnicas. Quanto mais próximas da origem européia estão os personagens envolvidos na miscigenação, a representação pictórica exibe mais bens materiais, pessoas com muita roupa, presença de móveis e foram pintadas habitações mais segura; quanto maior a porção Africana ou Ameríndia, as figuras aparecem sem muitas roupas, casas precárias e exibem gestuais representando trabalho braçal, até uma cena de violência doméstica está ali pintada.

A distribuição da classificação sobre o espaço também hierarquiza as relações envolvidas, os brancos ou mais próximos de uma origem “pura” como um negro que aparece na quarta cena da primeira fileira estão acima, representados da esquerda para a direita de cima a baixo. Os indígenas, objetos de maior interesse do público europeu naqueles anos de iluminismo do século XVIII, são representados em uma grande cena idílica, na qual um casal aparece caçando, outro cuidando dos quatro filhos, e ainda, um homem deitado no chão descansando em meio a natureza; a cena está destacada na parte inferior da tela acompanhados da legenda explicando que os “mecas e mecas cujas castas ainda não misturarão, são todos semelhantes”. 

O modelo de miscigenação hierarquizada que dominou no pensamento brasileiro conformou um topos contra o qual o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro reclama em sua última obra impressa: “O tema das três raças na formação da nacionalidade brasileira tende a atribuir a cada uma delas o predomínio de uma faculdade: aos índios a percepção, aos africanos o sentimento, aos europeus a razão”.[5] Este tipo de representação fundamentou, segundo Matthew Restall,  um dos mitos recorrentes da colonização, o “mito da superioridade das raças”, montado sobre a tautologia: “os espanhóis conquistaram os nativos porque eram superiores, e a prova da superioridade foi o fato de terem conquistado os nativos”[6], mas é sua permanência na contemporaneidade que chama a atenção. Este mito é o fundamento do dilema do conceito de mestiçagem; a mistura étnica, imprescindível na ação colonial e na construção da nacionalidade harmonizada tem como partícipes protagonistas raças ditas inferiores; o que está em jogo são a aproximação e o afastamento dos valores ocidentais e o controle dos conflitos étnicos sob o mito da identidade mestiça.

Durante a fase mais rígida da colonização espanhola, os mestiços eram proibidos de portar armas, de ser caciques ou protetores de índios, de trabalharem como escrivão, corregedor e alcaide, sentar praça de soldado, obter graus universitários e aceder às ordens religiosas, a menos que demonstrassem ser filhos legítimos. As restrições aos mestiços afro-descendentes eram mais severas ainda, eles não podiam andar pelas ruas das cidades durante a noite, montar a cavalo ou ter índios ao seu serviço. As mulatas e negras livres eram proibidas de usar adornos de ouro ou pérolas e de vestir se com tecidos de seda.

Para contornar estas restrições, os atestados de “limpeza de sangue” eram produzidos nas mais diversas formas, não só como documento civil fornecido para que se tivesse acesso aos cargos públicos, aos títulos nobiliárquicos e aos próprios meios de produção, mas também, de forma estritamente discursiva, como a auto-declaração de não mestiço, publicada por Antônio Vieira em um texto introdutório aos volumes da primeira coleção de Sermões[7].  Por outro lado, na trajetória de Inca Garcilaso de la Vega (1539-1616), a mestiçagem indisfarçável que é afirmada pelo título/nome Inca anteposto ao nome espanhol, foi, contudo, minimizada em uma atuação intelectual e política em favor da cultura ocidental, que pode ser percebida em algumas das anedotas reproduzidas nos Comentários reais[8], sua pedra mortuária é índice nesta condição de embranquecimento: 

 

Varão insigne digno de perpetua memória: ilustre em sangue: perito em letras: valente em armas: filho de Garcilaso de la Vega: da casa dos Duques de Feria e Infantado, comentou La Florida: traduziu [do italiano] Leon Hebreo e compôs os Comentários Reais. Viveu em Córdoba com muita religião: morreu exemplar: dotou esta capela: enterrando-se nela: vinculou seus bens em sufrágio das almas do purgatório (...)[9].

 

Para lograr o respeito que alcançou ainda em vida apesar de sua origem, note-se que o nome da mãe aparece disfarçado sob um nome cristão - Elizabeth Palla -, Inca Garcilaso tinha que submeter-se, e conciliou a pluma com a espada, de modo que servindo militarmente aos seus protetores na Espanha pode amealhar alguns benefícios e desenvolver a carreira intelectual. Também, na carreira das letras se revelou como um perfeito renascentista, e os Comentários reais terminam por funcionar, além da história de seus antepassados incas, como uma genealogia nobiliárquica da sua ascendência indígena.

Caso não se empenhasse, Inca Garcilaso de la Vega seria condenado por sua origem. Na produção discursiva colonial, no topos da origem, que congrega as referências à mestiçagem encontram-se “as descrições e os ataques satíricos” que, como definiu João Adolfo Hansen, são “investidos semanticamente da oposição jurídica ‘fidalgo/não-fidalgo’ e categorias dela, como ‘limpo de sangue/sujo de sangue’, ‘bem-nascido/mal-nascido’”[10].  O ataque ao individuo e a sua origem podia ser acrescido pelo ataque à natio (nação), que inclui “raça” e “religião”; a sátira apresentava a ofensa sem dor da vituperação ridícula e a passível de dor da vituperação horrorosa que atacava com especial sandia aqueles que podiam ser incluídos sob o epíteto de “gentio” e “mameluco”: mestiços, escravos ou bárbaros sem fé.

Esta desqualificação sistemática conviveu sempre com a negociação necessária para o processo de colonização, o que torna mais exemplar o caso de Inca Garcilaso. Índias foram declaradas princesas, tornaram-se matriarcas de famílias mestiças, como foram Catarina Paraguassu e a própria Malinche, “mãe do primeiro mestiço”, mulheres fundadoras e poderosas, que sobrevivem na circularidade do mito produzido dentro da lógica da dominação. Quero dizer com toda esta introdução que a mestiçagem não é uma estratégia ideológica do século XIX, ela tem seus princípios nos princípios mesmo da ocupação das Américas, por isto o título deste trabalho apela para a noção de astúcia, que invoca a afirmação identitária, mas também o ardil necessário para a sobrevivência. No século XVIII, uma política da metrópole portuguesa, sob o comando do Marques de Pombal, em prol das uniões interétnicas tão necessárias a estabilidade no território ocupado, foi registrada em um alvará de 1755; o decreto real de 4 de abril declarava :

 

que os meus vassalos deste reino e da América que casarem com as índias dela não ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos de minha real atenção e que nas terras em que se estabelecerem serão preferidos para aqueles lugares e ocupações, que couberem na graduação de suas pessoas, e que seus filhos e descendentes serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra ou dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma.[11]

 

O mesmo alvará previa “empregos e honras” para os descendentes desta união e ainda proibia que eles fossem chamados de “caboclos” ou qualquer outro nome “injurioso”. No México, a proibição do uso da terminologia presente nas pinturas das castas, só aconteceu no marcos dos movimentos independentistas do século XIX, quando os campesinos foram convocados a apoiar a nova forma de governo.

Vivemos um contínuo embate entre as posições que se referem à nossa formação étnico-racial, ora louvando, ora camuflando, ora atacando. As posições são muitas e as metáforas outras tantas, a Literatura Comparada não podia deixar de participar forjando seu próprio aproveitamento dos conceitos elaborados nas relações interétnicas. A mestiçagem como ardil traz embutido o dilema de um contínuo embate entre as posições que se referem a nossa formação étnico-racial, ora louvando a mestiçagem, e contando com ela para o apaziguamento dos conflitos internos, ora camuflando estes conflitos e esperando o branqueamento, sob eufemismo como “progresso” e “desenvolvimento”.

 

Mestiçagem e Literatura Comparada

 

Em 1856, José de Alencar publicou oito cartas criticando a epopéia Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães que tinham como objetivo provocar uma polêmica que rompesse com a unanimidade em torno da obra, mas não só. As cartas foram escritas com acuidade, procurando produzir “juízos críticos” que debaixo de uma falsa modéstia, Alencar as classifica como sendo apenas “impressões de minha leitura” [12]. Mas na primeira nota à edição em livro, o autor mesmo afirma que são “censuras” que “em geral se referiam à gramática, ao estilo e à metrificação”. Estas cartas-críticas trazem dois aspectos da nossa questão: Alencar propõe um modelo de criação literária para o processo de mestiçagem brasileiro, que ele desenvolverá depois em dois de seus romances indianistas e recorre à metodologia comparada para exemplificar seus argumentos na demolição da epopéia de Gonçalves de Magalhães. No que se refere a esta discussão, a proposta de criação mestiça de Alencar se pauta pelo apreço às referências histórico-geográficas; pela valorização da cultura indígena; e pela apropriação de modelos estéticos europeus, mas orientados para uma busca da originalidade brasileira.

Em diferentes momentos do texto, Alencar cobra um estudo mais sério dos cronistas por parte de Gonçalves de Magalhães e, sempre que cabia, demonstrava seus próprios conhecimentos, não só de cronistas que andaram por aqui, mas também na Guyana, Antilhas ou Canadá. Na “Carta Segunda”, Alencar corrige “uma inexatidão histórica sobre o território habitado pelos tamoios”, cometida pelo poeta do rei: “Se bem me lembro, rezam as crônicas que a nação tamoia era um ramo da raça tapuia, que em tempos remotos possuíra toda a extensão do Brasil... ”

O apreço ao discurso histórico não solucionava os dilemas colocados pela criação literária mestiça. Como representar as civilizações indígenas sem incorrer em esteriótipos desqualificadores ou extremamente redutores? E ainda, escrever uma poesia indianista é simplesmente empregar algum vocabulário autóctone? Alencar discorre longamente sobre estas questões, que também foram tema constante na avaliação da sua obra:

 

De há algum tempo se tem manifestado uma certa tendência de reação contra essa poesia içada de termos indígenas, essa escola que pensa que a nacionalidade da literatura está em algumas palavras: a reação é justa, eu também a partilho, porque entendo  que essa escola faz grande mal ao desenvolvimento do nosso gosto literário e artístico.

Mas o que não partilho, e o que acho fatal, é que essa reação se exceda; que em vez de condenar o abuso, combata a coisa em si, que em lugar de estigmatizar alguns poetastros que perdem o seu tempo a estudar o dicionário indígena, procure lançar o ridículo e a zombaria sobre a verdadeira política nacional.

Esses que assim procedem tem uma idéia que não posso admitir; dizem que as nossas raças primitivas eram raças decaídas, que não tinham poesia nem tradições; que as línguas que falavam eram bárbaras e faltas de imagem, que os termos indígenas são mal sonantes e pouco poéticos; e concluem d’aqui que devemos ver a natureza do Brasil com olhos europeus, exprimi-la com a frase do homem civilizado, e senti-la como o indivíduo que vive no doce confortable. (p. 27)

 

Qual o limite na criação mestiça? Quando seria apenas o recurso superficial de emprego de algumas palavras ou quando seria já uma poesia mestiça. José Miguel Wisnik (1976), no entanto, aponta como antropofágica a presença, na poesia de Gregório de Matos, de toponímios tupis que, segundo ele, vão suplementar a paródia de um discurso encomiástico no soneto “Aos principais da Bahia chamados os Caramurus”, um soneto que contém o topos da origem, que ridiculariza a ascendência indígena de um “fidalgo da terra”, indica que a única fidalguia seria a antropofagia de seus antepassados. Para Miguel Wisnik, além do simples uso dos topônimos, o poeta realizaria uma “antropofagia lingüística” ao tender para os monossílabos e as oxítonas, ressoando um falar nativo:

 

Como se vê, Gregório usa o vocabulário tupi e a referência ao Caramuru para – trazendo à cena o processo de miscigenação, iniciado desde o momento em que o primeiro europeu pisou aquela que seria a futura Terra do Brasil – ridicularizar pretensões da nobreza baiana. O que o poeta desanca (de uma perspectiva racista e etnocentrista), num texto lingüisticamente miscigenado, é a mistura racial e o fato de a genealogia da aristocracia local recuar em direção a um povo não-cristão – aqui retratando numa moldura de irracionalidade, fereza, feiúra, irreligiosidade e canibalismo.[13]

 

A leitura de Wisnik quer superar a ligeireza da identificação do léxico para tentar revelar na estrutura poética uma miscigenação mais profunda, recorrendo a aproximações sintáticas. Revelar a miscigenação lingüística, estilística ou lexical, medir o seu grau, tem sido um problema para a crítica literária. Algumas são as respostas, por exemplo, a leitura de Macunaíma a partir da sintaxe dos pemons (taurepang e arekuná), trabalho que Lúcia Sá apresentou na Abralic 1998[14].

A Literatura Comparada, em seus primórdios brasileiros, colocou estas questões em seu horizonte investigativo. Não só nestas cartas de Alencar, cujos propósitos não eram propriamente estabelecer um modelo crítico, mas em estudiosos como Silvio Romero e José Veríssimo, cuja obra tinha a preocupação de fundar uma historiografia e uma crítica literária brasileira focada nos problemas de nosso contexto. Os fundamentos que orientavam Silvio Romero eram de base etnográfica e sociológica e ele sempre trazia à superfície de sua crítica e historiografia os aspectos étnico-raciais que julgava encontrar nos textos estudados. Contudo, a apologia, oscilante e contraditória, em favor da mestiçagem do crítico revelou-se como estratégia de branqueamento e foram gradativamente sendo dispensadas pelas correntes teóricas, críticas e historiográficas posteriores. Contudo, o apelo à mestiçagem subsiste como estratégia viável para tratar de textos ecléticos produzidos em sociedades multi-referenciadas, ou seja, mantendo sua face estilística e sua face sociológica.

Como estratégia teórica para a literatura e para todo o pensamento brasileiro, a mestiçagem possuía um papel conciliatório, cunhada para amenizar uma sociedade divida entre escravos, índios e alguns poucos brancos que detinham a maior fatia do poder. Quando Von Martius escreveu sua receita sob o título “Como se deve escrever a história do Brasil”, ressaltava duas questões consideradas importantes para tal empreendimento: a união em torno do poder monárquico; ou seja, colocando o foco nas relações políticas, e na presença da “mescla de raças” nas classes ditas baixas; ambos os pontos são tecidos sobre o apelo à tolerância, à confraternização, e à união do país. Ciência e arte são também estratégias políticas desde sua formulação como discursos autônomos; no contexto latino-americano não seria diferente. Assim, os estudos literários transitavam entre a política, a sociedade e as artes, acionando discursos que englobavam todos estes aspectos da cultura humana.

Silvio Romero, Ferdinand Denis ou José Veríssimo, qualquer destes estudiosos da literatura tinham em mente a mestiçagem como conciliação e além, disso, como branqueamento. Dentro deste marco teórico, Silvina Carrizo[15] destaca “o matiz apologético” e o “desmanche da diferença”. Como vertentes de descrição da mestiçagem no período. A partir da primeira configuração, se imprime uma luta, que ainda que ligada ao passado, lança promessas para o futuro. E a segunda perspectiva aponta que na mestiçagem estaria implícita no seu apelo à alteridade e a mesmidade simultaneamente. Silvio Romero oscila entre estes dois pólos: A obra fundadora de uma historiografia literária racializada, a Historia da Literatura Brasileira de Silvio Romero, estava apoiada nas reflexões positivistas de Spencer e nas teorias do historiador inglês Henry Thomas Buckle, “as quais explicavam a personalidade dos povos em função das relações estabelecidas com a natureza e com os fatores físicos, a exemplo do clima, da alimentação e do solo” [16] e chegou a conclusões racistas como resumiu Roberto Ventura:

 

Sua teoria da mestiçagem e do branqueamento parte de uma combinação de pressupostos racistas (existência de diferenças étnicas inatas) e evolucionistas (lei da concorrência vital e do predomínio do mais apto). Previa que o elemento branco seria vitorioso na “luta entre raças”, devido à superioridade evolutiva, que garante seu predomínio no cruzamento. Prevê o total branqueamento da população brasileira em três ou quatro séculos.[17] 

 

No contexto hispano-americano, encontramos a mesma percepção de que as raças consideradas “biologicamente inferiores”, segundo as leis do “racismo científico” baseado no pensamento positivista e no darwinismo social de Spencer, poderiam justamente ser submetidas ou exterminadas.  Após elencar alguns intelectuais de diferentes países latino-americanos, entre eles Nina Rodrigues, do Brasil, Alcides Arguedas, da Bolívia, Yúdice e Taylor resumem uma posição recorrente entre estes estudiosos: “Prediziam que raças “inferiores” desapareceriam devido a sua inabilidade para se adaptar à modernidade. Particularmente, desqualificavam os mestiços, considerados como degenerados e incapazes para a vida moderna.”[18]. Obras como de Domingo Faustino Sarmiento em Conflicto y armonía de las razas (1883) viam a mestiçagem como “uma ameaça para o desenvolvimento das nações latino-americanas a menos que se introduzissem elementos civilizados na torrente da nacionalidade”[19].

Pautados pelo positivismo e pelas teorias evolucionistas, nossa história literária teve um começo que já indica o complicado e indiscernível entre a crítica e da historiografia que foi o seu percurso. A crítica e a historiografia literária brasileiras foram marcadas, até 1910, pelas noções de raça e natureza. As origens do estilo literário eram atribuídas à ação diferenciadora do meio ambiente ou da mistura étnica. ” (VENTURA, 2000, 18) Foi daí que os primeiros críticos e historiadores retiraram sua tese da originalidade literária. O fato de todo o pensamento brasileiro estar influenciado pelos pressupostos positivistas, não quer dizer que tivemos um só resultado. Já temos delineadas as duas vertentes que refletem as oposições interno/externo, história/texto, sociedade/indivíduo que marcam a teoria literária, e que no Brasil podemos distinguir em uma linhagem esteticista e uma linhagem historicista, claro que esta divisão é em si um problema, porque ambas as linhas têm fundamento na perspectiva sociológica.

Silvio Romero e José Veríssimo são modelares para uma discussão sobre mestiçagem dentro dos estudos de Literatura Comparada, pois ambos são autores de historiografias resultadas de princípios semelhantes, mas com objetivos muito distintos e resultados intrigantes. Romero estava apoiado em teorias de cunho sociológico, entendendo a concepção de literatura como sinônima a de cultura; enquanto Veríssimo, apoiado nos mesmos pressupostos positivista, queria produzir, nem sempre conseguindo, um estudo literário esteticista, relacionando literatura estritamente como arte, sob esta perspectiva tentava abordar as obras literárias através de uma metodologia específica para este estudo. As dicotomias, binarismos, e maniqueísmos que assombram os estudos literários já estão ali colocados. Temos, na proposta de Romero, a abordagem do tipo externode cunho biográfico, psicológico, sociológico, filosófico ou de relacionamento com outras artes; e, na de Veríssimo, a abordagem do tipo interno: na qual se consideram os procedimentos formais para a realização do literário.

O que quero mostrar com isto é como uma teoria da mestiçagem, voltada para explicar e prever as relações sociais em uma acepção étnico-biológica, orientava também a teoria literária, e eis o resultado, na análise que Silvio Romero faz de uma peça - Cobé - de Joaquim Manuel de Macedo, na qual o índio cujo nome intitula a peça - apaixonado por sua senhora, e segundo o texto, sofrendo de “um amor sem esperanças”, ouve o mesmo dela. Em uma teatral troca de confidências, na qual os atores falam com a platéia como se falassem para si mesmos, Branca, senhora de nome reiterativo, confessa ao índio enamorado que ama um pobre rapaz e seu pai a obriga casar-se com um rico senhor, justamente o que capturou Cobé e sua mãe. Romero comenta:

 

A linguagem de Cobé, índio selvagem dos primeiros anos do século XVI, é evidentemente imprópria. O tamoio fala como se por ele já tivesse passado a longa evolução cultural do amor. Sim, por que é preciso não esquecer os elementos sociais do amor. Filho da natureza, este sentimento, como muitos outros cresce, avoluma-se, transforma-se no seio da sociedade, de cuja seiva se alimenta. (1422)

 

E mais a diante, Romero completa:

 

O amor, atormentado, descrido, doentio, alucinado e louco, é um produto da cultura e não da natureza; o oriundo deste é apenas uma tendência instintiva, normal e plácida, como todo impulso meramente animal. (1422, vol. 5)

 

A ênfase dada na leitura aos aspectos naturalistas e evolucionista como interpretação do texto literário leva Romero a ignorar que desde os primeiros momentos da catequese, as sociedades americanas elaboraram obras estéticas “já nasceram adultas” e “falam um código universal extremamente elaborado”(CAMPOS, 239), compartilhar o código estando dentro, imerso na cultura que o subjuga, propicia ao protagonista de Macedo o uso código lingüístico e emocional que demonstra. A fé inabalável na evolução impede Romero de ver as possibilidades de se queimar etapa, como aconteceu em todas as Américas, como acontece sempre, no processo de transformação das culturas postas em contato. Romero exige uma representação bestializada do índio, como costuma aparecer em muitas das obras do período. A própria representação dos africanos e afro-descendentes feitas por Rugendas recorre a índices de bestialidade para justificar os discursos ideológicos produzidos sobre as diferentes raças[20].

Herança dos séculos anteriores, a representação do índio bestial e demoníaco está impregnada no imaginário através de obras como os poemas atribuídos a Gregório de Matos, mas já nas crônicas do século XVI a aproximação de gentio à gente por semelhança, como aparece nos poemas, é acompanhada de atributos de irracionalidade - “alarve sem razão” -, de desconhecimento da religião - “bruto sem fé” -, e de bestialidade como “gente bestial” e como “comiam seus avós”; segundo Hansen, integrava-se ao índio “o topos da constituição física, pelo qual a feiúra corporal, efetuada como simulacro de padrões ibéricos, é o correlato pictórico da feiúra moral dos netos da Paraguaçu”. (HANSEN, p. 317) Desclassificado na tópica da nação aparece o nome “Cobé”: “Cobé pá, Aricobé, Cobé pai”. “Cobé” significa “indígena, descendente de indígena, língua indígena” segundo nota de James Amado (p. 169). Cobé aparece nas obras literárias genericamente tanto como o sujeito quanto como seu código lingüístico. Como nome próprio marcou outras presenças, além da peça de Macedo, também no Uraguay, de Basílio da Gama. Nos poemas atribuídos a Gregório de Matos apareceu mais de uma vez como referência à língua geral, como o Barroco é um estilo no qual cada coisa é sempre outra coisa, a referência à língua abarco o sujeito, sua parentela, sua cultura e como não, sua genealogia “impura”, ou seja, mestiça. Em uma “Genealogia que o poeta faz do Governador Antonio Luiz desabafando em queixas do muito que aguardava na esperança de ser dele favorecido na mercê ordinária” encontramos o substantivo cobé indicando este leque de acepções:

 

Veio ao Espírito Santo

da Ilha da Madeira Alz,

um Escudeiro Gonçalves

mais pobretão, que outro tanto:

e topando a cada canto

as Tapuias do lugar

havendo uma de tomar

apara a bainha da espada,

tomou Vitória agradada,

que então lhe soube agradar.

 

A tal era uma Tapuia

grossa como jibóia,

que roncava de tipóia,

e manducava de cuia:

tocando ela a Aleluia,

tirava ele a culumbrina

com tal estrago, e ruína,

que chegando a conjunção

lhe encaixou a opilação

por entre as vias da urina.

 

Pariu a seu tempo um cuco,

um monstro (digo) inumano,

que no bico era tucano

e no sangue mameluco:

mas não tendo bazaraco,

com que faça o batizado

lhe assistiu sem ser rogado

um torço de fidalguia

pedestre cavalaria

toda de beiço furado.

 

O cura, que não curou

de buscar no Calendário

nome de Santo ordinário,

por Antônio o batizou:

tanto o colomim mamou,

e tais forças tomou,

que antes de se por de pé,

e antes de estar já de vez,

não falava português,

mas sim o seu cobé[21]. 

 

 

Nestes versos fica claro o uso da origem mestiça como desprestígio e o uso da língua geral - Cobé - como ícone de barbárie. O bárbaro não é simplesmente quem não fala o português, como o poeta termina por concluir nesta pequena parte do poema: é também monstruoso e inumano, animalizado, como descreve a mãe indígena no verso “grossa como jibóia” e em outro momento, já se referindo ao filho - “no bico era tucano”. É também deformado, descrevendo a tradição de perfurar os lábios e que reforça a imagem de índia “toda de beiço furado”, e por fim, mestiço, “no sangue mameluco”. Todo este detalhamento no poema compõe  um quadro pejorativo dos mestiços no período Barroco. Em Basílio da Gama a palavra ‘cobé” batiza um índio com as mesmas marcas de bestialidade, tanto física - “chata frente”, quanto moral, “comem os mortos”, em uma alusão à necrofilia antropofágica:

 

Côa chata frente de urutu tingida,/

 Vinha o índio Cobé disforme e feio,

que sustenta nas mãos pesada maça

Com que abate no campo os inimigos

Como abate a seara o rijo vento.

Traz consigo os salvages da montanha,

Que comem os seus mortos; nem consentem

Que jamais lhe esconda a dura terra

No seu avaro seio o frio corpo

Do doce pai, ou suspirado amigo. (Canto Quarto)

 

A representação do índio associada à prática canibal, tal como no poema atribuído a Gregório de Matos, mantém a concepção dos ameríndios, parte fundamental neste conceito de mestiçagem, no campo da barbárie, que queria dizer inferioridade, até incapacidade para o progresso.  Machado de Assis compartilha desta visão, e no poema “Potira”, publicado dentro do livro Americanas, repete a tópica da barbárie e define os ameríndios como “raça triste”, adjetivação constante desde o debate em torno da Confederação dos Tamoios:

 

 

... Rudes eram

Aqueles homens e ásperos costumes

Que ante o sangue de irmãos

Folgavam livres,

E nós, soberbos filhos de outra idade,

Que a vós falamos da razão severa

E na luz nos banhamos do Calvário,

Que somos nós, mais que eles? Raça triste

De Cains, raça eterna ...

 

 

A versão mais amena do romantismo, na voz de Gonçalves Dias, deixa o dilema da mestiçagem mais explícito: primeiro apresenta um não-lugar que a perda de identidade tradicional pelos mestiços implica. Em um poema em que a índia mestiça embraquecida reclama de seus olhos verdes, cabelos loiros e pela clara, pois os homens da sua aldeia a repelem dizendo: “És Marabá”, o poeta reforça a idéia de rejeição daqueles que perderam a identidade fenotípica e não encontra lugar entre os seus. O tema, como está indicado em nota do próprio Gonçalves Dias, foi retirado das crônicas da Companhia de Diogo Vasconcelos: “Tinha certa velha enterrado vivo um menino, filho de sua nora, no mesmo ponto em que parira, por ser filho a que chamam ‘marabá’, que quer dizer mistura” (Crônica da Companhia, L.3 nº. 27). Se relevarmos o tópico da “velha índia” representada como “bruxa”, ou seja, que quem atua sob as ordens do demônio, como era recorrente na crônica colonial, ficamos com a rejeição à “mistura”, na representação dos índios por Vasconcelos, e na sua retomada por Gonçalves Dias.

 

        Marabá

 

Eu vivo sozinha; ninguém me procura!

Acaso feitura

Não sou de Tupã?

Se algum dentre os homens de mim não se esconde,

“Tu és”, me responde,

“Tu és Marabá !”

 

Meus olhos são garços, são cor das safiras,

Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;

Imitam as nuvens de um céu anilado,

As cores imitam das vagas do mar!

 

Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:

“Teus olhos são garços”,

Responde anojado; “mas és Marabá!”

Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,

Uns olhos fulgentes,

“Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!”

 

O desconsolo e a solidão romântica na jovem índia revelam a dor do entre-lugar que implica o não pertencimento dos mestiços. E ainda, Gonçalves Dias, tal como Macedo na peça citada, e o próprio Alencar em Iracema e O Guarani encenam a sedução pela cultura européia como uma submissão por vontade, representação das relações interétnicas que podemos descrever usando as palavras de Aloísio de Azevedo criadas para a Bertoleza de O Cortiço: são personagens que procuravam instintivamente o parceiro “numa raça superior a sua”[22]. Reforçando esta idéia, tantas vezes repetida, Gonçalves Dias conclui o poema “O Canto do Guerreiro”:

 

Aqui dos meus irmãos, qual sou deles!

Escuta, ó Virgem dos Cristãos formosa.

Odeio tanto os teus, como te adoro;

Mas queiras tu ser minha, que eu prometo

Vencer por teu amor meu ódio antigo,

Trocar a maça do poder por ferros

E ser, por te gozar, escravo deles.

 

A estrutura da teoria da mestiçagem é constituída pela representação dos indígenas como “raça infeliz”, pois assim são chamados sucessivamente por nossos intelectuais de diversas expressões; se delineia na perda de uma identidade fundada em uma origem, por parte do mestiço e por fim, pelo permanente lugar de subalterno “por vontade” reservado aos não-brancos.

Olavo Bilac compartilha da versão amena e mais otimista do romantismo, contudo, não menos pejorativa na representação dos partícipes da mestiçagem brasileira. Em um soneto que anuncia a música, expressão estética que, ao lado do futebol, melhor tem representado a brasilidade, como produto de uma conjunção de esforços dos subalternizados, a boa metáfora de mestiçagem e por extensão da cultura brasileira é ofuscada pela concepção das três raças como “infeliz” e marcadas por conceitos depreciadores.

 

          Música Brasileira

 

Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.

 

Bilac perfila uma série de adjetivações desclassificatórias em tom encomiástico e triste para falar da origem mestiça da música brasileira, assim temos: impureza, pecado, tristeza, orfandade e lascívia que qualificam a produção estética de selvagens, cativos e marujos, usados para definir a composição da população brasileira. Na poesia atribuída a Gregório de Matos encontramos o branco “pobretão” partícipe da mestiçagem que foi também, em outro soneto, definido como “maráu”, ou seja, homem de baixa extração social, malandro, etc., em Bilac, ele é o marujo, definição que o qualifica ao mesmo tempo como trabalhador braçal mal remunerado e como nômade, sem raízes. No soneto, outra vez o léxico é convocado para dar o tom de mestiçagem estilística: “pocaré”, “banzo”, “trova”, “samba”, “jongo”, “xiba” e “fado”. À maneira dos neoclássicos, os dois primeiros indicam sua origem etimológica ao serem acompanhados por “bárbaro” e “africano”; explícita as origens, os demais aparecem expressando a simultaneidade de pertencimentos dos seres mestiços, para por fim definir sua “procedência” como “orfandade” e declarar que a nossa música é “flor amorosa de três raças tristes”. Fica evidente que a “tristeza” é decorrência do lugar marginal e popular dos que compõem a brasilidade.

Romero chegou a concluir que “a fantasia romântica de acreditar no resultado maravilhoso da mistura de raças inteiramente diversas” é uma “obnubilação afetiva e imaginativa”. O crítico estabelece suas elucubrações sobre a mestiçagem necessária à adaptação ao meio afirmando:

 

Destarte, podemos, à luz dos fatos e da ciência, concluir: o incorporamento direto do índio e do negro entre nós foi conveniente para garantir o trabalho indispensável à produção da vida econômica do povo novo que se ia formar; e o mestiçamento deles com o europeu foi vantajoso: a) para a formação de uma população aclimada ao novo meio; b) para favorecer a civilização das duas raças menos avançadas; c) para preparar a possível unidade da geração futura, que jamais se daria, se os três povos permanecessem isolados em face um do outro sem se cruzarem; d) para desenvolver as faculdades estéticas da imaginativa e do sentimento, fato real no próprio antigo continente.[23]

 

A opção de José Veríssimo por produzir uma crítica literária baseada nas elaborações intrínsecas da obra de arte também esbarrava na sua concepção negativa da mestiçagem, suas observações sobre a figura pública de Gregório de Matos são bem esclarecedoras sobre este ponto: “Ao último remate da sua caracterização, só lhe faltou ser mestiço, se com efeito não era, o que quase custa a crer.” E o crítico completa sua definição de “mestiço”: “Mas se a indolência, o desleixo, a incúria, certas qualidades brilhantes mas superficiais de espírito, a debilidade de caráter, a lascívia exuberante, são os sinais mais comuns e aparentes do mestiço, ele moralmente o era, apesar de sua presunção de ser branco puro, da sua vaidade de douto, dos seus muitos anos de Portugal e da educação portuguesa.” [24]

Assim, a tentativa de fazer uma crítica pautada pelos valores intrínsecos da obra fracassa ante os estereótipos que compõem as taxionomias evolucionistas do pesquisador que reconhece o valor estético que caracterizaria o poeta, mas não se furta a indicar características morais que ele atribui ao “mestiço”, e aí, mestiçagem implica mais uma vez em desabono.

 

Saídas contemporâneas

 

Nas décadas de 20 a 30, uma característica uniu as reflexões em torno da produção cultural na América Latina, a concepção de que uma discussão sócio-política se fazia necessária e que as permanentes desigualdades deveriam ser enfrentadas neste campo e não na perspectiva da discussão étnico-racial. Silvina Carrizo descreve este reposicionamento a partir do socialismo indigenista de Mariátegui, cujas reflexões estavam “contribuindo não apenas para desmascarar a mestiçagem como ideologema das classes dominantes, mas, também para colocar o problema em outra direção, fazendo um forte apelo ao encerramento da discussão sobre as raças, e propondo uma abertura para análises de tipo sociológica”[25]. 

No Brasil, a partir de 1922, outros protagonistas assumem o palco da reflexão cultural encenando uma contraposição ao pensamento estético e filosófico determinista que havia predominado no século anterior, a partir de 28 estes mesmos protagonistas fazem uma partenogênese e se dividem ainda mais. As vertentes são múltiplas ficarei na oposição mais tradicional Mário de Andrade versus Oswald de Andrade.

Se na poesia Mário clamou seu “grito imperioso de brancura”, na crítica ele também empurrou a discussão para o “social” e ficou ali, se debatendo com uma questão que sabia perfeitamente ser étnico-racial, conforme ele mesmo sussurrou nas entrelinhas de seu “Prefácio para Macunaíma”: “O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros”, transformando “identidade” em “entidade”, ou seja, trocando a perspectiva coletiva pela individual, Mário deixa entrever a questão que orienta sua rapsódia: a busca de uma fundamentação desterritorializada do que seria ser brasileiro. Neste texto, Mário desenvolve sua teoria da falta de caráter do brasileiro e termina por ultimar: “(Um de meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e a flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea um conceito étnico nacional e geográfico.” [26]

Esta tentativa outra vez fundada nas lendas indígenas e no folclore ligado a elas, opta por um viés de mestiçagem índio-descendente, mas não explícito, tornado invisível em outros dilemas sócio-estéticos. O mais importante seria criar uma obra na qual a interferência do autor fosse diminuída e seus personagens estivessem livres de ter que enunciar suas posições políticas: “esta forma social de criação, até mesmo de combate não se deformaria na sua arte, porque esta é que seria o propósito e estaria na consciência, na vontade do criador, e não o combate”.[27] Para Mário de Andrade, o “negrismo”, tomado como exemplo, “expressa essa situação de absorção mecânica, de “repisação” dos elementos folclóricos”[28].  Contudo, acredito que o ataque de Mário a este movimento se deve ao seu recorte étnico-racial, que propriamente a sua atitude discursiva. Eurídice Figueiredo ao mapear “os momentos nodais” da construção dos “movimentos identitários, literários e culturais dos afro-descendentes na América e no Caribe” demonstra o quanto são combativos e diversificados em seu conteúdo os conceitos de “negritude” e “negrismo” [29] e que eles anunciam uma problematização da presença afro-descendente de através de um posicionamento étnico frequentemente antagônico às concepções de mestiçagem herdadas do século XIX.

Na geração de intelectuais seguinte, a divisão dos Andrade adquire novos contornos epistemológicos; de um lado estão os estudiosos vinculados a um pensamento sócio-históricos, como os noviços da Revista Clima, que elegeriam como patrono a Mario de Andrade e de outro, os esteticistas, como os da Revista Noisgandre, que escolheram Oswald de Andrade.

A corrente apadrinhada por Mario de Andrade, tornou-se, a herdeira mais visível do avô antigo Silvio Romero, aproximando-se do crítico-historiador na concepção evolutiva dos processos culturais, mesmo que de cunho marxista, além de seguir a tendência do crítico, mantendo a discussão sobre literatura dentro de um ambiente culturalista e multidisciplinar. Com Mário de Andrade, os criadores de Clima compartilham a perspectiva de que a arte está na base da vida dos homens em sociedade.

Para Mário a arte deriva da humana necessidade de expressão um conteúdo ideal, manifestadamente, o ideal de elaboração de uma arte nacional; além de pensar que “(a)obra de arte só se dá quando chegou ao seu destino a que foi destinada” [30], como afirmou em Carta a Manuel Bandeira. Estas concepções de arte encontram continuidade em Antônio Cândido, quem também delineou em sua historiografia – Formação da Literatura Brasileira – uma concepção do fazer artístico apoiada em produtores, transmissores e receptores, ou seja, autor, obra, público. Segundo Leda Tenório, Antônio Cândido define três “diferentes atitudes do artista diante da linguagem, segundo a extração seja clássica, barroca ou romântica”: “a palavra sentida como menor que a natureza, no caso dos românticos, a palavra igual a natureza, no caso dos clássicos, e a palavra maior que a natureza no caso dos discursos barrocos.”[31]. Ao optar pelo primeiro tipo como paradigmático para os estudos da literatura, Antônio Cândido, , daria tanto à revista quanto à historiografia uma orientação, que apesar de não dar relevo a questão racial, ainda assim seria, na avaliação de Leda Tenório, evolucionista, repetindo algumas das posições de Romero.

O outro grupo, reunido em torno da revista Noisgandres, buscava produzir uma crítica sincrônica, assim, se posiciona por inserir o Brasil diretamente nas produções estéticas de cada época em condição de eqüidade, uma vez que havíamos dominado desde o princípio o sofisticado código europeu, e com esta argumentação firmaram posição a favor de uma originalidade que caracteriza a cultura brasileira. Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari elegeram a Oswald de Andrade como patrono, por estarem mais dispostos a nos ver como descendentes de canibais do que dos bons selvagens, com a preocupação em correlacionar a produção nacional e estrangeira, em pé de igualdade, proporcionada pelo manejo de novas linguagens e de novas concepções de linguagem poética, preocupando se em rastrear na cultura brasileira e em produzir uma estética voltada para a invenção, sempre.

Como Veríssimo e Romero, estes dois grupos não manifestaram uma fundamentação teórica completamente antagônica, as transposições do pensamento marxista via sociologia do grupo Clima, também era recorrente no grupo Noisgandre. Por exemplo, no texto “A Razão antropofágica”[32], Haroldo de Campos apresenta seu problema - a possibilidade de vanguarda artística em países de economia periférica - franqueado por Engels. Contudo, a opção pela antropofagia oswaldiana e não pela mestiçagem como resposta a composição da originalidade nacional afasta este grupo do modo conciliador e de uma conformação bio-social como a discussão vinha sendo processada.

Neste contexto de maior complexidade, quando movimentos de afro-descendentes e de indígenas reivindicam para si o lugar de fala, visibilizando a questão étnico-racial na discussão se contrapõem ao formato sociológico dos intelectuais hegemônicos, o aproveitamento pela Literatura Comparada de um conceito de mestiçagem requer uma ressignificação em termos de valorização das raças partícipes do processo de mestiçagem, o que demanda também uma ruptura com o emprego que foi dado no século XIX, da qual ficaremos apenas com seu vínculo com a noção de “identidade e nação”.  

 

 

Notas

 

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[1] CARRIZO, Silvina. Indigenismo.In: FIGUEIREDO, Eurídice (org). Conceitos da Literatura e da Cultura. Niterói/Juiz de Fora: EdUFF/UFJF,  2005, 207-224.

 

[2] TAYLOR, Julie, YÚDICE, George. Mestizage and the inversion of social darwinism in Spanish American fiction. In: VALDÉS, Mario J., KADIR, Djelal (Ed.). Literary cultures of Latin America. New York: Oxford University Press, 2004. V.III: Latin American Literary Cultures: Subject to History, p.310-319.

 

[3] DUNO GOTTBERG, L. Solventando la diferencia: la ideología del mestizaje en Cuba. Madrid: Iberoamericana, 2003, p. 22. [Tradução minha]

 

[4] HERKENHOFF, Paulo e PEDOROSA, Adriano. XXIV Bienal de São Paulo: núcleo histórico: antropofagia e historias de canibalismo, vol. 1. São Paulo: A Fundação, 1998, 112.

 

[5] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cossac&Naify, 2002, 181-164.

 

[6] RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 233-243.

 

[7] VIEIRA, Antônio. Sermões. São Paulo: Anchieta, 1943-1945. (Edição Facsimilada. da editio princeps 1679-1748, 15 volumes).

 

[8] C.f. LIENHARD, Martín. La voz y su huella: Escritura y conflicto étnico-social en América Latina 1492-1988. New Hampshire: Ediciones Del Norte, 1991.

 

[9] SERNA, Mercedes. (ed., selec., int. e notas) In: LA VEGA, Inca Garcilaso. Comentarios reales. Madrid: Castalia, 2000. [Tradução minha]

 

[10] HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, 312.

 

[11] www.biblio.com.br/Templates/ CapistranodeAbreu/capitulos/IX.htm - 211k

 

[12] ALENCAR, José. Carta Primeira In: CASTELLO, J.A. A polêmica sobre “A confederação dos Tamoios”. São Paulo: FFCL/USP, 1953, p4. [Ao contrário de Castello, atualizei a ortografia em todas as citações retiradas desta edição]

 

[13]WISNIK, J.M. Folha de S.Paulo. Caderno MAIS!, 20/10/1996.

 

[14] SÁ, Lúcia. Tricster indígenas pervertem a literatura nacional: o caso Macunaíma. Congresso da Abralic, Florianópolis: UFSC, 1998.

 

[15] CARRIZO, Silvina. Mestigagem.In: FIGUIEREDO, Eurídice (org). Conceitos da Literatura e da Cultura. Niterói/Juiz de Fora: EdUFF/UFJF,  2005, 261-288.

 

[16] DUTRAS, Eliana de Freitas. O Não Ser e o Ser Outro. Paulo Prado e seu Retrato do Brasil.  In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, FGV, vol. 14, n. 26, 2000, p.233-252.

 

[17]VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, 51.

 

[18] TAYLOR E YÚDICE, 2004, 311.

 

[19] DUNO, 2003, p. 23

 

[20] Cf. SILVEIRA, Renato. Revitalização das imagens do século XIX. (projeto de pesquisa UFBA)

 

[21] Tipóia (rede); culumbrina (cobra:pênis); bazaraco antiga moeda da Índia, segundo notas de James Amado.

 

[22] AZEVEDO, A. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1979, 14.

 

[23] ROMERO, S. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, 1980.

 

[24] Grifos nossos. VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira (1906) Brasília: UNB, 1998.

 

[25] CARRIZO, Silvina. Indigenismo, 2005, p. 216.

 

[26] SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp/Iluminuras, 1995, 550-552. 

 

[27] ANDRADE, Mário. O Banquete. Apud: MORAES, 1999, 103.

 

[28] MORAES, Eduardo Jardim. Limites do Moderno: o pensamento estético de Mário de Andrade; Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. 119

 

[29] FIGUEIREDO, et.alii. Negritude, Negrismo, Literaturas de Afro-descendentes. In: FIGUIEREDO, Eurídice (org). Conceitos da Literatura e da Cultura. Niterói/Juiz de Fora: EdUFF/UFJF,  2005, 313-.340.

 

[30] MORAES, “Arte social”, 1999, 101-124.

 

[31] MOTTA, Leda Tenório. Sobre a crítica literária brasileira no último meio século. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

 

[32] CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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WISNIK, José Miguel. Introdução. In: MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1976.

 

Rachel Esteves Lima – Narrativas da crítica latino-americana: Esboço de genealogia dos conceitos

 

Refletir sobre o papel do intelectual, hoje, na periferia do capitalismo constitui um ato de coragem, uma vez que tal tarefa se propõe como um investimento contra-narcisista, que não apenas abala a imagem do homem de letras, construída durante quase dois séculos, mas também promove um deslocamento de sua posição privilegiada na ordem do saber e uma relativa deslegitimação do espaço institucional em que o conhecimento por ele produzido é apropriado. Conscientes dos riscos envolvidos nessa empreitada, os pesquisadores reunidos em torno do GT de Literatura Comparada da ANPOLL aceitaram esse desafio, ao resolverem se dedicar à produção de uma “memória” da crítica literária latino-americana, projeto que, na qualidade de atual Coordenadora do GT, cabe-me aqui, introduzir.

Começo partindo de um tema que talvez já possa ser considerado lugar-comum no universo acadêmico brasileiro, principalmente se recuperarmos as reflexões que vêm sendo desenvolvidas nos congressos da ABRALIC: a inter-relação dos estudos comparatistas com os estudos culturais. E o faço por acreditar que é mesmo impossível pensar, hoje, a prática da literatura comparada no país sem levar em conta as interpelações que lhe têm sido colocadas por um campo de saber que, não bastasse haver promovido o deslocamento da noção de literatura, acabou por colocar em discussão o próprio conceito sobre o qual se sustentava e que promovia sua legitimidade, a partir do momento em que ousou apontar os fundamentos modernos de toda e qualquer política da identidade.

O deslizamento dos sentidos da literatura e da cultura se insere em (ou é produzido por) uma quadro de reorganização geográfica, política e econômica no qual se torna discutível a pertinência dos projetos nacionais. Projetos que foram, em grande parte, sustentados por um trabalho intelectual comprometido com a descrição das diferenças dos países ditos periféricos, em relação ao "centro desenvolvido". A crise dos paradigmas que forneciam o álibi para o exercício do pensamento da identidade instaura, talvez para todos nós, uma situação de desorientação que ultrapassa em muito a definição dos artefatos simbólicos de que devemos nos ocupar enquanto praticantes da literatura comparada, colocando em discussão as próprias condições de possibilidade de superação das aporias que seguem sendo experimentadas pelo discurso crítico de uma área que, como lembra Alberto Moreiras, perdeu "sua função hegemônica na produção ideológica do valor social". (MOREIRAS, 2001, p.230)

Diante de um quadro de instabilidade e incertezas, inevitavelmente gerador de angústias (que, esperamos, continuem sendo produtivas para o campo da Literatura Comparada), os participantes do GT decidiram investir em um trabalho de cunho metateórico, no qual fossem retomados como objeto privilegiado de análise os conceitos operatórios, os temas e autores que forjaram o pensamento latino-americanista sobre as trocas culturais processadas na região, procurando desenvolver uma reflexão capaz de orientar a sua atuação, no presente. Segundo o meu entender, dois objetivos devem ser contemplados por esse empreendimento: a construção de uma memória “contra-hegemônica” da crítica latino-americana ? uma memória “pluralizada”, assumindo-se a postura historiográfica pós-moderna ? e a produção de uma reflexão pontual sobre a possibilidade de rompermos os limites que a atual configuração epistemológica impõe ao nosso trabalho.

No que se refere ao primeiro objetivo, convém lembrar a necessidade de promovermos uma contextualização dos conceitos escolhidos pelo grupo, elaborando-se uma revisão que considere não apenas o momento, a forma e o local em que eles foram produzidos, mas que desenvolva também uma reflexão sobre o valor residual de tais formulações para a compreensão dos impasses que a globalização, em suas esferas política, econômica e cultural, apresenta às narrativas da identidade, na contemporaneidade. A princípio, o corpus da pesquisa é formado pelos seguintes conceitos: antropofagia, canibanismo, cosmopolitismo do pobre, criolização, dialética da malandragem, entre-lugar, estética da fome, estômago eclético, ex-tradição, frontería, heterogeneidade cultural não-dialética, hibridismo, idéias fora do lugar, literatura de fundação, mestiçagem, mirada estrábica, migrancia, modernidade tardia, neobarroco, pós-ocidentalismo, razão antropofágica, realismo mágico, subalternidade, super-regionalismo, trasculturação e tropicalismo.

Pode-se dizer que o gesto de associar os termos “crítica literária” e “identidade cultural” na América Latina praticamente significa lançar mão de um pleonasmo. Afinal, até a década de 50 deste século, o caráter empenhado da literatura que aqui se produziu também se manifesta na crítica. Nutrido pelo ideal ilustrado que pressupunha um projeto pedagógico imprescindível à construção da nação, o intelectual latino-americano se colocou perante a sociedade tanto como um agente de descoberta e valorização da “cultura popular”, que embasaria a consciência nacional, quanto como um “herói civilizador”, apropriando-se de um discurso liberal “relativo”, uma vez que, para o atendimento de sua demanda pela constituição de um mercado cultural interno, teve que recorrer ao Estado.

Gestada a nação no século XIX, tratar-se-ia, no século XX, de assegurar-lhe, via ideologia do legado, a “unidade espiritual”, traduzida por um repertório de símbolos discursivamente criados pela intelectualidade, comprometida com os projetos de modernização implementados pelo Estado. Caberia aos homens de letras minimizar a “sensação de desenraizamento” que acompanhava os nativos americanos, inventando uma tradição que constitui uma narrativa desistoricizada pela evocação de um retorno às origens arcaicas, pré-modernas, seja através do elogio da herança cultural latina, da valorização do mundo indígena pré-colombiano ou pela mitificação da harmonia racial produzida pela prática da mestiçagem.

A noção de “lugar” pode ser vislumbrada em tais narrativas de identidade, que, em maior ou menor grau, apresentam em comum, segundo Santiago Castro-Gómez, os seguintes elementos: a crítica às soluções universalistas; a idéia de que o “mal” se encontra “fora” da nação; a postulação de uma especificidade cultural; o recurso ao popular como instância legitimadora da verdade; a invocação do sentimento religioso e do messianismo político; a exaltação do paternalismo intelectual e da liderança carismática; o culto aos heróis; a oposição radical entre o autêntico e o estrangeiro; a tentativa de reconciliar todas as oposições sociais; a romantização da mestiçagem e a definição ex negativo do “próprio”. (CASTRO-GÓMEZ, p.70)

Como se pode perceber, tais concepções se adaptam melhor a uma sociedade em que a modernização ainda se mostre incipiente, situação vivenciada até meados deste século, na América Latina, e que não persistiria após a Segunda Guerra Mundial. A reorganização político-econômica ocorrida a partir de 1945 embalou o sonho dos desenvolvimentistas, mas as conseqüências da aceleração do processo de industrialização logo se tornaram perceptíveis aos teóricos cepalinos e, como lembra Antonio Candido, nesse período é deixada para trás a fase de “consciência amena do atraso” (CANDIDO, 1987, p.140-162). O abandono dos binarismos que embasavam as abordagens dos desenvolvimentistas é, pois, produto de um novo ajuste teórico, em que o subdesenvolvimento passa a ser considerado não como uma fase a ser cumprida, mas como uma síndrome gerada pela relação de simbiose estrutural estabelecida entre a burguesia nacional e internacional, no quadro do capitalismo tardio.

A “consciência do subdesenvolvimento” acaba implicando um reconhecimento de que, no terreno cultural, “a dependência se encaminha para uma interdependência” (CANDIDO, 1987, p.155), noção que veicula um questionamento da distinção estabelecida entre centro e periferia. Ocorre nesse momento, portanto, um deslocamento da noção de autenticidade e identidade nacional, uma vez que o capitalismo periférico pressupõe a coexistência de múltiplas temporalidades, a convivência de formas culturais tradicionais e modernas em um mesmo espaço. Frente a esse quadro, alguns conceitos, como por exemplo, os de transculturação, super-regionalismo, dialética da malandragem, razão antropofágica, idéias fora do lugar e entre-lugar, promovem uma reinterpretação do papel do intelectual moderno na América Latina.

A intensificação do processo de globalização, traduzido pelo trânsito de pessoas, moedas, tecnologias, imagens e modelos ideológicos, vem complicar ainda mais a análise cultural, levando ao limite a capacidade de produção dos discursos sobre a representação, uma vez que, como afirma José Joaquín Brunner, a realidade multicultural da América Latina constitui a expressão dos “processos heterogêneos de conformação de uma modernidade tardia construída em condições de acelerada internacionalização dos mercados simbólicos em um nível mundial” (BRUNNER, 1992, p.38).  Como temia Ángel Rama, a modernização operada a partir do mercado transnacionalizado acaba desacreditando as estratégias da transculturação regionalista (Cf. TRIGO, 1997, p.150), demandando novas formulações críticas que possam oferecer vias interpretativas capazes de proceder à análise do universo da cultura na época de sua subsunção ao capital. Os conceitos de hibridismo, heterogeneidade não-dialética, subalternismo, essencialismo estratégico ou tático, que apontam para o “não-lugar da cena pós-moderna” têm se oferecido, na contemporaneidade como uma resposta a essa demanda, que também interpela a todos nós.

Tal preocupação orienta o trabalho do GT de Literatura Comparada, que se pauta pela necessidade de se compreender a crítica literária da América Latina a partir de suas articulações com o contexto histórico e com as demais esferas de produção de conhecimento que procuram analisar a cena cultural da região. O eixo temático proposto procura colocar em interação categorias tanto temporais quanto espaciais, devendo-se ressaltar que, aqui, a recuperação das noções de lugar, entre-lugar e, atém mesmo, não-lugar, tal como ocorre com as de moderno/ pós-moderno e outras mais, longe de se prender a um encadeamento linear e progressista que pressuponha a superação de um conceito por outro, pretende tecer uma rede em que a dispersão e a errância constituam estratégia de fuga a um historicismo baseado em modelos de explicação causalistas e dicotômicos.

É procurando contribuir para a implementação dessa estratégia e também buscando atender ao segundo objetivo traçado anteriormente ? qual seja, o de refletir sobre os limites epistemológicos da produção intelectual, na atualidade ? que se propõe que a investigação empreendida pelo GT e a exposição de seus resultados assuma a auto-reflexividade como princípio. Espera-se que a pesquisa mantenha uma tensão entre o inventário e a invenção, que adote uma sistemática, indispensável à organização dos sentidos já estabelecidos, mas que recuse o enclausuramento desses sentidos em um sistema totalizante. E que chegue mesmo a se colocar contra a literatura, no que ela pode representar de compromisso com o beletrismo e a manutenção da ordem hierárquica em uma sociedade letrada, uma sociedade em que a escritura fez calar as vozes capazes de questionar o discurso homogêneo que sustentou o projeto nacionalista. Para tanto, cabe ao intelectual reconhecer, a partir do questionamento dos critérios definidores da cientificidade de seu discurso, a perda da autoridade que sempre conferiu às suas narrativas uma posição privilegiada na ordem dos saberes. Desse deslocamento decorreria, no discurso teórico da atualidade, o uso reiterado das metáforas do labirinto, da rede, do mapa ou do rizoma, em substituição à imagem da árvore do saber. Com elas, recusa-se a verticalidade hierarquizante que garantiu durante séculos a força da voz autoral. Entretanto, ainda resta ao intelectual de hoje a alternativa do diálogo.

A proposta do GT de Literatura Comparada caminha nessa direção. Assumindo o rompimento com uma perspectiva individualista de produção de conhecimento, busca-se desenvolver coletivamente o projeto exposto, buscando-se – não sem dificuldades – conseguir que seus participantes atuem realmente como um grupo de trabalho. Longe da tentativa de recuperação do espaço de ação do intelectual moderno, o que deve importar-nos é a tentativa de construir na universidade uma comunidade de pensadores capaz de romper com as idéias de unidade, identidade e consenso, instaurando, em seu lugar, o dissenso, a descontinuidade e a inconclusão do processo de aprendizagem. Tal proposição parece ir ao encontro dos últimos escritos de Michel Foucault, que apelam para a formação de comunidades organizadas em torno da amizade, por ele entendida como um processo agonístico de convivência e experimentação. Longe de conceber as relações de amizade como destituídas de hierarquia e de conflitos, o filósofo francês as compreende como “incitação mútua e luta, tratando-se não tanto de uma oposição frente a frente quanto de uma provocação contínua” (ORTEGA, 1999, p.168). Para pensar a formação de tais comunidades baseadas nas relações de amizade, Foucault propõe um processo de produção das verdades, a partir da noção de parrhesía. Por parrhesía, compreende-se a relação com uma alteridade dotada do direito do “franco-falar”, de tudo dizer, aberta e livremente, como forma de promoção do crescimento dos sujeitos nela envolvidos. E é pensando em construir um espaço em que uma vivência da parrhesía se faça possível, que nós organizamos esse evento. Esperamos mesmo que se trate de um Encontro, de   um bom encontro de pessoas que recusam o isolamento em nome da edificação de um mundo compartilhado em comunidade, uma comunidade que não desconhece o fato de também se instituir sobre relações de poder, mas que procura “jogar dentro das relações de poder com um mínimo de dominação e criar um tipo de relacionamento intenso e móvel, que não permita que as relações de poder se transformem em estados de dominação” (ORTEGA, 1999, p.168).   Daí a opção pela forma do seminário, com a apresentação de reflexões desenvolvidas pelos professores convidados a partir de textos teóricos escolhidos em função de um eixo temático e colocados à disposição de todos os alunos e professores que desejarem participar da discussão.

Para terminar, gostaríamos de registrar que ficamos muito felizes em tê-los aqui, professores e alunos, numa noite em que se deseja, antes de tudo, prestar uma homenagem a um crítico e escritor que ousou chamar a atenção para a necessidade de se refletir sobre o que fica recalcado no discurso do intelectual. Que o exemplo de coragem do mestre Silviano Santiago, um dos pensadores fundamentais para o desenvolvimento dos estudos latino-americanistas no Brasil, nos inspire em nossa jornada. Obrigada!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BEVERLY, John. Against literature. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1993.

 

BRUNNER, José Joaquín. América Latina: cultura y modernidad. México: Grijalbo, 1992.

 

CANCLINI, Néstor García. La modernidad después de la posmodernidad. In: BELLUZZO, Ana Maria de Moraes (Org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial/UNESP, 1990, p.201-237.

 

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1987.

 

CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Crítica de la razón latinoamericana. Barcelona: Puvill Libros, s.d.

 

MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença; a política dos estudos culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

 

ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

 

TRIGO, Abril. De la transculturación (a/en) lo transnacional. In: MORANÃ, Mabel (Org). Ángel Rama y los estudios latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana/Universidad de Pittsburgh, 1997, p. 147-171.

 

 

Reinaldo Marques – O pensamento crítico latino-americano e seus impasses

           

            Coube-me aqui a tarefa árdua, e ao mesmo tempo estimulante, de discutir um texto de Alberto Moreiras, professor de literatura latino-americana na Duke University (EUA), intitulado “Condições da crítica latino-americanista”. Trata-se da introdução de seu livro A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001), cujos ensaios procuram pensar, a bordo de uma operação metacrítica, as condições de possibilidade da reflexão latino-americanista no interior da globalização.

            Preocupado em delinear caminhos para uma reflexão contínua sob as difíceis condições do presente, o pensamento de Moreiras revela-se ousado, polêmico e áspero. Ousado por formular propostas que se situam no limiar do tramável pela imaginação histórica, tentando vislumbrar um horizonte de possibilidades para os impasses teóricos que nos acossam. Polêmico, por não se furtar à crítica, falando do viável e do inviável. E áspero, pela contundência de um excesso (louvável) de negatividade crítica, que o leva a se confrontar com diferentes posições teóricas e críticas do pensamento latino-americanista de passado e do presente (José Martí, Rubén Darío, José Enrique Rodó, José Vasconcelos, Fernando Ortiz, Angel Rama, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Néstor G. Canclini, Jorge Castañeda, Silviano Santiago), examinando-as detalhadamente, em suas possibilidades e limites. Áspero ainda pelo cerrado cabedal de categorias teóricas que mobiliza, pela intrincada rede de citações e remissões que alavanca o seu pensamento. Mas uma aspereza que desafia o seu leitor, interpelando-o com freqüência pelas questões que propõe, dissolvendo as ilusões de uma solução redentora para os conflitos do nosso presente. Tudo isso aliado a uma linguagem que acolhe as construções paradoxais, traindo uma contaminação nietzschiana, sem procurar dissolvê-las nas análises que empreende. É o paradoxo mesmo que espicaça e desdobra a sua reflexão.

            O próprio Moreiras explicita bem as linhas teóricas e históricas de seu trabalho, ancorado no pensamento pós-marxista, na filosofia desconstrutora, nos estudos subalternos. Mas percebo em sua reflexão também uma forte ancoragem em categorias nietzschianas e foucaultianas, como as noções de força, poder, discurso. A organização de seu livro a partir de uma pequena constelação de temas ou propostas teóricas, enfocando-os de forma segmentada, seletiva, revela o abandono de uma perspectiva generalista ou totalizante, mesmo tendo defino o latino-americanismo como “a soma total de representações que dizem respeito à América Latina enquanto objeto do saber” (p.36).

            A fim de cumprir a tarefa que me foi estabelecida, a de apresentar e discutir o referido texto, adotarei a seguinte metodologia: num primeiro momento, exporei sucintamente o que diz o texto de Alberto Moreiras; num segundo, dialogarei com o seu texto, colocando algumas perguntas para a nossa reflexão e vendo o que ele nos permite dizer sobre o nosso que-fazer com os estudos literários e culturais, enquanto latino-americanistas brasileiros.

 

O que diz o texto

 

            Moreiras parte da constatação de que a reflexão latino-americanista, entendida como “o conjunto do discurso acadêmico sobre a América Latina”, praticado na própria AL, nos EUA ou na Europa, constitui um campo marcado pela separação entre trabalho intelectual e seus meios de produção, traduzida como um sintoma de expropriação na distância irredutível entre o objeto (o latino-americano) e a intenção apropriadora (o discurso teórico). Como parte desse quadro, encontram-se os debates em torno da “relativa substituição do aparato tradicional dos estudos literários pelos estudos culturais na reflexão transnacional sobre a cultura latino-americana” (p.11), em que pesa o fluxo unilateral do discurso universitário norte-americano para as academias latino-americanas. Na raiz desse quadro estão mudanças ocorridas nas condições de possibilidade do próprio discurso latino-americanista, nos anos 90, com o fim da polarização decorrente da Guerra Fria, com a implosão dos estudos de área. Uma mudança geocultural em função da expansão do capitalismo global, cujos desdobramentos afetaram as relações entre o particular e o universal, o local (pulsões latino-americanistas) e o global (universalismo científico, por exemplo).

            Moreiras observa então como a filologia, instrumento para a universidade moderna refletir sobre o social a partir do legado cultural da comunidade nacional, no contexto do séc. XVIII (Romantismo), foi hegemonizada pelo aparato literário, que excluiu ou subordinou a atenção dada a outros elementos simbólicos, capazes de explicar o processo cultural. Agora (anos 1990), é a literatura (promessa de autonomia estética e transformação espiritual da existência) que se vê ameaçada, negada, pelos estudos culturais latino-americanos, acusados de politizar tudo sem considerar os valores propriamente estéticos (base da reprodução do intelectual humanista desde o Romantismo). Por isso, Moreiras advoga a necessidade de uma investigação hoje do estatuto do estético, se a estética pode funcionar ainda como abertura para um “fora” do social ou da história. Mas o que está em questão nesse confronto dos estudos literários com os estudos culturais, para ele, é a especificidade da função crítica nas ciências humanas, que não pode ser monopolizada por nenhuma das partes.

            Importa destacar desde já que, para Moreiras, o que está em questão não é nem a literatura nem a cultura, mas os aparatos discursivos, acadêmicos, que pretendem estudar uma e outra. Assim, deixa claro que “a crítica literária é hoje insatisfatória em suas formas e objetos tradicionais, e não pode mais alegar o status que possuiu no passado enquanto árbitro da cultura nacional” (p.13). Deu sinal disso, num primeiro momento, a irrupção da reflexão teórica nos departamentos de literatura e, em seguida, a emergência dos estudos culturais enquanto novo instrumento de articulação hegemônica, frente à impotência da crítica literária para formular estratégias contra-hegemônicas viáveis. De sorte que todos somos, hoje, interpelados por essa substituição do antigo pelo novo.

            A fim de poder avançar na reflexão sobre o quadro presente, Moreiras recorre a uma diferenciação entre teorias “culturais” e “aculturais” da modernidade, proposta por Charles Taylor, permitindo distinguir a modernidade como “modernização” (teleologia para uma racionalização instrumental do mundo) do uso histórico do conceito de modernidade em termos do impacto diversificado do capitalismo em outras sociedades. Para Taylor, importam as noções “culturais” de modernidade, reveladoras de que não há uma só modernidade mas modernidades alternativas múltiplas, cabendo à reflexão das ciências humanas compreendê-las em sua especificidade histórica. A existência dessas modernidades alternativas demonstra que a história do capital e a história do poder social (estado constitutivo da esfera simbólica em qualquer formação social) não coincidem, não são idênticas. Investigar essa não-identidade constitui, segundo Moreiras, a investigação mesma dessas múltiplas modernidades.

            A reflexão latino-americanista sobre a especificidade da modernidade alternativa latino-americana transcorreu predominantemente na perspectiva das teorias culturais da modernidade, a partir dos conceitos de identidade e diferença. Grandes figuras da tradição latino-americana foram culturalistas, no sentido de Taylor: Bello, Sarmiento, Martí, Rama, Cornejo Polar, A. Reyes, Henríquez Ureña, Antonio Candido, Rodríguez Monegal, Fernández Retamar. Com os estudos culturais, continuou em vigor a lógica dos conceitos já gastos de identidade e diferença, que os estudos culturais latino-americanos transplantaram para novos textos, elaborando as mesmas categorias historiográficas.

            Pensar uma alternativa para além do jogo entre identidade e diferença, um novo caminho para a razão crítica interpelada pelo presente, vislumbrando possibilidades de renovação, é a tarefa que se impõe então Moreiras. Parte da constatação de que, se os estudos culturais, ao incluírem outras textualidades (o texto cinematográfico, o texto dos movimentos sociais, por exemplo), procurou ler a especificidade cultural a partir de repertório maior de discursos, não logrou todavia criar novos instrumentos de leitura para lidar com a perda da capacidade técnica dos leitores que, treinados para a apreensão do literário, não conseguiam transferir sua atenção para o não-literário. E mais, os estudos culturais não conseguiram criar um novo paradigma dentro da reflexão latino-americanista, não passando de replicação de uma mesma coisa. Assim, os estudos literários – o antigo – e os estudos culturais – o novo – sofrem de um anacronismo semelhante.

            A pergunta que se coloca então diz respeito ao motivo real da disputa entre estudos culturais e estudos literários, dado que compartilham do mesmo conceito de razão crítica que, na avaliação e defesa do propriamente latino-americano dentro da modernidade alternativa da América Latina, afirma um espaço identitário de resistência (em âmbito continental, nacional e intranacional). Cabe ver que conceito real de crítica está em jogo e quais as possibilidades de renovação.

            Moreiras descortina então o conflito entre os latino-americanistas que não são latino-americanos – pensam a AL a partir de sua localização na universidade cosmopolita, apoiados nos modismos metodológicos do discurso universitário hegemônico-mundial, e os latino-americanistas latino-americanos, cuja novidade nunca é suficientemente nova e que busca sua legitimação na postulação da localização como redenção final. Localização dúbia, ao funcionar ao mesmo tempo como fonte de legitimação de uns e de deslegitimação de outros. Trata-se de buscar a localização “adequada”, legitimadora, mas tal discurso de adequação nunca é seguro, pois baseado na expropriação da inadequação do outro.

            No Congresso da Abralic de 1996, no Rio de Janeiro, esse conflito eclodiu, com a manifestação dos sentimentos por parte dos acadêmicos latino-americanistas tanto dos estudos literários quanto dos estudos culturais. Moreiras procede a uma leitura provocativa do fenômeno, ao observar que, no referido Congresso, tratou-se de resguardar o espaço de se pensar literário contra a intromissão do campo emergente dos estudos culturais. A literatura enquanto disciplina literária, ocupando o lugar da verdade a partir de uma perspectiva institucional, procurou proteger-se de uma estrutura grafemática que ameaçava tomar seu lugar de sujeito, convertendo-a numa mentira. Nesse confronto, em que a diferença entre duas forças exigia a divisão do território, caracterizaram-se duas formas de violência: a violência divisória e fundadora dos estudos culturais (força) e a violência dividida e conservadora dos estudos literários (poder); o poder referente à posição hegemônica do literário e a força, à posição irruptiva dos estudos literários. Trata-se de distinções precárias, para Moreiras, uma vez que a irrupção do novo se tornou conservadora e a preservação do antigo apresentou formas de irrupção novas ou possíveis.

            Dependente de uma estrutura transnacional, a relação entre poder e força no Congresso Abralic invertia a relação anterior dada historicamente: “O que era poder emergente no contexto transnacional [estudos culturais] se converteu em força irruptiva no Brasil, e o que era força residual na esfera transnacional [estudos literários] ocupou o espaço do poder ameaçado no Brasil. (...) força e poder no Brasil respectivamente traduziam o poder e força no espaço transnacional.” (p.18) Moreiras presume então duas posições dentro do Congresso: de um lado, a defesa do aparato literário como defesa de uma ordem nacional ou regional contra uma intromissão de caráter neocolonial, vindo de um espaço transnacional hegemonizado pela metrópole norte-americana, vendo-se o cosmopolitismo transnacionalizante dos irruptores como instrumento imperial; de outro, ponto de vista dos irruptores, a defesa do aparato literário, como defesa do espaço nacional estabelecido, mostrava-se comprometida com a defesa ideológica da dominação social existente dentro da nação contra novas interpelações que a questionavam. Para o crítico, ambas as posições revelam-se simultaneamente verdadeiras (descrevem fenômenos concretos) e falsas (não os descrevem de modo suficiente).

            A polêmica desdobra-se no contexto do latino-americanismo hispânico, na querela de alguns representantes dos estudos culturais da América Latina contra o poder constituído da academia especialmente norte-americana, com os latino-americanistas dos EUA sendo acusados de engajamento num colonialismo cultural “a partir de uma apropriação e reprodução impróprias do objeto cultural latino-americano” (p.19). Essa polêmica, na opinião de Moreiras, não constitui algo alternativo ou suplementar, mas produz impactos sobre a formação e desenvolvimento do campo – debates, conversas, teses –, tornando-se necessária a sua compreensão. Nisso tudo, a questão fundamental em jogo são as condições mínimas para uma crítica efetiva do saber no mundo contemporâneo.

            Essas polêmicas conectam-se com a crise dos estudos de área pós-1989 (queda do Muro de Berlim, fim da polarização da Guerra Fria) na academia norte-americana. Com o fim da contenção produtiva do pensamento segundo os parâmetros da Guerra Fria, o discurso universitário norte-americano se expandiu por diferentes territórios fronteiriços difusos, num processo de desorientação e des-ocidentalização dos estudos pós-área, tornando os discursos e objetos confusos. Processo que comporta alguns riscos: o risco de a desamericanização do saber parecer com seu oposto; o risco de o abandono do referente nacional, o apelo por diversidade e criatividade cultural e o interesse teórico pelo subalterno se tornarem em instrumentos tradicionais para a dominação norte-americana. Assim, os estudos de pós-área, em vez de serem espaço de experimentação na liberdade do saber, se tornariam em mais um “ardil da razão imperialista”, nas palavras de Pierre Bourdieu.

            Para Moreiras, a polêmica entre os estudos culturais e os estudos literários tornou-se repetitiva, chegando a um impasse. E permaneceu a questão fundamental: “será que é possível reafirmar o destino não-imperial da razão crítica, ou será que tal pretensão nada mais é que o movimento último de um Iluminismo exaurido que mal pode sobreviver, apoiando-se na ilusão de que o pensamento e o poder não são a mesma coisa, contra todos os tipos de evidência histórica?” (p.21) Para sair disso, cabe ter em conta que tais debates são sintomas de uma mudança geocultural, que tornou inadequados para sua compreensão os antigos critérios de imperialismo cultural. Moreiras propõe então três hipóteses para se entender essa mudança geocultural. Exponho-as a seguir, de forma bem sucinta.

 

            1a hipótese – Moreiras entende a polêmica entre estudos culturais e estudos literários como uma propaganda enganosa, de base ideológica, e que não deve nos iludir. Não está em jogo a literatura e seu estudo, nem o texto e a leitura, nem a estética. O que temos de lidar é com um deslocamento geocultural, “motivado ou fomentado por uma mudança substancial na estrutura do capital em escala global” (p.22). Sem incorrer numa perspectiva que vê uma causalidade simples entre modo de produção e superestrutura cultural, o que importa é pensar as mediações acionadas nas últimas décadas na expansão e globalização do capitalismo (estrutura financeira do capital, formas de estado, regimes político-sociais de controle, fim da divisão em blocos de poder, novos movimentos intra-sistêmicos) e seus efeitos no campo da produção, distribuição e circulação do saber.

            Essa hipótese é desdobrada pelo crítico em alguns argumentos. Um primeiro argumento diz respeito à nova função subalterna dos estudos literários. Se os estudos literários não constituem mais a instância hegemônica hoje de produção do valor social, porquanto o modo de produção capitalista desenvolve outros tipos de identificações afetivas no mundo globalizado, para cuja compreensão os estudos literários mostram-se insuficientes, isso não inviabiliza o estudo da literatura a partir de um pensamento da irrupção, da força. Ao assumir uma condição subalterna, o que implicou a reestruturação do poder acadêmico, uma nova distribuição do capital cultural do discurso universitário, os estudos literários ganharam possibilidades de desempenhar novo papel no contexto de uma articulação contra-hegemênica “ultra-pós-moderna” (Perry Anderson). Moreiras tira, pois, um corolário dessa primeira hipótese: “é a nova função subalterna dos estudos literários que lhe confere forçosamente potencial irruptivo. Estamos longe de ter acabado com o literário, mas as próprias armas da reflexão literária têm que se reconfigurar hoje de acordo com as configurações emergentes do saber.” (p.23-24)

            Um outro argumento considera o predomínio, dentro da tradição crítica latino-americana das ciências humanas, do paradigma estético-historicista como forma de apreender as especificidades das modernidades alternativas do continente. Tal tradição diverge da perspectiva endossada por Moreiras, que associa o estudo das modernidades alternativas com a falta de coincidência entre história do capital e história do poder social, e atribui ao exercício da razão crítica a busca da compreensão da totalidade das relações sociais que nos determinam por meio da imaginação histórica. Ora, o projeto estético-historicista levava a um reforço da especificidade do poder social latino-americano exatamente contra um exterior ameaçador, o capitalismo monopolista. Formuladas as nossas especificidades em termos de resistência contra um fora invasor, a razão crítica desse período tendia a se fechar nas singularidades, sem dar conta da compreensão da tal totalidade das relações sociais. Isso é que vai constituir os valores de um modernismo historicista (“Nuestra América” de Martí, “A Roosevelt” de Rubén Darío, Ariel, de José Enrique Rodó). Segundo a avaliação de Moreiras, a estética não passa então de uma via para o historicismo, visto este, enquanto historicismo culturalista, como meio de satisfação estética. E o próprio estado nacional-popular, que controla a produção simbólica ao longo de quase todo o século XX, não deixa de ser uma forma de estetização da política.

            Os estudos culturais haverão de contribuir para a destruição desse paradigma estético-historicista ao intuir como preconceito ideológico o entendimento da cultura de determinada formação social enquanto círculo hermenêutico (a idéia de que entender a cultura própria ou alheia significa entrar no círculo hermenêutico constituído por essa cultura). Tal círculo se desenha em função da constituição da esfera pública, do espaço de poder social, e nunca se fecha. Assim, em relação à historicidade latino-americana, Moreiras postula a radicalização dos estudos culturais; trata-se de buscar o que restou para além da transculturação, o exterior da circularidade hermenêutica, o que foi subalternizado como o exterior constitutivo da relação hegemônica. Tal radicalização demanda uma revisão do caráter fundamental do objetivo da razão crítica que, nos estudos culturais, já não é mais estético-historicista; ao contrário, se faz na desconstrução do binarismo dentro/fora em que se apóia qualquer historicismo e a teoria cultural da modernidade.

            O desafio é o de pensar possibilidades irruptivas de uma linguagem pós-estética e pós-historicista, que Moreiras acredita retidas ainda pela promessa literária. O que levaria o ato de pensar para dentro de um pensamento em ruínas, situação capaz de definir o trabalho intelectual no nosso presente. E aqui cabe uma crítica ao pensamento localizado, que se lança na busca de uma “linguagem pura” através do trabalho literário da tradução, vendo-se como algo diverso de um pensamento nas ou sobre as ruínas. Como observa Moreiras, tomando-se a história como história do poder e da resistência, o pensamento localizado procurou resgatar a historicidade da resistência como sendo ela própria uma forma de poder, constituindo-se já como uma forma de expropriação da história e do pensador. De modo que não tem ele o direito de assumir a negação subalterna por pensar também a partir do discurso colonial.

 

            2a hipótese – A segunda hipótese de Moreiras constata o fato de que os estudos culturais estão perdendo sua força irruptiva e divisória em decorrência de seu processo de expansão transnacional. Presa a uma lógica da reiterabilidade, boa parte deles se transformaram em poder social a serviço da reprodução ideológica do capitalismo. Suas estratégias irruptivas (dotadas de violência fundadora) acabaram domadas em prol de novas codificações do valor social. Contudo, cabe ainda a defesa, não incondicional, dos estudos culturais contra formas reacionárias do trabalho intelectual, ativando sua marca grafemática contra o lugar da verdade. Em oposição à divisão redutora do campo intelectual humanista entre crítica literária e crítica cultural, carece de preservar o exercício da imaginação histórica, ponto de partida de uma rearticulação emergente da razão crítica. Mais que isso, deve-se procurar articular a literatura e a cultura, pelo exercício da imaginação histórica, a fim de romper com os binarismos.

            Nessa hipótese, há também alguns argumentos que a desdobram. Um deles tem a ver com a localização crítica de Moreiras, perceptível em sua apropriação de dois livros: The Cultural Turn, de Fredric Jameson, e The Origins of Postmodernity, de Perry Anderson. Reavaliando a teoria jamesoniana da pós-modernidade, Anderson observa nela, no contraponto estabelecido nela entre um “plano de substância” – a economia política – e um plano da forma – o estético –, tanto a redução do político a um papel menor ou subsidiário dentro do sistema, quanto a ausência de Gramsci, o grande pensador do círculo hegemônico e de sua contraparte, o poder subalterno. Moreiras relaciona essa omissão de Gramsci com “a determinação da pós-modernidade como o momento de desenvolvimento capitalista no qual ‘a cultura se tornou efetivamente co-extensiva do econômico’” (p.31). Ou seja, e seguindo aqui as pegadas de Jameson, na linguagem pós-moderna há uma nova dimensão cultural independente do mundo real, não em razão de uma autonomia da arte, mas porque o mundo real já estava saturado e colonizado pela cultura enquanto co-extensão do capitalismo. 

            Dessa maneira, a história do capital e a história do poder social se tornam uma só história na pós-modernidade plena, anulando a noção de um lado de fora, articulador do círculo hermenêutico. Fator que coloca em xeque seja o projeto da razão crítica da modernidade baseado na falta de coincidência entre forma e conteúdo social, seja o projeto estético, assentado também na idéia de um lado de fora inalcançável. Uma vez que, com a expansão do sistema já não existe a noção produtiva do lado de fora, a questão consiste agora, para Moreiras, em saber onde ativar uma força irruptiva intra-sistêmica, um tipo de imaginação histórica capaz de levar a uma reformulação do projeto de razão crítica em termos político-epistemológicos.

            Um segundo argumento está diretamente relacionado a uma possibilidade de articulação política enquanto movimento intra-sistêmico dentro da pós-modernidade. Possibilidade que Moreiras detecta numa outra observação de Perry Anderson, relativa ao fato de a amizade e a inimizade serem frutos da eterna redivisão do campo social. Aponta então a amizade como instância capaz de oferecer a possibilidade crítica intra-sistêmica, ou, nas palavras de Derrida, como “um pensamento de ruptura e interrupção sem precedentes”. E esclarece:

 

o que Derrida imagina como abertura radical para o inimigo procede também da absoluta subsunção do outro em um mesmo, que é parte intrínseca do pós-modernismo jamesoniano. Quando já não há um lado de fora imaginável, tampouco há, pela mesma razão, um lado de dentro que permita a simples divisão do terreno do político entre amigos e inimigos. O colapso da distinção clássica, o fim do amigo e o fim do inimigo, marca a nova possibilidade aporética do amigo, e também do inimigo. (p.33)

 

 

            Importa, pois, assumir o risco do novo amigo a partir do pensamento nietzschiano do “talvez”. Trata-se da possibilidade de uma razão política e crítica do saber fortemente vinculada à comunidade literária, agora num sentido pós-estético e não apenas moderno, conforme coloca Derrida. Uma forma de se contrapor à “mercadorização da localização no pensamento localizado” (ou seja, a conversão da expropriação em adequação e em propriedade) como produto indesejado mas estrutural do trabalho literário da tradução, e de resistir à subsunção do trabalho intelectual pelo capital.

 

            3a hipótese – Consiste na percepção de que “a tarefa em nosso presente se faz mais clara e urgente que nunca, precisamente em virtude de sua opacidade aporética” (p.34). Em outras palavras, exatamente no momento em que uma força emergente é reificada é que se abre instaura a promessa de uma verdadeira tarefa do pensamento. Entendendo a prática teórica como “a resistência a qualquer processo de mercadorização ou reificação de formas, sejam elas estéticas, de valoração ou conceituais” (p.34), Moreiras espera que a crítica dos estudos culturais favoreça projetos de reformulações teóricas capazes de promover uma ruptura sem precedentes.

            Nessa direção, a reflexão latino-americanista apresenta uma situação privilegiada para promover tais reformulações, tendo em vista os cruzamentos civilizacionais ocorridos na América Latina, sua posição intermediária em relação aos processos de globalização. Mas é preciso assumir a necessidade de pensar tal encruzilhada e correr o risco do fracasso. Nessa empreitada, como crítica ao pensamento translacional, que promove a integração adequada aos circuitos da conformidade, Moreiras recomenda

 

[u]m excesso não-translativo deve marcar a reflexão latino-americanista como sua primeira e última condição para a existência crítica: como possibilidade de sua existência enquanto prática teórica e comunidade de amigos. Pela mesma razão o pensamento localizado deve ceder lugar a uma atopia suja, um suplemento da localização, sem o qual a localização chega ao seu próprio fim e se torna uma ruína do pensamento. A atopia suja aqui é um nome para um programa não-programável de pensamento que se recusa a buscar a satisfação na expropriação, ao mesmo tempo que se recusa a ceder a pulsões expropriadoras. É suja porque sua desincorporação não gera pensamento; é atópica porque nenhum pensamento se esgota em suas condições de enunciação. Isso não nos livra da crítica; pelo contrário, torna possível a crítica. (p.35-36)

 

 

O que o texto nos possibilita dizer, questionar

 

            Uma primeira consideração que o texto me suscita diz respeito à sobrevivência da literatura em tempos de crise, mudança de paradigmas, deslocamentos geoculturais. Ao promover uma clara distinção entre a literatura e os estudos literários, isto é, o discurso crítico sobre a literatura produzido no interior da universidade, o texto pode propiciar um certo alívio da ansiedade e do desconforto naqueles que vêem, com os estudos culturais, a pós-modernidade, o fim iminente e inevitável da forma literária em suas diversas manifestações. A literatura continua viva, agora certamente entrecruzada com outras linguagens e formas artísticas, discursivas, operando novas mediações. Não mais aquela que operava no mundo moderno, como mediadora da relação entre a sociedade, a razão, o saber, e o Estado-nação, na sua condição de centro da cultura (veja a propósito o cap. III do livro de Moreiras, “Ficções teóricas e conceitos fatais”, em que oferece uma exposição clarividente do deslocamento operado em relação à literatura e aos estudos literários). Livre da obrigação de ser o centro da cultura, a literatura se deslocou para outras bandas e possibilidades de seu ser, assumindo o livre vôo de uma liberdade inaudita, selvagem. O que está em questionamento mesmo, e pra valer, é o nosso saber sobre a literatura, o campo disciplinar dos estudos literários que conforma os nossos currículos dos cursos de Letras. Campo de saberes disciplinados e normalizados pela racionalidade da universidade moderna, com seu estoque de categorias, procedimentos e perguntas regulados pela força controladora do método, que recusa outras possibilidades de indagações e caminhos. Então, o que temos de lidar é com a falência do nosso campo disciplinar, reinventando outras possibilidades de abordagem da literatura e da cultura. De toda sorte, o nosso objeto de investigação parece escapar airosamente das crises e transformações; e o nosso emprego garantido, pelo menos por enquanto.

            No amplo quadro descrito por Moreiras, como se viu, há uma substituição tendencial do aparato dos estudos literários, tornado insuficiente para lidar com o deslocamento geocultural operado no mundo pós-moderno, pelo aparato dos estudos culturais, replicando o literário. No entanto, como se viu, as posições de cada um, enquanto elemento residual e força irruptiva ou enquanto poder hegemônico, não deixa de depender de seu lugar de inscrição, conforme demonstra o ocorrido no Congresso da Abralic. Aqui, os estudos literários constituíam um poder, uma instância hegemônica, com os estudos culturais apresentando-se como dotados de caráter irruptivo, contestador, ao passo que, nas academias norte-americanas, os estudos culturais já seriam o poder, e os estudos literários o elemento residual e transgressor. Em termos da academia brasileira, importa saber em que medida esse quadro dos anos 90 já teria se alterado significativamente, com os estudos culturais tornando-se hegemônicos entre nós. Na minha percepção, as análises culturais por aqui ainda não se consolidaram efetivamente nas nossas universidades, processo em que correm o risco de sua institucionalização e a perda de sua força irruptiva. Embora já profundamente questionado, prevalece entre nós o paradigma estético-historicista modernista de afirmação da singularidade da nossa modernidade alternativa, conforme formulado especialmente pelo modelo uspiano. Obviamente que já estamos num quadro mais diferenciado, nuançado, de forças em relação.

            Um outro ponto que gostaria de ressaltar, para uma discussão do texto de Moreiras, tem a ver com um certo desconforto meu quanto ao seu enquadramento excessivamente acadêmico, perceptível nas manobras retóricas, no modelo argumentativo de seu texto. Isso apesar de toda a crítica que dirige à universidade moderna, evidenciando, na esteira de Willy Thayer, sua falência “como centro nacional estatal hegemônico, de controle e liderança da pesquisa e da docência”[i]. Com efeito, a universidade moderna se constitui num sistema totalitário ao pretender, em sua “avidez totalitária”, a reunião de todos os saberes, normalizados, regulados e hierarquizados por ela, em um só, seguindo a divisa moral do saber ocidental: “bom é o que reúne; mal o que dissolve”. De sorte que dela ficaram excluídos os saberes selvagens, ou não-saberes, que não se submetiam aos ditames da instrumentalização metodológica, acossando os seus muros.

            Diante disso, dado que a reflexão latino-americanista não se reduz ao discurso acadêmico, caberia a indagação a respeito de que outros discursos, de que outras subjetividades tomam a América Latina, ou dimensões dela, como objeto de reflexão e dela também se apropriam, evidenciando outras facetas e operações do trabalho intelectual. Pensar uma produtiva articulação entre os estudos culturais e os estudos literários, como possibilidade de salvaguardar uma razão crítica latino-americana, de liberação de forças irruptivas intra-sistêmicas, significa uma discussão efetiva tanto do modelo de universidade que estamos endossando, ou que queremos, quanto dos currículos e metodologias dos cursos de Letras, para ficar aqui na nossa área. Não seria o caso de se fazer desses outros discursos e subjetividades, daqueles saberes selvagens (penso nos saberes populares produzidos nas dinâmicas dos movimentos sociais por diferentes atores, nos diferentes saberes artísticos, por exemplo), subalternizados enquanto não-saberes, o núcleo dinamizador de uma profunda reconstrução da práxis universitária? Isso não implicaria demolir os muros que separam um saber instituído, legitimado pela academia, dos saberes subalternizados, estigmatizados como não-saberes?

Embora se situando no campo do pensamento pós-marxista, a reflexão de Moreiras recorre a categorias do aparato crítico marxista, como o fetiche da mercadoria, a noção de expropriação, a importância da totalidade. Se há uma sobredeterminação da superestrutura pelo modo de produção, entretanto, não se trata de uma relação mecânica, de simples causalidade, como ele reconhece. Subjaz ao modus operandi de seu raciocínio a idéia de que, na medida em que se modificam as condições materiais de produção de um discurso, isso acarreta uma mudança na forma de percepção de seu objeto, alterando o seu estatuto. Trata-se de um princípio que norteou a reflexão de Benjamin, de um Benjamin mais impregnado pelas formulações marxistas, a respeito da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. No caso da reflexão latino-americanista, de acordo com Moreiras, salientam-se as mudanças nas condições de possibilidade do discurso latino-americanista nos anos 90, fruto daquele deslocamento geocultural apontado acima, com a separação entre trabalho intelectual e seus meios de produção, um sintoma de expropriação.

O que lhe interessa mais, entretanto, são as mediações existentes na relação entre condições materiais de produção e a superestrutura, que passam pela cultura, pelo político, pelo discursivo. Nessa direção, importa considerar a categoria da totalidade e suas conexões com as particularidades, tendo em vista que, hegelianamente, o todo é mediado pelas partes e as particularidades só se tornam inteligíveis no movimento da totalidade, no caso: a totalidade da vida social. Daí a reivindicação de Moreiras no sentido de se buscar a compreensão da totalidade social, em que se sobressai o papel relevante do deslocamento do capital financeiro dentro do capitalismo tardio, como forma de se entender mais adequadamente as questões atinentes à reflexão latino-americanista, a exemplo daquelas relacionadas à briga entre estudos literários e estudos culturais latino-americanos. Ocorre que essa totalidade não é um dado a priori da análise, mas constitui-se sobretudo no processo analítico, a partir de uma complexa rede discursiva e de suas operações retóricas. Como não há mais um fora, como cultura e capital se fundiram, em que medida então a apreensão dessa totalidade não se deixa marcar pela lógica do sistema, não se articula como sombra e derivação da razão imperial? Mais ainda, se estamos todos dentro da razão imperial, em que tudo vira mercadoria (o saber, inclusive), tudo é incorporado pelo sistema – as diferenças, o heterogêneo, o seu outro, o outro do outro, etc. –, acabamos em certa medida num mundo sem saída, ou em que as saídas são utópicas, e com isso o nosso horizonte é sempre um para além de, conduzindo a uma atmosfera que não deixa de ser agônica e melancólica. Pela contundência de sua negatividade crítica, da reflexão de Moreiras parece não sobrar nada, conquanto busque vislumbrar possibilidades irruptivas. Além do que, mergulhados no mundo do consumo, em que tudo é remercadorizado, a mercadoria com seu fetiche despontam como algo intrinsecamente mau, contra o que se deve lutar permanentemente. A mercadorização da diferença, do heterogêneo, constitui a razão de uma “exaustão da diferença”, indicando que a própria diferença não passa de uma demanda e construção do sistema, da razão imperial. Dentro desse enquadramento é que se pode entender a noção de contraconsumo, como “instância negativa contraconsumptiva dentro do próprio consumo cultural” (ver o ensaio “A globalidade negativa e o regionalismo crítico” com suas noções de “fissura narrativa” e “globalidade negativa”) A meu ver, essa noção de contraconsumo, do consumo como possibilidade de exercício da cidadania, tomada a partir de Canclini, constitui uma forma de relativizar o caráter negativo da mercadoria.

            Finalizo essa discussão com mais duas breves observações. A primeira refere-se à postulação da amizade, das políticas da amizade, como uma possibilidade irruptiva intra-sistêmica. Ela promove um deslocamento do campo racional para o campo dos afetos, fundindo o político, o racional, e os afetos, cujas mediações e conseqüências precisam ser pensadas. Assinala a também um deslocamento de uma perspectiva da fratria para a da filia, marcada esta pela livre escolha, pela gratuidade, sem hierarquizações. Mas como pensar isso no âmbito de uma universidade cada vez mais transnacional e competitiva, de uma competição em nível global? Que gestos de construção do novo amigo são possíveis num contexto de exigências de produtividade e consumo dos saberes?

            A segunda observação refere-se ao pensamento localizado. Quanto a isso, Moreiras parece estar se contrapondo a posições como as de Hugo Achugar, que defendem a relevância epistêmica do lugar de onde se fala e de onde se lê. O objetivo do professor da Duke University é o de desconstruir o privilégio epistêmico do pensamento localizado, especialmente em função da dissolução do binarismo dentro/fora. Todavia, o seu lugar de enunciação não imantaria essa sua desconstrução da localização legitimadora, necessária ao novo posicionamento do intelectual no mundo globalizado, pós-moderno, não mais referenciado em termos das lutas de classes, como no mundo moderno? Desconstruir o pensamento localizado não poderia servir também ao sistema, como estratégia de construção de um novo intelectual, desreferenciado e desterritorializado?

            São questões que deixo como convite ao prolongamento de nossa conversação, aqui ou em outros lugares.



[i] THAYER, Willy. A crise não moderna da universidade moderna. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. p.17.

 

Renato Cordeiro Gomes – Os cosmopolitismos em Silviano Santiago

 

O cosmopolitismo é um tema recorrente em Silviano Santiago, tanto na sua obra de ficção como em sua produção de crítica literária e crítica cultural. Um cosmopolitismo que se situa a partir da margem, de uma província ultramarina, e que busca enfrentar questões que vão desde o nacionalismo, a identidade moderna da cultura brasileira, o papel do intelectual moderno e pós-moderno, a viagem ao estrangeiro, as tensões entre as culturas locais e as globalizadas, a relevância dos meios de comunicação, sem esquecer o conceito de entre-lugar trabalhado desde o ensaio de 1971, ao romance Viagem ao México (1995), um conceito que se repete em-diferença, passando pelo ensaio “Apesar de dependente, universal” (de Vale quanto pesa). Nesse périplo, diz Silviano: “a leitura de Minha formação, de Joaquim Nabuco, me ajudou a dar o último passo, assim como a experiência de ter visto o filme de Manoel de Oliveira, Viagem ao começo do mundo (1997). E, finalmente, está sendo também importantíssima a leitura de El laberinto de la soledad, de Octavio Paz, de onde extrai a figura do pachuco, que se tornou o novo avatar do entre-lugar.  (...) Somados todos, comecei a trabalhar a questão da diáspora, de uma perspectiva lusa, luso-brasileira, hispano-americana, latino-americana. Cada adjetivo carreia consigo os problemas específicos, tanto geográficos quanto sociais e econômicos, decorrentes da situação em análise. Acabo de escrever um ensaio, As raízes e o labirinto da América Latina, que dará ao leitor – para o bem e para o mal - o último formato da questão”.

            Por esse viés, perpassa a questão do cosmopolitismo, contextualizada num tempo (o nosso) em que se experimenta o processo de aceleração da história marcado pela superabundância de fatos e informações e pela emergência de interdependências em escala inédita no sistema-mundo; quando se experimenta uma nova relação com o espaço, cuja superabundância se expressa através de mudança de escala decorrente do desenvolvimento tecnológico, que permite cada vez mais deslocamentos rápidos e intensos, e da multiplicação de referências energéticas e imaginárias; quando tais mudanças produzem significativas alterações na configuração espacial, quando se intensificam os processos de migração, crescem assustadoramente as concentrações urbanas e se multiplicam os não-lugares (também na acepção de Marc Augé), ou seja, espaços voltados à não-permanência, à circulação acelerada de pessoas e bens; quando, paradoxalmente, se dá a afirmação das particularidades, quando indivíduos submetidos às imposições globais da sociedade, têm a possibilidade de desviar-se delas, através de estratégias de singularização, que podem funcionar como contraponto ao acelerar do tempo, à experiência da desterritorialização e aos efeitos da homogeneização. Ou, em outros termos, dá-se a intensificação da interdependência transnacional e das interações globais e, paradoxalmente, o desabrochar de identidades regionais e locais, ou seja, de um lado, as experiências do global, de outro, os processos de afirmação de identidades pontuais e locais frente ao conceito de Nação e da identidade nacional em crise, como já apontou Boaventura de Souza Santos, em Pelas mãos de Alice (1996), formulação retomada por Eneida Leal Cunha, no ensaio “Literatura e identidade” (1997/98).

Essas contradições põem em xeque o compromisso com o espaço cultural e geográfico de origem – o local, com o processo de desapropriação pelo global, sobretudo se considerarmos que seja bem provável que estejamos vivendo o final da construção romântica das literaturas nacionais. Como tais questões deste início de século permitem rever as tensões entre o nacional e o cosmopolita, entre a cultura local e a cultura mundial? Cabe então perguntar se, na reflexão sobre o lugar e a forma de produção do conhecimento contemporâneo, há um sentido único quando se refere a “cosmopolitismo”. Essa é um tipo de provocação que os textos de Silviano incitam, e vêm juntar-se a idéias estampadas na introdução assinada por Carol A. Breckenridge, Sheldon Pollock, Hommi K. Bhabha e Dipesh Chakrabarty da coletânea Cosmopolitanism por eles editada, que não à toa se intitula exatamente “Cosmopolitanisms” (no plural). Afirmam eles que “especificar positivamente e definitivamente cosmopolitismo é uma coisa não cosmopolita” (2002: 1). É para eles, como para Silviano, uma categoria histórica que deveria ser considerada inteiramente aberta e não um conceito determinado a priori pela definição de uma sociedade ou de um discurso particular. Impõe-se, então, – é a lição da referida coletânea com ensaios de intelectuais de várias procedências – repensar o conceito dos diversificados cosmopolitismos, num solo histórico, a partir dos dias atuais, em que novos modos de simbolização e ritualização dos laços sociais se tecem pela mediação das redes comunicacionais e dos fluxos informacionais (Martín-Barbero, 2001 e 2004); em que as formas e forças de identidade são menos sociais e mais culturais (Touraine, 1994). Em tal contexto a circulação prevalece sobre a produção, que também define o padrão geográfico, já que é mais densa, mais extensa, e detém o comando das mudanças de valor do espaço – observa Martín-Barbero (2004, p. 260).  E acrescenta, para destacar que a nova significação do mundo não é derivável do Estado-nação:

 

as redes põem em circulação fluxos de informação e movimentos de integração à globalidade econômica, a produção de um novo tipo de espaço reticulado que debilita as fronteiras do nacional e do local ao mesmo tempo em que converte esses territórios em pontos de acesso e transmissão, de ativação e transformação de comunicar e de poder” (Martín_Barbero, 2004, p. 260).

 

Tais questões permitem rever as tensões entre o nacional e o cosmopolita, entre a cultura local e a cultura mundial. Neste momento pós-moderno, pós-colonial e pós-nacional, o cosmopolitismo não pode mais ser articulado a partir de um único ponto de vista, de uma mono-lógica. É necessário levar em consideração a diversidade e o discurso dos que estão à margem.

Parece ser sintomático que o ensaio “O cosmopolitismo do pobre” foi publicado originalmente na revista bilíngüe Margem/Márgenes[1] (n.2, dez 2002), revista de cultura que fora, antes, Caderno de Cultura, cujo n. 2 (out. 2001) estampou ensaio “Uma propuesta para el nuevo milenio”, de Ricardo Piglia. Este ensaio elege como idéia central o que ele chama de desplazamiento, distancia, cambio de lugar, o que significa “sair do centro, deixar a linguagem falar também das bordas, no que se ouve, no que chega de outro”. Esse núcleo é retomado e ampliado na conferência apresentada em Cuba, na Casa de las Américas, em 2000, que constitui o “livrinho” Tres propuestas para el próximo milênio (y cinco difucultades), publicado em 2001 pela Fondo de Cultura Económica.

O ensaio de Silviano que acabou dando título a uma coletânea publicada pela Ed. UFMG, pode perfeitamente inscrever-se nessa figura de deslocamento para a margem que caracteriza o cosmopolitismo do pobre, como é “pobre” todo o cosmopolitismo que se define a partir da margem, fora dos centros hegemônicos, diz o autor em entrevista recente (a ela voltaremos). Esse deslocamento da voz está atrelado ao que Mignolo denomina “momento pós-colonial do mundo moderno/colonial”, em que se dissolvem as fronteiras da nação, abrindo-se para um mundo transnacional. Esse tipo de cosmopolitismo está menos conjugado ao engrandecimento do Estado ou do Império do que à representação de comunidades minoritárias. Pode-se dizer que o projeto cosmopolita atual não se aloca mais no mito da nação e do cidadão do mundo, nem emerge das idéias de universalidade e progresso, mas representa o espírito de uma comunidade cosmopolita de refugiados, migrantes, exilados.

É nesse sentido que Silviano Santiago, depois de demonstrar, no ensaio “Atração do mundo”, a partir das idéias de Joaquim Nabuco, o percurso político-cultural de nossa modernidade tardia, na base das tensões entre as exigências localistas e o cosmopolitismo identificado com a cultura européia, irá propor um “cosmopolitismo do pobre”, a que poderíamos opor um “cosmopolitismo do rico” [o tremo é meu, não de Silviano] (ligado ao “multiculturalismo antigo”, no âmbito do qual surgiu o termo etnocentrismo, cunhado pelo norte-americano William G. Summer, em 1906 – informa Silviano), aquele analisado a partir de Minha formação (1900), de Nabuco, cosmopolitismo que Mário de Andrdae em carta de 1924, ao jovem Drummond, chamou de “moléstia de Nabuco” (suspirar pelo Sena, na Quinta da Boa Vista).

Elegendo como ponto de partida o filme Viagem ao começo do mundo (1997), do português Manuel de Oliveira, Silviano mostra como está surgindo uma nova forma de “desigualdade social que não pode ser compreendida no âmbito legal de um Estado-nação, nem pelas relações oficiais entre governos nacionais, já que a razão econômica que os convoca para a metrópole pós-moderna é transnacional e é também clandestina” (2002: 7). Se há uma nova forma de multiculturalismo que só pode ser compreendido num processo de “desnacionalização do espaço urbano” e “desnacionalização da política” (Saskia Sassen), e se há os trânsitos de desprivilegiados do mundo, uma nova forma de cosmopolitismo emerge desse influxo de imigrantes pobres nas metrópoles pós-modernas, da mesma maneira que resgata grupos étnicos e sociais economicamente desfavorecidos no processo de multiculturalismo a serviço do Estado-nação. Esse novo cosmopolitismo do pobre conta com o apoio de movimentos políticos transnacionais, em especial pelas ONGs, que defendem os direitos das minorias e com dispositivos de comunicação e das mídias possibilitados pelas novas tecnologias, cujas redes ensejam as conexões com o sistema mundo. Novas formas de cosmopolitismo permitem, portanto, expressar novos projetos políticos, éticos e culturais, a partir de perspectivas marginais, ou seja, do deslocamento de centros hegemônicos que marcaram a tradição cosmopolita. 

Em entrevista recente (a ser publicada no n. 7 da revista Matamorfose, da Faculdade de Letras da UFRJ), a uma pergunta formulado por mim, Silviano responde, ampliando e nuançando a questão. Vale a pena a citação longa:

 

1-       Do urbano ao cosmopolita. Você é um dos editores da revista bilíngüe Margens/ Márgenes e publicou no n.2 um ensaio “O cosmopolitismo do pobre” (que acabou dando o título da coletânea de ensaios, publicada pela Ed. UFMG, e que acaba de receber o Prêmio de Ensaio da Biblioteca Nacional). Há por oposição um cosmopolitismo do rico, como o que você fala em seu ensaio “Atração do mundo”, centrado na figura de Joaquim Nabuco do livro de memórias Minha formação?

 

Infelizmente, somos todos, aqueles que o são, – y inclus Joaquim Nabuco –, cosmopolitas pobres. Esse é um dos lances teóricos do meu livro de ensaios. Repare que a situação familiar ou financeira, abastada, deste ou daquele brasileiro, ou latino-americano, a classe social superior a que pertence, não o diferencia do cosmopolita propriamente pobre, sem recursos financeiros, que toma o avião da Varig e vai comer o pão que o diabo amassou nos Estados Unidos. Veja que, se um dos meus artigos começa por Nabuco, o outro começa pelo notável filme de Manoel de Oliveira, um português que se situava na União Européia. A condição de pobre é a de estar na margem e à margem da História, como fica claro em Minha formação, de Joaquim Nabuco. No wired world em que vivemos, a diferença entre o brasileiro rico e o brasileiro pobre reside no fato de que o primeiro não precisa viajar e o segundo viaja, mas mesmo assim, em nossos dias, não precisa tanto viajar para ser cosmopolita. Como escreve Nabuco, no Brasil sente saudades da Europa, na Europa sente saudades do Brasil. É essa situação entre que nos torna a nós, brasileiros, cosmopolitas pobres. O brasileiro pode até ser um nacionalista rico, e os há, e relativamente poucos, mas, se passar à condição de cosmopolita, será sempre um cosmopolita pobre.

O nacionalista rico costuma ser contra o cosmopolita pobre, tanto o das classes superiores quanto o das classes populares. O cosmopolita pobre, qualquer que seja ele (repito), é sempre uma erva daninha para os interesses financeiros dos nacionalistas ricos e estreitos. Aliás, é o nacionalismo rico e estreito, burguês e flor de estufa da colonização européia nos trópicos, que é o principal responsável (não tenhamos ilusões) pela pobreza do favelado e do homem do campo. O camponês mexicano, o suburbano carioca ou paulista e o mineiro de Governador Valadares, que voam para os Estados Unidos em busca de melhor salário, assinalam, no seu extremo, o fracasso da colonização européia, ou melhor, o modo como a colonização européia, incentivando o nacionalismo do rico, acabou por jogar os colonos (ainda) miseráveis nas mãos de outro colonizador, os Estados Unidos da América, ou, de maneira geral, os países do Primeiro Mundo. Estamos nos referindo, é claro, à diáspora dos latino-americanos de que o pachuco (o camponês mexicano pária em Los Angeles, o bracero, o wet back) é o primeiro e melhor exemplo. A novela América, produzida e exibida pela Televisão Globo em 2005, é o mais recente e popularesco exemplo da diáspora. O mais trágico sendo, é claro, a morte de Jean Charles na pré-histórica “London London” de Caetano Veloso.

O que estou querendo dizer é que há novas, precárias e fragmentadas utopias no mundo pós-moderno. Muitos grupos de cidadãos estão “aquém e além do nacional”, no que me aproximo de filósofos como Jurgen Habermas. Há um componente nacional que precisa ser (re)trabalhado em conformidade com a situação geográfica e tecnológica atual, onde a Internet (por exemplo) possibilita o congraçamento de grupos até então distantes e alheios um ao outro, mas passíveis de serem reorganizados a partir de uma concepção de identidade mais ampla. Os cidadãos estão aquém (porque pertencem a grupos minoritários nacionalmente, desprivilegiados que são pelo poder central) e estão além (porque fazem aliança com outros grupos minoritários estrangeiros, desprivilegiados que são pela globalização) do nacional.

Há um regionalismo (insisto no conceito) dentro do nacional que, feita a ponte cosmopolita, se transforma num regionalismo (idem) dentro da globalização. É a combinação do regionalismo nacional com o regionalismo globalizado que se torna, neste milênio, o modo mais efetivo de crítica aos desmandos da mundialização econômica em vigor. Vamos ao exemplo.

De repente um grupo de indígenas brasileiros pode querer se inscrever identitariamente aquém do projeto nacional da FUNAI, tal como o projeto vem sendo sendo desenvolvido pelos sucessivos governos nacionais, e, ao mesmo tempo, além do projeto nacional em vigor, buscando articulações (políticas, sociais, econômicas) com outros grupos indígenas da América Latina. O que estou querendo dizer é que o indígena, o negro, a mulher negra, os sem-terra, ou qualquer outro grupo pobre, interiorano ou citadino, todos eles não precisam aceitar as restrições e os imperativos econômicos históricos e passageiros como restrições culturais. Podem ser hoje e também cosmopolitas pobres, como, aliás, todo e qualquer brasileiro, que o seja, o é. Eles não precisam ter necessariamente a mentalidade de “lavrador”, que lhes foi incutida pelos nacionalistas ricos. Não precisam ficar eternamente cavoucando a terra (no sentido literal e também no sentido simbólico). Eles podem ter a mentalidade do “marinheiro”, para ficar com a clássica oposição de Walter Benjamin.

O perigo dos ideais cosmopolitas surge no momento em que a perspectiva de avaliação do estado-nação transforma-se em julgamento de valor, ou seja, quando tudo o que não era europeu no Brasil, tudo o que não é norte-americano no Brasil, era/é menor, era/é adjetivo e não substantivo. No extremo oposto, surge outro grande perigo: julgar que tudo o que é autenticamente brasileiro era/é superior, era/é substantivo e não adjetivo.

 

Essas achegas aos dois ensaios “Atração do mundo” e “O cosmopolitismo do pobre”, levam, entretanto a certas indagações:

1)                            se todo e qualquer cosmopolitismo da margem é “pobre”, não se corre o risco de perder as marcas de classe e de poder econômico, que não foram abolidas pela globalização, pela diáspora?

2)                            Nesse sentido, me parece que a margem que Nabuco ocupava (porque “uma cartola na Senegâmbia”, como dizia Oswald de Andrade) não seria a mesma do imigrante pobre de hoje (o pachuco, os brasileiros nos Estados Unidos [cf a telenovela América, de Gloria Perez]. Os contextos históricos são outros. Se for verdade que são iguais (somos todos cosmopolitas pobres), estaria Mário de Andrade equivocado quando classificou a “moléstia de Nabuco”, que Silviano aborda em “Atração do mundo” e nos comentários da correspondência Mário&Carlos?

3)                            A situação de Portugal, hoje, tematizada no filme de Manoel de Oliveira, seria antes uma semiperiferia, como revelou Boaventura de Sousa Santos, poderia ser lida num mesmo diapasão da América Latina? O Filme falado, do mesmo cineasta, revela outra dimensão do cosmopolitismo.

4)                            A oposição mais contundente do texto seria cosmopolitismo do pobre X nacionalista rico (seria interessante um exercício em que se buscaria equacionar as implicações políticas, sociais e culturais dessa equação).

5)                            Nessa resposta, não estaria Silviano recolocando o cosmopolitismo num centramento, que o ensaio procura deslocar para pensá-lo a partir da margem, como também revela a proposta de Piglia?

6)                            O cosmopolitismo do pobre como suplemento da cultura ocidental contemporânea, como advertiu Wander Melo Miranda; ou de cultura globalizada?

7)                            Essa abordagem de Silviano está estreitamente relacionada com sua obra de ficção e seus textos de crítica literária e crítica cultural, que como ele revela “busca fugir das formas regionalistas da cultura brasileira, obras não comprometidas com o lugar comum regionalista, sertanejo ou nacionalista”, para se atrelar à viagem ao estrangeiro, para revelar “o complexo processo de interiorização do que lhe é exterior” (como se lê em “Oswald de Andrade, ou o elogio da tolerância racial”.

 

O pensamento de Silviano certamente pode ser aproximado de certas formulações de Walter Mignolo que apresenta “The many faces of cosmo-polis: border thinking and critical cosmopolitanism” (editado no referido livro), em que o autor procura delinear o projeto de um “cosmopolitismo crítico” e dialógico como alternativa para atender às questões do momento atual, que ele denomina pós-moderno/ pós-colonial. Para tal, procede a um percurso histórico por diferentes momentos em que o conceito teve fundamentação teórica que se refletia em práticas políticas e culturais.

A proposta do crítico argentino, professor da Duke University, estabelece como pressuposto a distinção entre globalização e cosmopolitismo, respectivamente, um conjunto de dispositivos para organizar o mundo com o propósito de controlar e homogeneizar, e um conjunto de projetos de convivência mundial, complementares ou dissidentes em relação aos dispositivos globais. Pode haver, então, cosmopolitismo gerencial (que reitera os dispositivos globais) ou cosmopolitismo emancipatório (divergentes). Tais considerações levam Mignolo a analisar o processo histórico dos projetos cosmopolitas a partir do século XVI, ou seja, a partir da emergência do comércio atlântico, com o advento do projeto de colonização européia do Novo Mundo, no momento em que se produz o desenho global/moderno, necessariamente atado ao colonialismo, dado indispensável para se pensar o cosmopolitismo até nossos dias, pois é nesse imaginário que continuamos a viver e é em relação a ele que se deve refletir sobre os projetos cosmopolitas do passado e sobre o futuro cosmopolitismo crítico.

Assim, o crítico evoca debates ocorridos na Universidade de Salamanca, com os descobrimentos e o início do processo de colonização, que possibilitou a imposição da cultura branca, ocidental e cristã a outras culturas. Neste contexto, Francisco de Vitória, sob a luz da teologia, pensou uma utopia humanista e cosmopolita que requeria relações internacionais baseadas no “direito das gentes”: uma sociedade planetária, uma comunidade mundial de estados religiosos baseados no princípio de direito natural. Concebia o teólogo a expansão européia como um desafio ao alargamento da definição de humanidade. Sua proposta questionava a colonização, enquanto redução de todas as culturas a uma única, mas, pelo contrário, requeria a inclusão do outro. Pode-se dizer, assim, que se os projetos de globalização se iniciaram no século XVI, foi também aí que surgiram os primeiros projetos cosmopolitas – como o de Francisco de Vitória – germe de um processo que ainda está vigente: o da convivência mundial de uma diversidade de culturas, sem que uma se imponha a outra.

O segundo momento estudado por Mignolo são os séculos XVIII e XIX, época da missão civilizadora do colonialismo francês e inglês e da formação dos estados-nações e suas leis, cujo surgimento provoca mudanças fundamentais do sistema moderno/colonial. A questão então se desloca dos direitos do povo para os direitos dos homens e do cidadão. A centralidade do estado-nação torna elemento crucial da nova formulação do projeto cosmopolita, em que a categoria de “infiel” é convertida na de “estrangeiro”, perigo para o estado-nação.

O pensador evocado por Mignolo para representar esse momento é Kant em seus escritos sobre história. O cosmopolitismo para o filósofo era a oportunidade de levar o mundo inteiro aos termos de um progresso, de uma evolução da natureza mesma do homem. A idéia de cosmo-polis kantiana funda-se nas possibilidades e capacidades do povo viver junto, cuja unidade é organizada justamente em torno do conceito de nação. Kant redefine, assim, as idéias de pessoa e de cidadão na consolidação das nações européias, aqueles que desenvolviam um processo civilizatório tendo a Razão por fundamento. Seria, entretanto, impossível para o filósofo, em seu momento histórico, perceber que esta proposta estava revestida de violência eurocêntrica, tal era a sua certeza de que a Razão, levada ao ápice ali na Europa, era a realização da natureza da humanidade do homem.

Antes de propor a concepção de cosmopolitismo crítico para pensar o mundo contemporâneo, Mignolo analisa o terceiro momento histórico, a segunda metade do século XX, logo após a II Guerra Mundial, em que, motivado pelos traumas desse conflito, assiste-se à criação da ONU e à Declaração dos Direitos Humanos, articulada ao colonialismo transnacional liderado pelos Estados Unidos. Durante a Guerra Fria, os direitos humanos são evocados para controlar o comunismo, assim como o controle dos pagãos, infiéis e bárbaros no século XVI e dos estrangeiros nos séculos subseqüentes.  As tensões entre capitalismo e comunismo geram uma série de conflitos armados e a implantação de ditaduras na América Latina; dá-se o processo de descolonização na Ásia e na África e redefine-se a diferença colonial no modelo da interdependência.

Ao observar a ordem mundial contemporânea, Mignolo constata que quanto mais o capitalismo avança, mais conflitos raciais e religiosos emergem como empecilho para a possibilidade de uma sociedade cosmopolita. Por isso, é preciso dissolver o relativismo cultural e enfocar o poder do colonialismo e a diferença gerada por ele, por sua vez reproduzida e mantida pelos desenhos globais.  O professor da Duke University propõe então a alternativa de um cosmopolitismo crítico e dialógico como essencial a um mundo trans e pós-nacional. Enquanto os outros projetos que ele historia foram pensados de dentro da modernidade, o cosmopolitismo crítico fala de um exterior, de um mundo não mais regulado por leis nacionais e emerge de diferenças locais, e não de um único centro controlador. Não se trata de uma vontade de compreensão e inclusão de culturas diferentes, mas da inserção dessas culturas como participantes do processo cultural. Desse ponto de vista, ressalta ele o papel fundamental da margem. A palavra que representa o pensamento marginal é condição necessária para o cosmopolitismo crítico e dialógico em direção à “diversalidade” (diversidade como um projeto universal), como denomina Mignolo. Diversalidade essa que não pode ser reduzida a uma nova forma de relativismo cultural, pois não se trata de aceitar que há culturas distintas. Ao contrário, ela expressa novos projetos éticos, políticos e culturais, a partir de perspectivas marginais.

O deslocamento da voz está atrelado ao que Mignolo denomina “momento pós-colonial do mundo moderno/colonial”, em que se dissolvem as fronteiras da nação, abrindo-se para um mundo transnacional. Esse tipo de cosmopolitismo está menos conjugado ao engrandecimento do Estado ou do Império do que à representação de comunidades minoritárias. Pode-se dizer que o projeto cosmopolita atual não se aloca mais no mito da nação e do cidadão do mundo, nem emerge das idéias de universalidade e progresso, mas representa o espírito de uma comunidade cosmopolita de refugiados, migrantes, exilados.

O deslocamento, que pode ser entendido como espacial-geográfico, ou temporal, ou discursivo, associa-se à noção de limite de que fala Piglia, passível de ser conjugada à problemática da fronteira, que por sua vez implica a noção de transgressão (e vice-versa). Por essa ótica, como postula Hommi Bhabha, as narrativas legitimadoras da dominação cultural, ainda estruturadas numa lógica binária de centro e periferia, hierarquizadora e eurocêntrica, podem ser deslocadas para revelar o que ele chama de terceiro espaço, em que convivem momentos diferentes do tempo histórico. Ou dito com outras palavras, “a temporalidade não-sincrônica das culturas nacional e global abre um espaço cultural – um terceiro espaço – onde a negociação das diferenças incomensuráveis cria uma tensão peculiar às existências fronteiriças” (Bhabha, 1998: 300). Esta concepção está bem próxima do conceito de entre-lugar formulado por Silviano Santiago, no ensaio de 1971 “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1978), quando, motivado pelas teorias da dependência, procura uma metodologia de leitura para ler o lugar de transgressão das literaturas produzidas nos trópicos. A astúcia do olhar periférico, olhar enviesado, que avalia a dependência cultural, para além do econômico, não para negá-la, mas como atitude afirmativa capaz de autoconhecer-se como valor diferencial. Um pé lá, outro cá, num entre-lugar, lugar diferido, pensa-se uma cultura e uma literatura do ponto de vista de uma província ultramarina ou dos subúrbios da periferia (para usar a imagem de Piglia), repensando conceitos etnocêntricos, debilitando esquemas cristalizados de unidade, pureza e autenticidade. Esse descentramento desloca a cultura européia de seu lugar privilegiado de cultura de referência – postura inspirada em Derrida – pondo em causa a descolonização do pensamento brasileiro e latino-americano. Transmutação dos valores, que o contato entre culturas diferentes provoca. Entre assimilação e agressividade, aprendizagem e reação, obediência e rebelião, realiza-se “o ritual antropofágico da cultura latino-americana”, aquele que se faz de temporalidades disjuntivas, múltiplas e tensas, temporalidade de entre-lugar, que desestabiliza o significado da cultura nacional como homogênea, pois é uma cultura dividida no interior dela própria, articulando sua heterogeneidade e seu hibridismo (Bhabha, 1998: 209).

Neste terceiro espaço, neste entre-lugar, espaço liminar de significação, marcado por tensões de diferenças culturais, as mais criativas formas de identidade cultural, para além das noções de pureza e de originalidade, são produzidas nas “margens entre” (in-between) formas de diferença, nas interseções e transposições através das esferas de classe, gênero, raça, nação, geração, localização. Tanto Bhabha quanto Silviano sublinham o processo ambivalente de cisão e hibridização que, sendo diferente da assimilação, marca a identificação com a diferença da cultura, que pressupõe o ultrapassamento do local como forma pura, limitado por fronteiras, ultrapassamento que se projeta em negociações fronteiriças (Bhabha, 1998: 306). Neste sentido, a ansiedade irresolvível da cultural, porque fronteiriça, articula seus problemas de identificação e sua estética diaspórica em uma temporalidade estranha, disjuntiva, que é, igualmente, tempo do deslocamento cultural e o espaço do intraduzível. Tal processo faz gerar uma poética do reposicionamento e reinscrição que permite olhar as coisas a partir da margem que, como não tem a longa tradição cultural dos centros hegemônicos, pode trabalhar com a noção de anacronismo, em que a defasagem temporal se torna uma vantagem (Figueiredo, 1994), porque pode embaralhar, ou transgredir, aquela tradição que não lhe é própria, ou que passa a sê-lo à medida que é realocada, antropofagizada, ressemantizando-a com dose de suplementaridade (“os suplementos são sinais de adição que compensam um sinal de subtração na origem” – ressalta Gasché, citado por Bhabha [1998: 219]).

 

Notas  



[1] Uma revista que falasse a partir das margens, que procedesse, então, a um deslocamento em relação aos centros hegemônicos. Esta é a proposta de criação de Margens / Márgenes, revista cujo projeto partiu da idéia do escritor Ricardo Piglia, por ocasião de um encontro com as professoras Monica Bueno (Universidad de Mar del Plata) e Maria Antonieta Pereira (Universidade Federal de Minas Gerais). A proposta foi concretizada num projeto desenvolvido com o apoio da Fundação Rockefeller. A revista tem como editor Silviano Santiago e como editores-assistentes Wander Mello Miranda e Florencia Garramuño.  A revista, que pretende, em primeira instância, ser viabilizada a partir de pesquisas desenvolvidas principalmente fora das grandes metrópoles da Argentina e do Brasil, propõe-se a formalizar o intercâmbio entre esses dois países, com o propósito de “discutir as perspectivas transnacionais contemporâneas relativas a literatura, cultura, artes e política, a partir das margens e do local, organizando um espaço de escrita e reflexão que fosse, na sua excentricidade histórica e geográfica, metonímia da condição sócio-cultural periférica no atual processo de mundialização da economia”. Depois de ser um Caderno de Cultura, de que foram publicados dois números, o projeto concretizou a revista propriamente dita, hoje com dois números publicados.