Arquivo
1- ENCONTROS DO GT DE LITERATURA COMPARADA DA ANPOLL
2- TRABALHOS APRESENTADOS EM EVENTOS
1
Encontro de Salvador (1997)
Entre
28 e 30 de setembro de 1997, encontraram-se em Salvador 28 pesquisadores membros
do GT de Literatura Comparada. O Encontro em Salvador foi uma profícua
oportunidade de diálogo entre os pesquisadores membros do GT, suprindo a lacuna
entre os grandes Encontros Nacionais da ANPOLL, bianuais. Além de uma definição
mais nítida e da consolidação das linhas de pesquisa do GT, teve-se como
objetivo do Encontro o debate sobre a diversidade atual dos focos de interesse
dos pesquisadores em Literatura Comparada, discussão já em curso entre os
comparatistas brasileiros, com previsíveis repercussões para uma política
científica na área de Letras.
·
Dia
28/09/1997
18h00:
Abertura
Prof.
Luiz Felippe Perret Serpa, Reitor da UFBA.
Dr.
Raúl Antelo (UFSC), Presidente da Associação Brasileira de
Literatura
Comparada-ABRALIC
Dra.
Eneida Maria de Souza (UFMG), Membro do Comitê Consultor do
CNPq
20h00
- Lançamentos (Museu de Arte Sacra)
·
Dia
29/09/1997
09h00:
Conferência (Instituto de Letras - Sala 8)
Influências
recíprocas dos Estudos Culturais Estadunidenses e Latino
Americanos
George
Yudice, New York University
Debatedores:
Wander
Melo Miranda (UFMG)
Eneida
Leal Cunha (UFBA)
De
14h00 às 18h00: Reunião das Linhas de Pesquisa (Instituto de
Letras)
Linha
1- Limiares críticos (LET, Sala 6)
Coordenadora:
Tânia Franco Carvalhal (URGS)
Relatora:
Evelina Hoisel (UFBA)
Linha
2- Literatura e memória cultural (LET, Sala 8)
Coordenadora:
Eneida Maria de Souza(UFMG)
Relator:
Wander Miranda (UFMG)
Linha
3 - Memória e representação literária na América Latina (LET, Sala
2)
Coordenador:
Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP-Assis)
Relatora:
Sílvia Maria Azevedo (UNESP-Assis)
Linha
4 - Relações Literárias Interamericanas (LET, Sala
2)
Coordenadora:
Maria Consuelo Cunha Campos (UFF)
Relatora:
Maria Cândida Almeida (UFMG)
Linha
5 - Formação crítica da modernidade a partir da cidade: poesia, prosa, ensaio
(LET, Sala 3)
Coordenador:
André Bueno (UFRJ)
Relator:
Renato Cordeiro Gomes (PUC-RJ).
Focos
da discussão: Quais as convergências entre as diferentes atuações em pesquisa
que integram a Linha? Quais as articulações que podem viabilizar o trabalho
integrado dos pesquisadores? Como definir programas de pesquisa para a Linha?
Quais as temáticas prioritárias?
·
Dia
30/09/1997
De
09h00 às 12h00 - Reunião das Linhas de Pesquisa -cont. (Instituto de
Letras)
Focos
da discussão: A atividade de pesquisa: integração de projetos individuais e
interinstitucionais, financiamentos, estratégias de divulgação de resultados.
De
14h00 às 18h00 - Reunião Geral do GT (Instituto de Letras, Sala
8)
Pauta:
Conclusões
das reuniões por Linha de Pesquisa
Subsídios
para uma política científica para a área de Letras
Preparação
do XIII Encontro Nacional da ANPOLL (UNICAMP-SP,
junho/98)
XIII Encontro Nacional
da ANPOLL (1998) [topo da página]
Programação do GT de Literatura
Comparada
·
Dia
10/06/1998
09h00: Mesa-Redonda I – Limiares críticos
Coordenação: Tânia Franco Carvalhal
(UFRGS)
Participantes:
Eduardo de Faria Coutinho
(UFRJ)
Maria Luiza Berwanger da Silva
(UFRGS)
Evelina Hoisel
(UFBA)
Gustavo Krause
(UERJ)
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
(UFMS)
10h30: Mesa-Redonda II – Processos
de reconstrução cultural no quadro das relações entre o local e o
global
Coordenação: Eneida Maria de
Souza
Acervos, bibliotecas, coleções:
estratégias de imaginação histórica
Reinaldo Martiniano Marques
(UFMG)
Uma concepção diferencial de
identidades culturais: as articulações entre nacionalidades, etnias, gêneros,
classes
Ana Rosa Ramos
(UFBA)
Configurações regionais dos
processos de modernização
Marcos Falchero Falleiros
(UFRN)
14h30: Mesa-Redonda III – Memória e representação literária na América
Latina
Coordenação: Luiz Roberto
Cairo
Releituras da história e gesto
escritural: a guerra de Mario Vargas Llosa
Heloísa da Costa Milton
(UNESP)
Lugares críticos
Ivete Camargo Walty
(UFMG)
Martín García Merou e o Visconde de
Taunay: considerações sobre um diálogo
latino-americano
Luiz Roberto Velloso Cairo
(UNESP)
Cânon, gender, etnicidade: processos
de representação literária do Outro em literatura
canônica
Maria Consuelo Cunha Campos
(UERJ)
Camões nas imagens gregorianas da
cidade e do amor
Maria dos Prazeres Gomes
(PUC-SP)
Os diálogos brasileiros
latino-americanos em torno de alguns projetos de história
literária
Sílvia Maria Azevedo
(UNESP)
16h00: Mesa-Redonda IV – Questões identitárias nas literaturas nas
três Américas
Coordenação: Zilá Bernd
(UFRGS)
Identidades compósitas: culturas
híbridas
Zilá Bernd (UFRGS) e Maria Nazareth
Fonseca (UFMG)
Gênero e etnia no Brasil e nos
EUA
Consuelo Cunha Campos
(UERJ)
Fronteiras, passagens e paisagens no
espaço americano
Maria Bernadete Veloso Porto (UFRJ)
e Vera Lúcia Reis (UFF)
·
Dia
11/06/1998
09h00: Reunião do GT: Avaliação e
planejamento
10h30: Assembléia do
GT
Encontro de Belo
Horizonte (1999) [topo da página]
Realizado no período de 22 a 24 de
setembro de 1999, na Faculdade de Letras da UFMG, o Encontro de Belo Horizonte
do GT de Literatura Comparada da ANPOLL teve como seus principais objetivos:
possibilitar o diálogo entre os pesquisadores-membros e as vertentes de trabalho
de cada uma das linhas de pesquisa do GT, construindo-se um território
teórico-crítico comum, capaz de ser compartilhado por todos os pesquisadores;
fazer avançar a reflexão teórico da área, respondendo-se às críticas e aos
desafios que atualmente se colocam aos estudos comparatistas literários e
culturais; colaborar com a definição de uma política científica para a área,
seja em sentido largo (Ciência Humanas) seja em sentido estrito (Letras),
visando adequá-la a parâmetros e demandas contemporâneos da produção e
reprodução do conhecimento e considerando as peculiaridades da realidade
sócio-cultural brasileira.
Programação
·
Dia 22/09/1999
19h30: Sessão de Abertura – Literatura Comparada: perspectivas
institucionais
Evelina Hoisel (Presidente da
ABRALIC)
Laura Cavalcante Padilha (Presidente
da ANPOLL)
Eliana Amarante de Mendonça Mendes
(Diretoria da FALE-UFMG)
Reinaldo Martiniano Marques
(Coordenador do GT de Literatura Comparada
A seguir: Comemoração dos 10 anos do
Centro de Estudos Literários da FALE-UFMG, coquetel e lançamento de livros da
Livraria da UFMG.
·
Dia 23/09/1999
De 09h30 às 12h00: Literatura Comparada: reconfigurações
teóricos críticas
Conferencista
convidado: Hugo Achugar (Universidad de la República del
Uruguay)
Debatedoras:
Eneida Maria de
Souza
Maria Lúcia de Barros Camargo (UFSC)
Coordenadora: Maria do Carmo Lanna Figueiredo
(PUC-Minas)
De 14h00 às 18h00: Reunião por linha de pesquisa
Linha 1: Limiares críticos
Coordenadora: Tânia Franco Carvalhal (UFRGS)
Relator: Gustavo Bernardo Krause (UERJ)
Linha 2: Literatura e memória cultural
Coordenadora: Rachel Esteves Lima (UFJF)
Relatora: Ana Rosa Neve Ramos (UFBA)
Linha 3: Memória e representação literária na América
Latina
Coordenador: Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)
Relatora: Ivete Lara Camargos Walty (PUC-Minas)
Linha 4: Relações literárias interamericanas
Coordenadora: Zilá Bernd (UFRGS)
Relatora: Maria Bernadette Thereza V. Porto (UFRJ)
Linha 5: Formação crítica da modernidade a partir da cidade: poesia,
prosa, ensaio
Coordenador: André Bueno (UFRJ)
Relatora: Mirella Márcia L. Vieira Lima (UFBA)
·
Dia 24/09/1999
De 09h00 às 12h00: Reunião Plenária
do GT
Relatos das discussões de cada
linha
Debates
De 14h00 às 15h00: Visita ao Acervo
de Escritores Mineiros
De 15h30 às 19h00: Reunião Plenária
do GT
Pauta:
Consolidação das conclusões das
reuniões por linha de pesquisa
Encaminhamento de
propostas
Preparação do XV Encontro Nacional
da ANPOLL
Subsídios para uma política
científica para a área de Letras
Encontro Intermediário do GT (Porto
Alegre, 2001)
[topo da página]
Nos dias 8, 9 e 10 de outubro de
2001, realizou-se em Porto Alegre, RS, o I Colóquio Sul de Literatura
Comparada e Encontro do GT de Literatura Comparada da ANPOLL, cujo tema
motivador foi "Trans/Versões Comparatistas". Fez-se presente às atividades um
total de cento e onze pessoas, entre conferencistas, membros de Mesas-Redondas,
apresentadores de comunicações, coordenadores de mesas e participantes ouvintes.
O evento atingiu plenamente os objetivos propostos, pois propiciou a revisão e a
atualização dos estudos do Comparatismo Literário e apontou os novos rumos das
pesquisas no âmbito do GT, viabilizando a interlocução entre os membros das
diferentes linhas de pesquisas que hoje fazem parte do mesmo. Além da
apresentação das pesquisas desenvolvidas, foi feita uma avaliação do seu atual
desenho e funcionamento, assim como foram pensadas estratégias para o Encontro
da ANPOLL de junho de 2002. Outro objetivo atingido foi o de divulgar os
projetos de Doutorado atualmente em curso no PPG/Letras- Área de Literatura
Comparada, da UFRGS, na medida em que praticamente todos os doutorandos
matriculados participaram de Mesas Redondas apresentando os seus projetos. Com
isso, foi alcançado um outro objetivo do projeto que era o de realimentar as
reflexões comparatistas em diferentes níveis, ampliando o espectro de ação da
Literatura Comparada, pois participaram do Colóquio professores universitários
de vários pontos do país, alunos de pós-graduação em nível de mestrado e de
doutorado, bem como alunos de graduação.
Programação
·
Dia
8/10/2001
9
horas: Sessão de abertura
9h30 min: Conferência de abertura com o Prof. Dr.
Noé Jitrik (UNBA) Comentadores: Profa.Dra. Tania Franco Carvalhal (UFRGS -
AILC), Profa. Dra. Rita Schmidt (UFRGS)
11 horas: Intervalo
11h15min:
Mesas-redondas
Nº 1: Memória e Representação Literária na América Latina -
Coordenação Prof. Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)
Nº 2: Coordenação:
Profa. Dra. Ivete Camargos Walty (PUC/MG) 12:00: Intervalo
14 horas: Sessões
de Comunicações
15h20min: Intervalo
15h30min: Sessões de Comunicações
17 horas: Sessões de Comunicações
·
Dia 9/10/2001
9 horas: Conferência com o Prof.
Dr. Eduardo Coutinho (UFRJ)
Comentadora: Profa. Dra.
Léa Masina (UFRGS)
10h30min: Intervalo
11 horas: Mesa-redonda: Literatura e Memória Cultural
Coordenadoras: Profa. Dra. Eneida Maria de Souza (UFMG) e
Profa. Dra. Rachel Esteves Lima (UFJF)
14 horas: A
Literatura Comparada no PPG/Letras da UFRGS: Exposição e avaliação das linhas de
pesquisa.
Apresentação: Profa. Dra. Patrícia L. Flores
da Cunha (UFRGS)
Mesas-redondas: Doutorandos da UFRGS
Apresentação de projetos em andamento
Coordenação: Profa. Dra. Gilda Bittencourt (UFRGS) e Profa.
Dra.Maria Luíza B. da Silva (UFRGS)
15h30min: Intervalo
15h45min: Sessões de Comunicações
16h30min: Sessões de Comunicações
20h30min: Jantar de Adesão
·
Dia 10/10/2001
9 horas: Mesa-redonda: Limiares Críticos
Coord. Prof. Rildo Cosson (UFPEL)
10h30min: Intervalo
11 horas:
Conferência: Profa. Dra. Maria Antonieta Pereira (UFMG)
Comentador: Prof. Dr. Reinaldo M. Marques (ABRALIC)
14 - 18 horas: Reunião do GT de Literatura Comparada da
ANPOLL
XVII
Encontro Nacional da ANPOLL (Gramado, 2002) [topo da página]
Programação do
GT de Literatura Comparada
·
Dia
26/06/2002
14h00: Abertura
– Situação do GT
14h30:
Apresentação das Linhas de Pesquisa do GT pelos Coordenadores:
Rildo Cosson (UFPel)
Rachel Esteves Lima (UCB)
Maria Antonieta Pereira (UFMG)
16h30:
Apresentação do Projeto do Centro de Documentação e Pesquisa Memória ABRALIC
Sara Viola Rodrigues (UFRGS)
·
Dia
27/06/2002
Discussão e
apresentação de trabalhos e projetos em desenvolvimento nas Linhas de Pesquisa
do GT
08h30 às 10h30:
Linha 1 – Limiares
Críticos
Tópico A: A
Representação como mediação
Gênero e
representação
Rildo Cosson
(UFPel)
O documentário
como forma de representação
Anelise
Corseuil (UFSC)
A literatura e
a representação da história
Eneida Menna
Barreto (UFRGS)
A representação
da experiência do autoritarismo
Rosani Umbach
(UFSM)
Margem de papel
ou corpo despedaçado do texto
Paulo Sérgio
Nolasco dos Santos (UFMS)
Fronteiras do
conto como gênero e representação
Gilda
Bittencourt (UFRGS)
Representações
do intelectual no início do século XX
Maria Isabel
Edom Pires (UnB)
10h30 às 12h00:
Linha 1 – Limiares
Críticos
Tópico B:
Passagens entre discursos
Ficção e
filosofia
Gustavo
Bernardo (UERJ)
A fronteira dos
gêneros e os gêneros como fronteiras
Rildo Cosson
(UFPel)
O gênero como
categoria retórica
Rosana C. Zanelatto Santos (UFMS)
Tópico C: A
construção do discurso teórico-crítico latino-americano
Literatura
Comparada no Cone Sul: Contribuições para novos paradigmas
Tânia Carvalhal
(UFRGS)
Intertextualidade interna no ensaio uruguaio do século
XX
Cláudia
González (URU)
Revisão crítica
dos estudos sobre a Paisagem com base no diálogo do crítico francês Michel
Collor com o latino-americano Saul Yurkievich: o caso exemplar de
Tristes trópicos, de Lévi-Strauss
Maria Luísa
Berwanger (UFRGS)
Machado de
Assis e as teorias do comparativismo
Eliane Ferreira
(UCB)
Sintetizadora:
Maria Luísa Berwanger (UFRGS)
Tópico D:
Literatura Comparada e Tradução: a prática da diferença
Sara Viola
Rodrigues (UFRGS)
Patrícia Lessa
Flores da Cunha (UFRGS)
Neusa da Silva
Matte (UFRGS)
Sintetizadora:
Patrícia Flores da Cunha (UFRGS)
·
Dia 27/06/2002
14h00 às 15h30:
Linha 1 – Limiares
Críticos
Tópico E:
Estudos literários/Criação literária/Docência
Lígia Telles (UFBA)
Evelina Hoisel (UFBA)
Antonia Herrera (UFBA)
Sintetizadora: Antonia Herrera (UFBA)
Tópico F:
Novos
A narrativa
ficcional de Jorge de Lima e o regionalismo de 30: Calunga e o romance utópico
José Niraldo de
Farias (UFAL)
A
re-presentação da Amazônia em Milton Hatoum
Patrícia I.
Garcia de Souza (UNICAMP)
Representante:
José Niraldo de Farias (UFAL)
16h00 às 18h00:
Projeto Integrado – discussão e elaboração
Encontro de Abril
Linha 2:
Literatura e memória cultural
Memória de
experiências-limite
Ana Cristina
Chiara (UERJ)
Imagens/ficções
da crueldade contemporânea
Ângela Maria
Dias (UFF)
Do diário em
retalhos às ruínas da tradição: arquivo, memória, literatura
Carmem Lúcia
Negreiros de Figueiredo (UERJ)
A representação
do regional na obra de José Clemente Pozenato
Ilva Maria
Boniatti (UCS)
Memória e
periodismo cultural: o projeto “Poéticas Contemporâneas” – questões de
método
Maria Lúcia
Barros Camargo (UFSC)
Memória da
crítica
Rachel Esteves
Lima (UCB)
A paisagem
cultural e a reconfiguração conceitual do entre-lugar
Renato Cordeiro
Gomes (PUC-Rio)
Literatura
Comparada, valores e mediações culturais
Reinaldo
Martiniano Marques (UFMG)
Linha 3:
Memória e representação literária na América Latina
Representação
simbólica no regionalismo modernista
Helena
Tornquist (UFSC)
De lixo e
bricolagem
Ivete Walty
(PUC-Minas)
As fronteiras
da épica em tempos de diferença
Léa Masina
(UFRGS)
Martín García
Merou, leitor de poetas brasileiros do século XIX
Luiz Roberto
Cairo (UNESP)
O corpo e o
arquivo: Jorge Luis Borges e Moacyr Scliar
Lyslei de Souza
Nascimento (UFMG)
Entre-lugar: as
picadas do discurso latino-americano
Maria Antonieta
Pereira (UFMG)
O escritor
latino-americano como mediador cultural
Miriam Volpe
(UFJF)
Para uma teoria
da identidade
Sara Almarza
(UnB)
Arquivos do
exílio/no exílio, projetos de nacionalidade: leituras de “A confederação dos
Tamoios”
Sílvia Azevedo
(UNESP)
·
Dia 28/06/2002
08h30: Reunião
Geral do GT
Apresentação dos resultados das discussões das linhas de pesquisa
Deliberações gerais do GT
Aprovação do Relatório da coordenação (biênio 2000-2002) e dos novos
membros do GT
10h00:
Intervalo
10h30: Assembléia de eleição dos novos coordenador e
vice-coordenador do GT para o biênio 2002-2004.
Encontro Intermediário do GT (Dourados, 2003) [topo da página]
Colóquio Divergências e
Convergências em Literatura Comparada Hoje, realizado nos dias 15, 16 e 17
de outubro de 2003, no Campus de Dourados/UFMS. Constitui programação do X Ciclo
de Literatura e do Encontro Nacional do GT de Literatura Comparada da ANPOLL –
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística. Sob
esse tema, o Colóquio propôs-se a discutir os vetores que concedem à Literatura
Comparada, como ciência humana, o poder de relacionar o fato e o texto
literários em suas variáveis dimensões epistemológicas - movidas pelo olhar
atento e renovado que caracteriza o pesquisador do comparatismo literário. Hoje,
os estudos acerca da problemática do literário têm-se colocado como uma das
questões mais palpitantes para os cientistas da literatura, que são obrigados a
rever seus pressupostos já a partir da pergunta o que é
literatura?. Isso exprime o sentido de clivagem e oferece margem às
reflexões sobre as convergências e as divergências que atravessam o próprio
campo do comparativismo. Ao se reconhecer na Literatura Comparada um locus específico para a análise das interseções entre
objetos e fenômenos culturais, compartilham-se naturezas que são, antes de tudo,
compartilhadas, operando por aproximação, e nela convergindo todo um saber a
respeito de literatura. Como método de trabalho, aponta também para as
divergências, na medida em que se autoquestiona na prática de comparar a(s)
literatura(s) comparada(s).
Programação
·
Dia
15/10/2003
18h30 –
Inscrições e entrega do material
19h30 – Sessão
de abertura, com a presença de autoridades da UFMS e exposição de artistas
plásticos douradenses
20h00 –
Conferência Cunhataí
– Um romance da Guerra do Paraguai
Escritora Maria Filomena Bouissou Lepecki
·
Dia
16/10/2003
13h00 às 17h00
– Sessões de Comunicações Coordenadas
19h00 às 22h30
– Mesa-Redonda I
Coordenação:
Paulo Sérgio Nolasco (UFMS)
Interferências
poéticas
Douglas
Diegues
O declínio da
cidade letrada
Eneida Maria de
Souza (UFMG)
Construções
utópicas na narrativa brasileira contemporânea
José Niraldo de
Farias (UFAL)
Por uma teoria
da ficção em perspectiva crítica
Gustavo
Bernardo Krause (UERJ)
Vanguardismo,
postvanguardismo y modernidad em la poesia paraguaya
Miguel Angel
Fernández (Universidade Nacional de Asunción)
·
Dia
17/10/2003
13h00 às 15h00
– Sessões de Comunicações Coordenadas
Sessão I:
Estudos de tradução – tensões teórico-práticas
Coordenação:
Eliane Fernanda Cunha Ferreira (UFMS)
Literatura
Comparada e tradução cultural: processos de hermenêutica e crítica
Patrícia Lessa
Flores da Cunha (UFRGS)
A evolução do
conceito de equivalência nos estudos de tradução: da fidelidade à recriação
Sara Viola
Rodrigues (UFRGS)
Contradições tradutológicas: o caso Machado de Assis
Eliane Fernanda Cunha Ferreira (UFMS)
Um poema
brasileiro: o encontro entre Brasil e Argentina
Sílvia Maria Azevedo (UNESP-Assis)
Nas
fronteiras da ficção: a metaficção em André Gide
Zênia de Faria (UFG)
15h00 às 17h30 – Reunião Geral do GT de Literatura Comparada da
ANPOLL
Fórum de Estudantes de Pós-Graduação em Letras do Centro-Oeste
Coordenação: Rildo Cosson
19h00 às 23h00 – Mesa-Redonda II
Coordenação: Patrícia Lessa Cunha Flores (UFRGS)
Narrativas do quotidiano
Ivete Walty (PUC-Minas)
Literatura Comparada, Guimarães Rosa e tradução
literária: metatextos críticos ou estudos de recepção cultural?
Marcelo Marinho (Universidade Eötvös Loránd de
Budapeste/UCDB)
Representatividade e ficcionalidade: as crônicas
de José Clemente Pozenato e o espaço regional
Ilva Maria Boniatti (Universidade de Caxias do Sul)
O “Novo” documentário canadense: inovação e
problematização da representação
Anelise R. Corseuil (UFSC)
XIX Encontro Nacional da ANPOLL (Maceió, 2004) [topo da página]
Programação do GT de Literatura Comparada
·
Dia 30 de junho
de 2004
11h00: Sessão
01: Abertura
Situação do GT;
novos membros.
Apresentação
das linhas de pesquisa do GT, por representantes das três linhas, com exposição
da síntese da sua evolução teórica, ou um comentário sobre o tópico específico
trabalhado pela linha.
14h00 às 18h00: Mesas-redondas
Sessão 02:
Mesa-Redonda I -Limiares críticos
Literatura Comparada e auto-referencialidade
Maria Luíza Berwanger da Silva (UFRGS)
Viagem ao Paraguai: Lídia Baís e Josefina Plá
Paulo Sérgio Nolasco (UFMS)
Construções utópicas na narrativa brasileira
contemporânea
Sara Viola (UFRGS) e José Niraldo de Farias (UFAL)
Sessão 03: Mesa-Redonda II – Arquivos
latino-americanos
Rui Barbosa, um intelectual brasileiro, sob o olhar portenho de Martin
García Merou
Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)
A composição do relato: metonímias textuais e
territoriais
Ivete Lara Camargos Walty (PUC-Minas)
Representação e alteridade em literaturas de
fronteira
Helena Heloísa Fava Tornquist (UFSC)
Literatura, rede e saber no Brasil contemporâneo
Maria Antonieta Pereira
Sessão 04: Mesa-Redonda III – Literatura e
memória cultural
A publicidade das Letras
Rachel Esteves Lima (UFBA)
Letras vazadas
Ana Cristina de Rezende Chiara (UERJ)
Representações contemporâneas da crueldade
Ângela Maria Dias de Britto Gomes
Regionalismo na literatura e suas
reconversões
Ilva Maria Boniatti (UCS)
·
Dia 01 de julho
de 2004
Sessão 05:
Reunião das linhas de pesquisa
·
Dia 02 de julho
de 2004
Sessão 06:
Reunião Administrativa
V Encontro Intermediário do GT (Salvador, 2006) [topo da página]
Sob o tema Teorias/Críticas de Literatura Comparada na América
Latina, o Encontro foi realizado de 26 a 28 de abril de 2006, na
Universidade Federal da Bahia. O evento
foi organizado em torno de mesas-redondas abertas ao público e de reuniões com a
participação exclusiva dos membros do Grupo. A programação iniciou-se com uma
homenagem ao crítico e escritor Silviano Santiago, cujo trabalho ensaístico faz
parte do corpus do projeto do GT, sobretudo no que
diz respeito aos estudos latino-americanistas por ele produzidos. Em seguida,
foi experimentado um novo formato de apresentação de trabalhos, que foram organizados em função da memória da
crítica que se deseja construir. As comunicações tiveram como objetivo a
discussão de alguns conceitos operatórios que fazem parte da pesquisa do GT, a
partir de textos previamente escolhidos pela organização e colocados à
disposição dos interessados para a leitura, de modo a fomentar o debate.
Programação
26 de Abril, de 18:30 às 20:30 h – Sessão de Abertura
Apresentação do projeto Teorias críticas de Literatura
Comparada na América Latina: Rachel Esteves Lima (UFBA)
Homenagem a Silviano Santiago: A crítica literária e o
potencial do neolatino- americanismo
Coordenadora: Célia Marques Telles (UFBA)
Depoimentos:
·
Eneida Maria de Souza (UFMG)
·
Eneida Leal Cunha (UFBA)
·
Evelina Hoisel (UFBA)
27 de Abril, de 09:00 às 12:00 h
Mesa-Redonda: Literatura Comparada/Estudos Culturais:
Hostilidade / Hospitalidade
Coordenadora: Antonia Torreão Herrera (UFBA)
Expositores:
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Reinaldo Marques (UFBA)
MOREIRAS, Alberto. Condições da crítica
latino-americanista. In: A exaustão da diferença. Trad. Eliana Lourenço de Lima
Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, p.11-39.
·
Ângela Maria Dias (UFF)
DE LA CAMPA, Román. America Latina y el imperio de la
inmanencia. Nuevo Texto crítico, Stanford, n. 25/28, Anyo XIII-XIV, p.
35-53.
27 de Abril, de 14:00 às 16:00 h
Mesa-Redonda: Astúcias da razão mestiça
Coordenadora: Florentina da Silva Souza (UFBA)
Expositores:
·
Gustavo Bernardo Krause (UERJ)
TAYLOR, Julie, YÚDICE, George. Mestizage and the inversion
of social darwinism in Spanish American fiction. In: VALDÉS, Mario J., KADIR,
Djelal (Ed.). Literary cultures of Latin America. New York: Oxford University
Press, 2004. V.III: Latin American Literary Cultures: Subject to History,
p.310-319.
·
Maria Cândida Almeida (UFBA)
CARRIZO, Silvina. Mestiçagem. In: FIGUEIREDO, Eurídice
(Org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005,
p.261-288.
27 de Abril, de 16:30 às 18:30 h
Reunião dos membros do GT
28 de Abril, de 09:00 às 12:00 h
Mesa-Redonda: Estratégias de devoração cultural
Coordenadora: Eneida Leal Cunha (UFBA)
Expositores:
·
Luiz Roberto Veloso Cairo (UNESP-Araraquara)
SOUZA, Eneida Maria de. O discurso crítico brasileiro.
In: Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002,
p.47-66.
·
Eduardo de Faria Coutinho (UFRJ)
TRIGO, Abril. De la transculturación (a/en) lo
transnacional. In: MORAÑA, Mabel (Ed.). Ángel Rama y los estudios
latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura
Iberoamericana, Universidad de Pittsburgh, 1997, p.147-171.
·
Renato Cordeiro Gomes (PUC-Rio)
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre. In: O
cosmopolitismo do pobre. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004, p.45-63.
28 de Abril, de 14:00 às 16:00 h
Reunião dos membros do GT
28 de Abril, de16:30 às 18:30 h
Reunião Plenária do GT
Pauta:
1.
Consolidação das conclusões dos debates;
2.
Encaminhamento de propostas
3.
Preparação do XXI Encontro Nacional da ANPOLL
(julho/2006)
4.
Subsídios para uma política científica para a área de
Letras.
XXI Encontro Nacional da ANPOLL (São Paulo, 2006) [topo da página]
Programação do GT de Literatura Comparada
·
Dia
19/07/2006
16h00: Apresentação das atividades no biênio 2004-2006
Rachel Esteves Lima – Coordenadora do GT
·
Dia
20/07/2006
09h00: Apresentação e discussão dos projetos de pesquisa
Ana Cristina de Rezende Chiara (UERJ)
Ana Lúcia Machado de Oliveira (UERJ)
Ângela Maria Dias (UFF)
Édgar Cézar Nolasco (UFMS)
11h00: Apresentação e discussão dos projetos de
pesquisa
Evelina de Carvalho Sá Hoisel (UFBA)
Gilda Neves da Silva Bittencourt (UFRGS)
Ilva Maria Boniatti (UCS)
Jaime Ginzburg (USP)
14h 00: Apresentação e discussão dos projetos de pesquisa
José Niraldo de Farias (UFAL)
Luiz Roberto Velloso Cairo (UNESP)
Maria Adélia Menegazzo (UFMS)
Maria Cândida Ferreira de Almeida (UFBA)
16h00: Apresentação e discussão dos projetos de pesquisa
Míriam Lídia Volpe (UFJF)
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos (UFMS)
Rachel Esteves Lima (UFBA)
Rosani Úrsula Ketzer Umbach (UFSM)
·
Dia
21/07/2006
09h00: Reunião Administrativa do GT
Pauta:
Consolidação das conclusões dos debates
Encaminhamento de propostas
Escolha da nova Coordenação
Trabalhos Apresentados em eventos
XXI Encontro Nacional da ANPOLL (São Paulo, 2006)
V "Encontro Intermediário do GT (Salvador, 2006)
XIX Encontro Nacional da ANPOLL (Maceió, 2004)
XVII Encontro Nacional da ANPOLL (Gramado,
2002)
I Colóquio Sul de Literatura Comparada e Encontro do GT (Porto Alegre, 2001)
XV Encontro Nacional da ANPOLL (Niterói,
2000)
Encontro de Belo Horizonte (1999)
XIII Encontro Nacional da ANPOLL (Campinas,
1998)
Encontro de Salvador (1997)
V Encontro
Intermediário do GT de Literatura Comparada da Anpoll – Salvador 2006
[topo
da página]
·
Ângela Maria Dias – Os Estudos Culturais e a deriva dos
conceitos
·
Eduardo F. Coutinho – Leituras sobre a transculturação: a proposta de Abril
Trigo
·
Eneida Leal Cunha – O
intelectual astucioso
·
Eneida Maria de Souza – A crítica literária e o
neolatino-americanismo
·
Evelina Hoisel – Migrações: as estratégias de atuação de um intelectual
periférico
·
Gustavo Bernardo – Breve leitura do conceito de
mestiçagem
·
Luiz Roberto Cairo – Eneida Maria de Souza e o discurso crítico
brasileiro
·
Maria Cândida Ferreira de Almeida – Astúcias e dilemas da mestiçagem: a “raça infeliz” como incômodo
·
Rachel Esteves Lima – Narrativas da crítica latino-americana: Esboço de
genealogia dos conceitos
·
Reinaldo Marques – O
pensamento crítico latino-americano e seus impasses
·
Renato Cordeiro Gomes – Os cosmopolitismos em Silviano Santiago
·
Anelise Reich Corseiul - O Documentário como Forma de Representação: Entre o Real
e o Exótico
·
Ângela Dias - Imagens/Ficções da crueldade
contemporânea
·
Eliane Ferreira - Machado de Assis e as teorias do comparatismo na América
Latina
·
Eneida Menna Barreto - A
Literatura como representação da História
·
Gilda Bittencourt - Fronteiras do Conto como Gênero e
Representação
·
Gustavo Bernardo - A
fronteira da palavra
·
Helena Tornquist - Representação simbólica no regionalismo
modernista
·
Ilva Maria Boniatti - A representação do regional na obra de José Clemente
Pozenato
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Lea Masina - Mediações de um tema: A violência da voz nas literaturas de
fronteira
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Lyslei Nascimento - O
corpo, a tradição e o arquivo: Jorge Luis Borges e Moacyr
Scliar
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Maria Antonieta Pereira - Entre-lugar e ex-tradição – as picadas do discurso
latino-americano
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Maria Luiza Berwanger da Silva - Paisagens poéticas compartilhadas
em tristes trópicos de Claude Lévi-Strauss
·
Miriam Volpe - O
papel mediador do intelectual latino-americano
·
Patrícia Flores da Cunha & Sara Viola Rodrigues - Literatura Comparada e Tradução: A Prática da
Diferença
·
Paulo Nolasco - Margem de papel ou corpo despedaçado do
texto
·
Rachel Esteves Lima - Memória da crítica
·
Rildo Cosson - Gênero e Representação
·
Rosani Umbach - A representação da experiência de
autoritarismo
XV Encontro
Nacional da Anpoll - Niterói 2000 [topo da
página]
·
Ana Rosa Neves Ramos - Identidades, Cidadania e Mass Media
·
André Bueno - As
formas da crise (relatos e retratos do mal-estar no capitalismo
avançado)
·
Antonio Eduardo de Oliveira - Cartografias
poéticas:cinema, narração e subjetividade em Caio Fernando Abreu
·
Arnaldo Rosa Vianna - Pluralização da diferença na
reinvenção da cotidianidade: tradução, movência e memória na construção de
identidades americanas
·
Cíntia Schwantes - Autores Pelotenses: quem fomos
nós ontem e anteontem?
·
Eloína Santos - Teorias Pós-Coloniais e a
Literatura Das Américas: O Refuncionamento das Formas Narrativas e a Ficção
Ameríndia Contemporânea no Brasil, Estados Unidos e Canadá
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Eneida Maria de Souza - Grafias de
arquivo
·
Eneida Menna Barreto - Relação Literatura e História:
uma leitura à sombra de videiras
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Gilda Neves da Silva Bittencourt - Diálogos sobre a Teoria do Conto
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Gustavo Bernardo - O valor do
ensaio
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Ilva Maria Boniatti - A
institucionalização da Literatura Comparada na Universidade de Caxias do
Sul
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Ilza Matias de Sousa - Narrativa
brasileira dos anos 70 e 80: ficção, alegoria, nação
·
Ivete Walty - Alegorias do
cotidiano
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Léa Masina - Martín
Fierro na Literatura Brasileira: os rastros de um
percurso
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Lúcia Castello Branco - Nossa
Senhora dos Tormentos
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Luciana Ferrari Montemezzo - A
representação do golpe militar em “A casa dos espíritos”
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Luiz Roberto Velloso Cairo - Anotações
sobre El Brasil intelectual, de Martín García Merou
·
Magdala França Vianna - Convergências
e diferenças culturais nas sociedades pluriétnicas em situação
pós-colonial
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Marcos Falchero Falleiros - Ingenuidade
e brasileirismo em Manuel Bandeira
·
Maria Antonieta Pereira - Narrativas
do Cone Sul
·
Maria Bernadette Porto - Babel
revisitada: a construção de uma poética das línguas nas
Américas
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Maria Luiza Berwanger da Silva - Poesia e alteridade: Mário de Andrade, Augusto Meyer e a
paisagem das “múltiplas moradas”
·
Marli Fantini Scarpelli - Cartografias móveis: a poética de fronteiras em Guimarães
Rosa
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos - Lobivar Matos: Um clássico desconhecido
·
Rachel Esteves Lima - Identidades tropicais: o latino-americanismo dos anos
60
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Rildo Cosson - O
romance-reportagem depois dos anos 70
·
Rosana Cristina Zanelatto Santos - Representações da mulher em narrativas literárias e
históricas
·
Rosani U. Ketzer - Representações de autoritarismo em obras da literatura
contemporânea na RDA
·
Sara Viola Rodrigues - Semanálise e
tradução
·
Sébastien Joachim - Desconstrução da escrita, da identidade cultural, no tempo
da cybercultura
·
Sílvia Maria Azevedo - O
Brasil romântico visita a Europa
·
Vera Lucia Soares - Movências Identitárias
·
Zilá Bernd - As
relações literárias interamericanas
XV Encontro Nacional da Anpoll - Niterói 2000 [topo da página]
# Ana Rosa Neves Ramos - Identidades, Cidadania e Mass Media
As relações
existentes entre migrações (internas e externas), (re)invenções de Nação e
reconfigurações de identidade cultural refletem as contradições e tensões que
permeiam o processo de globalização. Assinalam diversos autores que o
capitalismo, na sua atual configuração, apresenta uma ordem social que é
atravessada pelas tecnologias de informação e de comunicação. Essa nova base
tecnológica permite e acelera a consolidação do que Castells:1999 vem
denominando sociedade de rede. Ele é, também, peça fundamental do processo que
Appadurai:1990 chama disjunção entre as várias esferas da vida social (economia,
política, socialidades, produção simbólica). Na assim chamada ordem
informacional o tempo/espaço da interação face a face entrecruza-se com
parâmetros e marcos simbólicos de um tempo espaço/virtual. Relações, tradições e
identidades localizadas negociam com identificações, alianças e processos de
legitimação construídos à distância, num complexo movimento que, ao mesmo tempo,
descentra-se e des-loca, reforça e reconfigura as identidades sociais, o sentido
de lugar e o sentimento de pertença.
Tendo como cenário essa relação dialética entre
globalização, (re)invenção de Nação (portanto, o poder de negociação do
Estado-Nação) e produções culturais diferenciadas, o presente projeto tem como
objetivo analisar como se processa o questionamento identitário (individual e
social), via uma região específica, e como ele se (re)configura no cenário atual
Tendo como referência a sociedade baiana, procuraremos
entender essas dilemáticas através de abordagens que estimulem a visualização
dos seus efeitos – produções simbólicas que veiculem a reformulação dos
imaginários – entendido aqui o imaginário como o lugar de produção de sentidos e
significados, inscrição incessantemente ativada e ativadora de
valores(Castoriadis:1982). Nesta perspectiva tentaremos analisar as contradições
e ambigüidades que permeiam tanto os embates e as (re)configurações de
identidade cultural na Bahia, no que se refere à noções de cidadania,
etnicidade, raça, classe e nacionalidade, quanto os processos hegemônicos e as
relações de poder em relação a cultura nacional e a transnacionalização, ou
seja, o trânsito dessa cultura, dos capitais, dos bens de consumo e dos bens
simbólicos para outras sociedades, que vêm produzindo reconfigurações de
identidades locais, face aos processos hegemônicos de identidade nacional.
(Giddens:1990)
Estudar o modo como estão sendo produzidas as relações de
continuidade, ruptura e hibridização entre sistemas locais e globais,
tradicionais e ultramodernos do desenvolvimento cultural é, hoje, um dos maiores
desafios para se pensar a identidade e a cidadania (Canclini:1995). Segundo o
autor, não há apenas co-produção mas também conflitos pela coexistência de
etnias e nacionalidades nos cenários de trabalho e de consumo; daí as categorias
de hegemonia e resistência continuarem sendo úteis. Porém, a complexidade dos
matizes dessas interações demanda também um estudo das identidades como
processos de negociação, na medida em que são híbridas, dúcteis e múltiplas.
Ainda segundo Canclini, as teorias de contato cultural têm estudado quase sempre
os contrastes entre os grupos apenas pelo que os diferencia. [topo da
página]
# André Bueno - As formas da crise
( Relatos e retratos do mal-estar no capitalismo avançado )
“Minha alma
espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma sopa de aletria / Feita de letras
malucas / Mas ele não vai-se embora / E o vulto do curumim, / Sem piedade, me
recorda / A minha presença em mim. / ... / Menino, sai! Eu te odeio, / Menino
assombrado, feio / Você renova a presença / De mim em mim mesmo... E eu sofro.”
(Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março de 1926)
Continuo com José Saramago - português da Azinhaga, filho
de camponeses pobres, tipógrafo, jornalista, militante comunista, que começa a
produzir o mais importante de sua obra já beirando os cinquenta anos - e dele
escolho três narrativas : uma mais antiga, situada na tradição realista, ligada
ao mundo rural e camponês - Levantado do chão- e as duas mais recentes - Todos
os nomes e Ensaio sobre a cegueira - dando forma crítica à cegueira e à barbárie
da caverna pós-moderna na qual estamos mergulhados, em escala global. Narrativas
situadas em plena crise do presente, para além do limite explorado por Cortázar.
Ou seja, no centro mesmo da crise, com o horizonte histórico apequenado e muito
diminuídas as chances de mudar a vida ou mudar o mundo. Cruzando a longa e a
curta duração histórica, narrativas que aprofundam, pela via da forma artística,
a dimensão do mal-estar e da alienação que caracterizam nossa época : uns seres
anônimos, solitários, opacos, circulando por cidades que poderiam ser qualquer
cidade de nossa época, isolado e disponíveis, quer para uns pequenos acasos que
mexam na ordem e desordem do mundo, quer para o confinamento e a exclusão, ao
modo concentracionário tão típico do século XX. Com isso, Saramago avança para
além da fase em que fez revisão histórica, centrada em Portugal, e dá um
mergulho na crise que é, por certo, profunda e histórica. Mudam o modo de
narrar, o ponto de vista do narrador, a relação com a matéria narrada ? É
assunto para pesquisa, e virá em seguida.
E chego a Sebastião Salgado - brasileiro, nascido no
interior do Espírito Santo, estudante de economia, como economista exilando-se
em Paris, para então tornar-se fotógrafo e, a meu ver, talvez o mais importante
dos nossos artistas vivos - que entra na pesquisa com seus retratos muito
elaborados, resultado de anos de pesquisa, de trabalho e de risco, reunidos nos
álbuns Outras Américas, Terra, Trabalhadores, Êxodos e Retratos de crianças do
Êxodo. Saindo do mundo verbal para o visual, a pesquisa encaminha outras
perguntas, que dizem respeito a essa linguagem universal, registrando e dando
forma às mutações da sociedade industria, sua arqueologia , seus pontos
avançados, seus êxodos e deslocamentos de populações, como um campo articulado
de crítica e conhecimento da realidade. São retratos de jornalista, ou arte ?
São registros momentâneos e fugazes, ou dão forma a uma percepção mais funda da
época ? Se forem arte mesmo, como se dá a aproximação com os modos de compor da
pintura, já que os retratos lembram muitas vezes a arte clássica ? Qual é o
ponto de vista do narrador nesses retratos ? De alguém que folcloriza a miséria,
que dela faz alarde oportunista, glamourizando e estetizando a violência,
vendendo-a como exotismo ? Mais que isso, coloca-se para a pesquisa a pergunta
inevitável : é possível superar o momento afirmativo da forma artística, que
possibilita a fruição estética da mais degradante e abjeta miséria?
A seu modo, os retratos de Sebastião Salgado, reconhecidos
e premiados, narram uma certa experiência crítica do mal-estar no capitalismo
avançado. Como contraponto, que se percebe sem maior esforço, às imagens da
sociedade do espetáculo, das imagens cansadas e repetidas, eufóricas e
depressivas, coladas na mitologia do progresso, do sucesso, da competição
individual, do corpo bonito e sadio, dos psicofármacos como panacéia para todos
os males e limites da condição humana. [topo da
página]
# Antonio Eduardo de Oliveira - Cartografias poéticas: cinema, narração e subjetividade em
Caio Fernando Abreu
Na obra do
escritor brasileiro Caio Fernando Abreu (1948 – 1996) o imaginário de seus
personagens se constitui através de um processo de lembranças fragmentadas
composto por referências e citações literárias, musicais e cinematográficas.
Estes elementos se inserem numa poética da urbe contemporânea. Meu objetivo
neste trabalho é analisar o intertexto fílmico contínuo na obra de Caio Fernando
Abreu. Assim fazendo, aponto para a presença de uma cidade subjetiva criada por
alusões cinematográficas da narrativa. Este recurso revela um diálogo constante
entre literatura e cinema. Destaque é dado para indivíduos solitários,
principalmente gays expressando memórias e afetividades.
É ampla e constante a marca do cinema na obra de Caio
Fernando Abreu. Ela aparece em contos de Os Dragões não Conhecem o Paraíso
(1989), Morangos Mofados (1982), Estranhos Estrangeiros (1996) e no romance Onde
Andará Dulce Veiga?(1990). Este último que pode se equiparar a um “film noir”
tropical.
“Pela Noite”, um texto muito rico em citações de nomes de
estrelas de cinema e referências coloquiais da narrativa à técnicas
cinematográficas, é o texto escolhido para o argumento do meu trabalho. Esta
novela foi publicada inicialmente em Triângulo das Águas (1983) e depois no
volume póstumo Estranhos Estrangeiros (1996).
O enredo se desenvolve em torno do encontro casual, numa
sauna masculina da metrópole, de dois amigos que vêm de uma cidade do interior,
Passo de Guanxuma e que não se encontravam a anos. A partir daí a narrativa
descreve o jogo de sedução entre os dois rapazes, explorando suas carências
afetivas e sexuais. Neste empenho o narrador destaca a grande solidão dos dois
amigos imersos no ambiente urbano. A novela dramatiza a dificuldade dos
personagens de expressar o afeto de um pelo outro. Ao iniciarem um jogo mútuo de
sedução eles se denominam Pérsio e Santiago. Isto demonstra a disposição deles
de encenar papéis como uma forma de mascaramento até o final da narrativa quando
a entrega emotiva acontece.
O desencadeamento do imaginário fílmico de Pérsio que o faz
ver e ler o mundo é uma maneira encontrada de proteger-se e compensar-se contra
o isolamento. É o que se percebe quando ele declara para Santiago:
Quase não vejo ninguém, quase não saio mais. Dou aquelas
aulas, volto para casa. Aí fico lendo ou vou ao cinema. Vou ao cinema quase todo
dia. Ou vejo uns dois filmes na televisão cada noite. Já ando vendo as coisas,
as coisas todas como. Como se meus olhos fossem lentes. Dessas de cinema, um
“close”, pá, vejo mais perto. Um “zoom”, pá vou afastando. (ABREU, 1983, p. 162)
Imersos num processo cinemático interior Pérsio e Santiago
exibem para o leitor filmes interiores que nos falam da vida e da morte. Estes
olhares de câmara cinematográfica também são compartilhados, por vezes, com o
campo de visão do narrador.
É o que se percebe, por exemplo, quando Pérsio e Santiago,
com a janela do carro aberta, sobem a Consolação:
Santiago pôde ver primeiro a silhueta irregular dos
edifícios, algum ponto de ônibus com pessoas encolhidas, amontoadas em baixo dos
marquises, batidas pela garoa fina, um OUTDOOR com dentes resplandecentes, outro
com coxas morenas, volume saliente, cuecas, qualquer coisa, bares abertos,
algumas putas, um travesti de saia de couro, (...) depois o início dos muros
altos e brancos do cemitério, a massa sombria dos ciprestes. Seriam mesmo
ciprestes? Ou pinheiros? (ABREU, 1983, p. 156).
Imagens repetidas do apartamento de Pérsio o tornam
equiparável a uma sala de cinema onde se assiste ao filme da cidade. Assim
quando ele e Santiago se preparam para sair pela noite são vistos “os dois
estonteados numa onda nervosa de movimento, [enquanto] apagavam luzes, fechavam
portas e janelas, esvaziavam cinzeiros. As luzes da cidade brilhavam através da
cortina da sala” (ABREU, 1983, p. 151). O final deste trecho da narrativa evoca
a imagem dos antigos cinemas que abrem suas cortinas no início da projeção do
filme.
Os olhares de Pérsio e do narrador recorrem a detalhes e
fragmentos típicos da urbe como ruídos de carros, reflexos de néons, visões da
sarjeta transbordante de água suja dos bueiros, esgotos (ABREU, 1983, p. 157),
garoa fina, para elaborar cenários e projeções de um filme repleto de
subjetividades. E este método se efetua como se houvesse uma cadeia de telas de
projeção. É como se uma sucessão de trechos fílmicos terminasse por compor
vários curta-metragem.
Nestas telas de projeção vislumbradas da janela do
apartamento de Pérsio o desejo é associado à cidade. Numa cena, ao mover-se até
a janela, Santiago no escuro viu lá embaixo a cintilação dos faróis dos carros,
anúncios luminosos, Minister, Melita Coca – Cola, fume, beba, compre, morra
(...) nos edifícios, luzes às vezes vermelho quentes, íntimas como as das
boates, vago erotismo nas silhuetas mal desenhadas nos interiores alheios,...
gemidos roucos de prazer urbano. (ABREU, 1983, p. 128 – 129)
E aqui o narrador pensa no erotismo de sexualidades
diversas no cenário urbano. Ele se refere a amantes que “beijavam-se talvez,
acariciavam seios coxas dedos mergulhados em pelos umedecidos” (Op. cit, 1983,
p. 128 – 129), mesmo quea presença do homoerotismo na narrativa seja um dos
elementos mais definidores da poética do autor, esta não exclui a representação
do desejo heterossexual. E esta poética do desejo também é relacionada à música,
à literatura além das estrelas de narrativas fílmicas.
No conto Mel e Girassóis (ao som de Nara Leão) o jogo de
sedução entre um homem e uma mulher faz o narrador de forma bastante irônica
introduzir na narrativa outras possibilidades de manifestações de identidade e
de sexualidade. Ao retratar o cenário do jantar dos dois namorados indecisos
temos a seguinte descrição:
Como um filme meio B, até mesmo meio C, e de repente
houvesse um número rápido com Carmem Miranda nas escadarias, não espantaria. Ela
não se demorou urbana fiel ao preto, jogou a seda de uma blusa sobre o velho
jeans meio arrebentado, e só entregou certa expectativa naquele momento,
honestamente, nem ela saberia de quê – quando acrescentou um pequeno fio de
pérolas, quase invisível. E jogou o cabelo comprido para o lado, num gesto
rápido de mulher, tão de mulher que é desses preferidos pelos travestis. (ABREU,
1991, p. 101)
Imersos numa embriaguez cinemática Pérsio, Santiago e o
narrador evocam nomes de estrelas, fornecem detalhes meticulosos delas num jogo
de sensibilidades. Já Pérsio tem uma lagartixa de estimação chamada kay Kendall.
Uma homenagem a atriz britânica que morreu jovem de leucemia e cuja imagem
cênica evoca uma mistura curiosa do “glamour” e postura dos anos cinqüenta e um
toque ecentrico das estrelas de cinema dos anos trinta.
Em determinado momento, enquanto Pérsio toma banho,
Santiago ao fechar uma revista, encontra e lê um cartão postal de um antigo
namorado de Pérsio. O narrador expressa a curiosidade e preocupação do
protagonista que pensativo ficou olhando na capa os olhos de Luna Turner (ABREU,
1983, p. 140), o que sugere uma procura de solidariedade na imagem fotográfica
ali disposta. São estes diálogos e evocações do imaginário fílmico de Pérsio e
Santiago que garantem a perpetuação dos afetos a desejos da narrativa
homoeróticos. O estar à margem dos valores tradicionais e sexuais impostos pela
sociedade é um tema comum a vida gay e a existência de divas do cinema. E ainda
reforçando a relação entre afetos, cidade, sugerindo sexualidade e erotismo,
Santiago levanta-se para abrir a janela mas recua com o vento frio. Vê então o
próprio rosto misturado às luzes da cidade, corado dando-lhe a aparência de um
garoto surpreendido em meio a um ato obsceno (ABREU, 1983, p. 140). Ou seja, é
como se a cidade pudesse oferecer uma visão panorâmica erotizada onde o
predomínio do desejo e de práticas libidinosas inibem Santiago. Além disso esta
cena nos traz à mente, a homofobia internalizada de Pérsio. Esta se contrapõe à
proposta de Santiago de descoberta do cheiro do outro. Pérsio em sua fixação
depreciativa do ânus espelha seu condicionamento à noções estereotipadas da
divisão atividade/passividade (BESSA, 1997, p. 72). Seguindo a tradição
subversiva da narrativa da modernidade que inclui no campo da representação
material que incorpora os dissidentes sexuais (BOONE, 1998, p. 5) Caio Fernando
Abreu esmiuça em detalhes o amor físico entre homens no desabafo de Pérsio que
se contrapõe à atitude conciliadora com o afeto e amor físico de Santiago.
No “festival de afetos” estimulado pelos fragmentos
cinemáticos, o poder visual da narrativa mapea um dos locais urbanos
tradicionais de encontro das comunidades gays, a sauna. Evocada num flash back,
através do olhar cinemático do narrador, enquanto Pérsio se apronta para sair
pela noite com Santiago. Vemos Pérsio envolto no vapor do chuveiro morno
lembrando do cenário de “machos em caça”. Semelhante a uma seqüência em câmara
lenta, a visão coletiva do desejo é “fotografada” de modo fragmentado. Parece a
própria representação da cidade mostrada na narrativa. Vemos então nas projeções
do filme interior do protagonista homens nus dispostos feito estátuas nos bancos
de azulejos, entre o vapor um músculo mais nítido, relance, coxa, braço, bunda
(ABREU, 1983, p.142).
A sauna, lugar de propagação de encontros tanto anônimos
quanto furtivos, da cidade é equiparada à sala de espera de um cinema, sessão
anônima de Domingo (ABREU, 1983, p. 143).
Rompendo com a herança logocêntrica da modernidade, da
literatura sempre se explicando a si mesma, a narrativa de Caio Fernando Abreu
abarca outros campos extra literários, tornando-se receptiva à entrada de outros
elementos como o intertexto fílmico aqui abordado. Além de acentuar afetos e
desejos homoeróticos, a presença do mundo cinemático no texto envolve pelo menos
três aspectos importantes: a projeção do biográfico, deste no literário e deles
todos para a crítica. Isto aponta para os rumos de uma crítica libidinal como o
faz Joseph Boone ao estudar a narrativa ficcional da sexualidade no modernismo
na literatura inglesa e americana. Boone enfatiza
o fato de que
It is no news
that on the level of content, sexuality has played an important role in shaping
the reputation and reception of modern fiction – a fact to which the supression
of sexually scandalous fictions by Chopin, Lawrence, Joyce, Radcliffe Hall,
Henry Miller and others bear testimony (BOONE, 1998, p. 3)
Por sua vez “Pela Noite” é um texto que oferece um enfoque
mais atualizado da representação da homossexualidade na literatura brasileira
contemporânea. Esta temática tem sido apenas tradicionalmente apontada, e de
modo tímido pela crítica, na nossa literatura, nas obras Bom Criolo (1895) de
Adolfo Caminha e O Ateneu (1888) de Raul Pompéia. Sendo importante salientar que
o primeiro romance é tido no Brasil como precussor e no exterior, apesar de ter
aparecido num momento em que a constituição da homossexualidade era vista como
doença e crime, nos discursos jurídicos e médicos não há uma afirmação unívoca
desse discurso (Lopes, 6). Isto porque mesmo sendo o romance marcado pelo
naturalismo, o discurso amoroso transita da fúria erótica, apresentada por
metáforas animalescas (...) a uma representação mais próxima do Romantismo
expressada na devoção de Amaro por Aleixo e que conclui com o final trágico dos
grandes estórias de amor (Lopes, 6). Já o romance O Ateneu escrito e publicado
antes de Bom Criolo a questão da sexualidade é apresentada dentro de um sistema
divisor entre fortes e fracos, “nitidamente homofóbica”. [topo da
página]
# Gustavo Bernardo - O valor do ensaio
Albert Camus
comentava que os filósofos antigos refletiam bem mais do que liam. Graças à
tipografia, os filósofos teriam passado a ler mais do que a refletir: antes de
filosofias, teríamos comentários (em Costa Pinto, 1998, 15).
Se essa circunstância implica ganho de modéstia, implica
também perda de potência. Camus desconfia que a modéstia que se ganha é antes um
engodo, desresponsabilizando o pensador de, justamente, pensar com autonomia.
Livros de pensadores que não se apóiam em autoridades, citações, comentários e
conceitos alheios passam a não ser levados a sério. Incomodava ao autor de O
homem revoltado o pensamento filosófico hegemônico se constituindo a reboque de
determinado horizonte epistemológico que tornaria cada filósofo,
obrigatoriamente, um historiador da filosofia, e faria de cada conceito a
retomada, o desdobramento ou a negação de outras redes conceituais.
Camus procurava recuperar, tanto na sua filosofia quanto na
sua ficção, a herança de Montaigne, consciente de que o processo de redação de
um ensaio o aproximava do processo literário de criação de um universo
ficcional, assumindo a forma ensaística como gênero limítrofe entre a literatura
e a filosofia. A forma do seu pensamento, em decorrência, se queria um
pensamento pela forma. A formulação socrática, “só sei que nada sei”, adquiria a
entonação retoricamente interrogativa de Montaigne, que sais-je?. Camus
preconiza, no seu Mito de Sísifo, caminho inverso ao platônico, advogando, para
o pensamento, a carne (Camus, sd, 125):
Hoje, que o pensamento já não aspira ao universal, que a
sua melhor história seria a dos seus arrependimentos, sabemos que o sistema,
quando é válido, não se separa do seu autor. A própria Ética, sob um dos seus
aspectos, não é mais do que uma longa e rigorosa confidência. O pensamento
abstrato reúne-se enfim ao seu suporte de carne. Do mesmo modo, os jogos
romanescos do corpo e das paixões se ordenam um pouco mais segundo as exigências
de uma visão do mundo. Já não se contam “histórias”, cria-se o próprio universo.
Os grandes romancistas são romancistas filosóficos, quer dizer, o contrário de
escritores de tese. Tais Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievsky, Proust,
Malraux, Kafka, para só citar alguns.
A crítica que se poderia fazer a Camus, e que de fato
Sartre fez, foi a de que a desconfiança legítima em relação aos sistemas
totalizantes acabava por gerar o seu oposto, afirmando o primado da ilusão – o
que não deixava de significar uma nova totalização, em que o mundo visto como
aparência só deixaria lugar para o pensamento voluntarista. Essa crítica
permitia caracterizar o ensaísmo, em particular o francês, como moralista. A
ausência de âncoras e de referências não implicaria automaticamente liberdade,
mas antes novas sujeições, possivelmente tão próximas da arrogância quanto as
anteriores.
A despeito da restrição de Sartre, Adorno entende que o
ensaio, recusando a certeza, desconfiando da abstração e, no limite, duvidando
do próprio conhecimento, deseja ressensualizar a razão, aproximando-a do
universo estético. Deste modo, desafia-se o ideal da clara et distincta
perceptio (em Costa Pinto, 1998, 30-7). Como queria Montaigne, não se pinta o
ser: pinta-se a passagem, o movimento, o intervalo, em suma, o que escapa e, de
certo modo, não há.
O filósofo Vilém Flusser, cuja obra é no momento a minha
obsessão, cita muito pouca gente em seus livros, mas se refere várias vezes a
Albert Camus, em especial à sua teoria do absurdo – talvez porque ambos tenham
evitado soberanamente notas de rodapé e mesmo referências bibliográficas,
pondo-as na conta de um ritual acadêmico que, a pretexto de honestidade
intelectual, produzia uma retórica da sujeição, sujeitando simultaneamente autor
e leitor ao rodapé do pensamento. Apenas no seu primeiro livro, Língua e
realidade, Flusser elenca os livros que informaram o seu trabalho, sem
entretanto preocupar-se em marcar escrupulosamente as páginas consultadas. A
partir do seu segundo livro, ele não se preocupa mais com isso, referindo-se aos
autores que teria lido às vezes e en passant, pressupondo que interessasse a seu
leitor as idéias, e não o histórico impossível de cada idéia.
Inspirava-o, muito provavelmente, também Wittgenstein, que
no Tratactus se abstém de julgar o quanto os seus esforços coincidiriam com os
de outros filósofos, razão pela qual não indica fontes, se lhe é “indiferente
que alguém mais já tenha, antes de mim, pensado o que pensei” (Wittgenstein,
1994, 131). A opção pelo ensaio ou, mais radicalmente, pelo que chamou de
“ficção filosófica”, justificava e dava coerência à ausência de bibliografias e
de notas ao pé das folhas, conduzindo o leitor a uma leitura muito mais fluente
do que o usual. Essa leitura se queria, assumidamente, encantadora e
encantatória.
Como fica a fidelidade ao texto, ao autor estudado? Fica,
sem dúvida, perigosamente relativizada. No artigo “Breve relato de um encontro
em Platão”, publicado na Revista do Instituto Brasileiro de filosofia, Flusser
comenta à sua maneira uma passagem dos Diálogos:
Sócrates acaba de contar a Fedro uma história egípcia sobre
a descoberta da escrita. E Fedro responde: Tens um jeito, Sócrates, de inventar
com facilidade estórias egípcias, ou de não importa que outra terra. Sócrates:
Havia uma tradição no templo de Dodona de que as primeiras profecias foram
articuladas por carvalhos. Os primitivos, tão diferentes no seu
subdesenvolvimento mental do academicismo atual, eram de opinião que o que
importa é ouvir a verdade, venha ela de onde quiser, e que seja de carvalhos ou
rochas. Tu, no entanto, pareces interessado não na verdade de uma proposição,
mas na fonte da qual surgiu e no contexto no qual se deu.
O texto dispensa comentários na sua simplicidade
cristalina. Fedro critica Sócrates por sua irresponsabilidade intelectual em não
manter fidelidade a fontes e em cometer inautenticidades históricas. Sócrates
responde ironicamente, mostrando que o interesse por explicações diacrônicas
(historicistas) encobre o fenômeno a ser explicado. Sócrates põe a nu, na sua
resposta, a atitude de Fedro como tentativa de relegar a discussão do mérito da
questão às calendas gregas. Mostra, com efeito, que explicações históricas têm a
virtude de desviarem a atenção do assunto, de serem um explaining away, uma
desconversa. Que assumem ares de preciosismo acadêmico para evitar o confronto
existencial com o fenômeno a ser considerado.
O filósofo assume, entretanto, com honestidade, a sua
“desonestidade”:
Admito de bom grado que nesta reflexão husserlizei Platão,
talvez demasiadamente. Mas não importa se inventei o meu Fedro, ou se relatei um
Fedro socrático, platônico, ou um Fedro de outro contexto. Importa, isto sim, se
o que eu digo (ou o que Sócrates, ou Platão, ou Husserl dizem) é ou não é
verdade. É neste sentido que a leitura dos Diálogos provoca sempre novos
enfoques sobre a nossa situação e os nossos problemas. E é neste sentido que não
se pode falar em “história da filosofia” como processo evolutivo.
Importa menos a fidelidade ou a infidelidade ao pensamento
alheio do que a verdade e a autenticidade do pensamento que se assina e que se
assume. Esta concepção nos motiva a aplaudirmos a sua coragem, mas igualmente
provoca uma outra preocupação, ao levantar as âncoras da Academia que
permitiriam uma avaliação mais confortável. O valor deste pensamento desancorado
deve ser procurado nos seus próprios critérios, o que, todavia, facilita que ele
nos seduza nos dois sentidos da sedução: apaixonar e enganar.
Criticar a Academia é relativamente fácil; o discurso
acadêmico tem muitos buracos, tantos mais quanto mais finge que não os tem. Mas
criticar a Academia já se tornou um outro conjunto de clichês esclerosados. O
grande desafio do ensaio não se encontra no combate contra os tratados, até
porque os ensaístas precisam ler, e lêem, os tratados. O grande desafio do
ensaio é então semelhante ao desafio da ficção, a saber: disfarçar, pelo humor
e, principalmente, pela ironia, o je, de tal modo que ele possa se tornar,
verdadeiramente, un autre, na conhecida expressão de Rimbaud; de tal modo que se
possa dar, verdadeiramente, a perspectivização do conhecimento.
Pensando na perspectiva do professor, o ensaio como solução
didática e como opção de investigação discente se mostra igualmente
problemático. A exigência do rigor acadêmico acompanha tanto o tratado quanto o
ensaio, mas é bem mais difícil identificá-lo, persegui-lo e avaliá-lo nesse
último.
Em conseqüência, a opção pelo ensaio, no lugar da
monografia, versão reduzida do tratado, facilita a geração de trabalhos confusos
que se imaginam criativos, ou de trabalhos arrogantes que se imaginam pessoais.
Em conseqüência, há quem defenda que a universidade deveria exigir dos alunos
tão-somente monografias e tratados rigorosos porque, da mesma forma que “samba
não se aprende na escola”, a prática literária stricto sensu e a prática do
ensaio não se aprenderiam na Academia, envolvendo a construção pessoal e
intransferível de um estilo.
O argumento é bastante pertinente, mas colide com o fato de
os alunos lerem cada vez mais ensaios, e não tratados, aumentando a dificuldade
de levá-los a escrever monografias de modo autêntico, e não burocrático. Os
clássicos e alentados tratados de teoria da literatura ocupam as estantes das
obras de referência, mas saem de lá cada vez menos. Os grandes scholars
mostram-se, esses sim, de leitura obrigatória – mas com todo o peso negativo que
a determinação “obrigatória” carrega: são aqueles autores que “temos de ler”,
sem que necessariamente gostemos de os ler. Em contrapartida, se gostamos de ler
os ensaístas de melhor estilo, aqueles que escrevem tão bem quanto os escritores
de ficção, sua leitura parece sempre estimulante mas, algumas vezes, não faculta
sínteses fecundas, deixando o leitor preso no travo da dúvida estetizante –
passo seguro para o ceticismo estéril.
Em artigo publicado n’O Estado de São Paulo de 19 de agosto
de 1967, Vilém Flusser já opunha o ensaio ao tratado, com a seguinte pergunta:
“devo formular meus pensamentos em estilo acadêmico (isto é, despersonalizado),
ou devo recorrer a um estilo vivo (isto é, meu)?” A pergunta claramente capciosa
opõe a suposta vida do ensaio à morte implícita contida no tratado. Para ele, o
estilo acadêmico reúne honestidade intelectual com desonestidade existencial,
“já que quem a ele recorre empenha o intelecto e tira o corpo”: evita o uso da
primeira pessoa do singular, substituindo-a pela bombástica primeira pessoa do
plural ou pela indeterminação do “se”, que não compromete.
Flusser reconhece, no estilo acadêmico, a beleza do rigor,
mas afirma que esse estilo é uma pose: ninguém pensa academicamente, faz de
conta que assim pensa. Escolher a forma do tratado implica pensar o assunto e
informar o que se pensou para os outros, tendo todo o cuidado de informar
também, ou primeiro, o que outrem teria pensado a respeito. Escolher a forma do
ensaio implica viver e dialogar a respeito com os outros, tendo todo o cuidado
de provocar esse diálogo. No tratado o assunto interessa, enquanto que, no
ensaio, “intersou e intersomos no assunto”. A decisão pelo tratado seria
desexistencializante, como decisão em prol do “se”, do público, do objetivo –
logo, a decisão pelo ensaio “é aquela que deve ser contemplada”.
O ensaio não resolve nem explica o seu assunto, como sempre
deseja fazer o tratado, porque antes transforma o seu assunto em enigma:
implica-se no assunto e nele implica os seus leitores. Entretanto, ainda que a
argumentação de Flusser penda inteiramente para o lado do ensaio, o filósofo não
joga fora o tratado. Reconhecendo que nas universidades predomine o academicismo
como reação provável à tradição ensaística do pensamento brasileiro, entende que
as universidades, como reza o seu nome, não devem ser unilaterais, construindo
lugares geométricos “nos quais o desprezo do academicismo pelo ensaísmo e o nojo
do ensaísmo pelo academicismo se superem mutuamente”.
Adolfo Bioy Casares também considera o ensaio gênero maior
e por isso mesmo a exigir maior responsabilidade; afirma que a gratuidade e a
informalidade fazem do ensaio opção de escritores maduros, e não, como se
poderia pensar à primeira vista, de jovens e voluntariosos escribas: “com
digressões, com trivialidades ocasionais e caprichos, somente um mestre forjará
a obra de arte” (em Barbosa, 1999, 35). Somente um mestre pode escrever um texto
que requeira do leitor equivalentes ensaios de leitura, isto é, leituras e
releituras vagarosas e vagabundas, como teria desejado Montaigne. Sem mestria, a
opção pelo ensaio pode ser tão arrogante quanto a opção do tratado pelo
esgotamento do assunto. O ensaio nesse caso menos explora hipóteses e abre novas
perspectivas do que serve a exibições narcisistas. Quando isso acontece, deixa
de ser um ensaio do pensamento e passa a ser, tão-somente, uma (má) performance
– outra pose, portanto.
É suposição básica desse pequeno artigo que se devem
enfrentar os perigos do ensaio para superá-los e assim realizar um pensamento
que não se cristalize e provoque outros – sempre tendo em mente que essa opção
não é de modo algum a mais fácil. [topo da
página]
REFERÊNCIAS:
BARBOSA, João Alexandre.
Entrelivros. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
CAMUS,
Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Tradução de Urbano Tavares
Rodrigues & Ana de Freitas. Lisboa: Livros do Brasil, sd.
COSTA PINTO, Manuel da. Albert Camus: um elogio do ensaio.
São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
FLUSSER, Vilém.
Ficções filosóficas. São Paulo: EdUSP, 1998.
______.
Língua e realidade. São Paulo: Herder, 1963.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratactus logico-philosophicus.
Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: EdUSP, 1994.
# Ilva Maria Boniatti - A
institucionalização da Literatura Comparada na Universidade de Caxias do Sul
A pesquisa
intitulada “Literatura Comparada no Brasil: representações institucionais”, que
venho desenvolvendo na Universidade de Caxias do Sul, fundamenta as reflexões
que trago a este encontro.
Presentemente, venho estudando a questão da
institucionalização literária para relacioná-la com o objeto da pesquisa. Para
tanto, parto de algumas colocações de Jacques Dubois a respeito da
institucionalização da literatura, dentre as quais a distinção que este autor
faz entre a questão social e a ideológica. O autor considera os textos
literários como criações artísticas e a literatura como instituição. Embora os
primeiros sejam a manifestação desta, com elas não se confundem, porquanto a
literatura propõe escolhas que definem a trajetória de cada escritor.
Embora tangenciando os estudos de Sociologia, escolho
orientar minhas investigações por algumas sugestões conceituais de Dubois porque
considero a literatura comparada como um campo aberto ao investigador, uma vez
que prevê a interdisciplinariedade como um de seus conceitos-chave.
Assim, retomando a questão do aporte comparatista e de sua
importância numa universidade como a que pertenço, situada numa região
brasileira de múltiplas culturas, cumpre lembrar, com Dubois, que l´analyse
d`institution fai découvir qu´il n`y a pas la Littérature mais des pratiques
spéciales, singulières, opérant à la fois sur le langage et sur l´imaginaire et
dont l´unité ne se réalise quá certains niveaux de foncionnement et d´insertion
dans la structure sociale. (DUBOIS, 1978, 11).
Essas práticas especiais e singulares são o objeto de minha
investigação, uma vez que todo o texto refere uma circunstância, tradição ou
norma. Essa tradição, do ponto de vista fático, inicia com a criação da ABRALIC.
Cabe recuperar aqui o percurso histórico do Comparatismo no Brasil, uma vez que
sua institucionalização legitima uma prática que, cada vez mais, mostra-se
adequada à investigação das diferenças culturais.
Tem-se notícia que, em 1984, um grupo de professores já
havia projetado a ABRALIC, em reunião de coordenadores de Pós-Graduação na CAPES
- MEC. Em agosto de 1985, em Paris, realizou-se o XI Congresso da Associação
Internacional de Literatura Comparada, na Universidade de Sorbonne, por onde
circulavam eminentes comparatistas, que constituem a própria história a
Literatura Comparada.
Em agosto de 1985, na Place de la Sorbonne, elegeu-se
Antonio Candido para o Comitê Executivo da AILC, vindo a ser o primeiro
latino-americano a integrá-lo. Os brasileiros presentes neste Congresso, Eduardo
Coutinho, Idelette Muzart Fonseca dos Santos, Neide de Faria, Tânia Franco
Carvalhal e Antonio Manuel dos Santos Silva, decidiram fundar a Associação
Brasileira de Literatura Comparada, que teria por sede a cidade de Brasília. Ao
chegar ao Brasil, no entanto, a realização do I Seminário de Literatura
Latino-Americana define o local em que será, primeiramente, sediada a
Associação. Esta concretiza-se, pois, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, sendo sua primeira presidente a professora Tania Franco Carvalhal, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Surge assim a Associação Brasileira de Literatura Comparada
(ABRALIC) em 9 de setembro de 1986, no âmbito do 1º Seminário Latino-Americano
de Literatura Comparada, realizado de 8 a 10 de setembro na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, com a participação de comparatistas europeus e estudiosos
latino-americanos.
Uma vez concretizada a sua existência, a ABRALIC passa a
definir seus compromissos para com a literatura nacional e internacional,
promovendo congressos bianuais, cuja temática será definida dentre as questões
institucionalizadas para os estudos comparatistas. Sendo a ABRALIC uma
associação de natureza acadêmica não pode deixar de assegurar o papel da
Literatura Comparada na pesquisa universitária e no ensino superior.
Assim, conforme registra Neide de Faria nos Anais do I
Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada (1986,p.97) a ABRALIC
comprometia-se implicitamente com os estudos da Literatura Brasileira e com as
relações desta com as outras literaturas. Nesse sentido, configuram-se no âmbito
da ABRALIC as seguintes relações:
- com as literaturas de sua área geográfica natural - a
América Latina;
- com as literaturas-chave da tradição ocidental européia,
às quais o Brasil está histórica e umbilicalmente ligado;
- com as literaturas americanas em geral, com as quais
divide uma série de problemas comuns de literaturas de países do "novo mundo" de
colonização européia;
- com as literaturas emergentes, a africana principalmente,
por razões óbvias;
- com literaturas mais consolidadas de países diversos, de
línguas menos conhecidas, com as quais tem muita reflexão a compartilhar, para
repensar sua condição de literatura "menor", "marginalizada", "periférica",
"dependente";
- com todas as literaturas.
Neide de Faria faz, de imediato, uma advertência sob o
rótulo de Literatura Comparada no Brasil:
“ (...) que certamente poderá ser considerada polêmica por
alguns ou por muitos – com relação a um certo posicionamento teórico extremista,
entre os pólos nacionalismo x cosmopolitismo, que poderia levar os trabalhos da
Associação para os caminhos radicais do chauvinismo provinciano, do ufanismo
nacionalista, ou do xenofobismo, caminhos pobres ou pretensiosos, estéreis e
vazios” . (1986, p. 98)
Segundo Sandra Nitrini (1997:283), os congressos bienais da
ABRALIC apresentam-se até o presente com uma dupla face: de um lado, estudos
literários; de outro, e em menor extensão, estudos comparativos sistematizados e
devidamente fundamentados."
Dando prosseguimento às reflexões sobre o conceito de
Literatura Comparada e o complexo do "colonizado cultural", Neide de Faria
repensa institucionalmente a literatura brasileira que, até então, consagrava o
constructo teórico de "literatura nacional" , examinando suas relações e seus
diálogos entre culturas. Seu aporte enfatiza as noções de contraste e diferença,
além de dar continuidade às categorias de semelhança cultural.
Os estudos literários que se contaminam pelas idéias de
globalização, democratização e contextualização, nos anos 80 e 90, não deixam de
ser uma proposta de renovação em consonância com o contexto econômico, político,
cultural e global contemporâneo. Isso porque os Cultural Studies invadem a área
de estudos tradicionalmente reservados à literatura, obrigando os comparatistas
a repensar os seus objetivos e métodos.
Assim, rastreando o conceito de Literatura Comparada
referido pelos críticos brasileiros e caminhando, desde 1986, impõe-se examinar
a designação de Literatura Comparada que Tânia Carvalhal define "como uma forma
de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas (1986:5)”.
Nessa mesma perspectiva, partindo-se das comunicações apresentadas nos
congressos da ABRALIC, Neide de Faria propõe repensar a literatura brasileira em
suas relações de "diálogo", "consenso" ou "confronto" com as literaturas do
mundo todo; ou seja, relacionando esta noção com a instituição literária, tem-se
que essa rede de instâncias e mecanismos de reprodução que a constitui define um
sistema. Este, no caso da literatura comparada, tem a ver com sua
institucionalização a partir de associações e grupos de pesquisa.
Na seqüência entre os vários estudos comparatistas,
apresentados na ABRALIC, destacam-se a contribuição de Eduardo Coutinho
(1996:25). Ele observa que a Literatura Comparada, como disciplina acadêmica,
registra "a passagem de um discurso coeso e unânime, com forte propensão
universalizante, para outro plural e descentrado, situado historicamente, e
consciente das diferenças que identificam cada corpus literário envolvido no
processo da comparação.”
A professora e ensaísta Eneida Maria de Souza (1994:20)
amplia a relação para o entendimento do comércio interdisciplinar, igualmente
espontâneo e informal, que orientava as pesquisas realizadas no interior das
Ciências Humanas. Reforça ainda a ensaísta que o apoio instrumental teórico é
mais sistematizado, apagando-se a separação das áreas, a divisão de domínios, a
criação de fronteiras e portas disciplinares. Assim, na ampliação deste espaço,
retoma-se a interdisciplinaridade. Relacionando com a pesquisa que desenvolvo,
isso leva a constatar que a proximidade interdisciplinar, por exemplo, entre
História e Sociologia, fornece subsídios importantes para o estudo da
institucionalização do comparatismo e seu influxo na definição de cultura.
Como se pode ler em diversos ensaios, a voz de Eneida de
Souza indica a abordagem intercultural revitalizada pelos comparatistas diante
da possibilidade de repensar as origens e modelos.
Nos congressos mais recentes, cujos resultados são
publicados nos Anais da ABRALIC e em revistas especializadas, pode-se inferir
que a perspectiva pós-modernista tende a ser dominante na década de 1990.
Os efeitos da globalização, democratização e
contextualização, manifestados nas diferentes posturas dos comparatistas
brasileiros, constituem um marco na história da institucionalização da
Literatura Comparada. A abertura conquistada pela dissolução das fronteiras não
se limita, pois, ao limite dos textos: a perspectiva comparatista amplia-se e
transforma as instituições em fontes de produção do conhecimento e em local de
trocas substantivas.
Apesar de os estudos literários modernos terem-se voltado
para a valorização sistemática do caráter intrínseco e imanente da obra
literária, os estudos contemporâneos objetivam a ampliação desses limites. A
inclusão do contexto, construído nas dobras dos textos já consagrados, permitem
uma leitura capaz de preservar e tornar acessível o leque de acervos dos
escritores e críticos literários.
Nesse sentido, a relação entre o conceito de Literatura
Comparada e os estudos literários concretizaram-se pelo desbravamento da
Literatura Comparada, desde o século XIX, quando a “migração de um elemento
literário de um campo literário a outro, atravessando as fronteiras” (Carvalhal,
1991:9) passou a ser considerado como um dado importante para avaliar as trocas
culturais. Hoje, para compreender as alterações por que passa a Literatura
Comparada no século XX, é necessário levar em conta a composição das diferentes
disciplinas que compreendem o domínio das Ciências Humanas. A questão da
interdisciplinaridade, pois, deve ser considerada como a responsável pela
diluição dos limites metodológicos, contribuindo para o alargamento das
fronteiras e para a compreensão dos fenômenos culturais.
O que se percebe, pois, nos estudos literários
contemporâneos, é exatamente o sentido de investigação, de revisão e de
questionamento não só dos elementos tradicionalmente visíveis, como o literário,
o artístico, mas sobretudo dos elementos excluídos pelas leituras tradicionais.
Os estudos literários voltam-se, portanto, para amparar esses elementos no campo
da ciência cultural e social, redefinindo o valor do contexto e ampliando sua
leitura pelo eixo interdisciplinar.
A relação entre o conceito de Literatura Comparada e os
estudos literários atuais constitui uma maneira específica de dialogar entre os
textos literários, não visualizando-os como sistemas fechados em si mesmos, mas
interligando-os a outros contextos de significação.
Por força natural de expansão e ousadia se a literatura
comparada podeatuar entre várias áreas, apropriando-se de diversos métodos,
próprios aos objetos que ela coloca em relação (JOBIM, 1994, 75), a força desta
interdisciplinaridade da literatura comparada e a teoria literária, ocorre a sua
institucionalização.
Sabe-se que a Literatura Comparada colabora para o
entendimento indispensável de integração cultural. A importância da implantação
dos estudos comparatistas, em cada país, e, em especial nas Universidades, sua
institucionalização como disciplina acadêmica, os textos se efetivam como
leitura do passado, estimulando a reflexão sobre as fronteiras dos campos
teóricos, literários. Referenciar os esforços dos fundadores da Literatura
Comparada no Rio Grande do Sul, não é demais citar as palavras de Tânia
Carvalhal (1997:9) quando diz que “reconhecer que a literatura comparada é hoje
plural; que assume formas distintas, estreitamente relacionadas não apenas com
os conceitos teóricos que validam as metodologias adotadas mas também com os
locais onde é praticada. E é precisamente a diversidade das práticas que permite
converter seu conjunto em objeto de comparação, pois não se pode comparar o que
é totalmente idêntico.” Cabe ressaltar a necessidade de estudos comparatistas na
Universidade de Caxias do Sul que, pelo grau de migração e emigração dos estudos
culturais da serra, ensejam a interdisciplinaridade.
Ignorar os fundamentos históricos e literários dessas
migrações é descomprometer-se com o social e o cultural que a Literatura
Comparada poderá desvelar.
BIBLIOGRAFIA
CONSULTADA:
CARVALHAL, Tania Franco. Série
Princípios: Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 1986.
CARVALHAL. Tania Franco. Literatura Comparada: a estratégia
interdisciplinar. Revista de literatura comparada, 1: 9 – 21(1991). ABRALIC.
CARVALHAL, Tania Franco. (org.). Literatura Comparada no
Mundo: questões e métodos. Porto Alegre: L&PM/VITAE/AILC, 1997.
DUBOIS, Jacques. L´institution de la littérature:
Introduction a une sociologie. Brussels: Labor, 1978.
GRASSIN, Jean-Marie. Littératures émergentes. Bern: Lang.
1996.
GRAWUNDER, Maria Zenilda. Instituição
literária:análise da legitimação da obra de Dyonelio Machado. Porto Alegre:
EDIPUCRS/IEL, 1997.
JOBIM, José Luis. A crítica da
teoria: uma análise institucional. In: Revista Brasileira de Literatura
Comparada. São Paulo: ABRALIC, maio, 1994, v. 2. p. 73.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e
crítica. São Paulo: EDUSP, 1997.
SOUZA, Eneida Maria
de. Literatura Comparada: o espaço nômade do Saber. RevistaBrasileira de
Literatura Comparada. São Paulo, v. 2, p. 19 – 24, maio 1994.
I SEMINÁRIO LATINO – AMERICANO DE LITERATURA COMPARADA,
1986, Porto Alegre. Anais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 97, 1986.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Faculdade de Filosofia. Instituto de
Letras. ORGANON/ UFRGS, v.1, n. 1, Porto Alegre: 1996. [topo da
página]
# Ilza Matias de Sousa - Narrativa
brasileira dos anos 70 e 80: ficção, alegoria, nação
Esta pesquisa
impõe-se e justifica-se no âmbito de uma narratologia literária brasileira.
Interessa-nos apreender e estabelecer o horizonte de uma “nova narração” em
textos produzidos, no Brasil, entre as décadas de 70 e 80. Essa “nova narração”
se prende à (des)construção da nação como problemática do ato narrativo. O que
isso provoca, em face de uma literatura canônica e do discurso colonial
fundador, pode configurar-se em operações autorais, textuais e narrativas cujos
efeitos comporiam uma “narrática” da nação. Compreendemos que a narração age
sobre aquilo próprio que narra, entrelaça-se nas tramas simbólicas, nas
economias imaginárias, e mostra um sujeito movente na busca dos vínculos de
pertinência no mundo e na elaboração dos processos identitários e das diferenças
culturais inscritos nas referências simbólicas da nação, país, família. Sabemos
que esses aspectos representam verdadeiros dilemas na cultura e na sociedade
contemporânea local e global. As pesquisas em literatura comparada demonstram a
importância dessas discussões que passam a gravitar em torno da ficção e da
narração literária, tomada esta como um outro modo de trabalhar a razão
narrativa – que não a História – de projetos de escrever a nação para além de
instinto de nacionalidade.
Este trabalho quer juntar-se a essas reflexões que ocupam o
espaço acadêmico hoje, para interpelar tal razão narrativa, e guiada pelos
“perplexos” das mencionadas décadas de 70 e 80 – Sérgio Sant’Anna, Osman Lins,
João Ubaldo Ribeiro, Silviano Santiago, Clarice Lispector, Lya Luft (e outros
autores a pesquisar) – seguir rumo a uma narrática da nação na literatura
brasileira contemporânea, reconhecendo o desdobramento estilhaçado dos
fragmentos, expondo um espaço crítico, superposto, embaralhado, uma narração
ativa e faces narráticas que fazem das poéticas mais do que categorias
convencionais e códigos fixados academicamente.
A narrativa brasileira produzida nas décadas de 70 e 80,
com o estrangulamento das formas democráticas, pela ditadura militar, então
instalada, parece-nos o cenário favorável e fecundo para se reinvestir na
discussão da identidade nacional, na construção de significados de nacionalidade
e na crise interpretativa que se sucede nos palcos e bastidores sócio-políticos
e culturais do país. Crise que o contexto da globalização acirra e que se deriva
da chamada falência das grandes narrativas de finalidades universalistas.
A interpretação do mundo homogênea e totalizadora não
consegue encobrir os conflitos, a fluidez dos processos de identidade cultural e
nacionalidade, que atravessam as simbologias, as construções de mitos, cujos
sentidos são interpretados pela própria nação, pela língua e pela variação de
falares. Trata-se, nesse aspecto, da necessidade de ser desconstituir o culto
mesmo da nação. Indagá-la, colocando-se numa perspectiva em que os conceitos de
modernismo, moderno, modernidade e pós-modernidade pós-moderno, pós-modernidade
interagem, vinculam-se intimamente, dado que as profundas assimetrias na
instauração dos projetos desses primeiros permitem assegurar que há expressões e
feições que configuram modernidades tardias no Brasil ( Cf. SOUZA, Eneida Maria
de. (org. 1998).
Isso significa introduzir o reinvestimento do discurso da
nação numa concepção que supõe tempos diversos e simultâneos e espaços sociais
liminares. Estou acompanhando-me das reflexões desenvolvidas por Bhabha (1998:
198 a 238) a respeito da disseminação, criando ele no próprio termo sua
constituição alegórica (letras maiúsculas finais), como um ato performativo de
narrar a nação, interpelando-se o conceito pedagógico que a institucionaliza,
sendo nesta instância, uma orientação temporal do espaço, uma organização
temporal da identidade que busca reconstruir uma contínua descontinuidade.
O “corpus” analisado constante de 10 (dez) livros de
autores de autores brasileiros, deve fazer aparecer o não-hegemônico[1]. Dessa
maneira, reflete situações e problemas de margens, considerando que a
liminaridade é a condição emergencial daquilo que está encoberto nas narrativas
(as grandes narrativas/ centralistas redentoras), que procuram construir a
uniformidade, o caráter “central” da Nação.
As narrativas da nação e da identidade nacional em foco
levam-nos a deparar com questionamentos apresentados por HOBSBAWM (1990): a
nação é uma imagem fictícia de nossa era? Ou uma “criatura fictícia“? ALBROW
(1999: 21). Numa leitura diacrônica, a nação é um fenômeno moderno, resposta do
etnocentrismo comprometido com um único conhecimento da realidade social.
Construção, realidade , ou ficção, a nação é contada pela narrativa histórica
como uma ancoragem referencial. Tal registro aponta e alerta para os múltiplos
usos da linguagem da nacionalidade e da representação da nação (ALBROW, 1999 :
27) – do discurso mais “neutro”, objetivo, aos discursos de subjetividade,
biografias e autobiografias, por exemplo. Entidade simbólica complexa, a nação
proporciona-nos inclusive um “modo de associar discursos especiais e pequenas
narrativas em algo maior“ ( ALBROW, ib : 36 ).
Tomo como ensejo essa afirmação para passar ao
questionamento de que os textos da literatura brasileira das décadas de 70 e 80
– marco de referência deste projeto – devam ser lidos como alegorias nacionais.
Em outras palavras, que a nação seja origem da narratividade, diante dos
fenômenos de dispersão e desterritorialização culturais contemporâneos.
Flora Süssekind em seu livro Tal Brasil, qual romance
estabelece essa associação na esteira da teoria da alegoria que é concebida por
Jameson (1995), fazendo disso um traço de menos valia na análise do que ela
denomina por “romance-reportagem“, ou “romance-alegórico” na produção dessas
décadas no Brasil. Efetivamente, nesse período a nação tornou-se uma
representação fendida. Por entre fendas, apareciam locais “críticos” de cultura
nacional: o do imigrante, o dos velhos, o dos negros, o da mulher, entre outros.
E identidades parciais e plurais penetram, então, na “casa da arte e da ficção“
( Bhabha ).
O estudo de Flora Süssekind apresenta o romance-alegórico
implicado na repetição da estética realista/naturalista do século XIX, como um
atraso, em face a práticas literárias nacionais (internacionais) que se
afirmavam pelo jogo hedonístico do significante, dissociando, portanto,
formações ideológicas, de formas narrativas.
O que aquela autora não percebeu, a meu ver, é que o
realismo/naturalismo, se presente, opera a inclusão (como um dispositivo) dos
textos ficcionais de 70 e 80 na dimensão vernacular, na dimensão “indigenous”[2]
da narrativa brasileira. Está-se diante de construções vernaculares, i. é. ,
construções “que pertencem a um tipo que é comum numa dada área em uma dada
época“ (Ef. RABINOVICH, 1997:6). A operação confere um efeito “naturalístico”
que evidencia o confronto, ou a mistura dessa dimensão indigenous, original, em
direção às versões da nação, às transformações temporais e espaciais da
narrativa da nação, à reciclagem daquilo que parece a sua natureza
realista/naturalista.
Intelectuais, artistas, poetas, escritores enfrentam uma
situação catastrófica, de censura e cortes à “livre expressão”. Debruçam-se,
falando benjaminianamente, sobre as ruínas da história. O tempo fecha. A pós-
modernidade brasileira vive o seu luto pela perda da pátria amada, idolatrada,
berço esplêndido, imagem adorável, mas pura abstração.
A produção ficcional de 70 e 80 experimenta o desânimo, a
errância, o “exílio”. Inscreve-se como algo da ordem da melancolia na sua edição
pós-moderna. Perdida a letra da nação, a ficção brasileira dos anos 70 e 80
torna-se pós-significante. A narrativa vai-se desenrolar sem dar margem a que o
significante da falta inscreva-se nos “corpus escritos”. Disso surge o
investimento alegórico. Aí, faço a inserção da narrativa desse momento histórico
– 70/80 – na alegoria, entendida como categoria fundamental da cultura
contemporânea (Walter Benjamin, 1984).
Desse modo, o narrador ficcional das décadas de 70 e 80
comporta-se como um alegorista. Busca criar novos significados mediante um ato
simultaneamente descontextualizador e recontextualizador. O procedimento
alegórico instaura-se a partir do choque sócio-político, cultural e do que isso
afeta na produção das subjetividades.
Alegorizar a nação é uma saída criadora. Abre vias de
acesso à “maturidade” do narrador que, por amor, e na falta de utopias,
narrativas salvacionistas, introjeta o conceito de nação para compreendê-lo.
Volta-se para o que esteve sempre às margens, para o malogrado, o sofredor, o
oprimido, o fracassado. A representação alegórica da nação procede, assim, de
afinidades eletivas. O narrador elege a alegoria como forma de dizer o outro.
Alegorizar a nação é a forma que o narrador encontra de “salvar” a coisa amada,
reconstruí-la “com amor na própria língua”. Das ruínas do discurso da nação
emerge o que estava em jogo no projeto coletivo dos modernistas: o ser nacional
por abstração (SOUZA, 1999:129–142 ).
Narrar a nação passa a ser narrar o seu caráter efêmero,
transitório. Narrar a nação significará narrar um enigma de múltiplas faces. O
alegórico vive nas abstrações. Será o vivente narrático a disseMINAR sentidos de
nação. O narrador brasileiro cumpre o seu destino de tra(duz)ir a nação, fiel ao
seu mister de tecer sentidos.
A alegoria coloca em discurso políticas da escrita.
Posições de leitor, autor, atos de intervenção crítica na constituição estética
da comunidade (RANCIÈRE:1995). Suas experiências de tempo e espaço. Uma
narrativa pensada a partir do propósito fundante da razão colonial. A alegoria
dá margem a se desvendar as histórias/estórias ocultadas pelo esquecimento. A
narrativa das décadas de 70/80 procura unir-se numa comunidade de “destino”,
enlaçada pelo fio do sentimento da fraqueza dos oprimidos. Na pluralidade das
versões, das desconstruções e construções, nas diversas escritas brasileiras e
nas diversas leituras.
[1] Os livros escolhidos observam os seguintes critérios:
Produções dos anos 70/80 – narrativa brasileira, alegoria
da nação.
Narrativa pós- moderna e pós-significante: narrador
alegorista cujo papel se assemelha ao de um semanticista buscando criar novos
significados para o objeto alegórico – a nação.
Pequenas narrativas ou relatos fragmentos em confronto com
as grandes narrativas redentoras universais
Identidades plurais do sujeito cultural: Pernambuco, Bahia,
Minas Gerais, Amazonas, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo: são
regiões de referência nas obras e/ou biografias dos autores.
Este é o “ corpus ” literário recortado a partir do ponto
de vista do alegorista:
1. CALLADO, Antônio. A expedição Montaigne . Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1982 (copyright 1982)
2.
BAGNO, Marcos. A invenção das horas . São Paulo: Scipione, 1988 (Copyright,
1988).
3. GUIMARÃES, Josué. Os tambores silenciosos .
14ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1997 (copyright 1986).
4. LINS, Osman. A rainha dos cárceres da Grécia . São
Paulo: Melhoramentos, 1976 (copyright 1976).
5.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1977 (copyright
1977).
6. LUFT, Lya. A asa esquerda do anjo. 8ª ed. São
Paulo: Siciliano, 1991 (copyright 1981).
7. MACHADO,
Ana Maria . Tropical sol da liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988
(copyright 1988)
8. SANTIAGO, Silviano. Em liberdade:
uma ficção de Silviano Santiago. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985
(copyright 1981)
9. SANT’ANNA, Sérgio. A tragédia
brasileira. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987 (copyright 1987).
10. TORRES, Antônio. Essa terra. 11ª ed. São Paulo: Ática,
1999.
[2] “Indigenous” significando etimologicamente “ter nascido
dentro”. [topo da
página]
# Ivete Walty - Alegorias do
cotidiano
No texto
“Modernização e controle social – planejamento, muro e controle espacial”,
Renato Cordeiro Gomes (1999) discute a relação entre planejamento urbano e
formas de controle, demonstrando que na cidade pós-moderna fica evidente a
impossibilidade de contenção da diversificação, almejada pelo planejamento
inerente à cidade moderna, que levava necessariamente ao controle e à exclusão.
O autor cita aí Michel de Certeau: “ a vida urbana permite cada vez mais a
re-emergência do elemento que o projeto urbanístico excluía” (De Certeau, apud.
Gomes, 1999, p.210).
A leitura do próprio De Certeau, não apenas no artigo
citado, mas também no livro A invenção do cotidiano (1994), sobretudo do volume
1, na parte intitulada “Práticas do espaço”, permitiu-nos caracterizar as
intervenções do grupo de excluídos na paisagem cultural da cidade de Belo
Horizonte. Isso porque, além de evidenciar que a organização da cidade exclui
tudo aquilo que não pode controlar e que “esses detritos” voltam de alguma forma
a fazer parte da rede citadina, o autor estabelece uma analogia entre a
enunciação lingüística e o que chama de enunciação pedestre, descrevendo os
movimentos dos pedestres, dos andarilhos e dos marginais pela cidade. Não é pois
sem razão que De Certeau afirma que “os relatos cotidianos contam aquilo que,
apesar de tudo, se pode aí fabricar e fazer. São feituras de espaço” (De
Certeau, 1994, p.207).
Como partimos, em nossa pesquisa, justamente dos conceitos
de espaço e lugar de Lucrécia Ferrara (1993), é importante observar que De
Certeau faz a mesma distinção, apenas invertendo a proposição de Ferrara, no que
se refere aos dois termos. Para Ferrara, o espaço é mais abstrato e o lugar,
mais concreto – o espaço informado; enquanto para De Certeau, “o espaço é o
lugar praticado”. No material recolhido junto à população de rua, pudemos
constatar que aos relatos propriamente ditos associam-se os deslocamentos
espaciais, percebidos tanto aí como nos filmes e fotografias. As relações entre
rua e casa, entre rua e instituição, entre real e imaginário, entre ordem e
marginalidade, entre cópia ou transgressão do modelo social podem ser feitas
desde a primeira leitura.
Os textos verbais ou fílmicos permitiram-nos esboçar
trajetórias da população de rua de Belo Horizonte em seus deslocamentos pela
cidade/sociedade. Tanto nos relatos das crianças/adolescentes que mal conseguem
falar por cheirarem tinner durante todo o tempo em que se mantêm acordados como
nos dos catadores de papel filiados à ASMARE em seu discurso mais politizado,
podem-se perceber as estratégias de sobrevivência física e psico-existencial,
através da linguagem, seja ela verbal ou imagética.
Nesse contexto, ao conceito de sucata como uma postura
alternativa de produção do saber, discutido por De Certeau, pôde-se associar
outro conceito importante: o de reciclagem cultural, veiculado a partir de
Garcia Canclini (1990 e 1995)[1]. Pode-se investigar, pois, em que medida as
pessoas desses segmentos sociais se fazem cidadãos, quais são as formas de
atuação detectadas em seus textos, que produtos culturais consomem e constroem,
como se conformam como sujeitos. Tudo isso, não deixando de refletir ainda sobre
nosso lugar no processo.
Participando de um congresso dos catadores de papel em
BH[2], pudemos colher mais elementos para incrementar essa discussão quando da
análise dos depoimentos dos catadores. Veja-se, por exemplo, a atitude de D.
Geralda, a líder dos catadores, que tem recebido prêmios internacionais por seu
trabalho frente à cooperativa que dirige, a ASMARE. No mencionado congresso, ela
fez questão de dizer que o carnaval dos catadores foi criado para que, através
das fantasias, as pessoas pudessem prestar atenção nesse segmento social, que
vive do lixo. E, nos depoimentos, outros frisam que eles que eram também vistos
como lixo, agora sentem-se cidadãos, atuantes e participantes. Explicita-se,
nessas falas, a questão da identidade, de construção dos sujeitos por meio de
diferentes formas de reciclagem cultural.
Cumpre-nos verificar como se dão as intervenções dos
diferentes grupos marginalizados no espaço da cidade, nas narrativas colhidas
por nós. Tais narrativas marcam-se antes por histórias de vida que por aquelas
dadas como ficcionais. A pequena presença de textos reconhecidamente como de
ficção não nos autoriza a afirmar que tal tipo de produção cultural tenha sido
extirpado dos segmentos da população em questão. O que se constata é que não
houve disponibilidade do grupo para contar histórias, seja por sua
desvalorização pelo grupo, seja por sua substituição por outro tipo de produção,
como tentaremos mostrar, seja pela inadequação da abordagem ou mesmo por uma
forma de resistência e proteção frente ao grupo de pesquisadores, tomado como
invasor.
Em primeiro lugar, interessa-nos analisar três histórias,
reconhecidamente ficcionais, usando-as alegoricamente para ler as outras
histórias, os relatos de vida. São elas: “O coelho e o guará”, contada por R.,
uma senhora de 52 anos, dada como mãe de alguns meninos de rua; “O compadre rico
e o compadre pobre”, contada por K., uma garota de 12 anos; e “O rabo da
macaco”, contada por J., amiga de K, com 13 anos. Na história do coelho e do
guará, como em muitas outras histórias populares, trava-se a luta entre o forte
e o fraco, que busca superar sua fragilidade através da esperteza.
Era uma vez tinha um coeio e um guará... era tão amiguinho,
né, mas o guará era o maió preguiçoso... só queria tudo na mão. Aí um dia o
coeio falô assim: Vô mostrá esse guará...
O uso da força pelo guará para a exploração do mais fraco,
com o objetivo de obter aquilo de que necessita, contrapõe-se à esperteza do
coelho, na hora de enfrentar um inimigo maior, o dono da horta, que resolve agir
quando se dá conta do roubo de verduras e cenouras em sua horta. É curioso
verificar a presença na fala do dono da horta de expressões como “aumentar a
produção”, que indicam o deslocamento da história para o contexto atual marcado
pelo discurso econômico. No embate com o dono da horta, o coelho
Conversou... Aí fingiu... aí o coeio é mais esperto né...
que o guará tava só vendo. Aí foi robô bastante ..., bastante mermo. Aí
guardô... guardô dentro da toca... Aí o guará, tadinho, o guará não tinha nada
prá comê. Ah...ah...ah..., o guará não tinha nada prá comê. Aí o coeio tá lá em
cima da arvre. Aó o coeio grita o guará assim: - Ô guará... – O que que é? Ô
guará? – O que que é? O guará num quer nada... Por que cê tá ai? Cê tá ficano
bobado por caso de que cê num fez igual eu fiz?
Observe-se a ironia da narradora, quando se refere aos dois
como “tão amiguinho” ou ao guará como “tadinho”, coitadinho. Ao usar tal ironia,
a narradora parece compartilhar a alegria do coelho ao passar para trás o
“amigo” que o explorava. Tanto que, ao final da história, a narradora e todos os
presentes riem como o coelho: Ah, ah, ah! Como bem mostra Bergson (1978), as
pessoas riem porque não se reconhecem no enganado, mas no enganador.
Depois do fim da história, a entrevistadora perguntou ao
grupo quem era o coelho e quem era o guará. Depois de apontar para uns e outros,
o grupo elegeu “a mãe” como o coelho, reforçando as palavras daquela que se
declarou filha amorosa, reproduzindo um discurso ditado pelo senso-comum:
- O que não sai da minha cabeça? É minha mãe... Eu amo ela
do fundo do meu coração... nunca esquecerei ela,, ela pode fazer o que for...
pode batê... pode xingá... pode bebê... eu gosto dela muito ... minha mãe...
Nessa declaração de amor à mãe, D. aponta, embora pelo
avesso, suas características dadas como negativas. A mãe, emocionada, diz:
É por caso que é a única fia guerreira que tem comigo.
Entendeu? Que sofre como eu tô sofreno, porque todos os homens qu’eu arrumo não
dão valor prá esses minino meu ... só me dá espancação... pegô minhas coisas ...
jogô tudo fora ... isso que me dá revolta ... ´a única que caminha comigo, é só
ela ... e que me ajuda mermo. É por isso qu’eu sinto, porque eu não tenho mãe e
nem meu pai.
Observe-se que em seu relato “a mãe”, dada como o esperto
coelho, revela-se à mercê de guarás, os homens que a exploram e a espancam. Ao
descrever tal situação, ela passa do geral para o particular, quando deixa de
usar os verbos no plural e no presente: “não dão valor...”, “só me dá
espancação” – para usá-los no singular e no passado, referindo-se, talvez, ao
último caso vivido: “pegô minhas coisas”, “jogô tudo fora”. O discurso do
senso-comum se reforça na fala seguinte quando R. lamenta não ter dado um
presente de quinze anos para a filha:
Eu não dei nada prá ela, mas o que eu tenho prá dá a ela é
muito amor e muita felicidade e quero que ela seja uma moça muito estudiosa,
porque eu não pude dá esse estudo porque eu não tenho condições, mas quero que
não deixe ninguém judiá dela. Que deixa muita saúde prá ela. Com todo carinho te
provo sua mãe do fundo do meu coração, D. te falo, te amo demais minha fia. Como
amo você e como amo seus irmãos que tá fora de mim. Obrigada, viu fia.
As contradições presentes na fala apontam para os valores
ditados pelo sistema e as condições de vida que impedem seu alcance. A oscilação
entre aceitar ou não esse discurso fica expressa na mudança das pessoas, ora
primeira, ora terceira, como se a enunciadora falasse de uma personagem.
Registre-se que não há um falseamento do discurso, o que há é uma ambigüidade
que expressa a contradição vivida por esses grupos, num espaço limiar, marginal,
que não escapa às forças das engrenagens que o excluem. Haja vista, o episódio
acontecido alguns dias após a entrevista: os jornais noticiaram que R., essa
mulher dada como a mãe de todo o grupo, ateou fogo em dos meninos que dormiam
perto do Estádio Mineirão. R. declarou que matou o menino por causa de comida.
Veja-se que a história contada pode mesmo ser tomada como alegoria da vida
vivida pelo grupo, que repete a luta do mais fraco contra o mais forte, numa
corrente sucessiva onde esses papéis vão se intercambiando, só que dentro de um
cerco bem determinado.
Essa mesma situação se repete na história do compadre rico
e do compadre pobre. O pobre trabalha para o rico em troca de um pouco de
comida. O trabalho é descrito pela ação sucessiva, evidenciada no uso
reiterativo do gerúndio: “Aí eles tão guiando boi, tão guiando boi, tão guiando
boi, tão guiando boi”. Além do trabalho suado, no momento da comida, o compadre
rico não cumpre a promessa e só concede o alimento em troca da promessa do outro
de que deixará que ele fure um de seus olhos. Vale lembrar que a expressão
“furar o olho do outro” é bem conhecida entre nós e traduz, então, a exploração
do pobre pelo rico. As ações se repetem da mesma forma - trabalho, comida e olho
furado. Cego, o compadre pobre é jogado debaixo da ponte, como um objeto
descartável, já usado. Depois disso, no entanto, numa ação aparentemente
ilógica, cura-se com uma folha que esfrega nos olhos, mas volta a apanhar, dessa
feita de um grupo de diabinhos.
Outra vez, usa a folha para curar-se e vai embora. Entra em
jogo a barganha, quando, indo à casa de um fazendeiro, o compadre pobre recebe
uma mala de dinheiro para fazer a filha do mesmo voltar a ver. Outra ação
ilógica é descrita, quando o compadre pobre, depois de curar a moça cega,
consegue fazer brotar água do chão em diversos pontos do terreno do fazendeiro e
ganhar mais uma mala de dinheiro. Observe-se que, como os heróis míticos, o
compadre pobre recebe ajuda de entes sobrenaturais através de objetos mágicos.
Inverte-se, pois, a situação, “o cumpade que era rico ficou pobre e o que era
pobre ficou rico e o que era rico foi na casa do cumpade pobre pedir banana
verde pra dar pros meninos porque ele não tinha nada o que comer”.
Não se tem uma explicação para o fato de o primeiro ter
ficado pobre, sabe-se apenas que ele recebeu um castigo. Observe-se que aí se
configura uma situação de vingança, já que aquele que fora pobre também recusa o
alimento ao novo pobre. No plano do imaginário, pois, realiza-se
maniqueisticamente a inversão de classes, numa visão moralista, ideológica, que
concretiza a expressão “furar o olho” como marca das relações sociais.
Na terceira história, a do rabo do macaco, contada por J.,
uma menina de 13 anos, representa-se mais explicitamente o ato de barganha,
iniciado com o rabo do macaco, cortado pelo trem. Registre-se a atualização da
história pela referência ao metrô: “(...) o rabo do macaco passava em cima da
linha ... aí veio o metrô ... aí o metrô foi passano...”.
O macaco, depois de deixar que o metrô passe sobre seu
rabo, que diz estar velho e estragado, exige do motoneiro alguma coisa em troca.
Assim só pára de gritar “eu quero meu rabo...”, quando recebe “uma banda do
metrô”. E é essa parte do trem que ele oferece a um velhinho que estava cansado
de tanto andar. Outra vez, desmerece aquilo que tem e, depois, exige algo em
troca: quando o trem estraga, ele o cobra do velhinho. Recebe, então, um
carrinho de mão, que oferece a uma mulher que carregava pães e os deixava cair
na rua. Mais uma vez desmerece o que tem: “num tem problema não, o carrinho já
tá veio, já tá todo estragado mesmo...”. Mas tudo se repete, quando o carrinho
estraga, ele o quer de volta. A mulher lhe dá um pão, o qual ele oferece a um
homem que “tava bebeno café e comeno carvão”. Como o rapaz não aceita o pão, a
história se acaba.
Ô moço, come esse pão senão seu dente vai ficá cheio de
carvão e vai ispodrecê, vai caí. Aí ele falô assim: não macaco se eu pegá seu
pão pra podê comê, vou comê seu pão tudo. Aí o macaco falô assim: cê é bem
guloso, heim? Aí cabô.
Veja-se que a história, contada de um só fôlego, sem pausas
mais demoradas, não precisaria ter fim, já que sua estrutura permite a
continuação infinita, como o processo da barganha, controlado pelo macaco. Mas a
negativa do homem impediu a continuação da barganha e da história. Pode-se
perguntar se haveria aí uma representação inconsciente das relações sociais em
que se concede algo, mas sem perder o controle sobre o que é dado. Também numa
referência a outro dito popular: se se dá a mão já se quer o braço, explicita-se
a ideologia do poder monitorado pelos grupos mais fortes. Nesse sentido, a
negativa do homem passaria por alguma consciência necessária à mudança do
processo.
Depois de contar a história, J. fala de suas preferências
na TV, declarando gostar da menina, personagem da novela “Sonho meu”, veiculada
pela Globo, há algum tempo atrás. Importa lembrar que essa menina era pobre,
órfã e, foi, depois de muito sofrimento, acolhida por uma família rica. A
identificação com essa personagem é explicável e pode ser associada à aceitação
da barganha do macaco, já que, ao se submeter ao sistema, mantém-se o processo
do jogo controlado.
No entanto, ao inscrever sua fala entre outras, essas
pessoas formariam seus relatos usando “cacos” de linguagem, no sentido utilizado
por De Certeau, quando fala em “‘cacos’ de relatos plantados em torno dos
limiares obscuros de nossas existências, esses fragmentos escondidos articulam
inconscientemente a história ‘biográfica’ cujo espaço fundamentam”. (De Certeau,
1994, p.211)
Ora, nos textos recolhidos nessa pesquisa, podem-se
verificar caminhos de mão dupla entre fato e ficção, entre relato biográfico e
contos populares, em que se conta a história como se se contasse a vida, e a
vida como uma história. Os relatos são mesmo feitos de fragmentos, de retalhos,
como as casas que são construídas de material rejeitado, recolhido nas ruas ou
nos lixões. A análise de algumas fotos parecem confirmar nossa hipótese, já que
o modelo é o fornecido pela sociedade, mas o espaço e o material são
“impróprios” para o uso. Nas fotos 1 e 2, a narradora da história 1 reúne sua
“família” – 4 adolescentes, um cachorro e um gato - sobre um colchão, almofadas
e alguns cobertores. Vale lembrar que alguns desses adolescentes não se separam
de seus cobertores, nem quando o calor é muito forte. Um deles chegou a brigar
com uma das entrevistadoras que ousou sugerir que ele o deixasse na kombi,
durante o tempo de uma excursão à Lagoa do Nado. Vê-se no cobertor, mais do que
um agasalho, um objeto transicional de identificação. Outra objeto fundamental
da construção desse espaço, tanto o físico como o emocional, é o paninho de
tinner. As crianças não o deixam também para nada; antes comprimem-no sobre o
nariz e, em último caso, sobre o palato para aproveitar bem cada “molhada”, que
custa CR$0,30.
Nas fotos 3 e 4, vê-se uma casa de rua, feita de lona
preta, com pelo menos três cômodos. No filme, a mocinha entra para mostrar
orgulhosamente o que seria o banheiro e seu quarto, em que uma caixa de papelão
faz as vezes de armário. Em frente à casa o grupo/família se reúne, faz as
refeições, prepara atividades de lazer, enfim vivenciam relações de afeto e
trabalho.
Barracos de pedaços de lona e camas na calçada repetem os
relatos de vida fragmentados/deslocados, feitos com a absorção de discursos
variados, marcados pela violência: o discurso religioso das orações ao lado do
rap, do grupo Racionais; o jargão da telenovela ao lado das referências
científicas do discurso médico desfigurado, entre outros.
Se De Certeau elege a sinédoque e o assíndeto como as
figuras por excelência de uma retórica do espaço, penso que a alegoria pode
acolher bem essas duas figuras, porque ao mesmo tempo dá conta da parte pelo
todo – o agrupamento que significa a família, a lona que significa a casa, por
exemplo, – e da desconexão linguística, a diluição do que percebemos como coesão
nos relatos. É que a alegoria conta uma história por outra. Essas três histórias
aqui rapidamente analisadas dão conta de vidas esparsas, como se verá, em outro
texto, com a análise mais detida dos relatos. Assim alegoria, embora não perca o
sentido primeiro de histórias que contam outra história, passa a exibir a
fratura dessa história, desvelando suas contradições.
Essa figuração fraturada remete-nos ao conceito
benjaminiano de alegoria como uma “figura organizada em torno da morte ou de
transformação do vivo no morto, donde a presença obsessiva da caveira e do
fragmento ou ruína.” (CHAUÍ, 1993, p.7). Para Benjamin, a alegoria não quer
simbolizar alguma coisa, mas significá-la e, para isso, arranca-a de seu
contexto habitual. Ouso, pois, afirmar, que, ao se apropriar do espaço da rua
para habitá-lo de forma diferenciada, que nos incomoda como sujeira, ou, ao usar
a língua de forma diferente daquela que elegemos como correta, desarticulando-a,
os habitantes de rua constroem uma alegoria de nossa sociedade, significando-a,
deslocando-a, mostrando-a pelo seu avesso.
(OBSERVAÇÃO: O texto apresentado refere-se à parte da
pesquisa em andamento como se pode ver na introdução, mais geral. As fotos não
serão incluídas na Internet por questões éticas.)
Referências
Bibliográficas
BERGSON, Henri. O riso: ensaio
sobre a significação do cômico Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1978.
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Consumidores e cidadãos; conflitos multiculturais da globalização. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.
CHAUÍ, Marilena.
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DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 1.
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FERRARA, Luciana D’Alessio. Olhar periférico. Informação,
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Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 199 – 213.
MARQUES, Reinaldo M. Entre o global e o local: cultura do
Vale do Jequitinhonha e reciclagens culturais. In: DAMASSO, Maria Teresa et al.
Discursos de tradicíon y contemporaneidad. Córdoba: Centro de Estudios
Avanzados, 1998, p.97-113.
Notas:
[1] A este respeito ver: MARQUES,
Reinaldo M. Entre o global e o local: cultura do Vale do Jequitinhonha e
reciclagens culturais. In: DAMASSO, Maria Teresa et al. Discursos de tradicíon y
contemporaneidad. Córdoba: Centro de Estudios Avanzados, 1998, p.97-113. [2] 1º
Encontro Nacional de catadores de papel e material reaproveitável. ONG’S, Poder
público e Setor privado. Palestras, work shop, visita técnica. 20 a 22 de
setembro de 1999, Belo Horizonte. [topo da
página]
# Léa Masina - Martín Fierro na
Literatura Brasileira: os rastros de um percurso
O trabalho que
venho desenvolvendo, cujo foco é a recepção do poema Martín Fierro, de José
Hernández, no Brasil, faz parte do projeto de pesquisa “Influxos platinos na
literatura brasileira” que desenvolvo junto ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O relato que apresento ao
XV ENCONTRO DA ANPOLL pretende registrar as marcas deixadas pelo Martín Fierro
na literatura sul-rio-grandense, ao mesmo tempo que pretende contribuir para a
valorização do influxo platino no sistema literário brasileiro. O influxo
platino, visto com maus olhos pela crítica modernista, confere peculiaridade aos
textos da literatura brasileira fronteiriça, eis que esta transfigura o fato
histórico no literário, confundindo essas duas instâncias e possibilitando uma
visão múltipla das culturas latino-americanas meridionais em diálogo.
Meu pai, gaúcho urbano, filho e neto de fazendeiros
gaúchos, costumava citar, de memória, ditos e frases populares, originários do
poema Martín Fierro. El diablo sabe por diablo pero más sabe por viejo era um
desses. Na casa de minha avó circulavam histórias campeiras que se misturavam às
lendas da Salamanca do Jarau e do Negrinho do Pastoreio. Algumas dessas
passagens, marcadas pelo assombro, pela admiração e pelo medo, tumultuaram as
minhas tardes na pacata Porto Alegre de pouco mais que meados do século,
misturadas ao terror das degolas de 93.
O mais impressionante desses relatos dizia respeito à
demonologia dos índios. Eles eram a encarnação do demônio; viviam num deserto,
de onde saíam para matar e roubar gado, crianças e até as mulheres que habitavam
as fazendas e os ranchos próximos às fronteiras platinas. Certa vez, após uma
dessas invasões, capturaram uma mulher branca, torturaram-na e maltrataram-na
cruelmente, terminando por amarrá-la com as tripinhas do filho, cujo corpo,
destroçado, jazia a seus pés. Havia, também, a história de um jovem louro, com o
olhar manso de ovelha, afogado aos poucos num regato, para acalmar a ira dos
bárbaros que o julgavam mensageiro de desgraças.
Anos depois, encontrei essas histórias nas coplas do Martín
Fierro. Elas eram contadas nos galpões e nas cozinhas das estâncias,
confundindo-se com façanhas de guerra que a imaginação campeira ampliava e
transformava, associando o dia a dia da campanha com o extraordinário e o
sobrenatural.
Com isso, quero dizer que o Martín Fierro, no Brasil,
propagou-se pela repetição, atravessando a fronteira meridional do país e
ocupando um espaço real e imaginário que confundia, na reza e na crendice, a
experiência vivida, a superstição religiosa e a imaginação. Essa carga mítica,
comum aos textos fundadores, explica a capacidade de migração dos mitos de um
sistema literário para outro, em momentos decisivos da formação das identidades
culturais.
A despeito das incontáveis leituras que se possam fazer,
hoje, do texto de Hernández e de seu cunho marcadamente racista e conservador,
há que registrar como denominador comum às narrativas platinas o registro do
acento cruel e sanguinário que a cultura fronteiriça ibérica gerou e que os
textos literários multiplicaram.
O contrário ocorre com relação ao discurso histórico de XIX
e primeira metade de XX : nessas narrativas, a violência das guerras internas e
fronteiriças e o comportamento cruel de seus protagonistas sofrem um processo de
abrandamento pois, ao ordenar os fatos com pretensa objetividade, esse discurso
dissimula os pontos fulcrais - e incontroláveis - do seu conteúdo. Lêem-se hoje,
nesses textos, as marcas do esforço positivista de adequar a realidade para
torná-la digerível pela cultura urbana e civilizada, eis que a crueldade e a
violência são execráveis porque rompem com a ordem e o progresso. Portanto, é
preciso esquecer, sublimar, e excluir, para que tais elementos não deponham
contra a civilização urbana e hegemônica.
No Martín Fierro, no entanto, sofrimento, violência e
crueldade são vitais, o que talvez explique o interesse que o poema despertou
nos leitores da campanha, que reconheciam como próprios as desditas, as
fraquezas e os traços duvidosos e politicamente incorretos do caráter das
personagens. A popularidade da obra é confirmada pelo registro, dentre outros,
do crítico e historiador literário Ricardo Rojas, que refere a existência de
mais de 40.000 folhetos e livros com o poema, que circularam de 1872 , ano da
publicação de La Ida, a 1879, ano da publicação de La Vuelta.. Os textos
críticos mais difundidos referem o fato de o Martín Fierro ser vendido em
armazéns, ao lado de açúcar, cebolas e ramos de fumo em corda. Além disso,
pode-se ler em carta de Hernández a referência a inúmeros periódicos argentinos
e uruguaios que publicaram o poema na íntegra ou extensas partes dele,
ampliando, desse modo, o número de seus leitores. Tanto assim que o próprio
autor, em carta a seus editores, por ocasião do lançamento da oitava edição do
poema, refere o interesse que a imprensa argentina e uruguaia demostravan por
sua obra, rerproduzindo-a na íntegra ou em extensos fragmentos. Cita, dentre
outros: “La Prensa”, “La República”, de Buenos Aires, “La Prensa de Belgrano”,
“La Época” y “El Mercurio”, de Rosario, “El Noticiero”, de Corrientes, “La
Libertad”, de Concordia, y otros periódicos cuyos nombres no recuerdo, o cuyos
ejemplares ho he logrado obtener. Cita, também, periódicos uruguaios, dentre os
quais “La Tribuyna” y “La Democracia”, de Montevideo, “ La Constitución” y “La
Tribuna Oriental”, de Paysandú.
Como as fronteiras culturais são flexíveis e existem para
serem transgredidas, tudo leva a crer que Hernández fosse lido nas cidades
fronteiriças do Brasil, como era lido na Argentina e no Uruguai. Percebeu-o o
crítico e historiador literário Guilhermino Cesar, ao trazer para suas aulas de
Literatura Brasileira, Já na década de sessenta, o texto de Hernández e o ensaio
El payador (1913), de Leopoldo Lugones, para ressaltar as diferenças entre a
figura do gaúcho herói da pátria e o gaúcho sociológico estudado, dentre outros,
por Madaline Wallis Nicholson em 1946. A figura do payador, que Lugones se
encarregara de divulgar em conferências no Teatro Odéon, em Buenos Aires, pouco
antes da eclosão da primeira guerra mundial, servira à composição mítica de uma
canção de gesta, conciliando sob a feição do canto e da repetição das coplas, o
ritmo choroso e nostálgico do pampa, tão a gosto da poética gauchesca. Não
obstante, os ensaios de Lugones, embora fundamentais para a fortuna crítica do
Martín Fierro, ao insistir no caráter nacional e patriótico do poema, subjugam
questões essenciais.
Isso porque, deslocando a violência e a crueldade para a
posição de fatos geradores da questão social, eles as estratificam, sem permitir
que aflorem como denúncia de um estado de litígio permanente. Lugones
minimiza-as também ao apresentar o poema como representação do épico, reduzindo
a carga poética e literária do texto.
Dessas conferências, de 1913, resultou, portanto, o ensaio
El Payador, que letigitmou o Martín Fierro na Argentina, elegendo o viés épico
como dominante. Jorge Luis Borges, anos depois, opôs-se a essa leitura,
sugerindo um movimento contrário: considerou o Facondo, de Sarmiento, mais
adequado como representação da “argentinidade” porque sua tese de civilização
versus barbárie corresponderia mais precisamente à verdadeira história do país.
Quanto aoFierro, seria mais fácil recordar, pela memória, o episódio da morte do
negro do que apreender as intenções políticas de Hernández. Como Borges irá
reafirmar em entrevista concedida a Cesar Fernández Moreno, a importância do
Martín Fierro resultou do caráter inventivo de sua história, de sua condição
literária em tudo avessa à alegoria épica.
Antes, porém, de comentar o percurso de Fierro no Brasil,
cabe uma digressão. Durante muito tempo, Hernández e Fierro confundiram-se na
consciência dos leitores. Há registros de que o escritor fosse conhecido como o
Senador Martín Fierro. Além disso, criou-se a hipótese de que o poema fosse a
transcrição literária de um caso verídico, reproduzindo a vida de um gaúcho
real, Melitón Fierro, cujo ciclo de aventuras servira de tema ao escritor,
conforme o sustentou Rafael Velázquez (1972). A confusão entre o real vivido e o
imaginado, tão perturbadora quando se trata de examinar questões como a da
autoria da subjetividade e das projeções autobiográficas e, ainda mais, de
relacionar os discursos histórico e literário. Ela mostra-se rentável, no
entanto, para compreender a simbiose que consiste na participação do povo à
criação dos mitos. Nesse sentido, o seqüestro de um campeiro pela milícia das
fronteiras argentinas, por seu apelo sociológico e histórico, prolonga a visão
de mundo do escritor que se expressa nas digressões filosóficas que encerram o
poema. A partir desse tema, inúmeras leituras tornam-se possíveis: dentre elas,
a épica, de valorização dos episódios da conquista do deserto; e , ainda, a
social e causalista, com ênfase na denúncia do atraso, do genocídio e da
escravidão do homem civil e pobre, males legitimados por uma civilização de
bárbaros, para apreender numa síntese a dicotomia de Sarmiento.
Veja-se, pois, que apesar de o Martín Fierro ser uma
réplica de Hernández às idéias conservadoras de Sarmiento, o poema supera a
ideologia visível, enquanto articulação formal da inconformidade humana. Além
disso, é preciso ter em conta a biografia do autor, que registra seu apreço pelo
texto “La sabiduría popular de todas las naciones”, de Ferdinand Denis, o que o
redime das acusações de federalista e cantor de valores superados, deslocando-o
para o espaço do conhecimento e da cultura popular.
No Brasil, no entanto, a trajetória do Martín Fierro teve
outro direcionamento. Este não foi determinado inicialmente pela crítica, mas
pela leitura e pela transmissão oral, a partir das cidades da fronteira e,
particularmente, por sua circulação nas estâncias e pequenos lugarejos
interioranos. Até 1942, ano de sua primeira tradução no Brasil, pelo poeta J.
Nogueira Leiria, o texto já fora incorporado aos imaginários fronteiriços,
podendo ser relido como parte das obras mais representativas do Regionalismo
literário. A já citada morte do Moreno, uma das coplas mais ressonantes do
poema, estranha pela gratuidade de que se reveste a violência, excluindo
qualquer motivação heróica, ressurge no conto O negro Bonifácio, de Simões Lopes
Neto. A publicação dos Contos Gauchescos, em 1910, atesta a absorção do
episódio. Nele Nadico, o noivo da Tudinha, ao sentir-se provocado pela
desfaçatez do negro e por seu desrespeito para com ambos, transforma o fandango
num campo de batalha. O conto termina com a morte dos homens e a manifestação do
ciúme da Tudinha que, ajoelhada sobre o negro, dilacera-lhe o corpo a facadas. A
intriga segue as coplas de Hernández, recheadas com os elementos da poética
simoniana.
Também Alcides Maya foi leitor do Martín Fierro. A partir
da fixação do espaço, transformado em cena e em clima narrativo, Maya reescreve
o percurso do soldado que retorna para a querência e encontra a tapera, vinga-se
quando expulso da terra, reage, deserta e foge. O “pampa histórico” a que Maya
se refere, é o espaço idealizado ao qual se apega o payador, uma das facetas do
“gaúcho antigo”. Mas, seguramente, o que Maya herda do Martín Fierro é a
resistência muda, o desassossego e a descrença na autoridade e no futuro, o que
leva as personagens a lastimarem as perdas passadas e a antecipar as vindouras,
desenvolvendo um pessimismo letárgico e quase substancial. A decantada nostalgia
campeira, tornada mais amarga pelos “horrores da chacina”, comuns em tempos de
guerra, celebra, a seu modo, a violência do campo, temática dominante na
literatura campagnard platina.
Há diferentes modos de ver o influxo do Martín Fierro na
literatura gaúcha. Contrapondo-se à escassez de ensaios e textos críticos de
brasileiros a respeito do poema, são inúmeras as obras literárias que trazem as
marcas desse contágio: ele está, por exemplo, na sátira Antonio Chimango, de
Amaro Juvenal; nos romances e poemas de Aureliano de Figueiredo Pinto, Aparicio
Silva Rillo, Darcy Azambuja, Luis Carlos Barbosa Lessa e Cyro Martins. Mais
recentemente, na paródia Martim Fera, de Donaldo Schuler, e nos contos
contemporâneos, alguns inéditos, de José Blaya, cujo projeto literário inclui a
releitura ficcional de coplas de Hernández. Isso reforça a certeza de que
literatura se faz com literatura, uma vez que o texto literário, ao eleger sua
forma, cria também uma tradição que pode ser seguida ou permanecer oculta, dando
espaço, inclusive, para os avanços contradiscursivos.
Cabe, então, indagar porque o poema de Hernández, cujo
herói é um renegado e um desertor, ladrão e assassino, contribui para fundar a
tradição regionalista brasileira, trazendo o elemento de diferença e resistência
ao modernismo e à avalanche globalizadora que se impõe à crítica literária
brasileira a partir de então. As respostas podem ser buscadas na alternância dos
discursos histórico e literário, sendo o segundo capaz de preencher as lacunas
do primeiro, uma vez que narram os fatos como metáforas, possibilitando que
neles se realizem as potencialidades paradoxalmente mais reais da linguagem
literária.
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# Lúcia Castello Branco - Nossa
Senhora dos Tormentos
"Estou me
sentindo mal, diria a mulher para o médico. É que a senhora vai ter um filho. E
eu que pensava que estava morrendo , responderia a mulher. A alma deformada,
crescendo, se avolumando, sem nem ao menos saber que aquilo é espera. Às vezes,
ao que nasce morto, sabe-se que se esperava."[2]
Diante dos olhos do leitor, desenrola-se a cena: a mulher
apresenta ao médico seu sintoma — "estou me sentindo mal " — e o médico
apresenta à mulher, prontamente, um diagnóstico: gravidez. E antes que nos
precipitemos com alegria em direção à boa nova que aí se anuncia, o texto nos
adverte: "e eu que pensava que estava morrendo". Assim responderia a mulher, se
lhe fosse dado responder. Assim responderia o leitor, talvez, se lhe fosse dado
nomear sua agonia diante desse texto que não se resolve.
Para essa agonia, Clarice Lispector tinha um nome:
escrever. O que, em grande parte das vezes, pode ser lido por um outro nome:
esperar. "Sofrimento de esperar", diz-se lá em algumas regiões do interior das
Minas. Sofrimento de esperar o que já nasce morto e só então se pode saber que
aquilo é espera.
Diante dessa cena, a gravidez, com toda a aura milagrosa
que a circunda, perde o seu véu de beleza: o filho — o texto — é esse natimorto
que esperávamos sem saber. E a alma do escritor é esse volume disforme,
crescendo, se avolumando.
Esse fragmento de Clarice, que justamente se intitula
"Escrevendo", lançando-nos na agonia de um interminável gerúndio, lança-nos
também no que ela chamaria de exercício de paciência — "cada vez mais acho tudo
uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor"
— e abre-se, curiosamente, para um destino que poderíamos circunscrever,
provisoriamente, como o "destino feliz" de alguns escritores —o silêncio:
Além da espera difícil, a paciência de recompor
paulatinamente a visão que foi instantânea. E como se isso não bastasse,
infelizmente não sei 'redigir', não consigo 'relatar' uma idéia, não sei 'vestir
uma idéia com palavras'. O que vem à tona já vem com ou através de palavras, ou
não existe. — Ao escrevê-lo, de novo a certeza só aparentemente paradoxal de que
o que atrapalha ao escrever é ter de usar palavras. É incômodo. Se eu pudesse
escrever por intermédio de desenhar na madeira ou de alisar uma cabeça de menino
ou de passear pelo campo, jamais teria entrado pelo caminho da palavra. Faria o
que tanta gente que não escreve faz, e exatamente com a mesma alegria e o mesmo
tormento de quem escreve, e com as mesmas profundas decepções inconsoláveis, não
usaria palavras. O que pode vir a ser a minha solução. Se for, bem-vinda."[3]
Esse "destino feliz", que não se distanciaria das
"profundas decepções inconsoláveis" e do "tormento", Clarice o localiza como um
"degrau acima" da escrita. Nesse degrau acima, do silêncio, lugar infinitamente
mais ambicioso que o da escrita, situam-se aqueles que podem não escrever: "Até
hoje não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente, até que de
repente a descoberta muito tímida: quem sabe, também eu poderia não escrever.
Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável."[4]
Mas este lugar, sabemos, não seria o de Clarice, aquela que
dizia escrever não por prazer, mas porque havia sido incubida. Para essa
escritora, que tanto queria escrever uma história linear que começasse com "era
uma vez", só restaria o destino do tormento: "Era uma vez um pássaro, meu
Deus".[5] E, desde então, a partir do espanto inicial, estaria instaurado o que
ela mais tarde definiria como o tormento da escrita: como escrever, se não se
pode escrever o que pede para ser escrito? Como não escrever, se o que não pode
ser escrito se impõe como uma incumbência, um destino, uma maldição?
"Tormento: ato ou efeito de atormentar; tortura, aflição,
desgraça", nos dizem os dicionários. "Atormentar: infligir tormentos a; afligir,
torturar; mortificar-se". Algumas escritas situam-se neste ponto: o da
mortificação. Não todas — algumas. E aí não parece haver saída, pois não se
trata, como bem observa Blanchot, do instante da minha morte[6], mas de um estar
a morrer, infinitamente, no texto.
Alguns textos, nascidos desse tormento, são capazes de
esquecê-lo, por alguns instantes, para escreverem justamente o que escaparia ao
tormento da escrita. Outros não. Outros, nascidos também do tormento, são
incapazes de não escrever o tormento, situando-se nesse ponto de impasse tão bem
circunscrito por Marguerite Duras, em Escrever:
"Escrever.
Não posso.
Ninguém pode.
É preciso dizer: não
se pode.
E se escreve."[7]
Este o destino de alguns, dos que não se calam. Estes,
mortificados pela errância infinita da palavra, perseveram na escrita para além
do instante da morte. E escrevem. Como se dissessem, neste mesmo instante: "Eu
estou vivo. Não, tu estás morto."[8]
Mas como é possível morrer na escrita, se é justamente a
morte o que nos impede de morrer? Uma vez mortos, não há mais morte no horizonte
e as questões da morte e da imortalidade, sempre colocadas pela obra, deixam de
existir. Por isso é preciso estar a morrer, perseverar nessa morte, perseverar
nessa escrita, no infinito do verbo que é também o infinito da Literatura.
Disso sabia Borges. Disso sabe Blanchot, que persevera na
escrita, a repetir, infinitamente, que a literatura caminha para o seu
desaparecimento. E é justo em seu percurso em direção ao desaparecimento que a
Literatura é capaz de atravessar o infinito, ir de um ponto a outro. Porque a
Literatura "não é simples engano, é o perigoso poder de caminhar para o que é,
graças à infinita multiplicidade do imaginário":
"A verdade da literatura estaria no erro do finito. O mundo
em que vivemos e tal como o vivemos é, felizmente, delimitado. Bastam-nos alguns
passos para sairmos do nosso quarto, alguns anos para sairmos da nossa vida. Mas
suponhamos que, neste estreito espaço, subitamente obscuro, subitamente cegos,
nos descaminhávamos. Suponhamos que o deserto geográfico se tornava o deserto
bíblico: já não é de quatro passos, já não é onze dias que precisamos para o
atravessar, mas do tempo de duas gerações, mas de toda a história de toda a
humanidade, e talvez ainda mais. Para o homem medido e de medida, o quarto, o
deserto e o mundo são lugares estritamente determinados. Para o homem desértico
e labiríntico, votado ao erro de um empreendimento necessariamente um pouco mais
longo que a sua vida, o mesmo espaço será verdadeiramente infinito, ainda que
saiba que o não é tanto mais quanto melhor o souber." [9]
O escritor é este homem desértico e labiríntico, votado ao
erro de um empreendimento necessariamente um pouco mais longo que a sua vida,
submetido infinitamente à errância do verbo. Daí também o seu tormento, pois a
errância do verbo o habita desde sempre e para sempre, mesmo quando ele se cala,
ainda quando ele se cala, mesmo quando ele fala do que não é o tormento e ainda
mais quando o tormento nele se põe a falar. O que faz de um escritor esse
sujeito sempre atormentado pelo tormento da escrita e, estranhamente, pelo
tormento de não escrever, como assinala Kafka em carta a Max Brod:
"O escrever continua me mantendo, mas não seria mais
apropriado afirmar que conserva esse tipo de vida? Com isso não quero dizer
naturalmente que minha vida seja melhor quando não escrevo. Em tais ocasiões é
até pior e completamente insuportável e há de desembocar na loucura. Mas isso só
sob a condição de que, como resulta ser na realidade, também sou escritor quando
não escrevo; e um escritor que não escreve é de fato uma quimera que provoca a
loucura."[10]
Mas é justamente esta a loucura, o degrau acima a que
aspirava Clarice, o degrau acima em que se situa, na perspectiva de Blanchot,
Joseph Joubert, o " autor sem obra, escritor sem escrito"[11]. Porque sabe que o
livro não é a obra, mas um amontoado de palavras estéreis, Joubert encarna o
escritor por excelência, aquele que abre mão da glória de publicar livros, não
deixando, contudo, de habitar , infinitamente, a solidão essencial da obra.
Ocorre que o escritor (alguns escritores) volta a por mãos
à obra. Porque, embora saiba que o livro não é a obra (ou justamente por isso),
acredita "apenas que a obra está inacabada e crê que um pouco mais de trabalho,
a chance de alguns instantes favoráveis permitir-lhe-ão, somente a ele,
concluí-la (...) Mas o que quer terminar continua sendo o interminável."[12]
Trabalho — eis o outro nome de seu tormento. Trabalho, do
latim tripalium; instrumento de tortura. O escritor é aquele que se põe a
trabalhar infinitamente a obra, mas a obra não lhe pertence, é ele quem pertence
à obra e o que lhe pertence é somente um livro.[13] Como trabalhar infinitamente
a obra, se trabalhá-la significa estar desde sempre e para sempre a morrer,
quando é a morte não exatamente o que nos impede de viver, mas justamente de
morrer?
Diz Freud, em "Além do princípio do prazer", que a pulsão
de vida faz com que a vida perdure até encontrar sua melhor forma de morrer. "A
vida só quer morrer", dirá Lacan, parafraseando Freud. De maneira análoga,
podemos dizer que a Literatura só quer morrer. Talvez a Literatura — o espaço
literário — possa mesmo ser definida como esse lugar para morrer. Infinitamente.
E, no entanto, aquilo que a abriga — o livro — é preciso que ele se construa
como esse amontoado de palavras estéreis que, em sua finitude, abrigam o
infinito.
O escritor sabe disso. Mas não sabe. E por isso escreve.
Porque muitas vezes, como se lê nas palavras de Lacan sobre Duras, o escritor
não sabe que escreve nem o que escreve: "Ela não deve saber que escreve, nem
aquilo que escreve. Porque ela se perderia. E isso seria uma catástrofe."[14] Ao
que Duras prontamente responderia: "A partir do momento em que se está perdido e
que não se tem mais o que escrever, mais o que perder, aí é que se escreve."[15]
Na errância infinita do verbo, estamos todos perdidos. No
entanto, é possível pensar, de certa maneira, que haverá sempre os que já
perderam e os que ainda vão perder. O escritor é esse sujeito errático que já
perdeu e que ainda vai perder. Por isso, na errância infinita do verbo, o
escritor é também aquele que não está perdido. E por isso escreve. E por isso é
escritor, desde sempre e para sempre, mesmo quando se cala.
Só o escritor pode dizer: não se pode. E, desse lugar da
impossibilidade, escrever. Como se repetisse, a despeito da morte que escreve e
do estar a morrer a que a escrita o submete:
"Eu vou envelhecer com os cabelos puxados para trás
_________
cabelos grisalhos, corpo cheio, rugas e
concentração narrativa
vou envelhecer
com os cabelos puxados para trás e sem quebra das minhas
escalas musicais,
apenas a seqüência dos números dos
episódios se quebrará
uma grande deflagração _______
que já começara a subir nos céus de Herbais e que aqui,
na serra, à
beira-mar, atinge a forma de chuva
horizontal onipresente ____________
ensurdece o ar e
adensa o nevoeiro que sempre, até aqui, quiseram trocar
projectos comigo
volto ao espelho,
interrogo os olhos,
e sua
superfície de bondade,
e sei que não quero outra para
viver, e continuar a morrer"[16]
Porque o escritor é também aquele que, ainda que submetido
à escrita, essa Nossa Senhora dos Tormentos, é capaz de buscar um final feliz,
mesmo (ou sobretudo) quando esse final feliz reside no mal-estar e na morte: "Eu
ando a contar o mal-estar profundo dos seres humanos, dos animais e das plantas"
— diz sua escrita — "ando à procura de um final feliz".[17]
A Literatura só quer morrer. A Literatura só quer viver
para continuar a morrer, diriam alguns escritores. Nisso, talvez, resida o seu
final feliz. Mesmo (ou sobretudo) se é do tormento que sua escrita nasce, a
Literatura pode talvez um dia encontrar o seu final feliz nessa boa morte que é
também o seu nascedouro:
"Nocturnamente, pela vertente da abertura, que é paredes
meias com
a morte,
tudo é
interrogado e pesado, a tudo se exige a apresentação de um
certificado de consistência, ou, mais exactamente,
que revele qual o seu valor de apoio
afectos, laços humanos, expectativas, perfis de pensamento,
tudo passa pelo crivo intransigente da noite, até que
se atinja _______
se houver algo que resista à
devastação interrogativa ___________
a base da espiral
sobre que giram os destinos dispersos da minha vida,
todas essas coisas que dizem eu a falar de mim, como se o
meu corpo
não recebesse, todos os dias, ordem se
morrer;
mas, todos os dias, uma projeção de sucedidos,
rios sobre lagos,
lagos sobre
fontes,
fontes sobre cascatas,
cascatas sobre lágrimas,
tenta
abrir caminhos por terrenos movediços vindos do lugar onde fui
criada antes de ser concebida; e eu só,
a sós comigo (um sou engolido e sabressaindo à tona),
tentando unificar
as sombras inimigas,
peço apoio ao ambo, ao texto, à floresta e aos animais
porque demasiado implacáveis se podem mostrar as sombras da
vida
peço apoio aos que não têm onde se apoiar,
àqueles que conhecem com mais qualidade a força da sombra e
da exclusão
e o recado que recebo é sempre idêntico
(até que o meu sou veja que assim é)
o sem-apoio
apoia-se na falta de apoio
que leio (ou a ler)
o poema é sem-apoio."[18]
Então é isso: a Literatura é o sem-apoio que apoia o
sem-apoio que é o escritor. Disso advém a sua consistência que é também a sua
leveza, como observava Calvino: "a literatura como função existencial, a busca
da leveza como reação ao peso do viver.[19] Só a palavra literária é capaz da
leveza. Por isso a palavra literária é também capaz de nos levar, de nos
transportar para bem longe do tormento a que própria escrita literária nos
submete.
É dessa leveza, nascida justamente do tormento, que nos
fala Baudelaire, no magnífico "Levana e as Três Nossas Senhoras das Tristezas".
Diz o texto:
"Muitas vezes, em Oxford, vi Levana em meus sonhos.
Conhecia-a pelos seus símbolos romanos. Mas quem é Levana? Era a deusa romana
que presidia às primeiras horas da criança, que lhe conferia, por assim dizer, a
dignidade humana. 'Na ocasião do nascimento, quando a criança provava pela
primeira vez a atmosfera perturbada do nosso planeta, punham-na no chão.Mas
quase logo, com medo de que uma tão grande criatura rastejasse no solo mais do
que um instante, o pai, como mandatário da deusa Levana, ou qualquer parente
próximo, lavantava-a ao ar, ordenava-lhe que olhasse para cima, como sendo o rei
desse mundo, e apresentava a fronte da criança às estrelas, dizendo-lhes talvez
em seu coração: 'Contemplai aquele que é maior que vós!'Este ato simbólico
representava a função de Levana. E esta deusa misteriosa, que nunca mostrou suas
feições (exceto para mim, nos meus sonhos) e que nunca agiu por delegação, tira
o seu nome do verbo latino levare, erguer no ar, manter elevado. Naturalmente,
várias pessoas entenderam por Levana o poder tutelar que vigia e rege a educação
das crianças. Mas, não penseis que se trate aqui dessa pedagogia que reina
apenas com alfabetos e gramáticas; deve-se pensar sobretudo 'nesse vasto sistema
de forças centrais que está escondido no seio profundo da vida humana e que
trabalha incessantemente as crianças, ensinando-lhes sucessivamente a paixão, a
luta, a tentação, a energia de resistência'. Levana enobrece o ser humano por
quem vela, mas com meios cruéis. É dura severa essa boa ama, e entre os
processos que usa para aperfeiçoar a criatura humana, aquele que sobre todos
prefere é a dor. Três deusas lhe são submetidas, que emprega em seus desígnios
misteriosos. Assim como há três Graças, três Parcas, três Fúrias, como
primitivamente havia três Musas, há também três deusas da tristeza. São elas as
Nossas Senhoras das Tristezas. Vi-as muitas vezes conversando com Levana, e
algumas vezes mesmo conversando comigo. Então, elas falam? Oh! Não. Estes
poderosos fantasmas desdenham as insuficiências da linguagem. Podem proferir
palavras através dos órgãos do homem, quando habitam num coração humano, mas,
entre si, não seservem da voz, um eterno silêncio reina nos seus reinos..."[20]
Um eterno silêncio reina nos reinos dessas três Nossas
Senhoras: Nossa Senhora das Lágrimas, Nossas Senhoras dos Suspiros e Nossa
Senhora das Trevas. E é por esta última, naturalmente, que Baudelaire se dirá
subjugado, esta que há de atormentar o seu coração até que as outras duas tenham
"desenvolvido as faculdades do seu espírito". Mas, para além das três, há
Levana, aquela que "enobrece o ser humano por quem vela".
Só Levana é capaz de levar o poeta além do tormento,
elevando à dignidade da Coisa o que há de atormentar para sempre o seu coração.
Pois, como observa Clarice Lispector,
"Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda,
menos boa, menos ruim, menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de,
em nossas mãos grossas, vir a se transformar em 'pureza', nossas mãos grossas e
cheias de palavras".[21]
Só assim, sustentado por esse ponto de sem-apoio que é a
Literatura, a leveza pode se dar. Sublime leveza de Levana, em seu movimento de
elevar no ar, levare, aquilo que a tortura de um trabalho — tripalium — reduziu
a resto, a lixo, a livro.
E assim, aquilo que há de nascer morto pode voltar a
nascer, infinitamente, para estar a morrer, infinitamente, na cena da escritura.
E aí a queixa da mulher-escritora ao médico — "Doutor, estou me sentindo mal"
—pode ser lida não apenas como um sintoma — "satisfação às avessas"[22] —, mas
como uma estranha incumbência que Levana lhe tenha atribuído, não sem antes (e
para sempre) passar por suas Nossas Senhoras das Tristezas.
E só aí — nessa pena de escrita, sua pena de morte — quem
sabe a alma avolumada do escritor possa encontrar a leveza. E, elevada no ar,
possa, então, voar.
Notas:
[1] Professora de Literatura da Faculdade de Letras da
UFMG. Escritora, autora de A Falta (Record, 1997) e Livro de Cenas Fulgor (2
Luas, 2000), dentre outros.
[2] LISPECTOR, Clarice.
Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. P. 122: Esperando.
[3] Lispector. Op. cit., p. 122-123.
[4] Ibidem, p. 31: Um degrau acima.
[5] Ibidem, p. 21: Era uma vez.
[6] BLANCHOT, Maurice. L'instant de ma mort. Paris: Fata
Morgana, 1996.
[7] DURAS, Marguerite. Escrever. Rio de
Janeiro: Rocco, 1994.
[8] BLANCHOT. Op. cit., p. 17.
[9] BLANCHOT, Maurice. O livro por vir.Lisboa: Relógio
D'Água, 1984. P. 103: O infinito literário: o Aleph.
[10] KAFKA. Escritos de Franz Kafka sobre sus escritos. 2
ed. Barcelona: editorial Anagrama, 1983. P. 175.
[11]
BLANCHOT. O livro por vir. P. 59-74: Joubert e os espaço.
[12] BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987. P. 13.
[13] Ibidem.
[14] DURAS. Op. cit., p. 19.
[15]
Ibidem, p. 21.
[16] LLANSOL, Maria Gabriela. Onde vais,
drama poesia? P. 128-129. (Inédito)
[17] Ibidem, p.
173.
[18] LLANSOL. Op. cit., p. 130-131.
[19] CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993. P. 39: Leveza.
[20] BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Ensaios, Novelas
e Escritos íntimos/Paraísos artificiais.
[21]
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 3 ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1964. P.
63.
[22] Esta é a definição de sintoma dada por Lacan
em Le séminaire. Livre V. Les formations de l'inconscient. Paris: Seuil, 1998.
P. 319-334: Les masques du symptôme. [topo da
página]
# Luciana Ferrari Montemezzo - A
representação do golpe militar em “A casa dos espíritos”
Falar do ser
humano e de sua evolução na Terra, seja através do discurso ficcional ou
científico, é um ato político. Político não no sentido etimológico do termo, que
se refere à arte ou ciência de governar, segundo o dicionário Michaelis (1998),
o que significa hoje um ato essencialmente partidário. É um ato político no
sentido de que participa da vida de um determinado povo, questiona-a e reflete
sobre ela. Dessa maneira, toda palavra escrita - literária ou não - que trata da
História vem carregada de um tom político, como afirma Eduardo Galeano, ao
referir-se ao oficio do escritor no continente hispano-americano:
Escrevemos a partir de uma necessidade de comunicação e de
comunhão com os demais, para denunciar o que dói e compartilhar o que dá
alegria. Escrevemos contra a nossa própria solidão e a solidão dos outros.
Supomos que a literatura transmite conhecimento e atua sobre a linguagem e
conduta de quem a recebe; que nos ajuda a conhecer-nos melhor para salvar-nos
juntos. (Galeano, 1990: 07)
De acordo com a perspectiva de Galeano, Isabel Allende em A
casa dos espíritos reflete sobre a História chilena - que, em muitos aspectos, é
semelhante à História latino-americana em geral - e descreve com muita
propriedade fatos de essencial importância para a recuperação de períodos
históricos ainda recentes e obscuros. Tais características podem classificá-la
como um romance histórico, ou seja, como una obra que trata ficcionalmente dos
signos da Historia. Sobre o entrecruzamento entre o discurso ficcional com o
histórico, Mario González afirma que
O romance histórico (...) é leitor singular dos signos da
história. (...) os signos da história são retomados pelo romance histórico para
multiplicar seus significados. O discurso da história deve buscar a univocidade,
por ser científico; o romance histórico, porém, recupera os signos da história
do universo da afirmação científica para o espaço da existência humana onde
foram motivados e onde são recarregados da ambigüidade original. (González,
1997: 212)
As afirmações de González chamam atenção para a concepção
aristotélica de que ao historiador cabe o registro, enquanto que ao escritor
cabe a criação. Ao leitor, participante de um determinado contexto histórico,
cabe-lhe a identificação desses signos, através de leituras paralelas do mundo
em que vive, com vistas a identificar a ficção na História ou vice-versa.
É na criação de una história dentro da própria História que
Isabel Allende reconstitui um dos fatos mais relevantes da Historia chilena
contemporânea: o golpe militar que depôs o socialista Salvador Allende e a
conseqüente tomada de poder por parte dos militares. Embora a autora não
mencione seu nome, através do conhecimento prévio da História recente, o leitor
pode deduzir que o Presidente - sempre mencionado com maiúscula - socialista é,
de fato, Salvador Allende.
Através dos personagens principais, marcam-se algumas
posiciones sociais, as quais entrarão em conflito ao longo da narrativa e
destacarão a amplitude alcançada pela ascensão ao poder - por via democrática -
de um socialista em um país do terceiro mundo.
A obra dá especial importância, como se refere
metaforicamente a professora Márcia Navarro, “as mulheres puxando o trem da
história” (Navarro, 1995: 17). De acordo com a professora Navarro, em A casa dos
espíritos
(...) a história do Chile não é apenas contada através de
quatro gerações de mulheres que pertencem à elite dominante, mas também através
da luta d e classes que está transformando o país e como as mulheres se
posicionam a favor das classes oprimidas. (idem, p. 16)
Assim, narram-se os fatos históricos com muita
singularidade, não somente devido à preocupação com a reflexão sobre os mesmos,
através de a polissemia típica do texto literário, mas também devido à
oportunidade que o texto dá às vozes femininas. O fato de que duas categorias
sociais alijados do poder - as mulheres e os camponeses - possam expressar-se
sobre um tema tão importante como a História faz de A casa dos espíritos um
texto de protesto, digno de análise e reflexão.
AS PERSONAGENS
O rude proprietário
rural Esteban Trueba, homem de origem humilde que conseguiu poder e riqueza
explorando a pobreza e boa vontade de seus empregados, representa a elite
chilena, decidida a manter sua hegemonia. É ativo participante de um grupo que
defende os valores mais tradicionais, embora para isso necessite mascarar o que
considera vergonhoso, em nome da reputação familiar, como quando a sua filha
Blanca fica grávida de um camponês socialista. Trueba resolve a situação
casando-a com um conde francês, solucionando o problema criado em seu lar e
salvando a honra de sua filha. No entanto, o casamento é uma opção infeliz, já
que o conde não compartilha os mesmos valores da família y desaparece,
abandonando sua jovem esposa Blanca. A filha de Blanca, Alba, recebe, contudo, o
sobrenome francês, desconsiderando-se sua origem camponesa, vergonhosa sob a
ótica tradicional.
O pai de Alba, Pedro Tercero García, o camponês socialista,
integra o povo dominado e inquieto, que luta por melhores condições de trabalho,
igualdade social e reforma agrária. É um dos líderes do movimento que leva ao
poder o Presidente socialista. Por tudo isso, opõe-se à elite, alçando a voz
contra Trueba, patrão de sua família há anos. Com sus canções de protesto e seus
discursos inflamados, tenta despertar os mais humildes para a existência de seus
direitos.
Por causa disso, e acrescentando o fato de que o camponês é
o responsável pela desonra de sua única filha mulher, Trueba persegue a Pedro
Tercero e quando o encontra lhe corta três dedos da mão, para que não toque mais
suas canções de protesto:
De uno de los galpones salía una frágil columna de humo, vi
un caballo amarrado en la puerta, deduje que allí debía estar Pedro Tercero
(...) Nos observamos em silencio, jadeando, cada uno esperaba el primer
movimiento del otro para saltar. Entonces vi el hacha. (...) en el último
instante levantó los brazos para detener el hachazo y el filo de la herramienta
le rebanó limpiamente los tres dedos de la mano derecha. (Allende, 1985: p.
218-219)
Depois de tudo, embora apaixonado por Blanca, mas afastado
dela, Pedro Tercero se incorpora à luta armada contra o regime ditatorial,
vivendo como clandestino ao longo de grande parte da obra. Por isso, abre mão da
convivência com Blanca, com quem somente vai encontrar-se no Canadá, ambos
exilados.
As mulheres representam o caminho em direção à emancipação
feminina e à ruptura com os padrões patriarcais de dominação. Nivea, a primeira,
era a sufragista que lutava pelo voto feminino. Clara, sua filha, era a doce e
clarividente esposa de Trueba, a única capaz de abrandar o autoritarismo do
marido. Blanca, filha de Clara e Esteban, é a que se envolve com um camponês,
mas ainda assim não consegue romper totalmente com as expectativas tradicionais
e somente vai encontrar sua felicidade no exílio. Sua filha Alba, fruto da união
das duas classes sociais, obtém sucesso em sua trajetória rumo à independência e
rompe com os patrões, partindo para a luta armada e sofrendo as conseqüências de
seus atos.
OS MOMENTOS DE TERROR
Quando a
elite percebe a possibilidade de vitória do partido socialista, há discussões no
âmbito do Partido Conservador, pelo qual Trueba agora é Senador da República.
Preocupados com as mudanças sociais e com a reforma agrária apregoada pelos
socialistas, reúnem-se os conservadores para organizar estratégias que garantam
o manutenção da ordem social segundo seus desejos, através de um golpe militar.
O agente de inteligência da embaixada presente à reunião, no entanto, rechaça
tal alternativa, afirmando que “ese asunto lo vamos a arreglar con dinero” (p.
361). Trueba não concorda com a posição do agente:
- Sáquese esa idea de a cabeza, míster! - exclamó o senador
Trueba -. Aquí no vai a poder sobornar a nadie! El Congreso y las Fuerzas
Armadas son incorruptibles. Mejor destinamos ese dinero a comprar todos los
medios de comunicación. Así podremos manejar la opinión pública, que es lo único
que cuenta en realidad.
- Eso es una locura! Lo primero que harán los marxistas
será acabar con la libertad de prensa! - dijeron varias voces al unísono.
- Créanme, caballeros - replicó el senador Trueba -. Yo
conozco a este país. Nunca acabarán con la libertad de prensa. Por lo demás,
está en su programa de gobierno, han jurado respetar las libertades
democráticas. Lo cazaremos en sua propia trampa.
El senador Trueba tenía razón. No pudieron sobornar a los
paralamentarios y en el plazo estipulado por la ley la izquierda asumió
tranquilamente el poder. Y entonces la derecha comenzó a juntar odio. (idem, p.
361)
Com a vitória dos socialistas, Jaime, filho do Senador
Trueba e médico comunitário, torna-se médico da presidência. Com isso, nas horas
de agonia anteriores ao golpe militar, é chamado ao gabinete presidencial, onde
testemunha os momentos mais críticos do governo:
Lo despertó la campanilla del teléfono y una secretaria,
com a voz ligeramente alterada, terminó de espantarle la modorra. Lo llamaban
del palacio para informarle que debía presentarse en la oficina del compañero
Presidente lo antes posible, no, el compañero Presidente no estaba enfermo, no,
no sabía lo que estaba pasando, ella tenía orden de llamar a todos los médicos
de la Presidencia. (idem, p.385)
Devido à sua participação efetiva no governo socialista, a
voz de Jaime narra os momentos finais do Presidente que ousara propor mudanças
que favoreceriam a vida dos cidadãos mais esquecidos de seu país. No gabinete
presidencial, Jaime participa dos momentos finais do Presidente:
(...) En el interior del edificio quedaron alrededor de
treinta personas atrincheradas en los salones del segundo piso, entre quienes
estaba Jaime. Creía encontrarse en el medio de una pesadilla. (...) Oyó la voz
do Presidente que hablaba por radio al país. Era su despedida. (...) Vivan los
trabajadores! Éstas serán mis últimas palabras. Tengo la certeza de que mi
sacrificio no será vano! (...) Entonces oyeron el rugido de los aviones y
comenzó el bombardeo. (idem, p. 386-387)
Não somente Jaime - que é morto pelos militares - mas
também Alba participa das manifestações de resistência ao golpe militar e ao
estado de exclusão que se impõe ao país. Sua participação é tão efetiva que a
levam presa da casa de Trueba, desesperado ante a falta de respeito dos
militares para com um Senador da República:
En esos meses, el senador había aprendido que ni siquiera
su limpia trayectoria de golpista era garantía contra o terror. Nunca se
imaginó, sin embargo, que vería irrumpir en su casa, al amparo del toque de
queda, una docena de hombres sin uniformes, armados hasta los dientes (...) Vio
a otros que abrían de una patada la puerta do cuarto de Alba (...) con
metralletas en la mano (...), los vio sacarla a los empujones (...) (idem, p.
420)
Estupefato com os rumos que os militares deram ao golpe, e
por ver-se envolvido em uma situação em que de nada valia sua reputação e seu
nome, Trueba comove-se e passa a avaliar de maneira diferente a vida que lhe é
imposta. Busca ajuda para encontrar Alba em Tránsito Soto, a prostituta a quem
ajudou na juventude, que agora é influente e amiga de vários militares:
(...) yo al principio no quería oír hablar de muertos, de
torturados, de desaparecidos, pero ahora no puedo seguir pensando que son
embustes de los comunistas, (...) si hasta los propios gringos, que fueron los
primeros en ayudar a los militares (...) ahora están escandalizados por la
matanza, (...) pero se les pasó la mano, están exagerando las cosas y con el
cuento de la seguridad interna y que hay que eliminar a los enemigos
ideológicos, están acabando con todo el mundo (...) (idem, p.439-440).
A representação que é dada ao golpe militar é uma
demonstração da proximidade entre o ficcional e o histórico na narrativa de A
casa dos espíritos. Parte da crítica, talvez devido à riqueza de detalhes com
que é contada a história, define-a como “demasiadamente jornalística”, aludindo,
talvez, ao início da carreira de Isabel Allende. Outra parte, provavelmente por
causa da atitude emocional que perpassa toda a narrativa, afirma o paradoxo de
emocionalidade nos relatos históricos. Se se pode dizer que o estilo é
jornalístico em alguns trechos, não se pode afirmar que isso rouba o valor à
obra, uma vez que é jornalista o primeiro elo na cadeia que registra os fatos
que, depois de um determinado tempo, vão adquirir ou não valor histórico. Quanto
à emocionalidade na narrativa, cabe afirmar que, como já se disse, o romance
histórico não tem compromisso com o científico. Ao contrário, ao questionar o
valor absoluto dos fatos históricos, reflete sobre eles e polemiza seu status de
verdade única.
Bibliografia
ALLENDE, Isabel. La casa de los espíritus. Buenos Aires:
Sudamericana, 1985.
GALEANO, Eduardo. A descoberta da
América (que ainda não houve). Porto Alegre: EDUFRGS, 1990.
GONZÁLEZ, Mario. Memória e biografia. In: AGUIAR, Flávio
(org.) Gêneros de fronteira: cruzamento entre o histórico e o particular
literário. São Paulo: Xamã, 1997.
NAVARRO, Márcia Hoppe
(org.). Rompendo o silêncio: gênero e literatura na América Latina. Porto
Alegre: EDUFRGS, 1995. [topo da
página]
# Luiz Roberto Velloso Cairo - Anotações sobre El Brasil intelectual, de Martín García
Merou
El estudio de
un ser viviente se compone, en gran parte, del estudio de las relaciones que lo
unen á los seres vecinos. Del mismo modo, no hay literatura cuya hitoria se
encierre en los límites de su país de origen.
Joseph Texte
Por volta dos anos 80, quando desenvolvia um projeto de
pesquisa sobre a obra crítica de Araripe Júnior, que resultou na tese de
Doutorado, O salto por cima da própria sombra. O discurso crítico de Araripe
Júnior: uma leitura, encontrei no conjunto da obra do crítico alguns textos
contendo reflexões sobre a cultura e a literatura latino-americanas, que me
despertaram a curiosidade, porque o momento no qual o autor exercia a sua
atividade crítica era ainda muito marcado, na literatura brasileira, pela busca
da identidade nacional. Busca esta que, se de um lado nos aproximava das demais
literaturas latino-americanas, pelo fato de estarem vivendo um momento
semelhante, de outro nos afastava por conta deste instante ser marcado pelo
empenho na construção da nacionalidade da literatura brasileira, o que nos levou
a um maior ensimesmamento, e pela circunstância lingüística de nos expressarmos
em língua portuguesa.
Dentre os textos encontrados, destacaria principalmente os
dedicados ao escritor argentino Martín García Merou, que, em 1896, iniciou a
publicação de uma série de artigos sob a rubrica “El Brasil Intelectual”, no
periódico La Biblioteca, de Buenos Aires, com o objetivo de divulgar a produção
científica e literária brasileira entre os seus conterrâneos. Estes artigos,
posteriormente, foram reunidos e, em 1900, sob a forma de livro, publicados pelo
editor Felix Lajouane, em Buenos Aires, com o título El Brasil Intelectual:
impresiones y notas literarias, por ocasião da visita diplomática à Argentina,
de Campos Sales, na época, Presidente do Brasil.
Quando tomei conhecimento deste material que, por motivos
diversos, naquele momento, não utilizei na pesquisa, constatei que tinha em mãos
um interessante e raro diálogo que se estabeleceu, em fins do século XIX e
início do século XX, entre o intelectual argentino e alguns escritores
brasileiros.
Num primeiro momento, minha atenção voltou-se obviamente
para a exploração dos textos que, de certa forma, estabeleciam um diálogo entre
Araripe Júnior e Martín García Merou, o que me levou a escrever o artigo “Don
Martín García Merou: repercussões de um escritor argentino na crítica literária
brasileira do século XIX”(Cairo, 1993, p. 182-193).
Em seguida, montei o projeto de pesquisa “Os críticos
brasileiros do século XIX e El Brasil Intelectual: impresiones y notas
literarias, de Martín García Merou: um diálogo latino-americano”, com o objetivo
de explorar os eventuais diálogos do argentino com os intelectuais brasileiros
por ele abordados.
Desde então, escrevi os artigos “Martín García Merou e José
Veríssimo: um diálogo latino-americano”(Cairo, 1996, p. 57-66), “Martín García
Merou: um olhar portenho sobre Sílvio Romero”(Cairo, 1999, p. 133-141), e
“Martín García Merou e o Visconde de Taunay: considerações em torno de um
diálogo latino-americano”(Cairo, 1998).
A publicação deste livro aparentemente inusitado de Merou
parece justificar-se, não apenas pelos festejos diplomáticos em torno da viagem
do Presidente brasileiro à Argentina, mas também pela perplexidade manifestada
pelo autor, logo nas primeiras páginas, frente à constatação de que dentre as
literaturas sul-americanas, a brasileira era a menos conhecida dos argentinos.
Ele não consegue entender como uma literatura de indiscutível valor, tão próxima
geográfica e culturalmente, pudesse passar despercebida aos olhos dos leitores
do seu país e dos demais países sul-americanos.
De todas las literaturas sudamericanas, ninguna es tan poco
conocida entre nosotros como la del Brasil. (Merou, 1900, p. 1)
Por mi parte no vacilo en confesar que, sorprendido de la
variedad y valor real de la producción literaria brasilera, me he preguntado mas
de una vez, como es que ella puede pasarnos hasta hoy casi inapercebida. El
Brasil está ligado á nuestro país por vínculos estrechos. (1900, p. 3)
Ao fazer esta reflexão, constata que, em relação às obras
dos escritores hispano-americanos, o conhecimento dos argentinos era um pouco
melhor, mas ainda assim estava longe de ser o ideal:
De tarde en tarde, com mayor ó menor dificultad, jadeante y
fatigado por la larga travesía, recibimos uno que outro livro de nuestros
hermanos del Perú, de Méjico, de Venezuela ó Colombia. Sin ser un vaso común, á
veces un nombre dotado de mayor resonancia, rompe la indiferencia reinante y
vence la incomunicación intelectual que separa las secciones de nuestro
continente. Sólo por una rara excepción, una obra nacida bajo una estrella
propicia, adquiere entre nosotros carta de ciudadanía, como acontece con ese
tierno idilio que Estrada tuvo el mal gusto de comparar com Graziela; y la María
de Jorge Isaacs, se convierte en el breviario amoroso de las cándidas
imaginaciones de quince años. El grueso de la producción científica ó literária,
la historia, la crítica, los estudios jurídicos, están destinados à reposar,
como en una muda necrópolis, en las bibliotecas públicas ó en medio de las
colecciones valiosas de los eruditos de raza, que sólo muy raras veces hojean
sus páginas polvorosas Este triste destino, es el lote general de toda la labor
intelectual del nuevo mundo. (1900, p. 1-2)
Nesta mesma direção, observa que o mesmo acontecia com a
repercussão dos escritores argentinos, que apenas excepcionalmente conseguem
atravessar a fronteira dos demais países americanos:
En cuanto respecta á nosotros, los únicos nombres
literarios que han salvado las fronteras de la patria son los de Guido Spano y
Andrade, para no referirme al de Mármol, algo envejecido, pero cuyas
imprecaciones contra Rosas despiertan todavía el entusiasmo de una parte de la
juventud sudamericana. Las huellas de Sarmiento y Alberdi quedan grabadas en
Chile, aunque menos vivientes que las de don Andrés Bello; pero sería excusado
buscar fuera de aquel país y del escaso número de iniciados á que acabo de
referirme, quienes conozcan los Recuerdos de Província o la Peregrinación de Luz
del Día. (1900, p. 2)
No caso do Brasil, a indiferença dos argentinos, conforme
registra, não era compreensível, não só em função do talento e refinamento de
seus escritores e intelectuais, como também pelo fato de terem tido experiências
históricas comuns:
Nuestra historia política está en contacto com la suya,
desde la época colonial. Hemos cruzado nuestras armas en guerras gloriosas,
hemos favorecido juntos el nacimiento de otras nacionalidades, hemos luchado
después en las mismas filas, en una campaña brillante pero deplorable; nuestros
intereses comerciales son solidarios y los productos de nuestro suelo se
complementam; la extensa línea de nuestras fronteras facilita la amistad de
pueblo á pueblo; nuestras grandes capitales, los centros pensantes y dirigentes
de ambos países, están apenas á tres dias de navegación; finalmente, hemos
vaciado en el mismo molde nuestras instituciones políticas y hemos chocado con
los mismos obstáculos al llevar á la práctica sus principios liberales. (MEROU,
1900, p. 3-4)
O desapontamento de Merou leva-o a fazer algumas
indagações:
Cómo comprender, com estos antecedentes, el alejamiento
respectivo en que vivimos? Cómo disculpar la mutua ignorancia en que nos
hallamos de nuestras modalidades nacionales, de nuestras virtudes nativas, de
nuestro estado de civilización y de cultura, de la forma é importancia de
nuestra producción intelectual? (1900, p. 4)
Estas indagações por sua vez o conduzem a outras que
antecedem às primeiras:
Tenemos realmente una cultura artística propia, algo que
pueda llamarse una literatura nacional, ó estamos en condiciones de tenerla?...
Podemos abrigar la pretensión de haber conseguido lo que es todavia un
desideratum para naciones que han llegado al grado de desarrollo de los Estados
Unidos?... (1900, p. 4)
Ao tentar responder estas questões, percebe a necessidade
de mapear o problema e acaba aproximando e, conseqüentemente, isolando dos
demais países americanos os Estados Unidos e o Brasil. Isto porque, partindo de
uma interpretação marcada pelo determinismo, ora mesológico, ora etnológico,
tende inicialmente a uma generalização:
Aquí como allí, la influencia del medio modificó
profundamente el alma de la raza colonizadora. (1900, p. 6)
No caso norte-americano, apoiando-se na leitura de American
Literature de John Nichol, afirma que, nos Estados Unidos, as condições físicas
e as circunstâncias morais amoldaram o anglo-saxão de tal forma que ao aproximar
seus feitos aos do nativo, nele “estampa” um novo caráter. No caso do Brasil,
embasa-se na teoria da Obnubilação Brasílica de Araripe Júnior, para dizer que o
fenômeno de transformação e posterior adaptação ao meio físico e ao ambiente
primitivo por que passaram os colonos dos três primeiros séculos ao atravessarem
o Atlântico, aliado à docilidade dos nativos, favoreceram um entrosamento entre
ambos que possibilitou o prolongamento e a continuação da cultura européia.
Tomando por base o Curso Elementar de literatura nacional
do Cônego Fernandes Pinheiro, vê os precursores da literatura brasileira –
Durão, Basílio da Gama, Caldas, os Alvarengas e Cláudio Manuel da Costa - como
um reflexo do pensamento dos poetas portugueses, da mesma forma como vê as
manifestações espirituais dos Estados Unidos se perderem no vasto tesouro da
Inglaterra.
Los brasileros podrían encabezar la lista de sus vates com
el nombre de Camoens, com igual derecho al de aquella dama americana que, á una
pregunta respecto á los poetas de su nación, que le dirigió un crítico inglés:
“Entre otros – respondió – contamos com Chaucer, Shakespeare y Milton”. (1900,
p. 6)
Este tipo de interpretação o conduziu à crença de que:
La influencia de nuevas gentes, la facilidad del contacto
com los pueblos del viejo mundo, las corrientes inmigratorias, que se difunden
en todo los ámbitos del país, y que luchan sin tregua por el sometimiento de la
naturaleza, son otras tantas causa que en el Brasil concurren para que la acción
del medio se debilite, en detrimento de la originalidad individual. Consecuencia
de estos hechos, es el espíritu de imitación que estraga la cultura intelectual
de aquella nación, como la de la república del Norte. (1900, p. 7)
Para Merou, parece que o espírito de imitação que conduz a
predileção dos artistas pela ilustração na Europa seria um traço que diferencia
os povos dos Estados Unidos e do Brasil dos demais do continente americano. O
que, hoje, sabemos não ser pertinente, pois nenhum país da sul-americano ficou
imune a esta ilustração.
Em texto de 1985, intitulado “A dimensão utópica da
ilustração”, Antonio Candido coloca, ao contrário de Merou, que:
Os países da América Latina realizaram a sua independência
política sob o fluxo da Ilustração. Os seus promotores assumiram alguns
princípios desta, que atuaram como fator de unidade dentro da grande diversidade
das culturas existentes entre o México e a Terra do Fogo. Um desses princípios
pode ser expresso por meio das seguintes proposições (1) o saber trará a
felicidade dos povos, (2) este saber é aquele que veio da Europa, trazido pelo
colonizador, (3) os detentores deste saber formam uma elite que deve orientar o
destino das jovens nações. A principal conseqüência foi a idéia de que o saber
seria difundido por todos, a partir das luzes de poucos. (Candido, 1999, p. 91)
Infelizmente a má distribuição da riqueza na América
continua não dizendo respeito apenas à economia, mas também, proveniente desta
visão ilustrada, à cultura, à literatura, à arte e à ciência que acabam
constituindo instrumentos de poder a serviço de uma elite, conforme Antonio
Candido observa com muita lucidez:
A história dos ideais ilustrados na América Latina tem às
vezes um sabor quase trágico de perversão dos intuitos ostensivos, porque
acabaram funcionando como fatores de exclusão, não de incorporação, de sujeição,
não de liberdade. Este fato nem sempre chegou ao nível da consciência clara,
tanto nos grupos dominantes quanto nos dominados; tornou-se uma espécie de
perplexidade, como se os objetivos ideais fossem ficando sempre para mais
adiante. (1999, p. 91).
Retomando as questões levantadas por Merou, no que se
refere ao histórico alijamento da produção científica e literária brasileira por
parte dos leitores da Argentina e dos demais países sul-americanos, os motivos
que se costumam colocar para justificá-lo são principalmente a diferença
lingüística e as imagens preconceituosas que os espanhóis nutriam em relação aos
portugueses.
Durante o processo de colonização da América Latina, a
Espanha, realmente, gozava de maior prestígio que Portugal, por isso talvez o
Brasil fosse visto pelos hispano-americanos com um certo desprezo resultante de
sua aparente “inferioridade cultural”.
Quando de sua estadia no Brasil, Merou curiosamente
constata a existência de uma interessante efervescência cultural, graças ao
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, no Rio de Janeiro,
onde:
El cultor de las letras, el investigador tranquilo y asiduo
de la historia patria, encontraban un centro propicio y silencioso, en que unir
sus esfuerzos y colaborador en la obra benéfica de su civilización y su progreso
moral. (1900, p. 20)
Esta efervescência desfaz a imagem pré-concebida da
excolônia portuguesa, a ponto de lamentar que, na Argentina, a realidade, fosse
bem diferente, naquele momento:
Ay! en aquel mismo año, las sombras de la dictadura
trataban de apagar todos los destellos de la inteligencia argentina! Alberdi se
alejaba de la tierra de su cuna, para no deprimir su alma jurando fidelidad al
déspota, é iba á encontrar en playas extrañas á Sarmiento, á Mitre, á Mármol, á
Gutiérrez, dispersos por la ola de la barbarie. Quien puede calcular cuál sería
el grado de nuestro desarrollo actual, se elimináramos de nuestra historia medio
siglo de anarquía y de guerras intestinas? (1900, p. 20)
A perplexidade de Merou frente ao desconhecimento mútuo
entre os povos americanos me lembraram a observação de José Veríssimo num texto
intitulado “Um americano e a literatura americana”, publicado em Homens e coisas
estrangeiras, 1ª série, onde ele diz:
Pouquíssimo sabemos nós, brasileiros, das literaturas
americanas, e não sei se eu não poderei, generalizando, afirmar que pouquíssimo
sabemos nós, americanos, da literatura uns dos outros. Nessa nossa comum e
recíproca ignorância, os Estados Unidos, não obstante sua supremacia no
continente, não têm quinhão consideravelmente menor do que o México ou a
Venezuela, por exemplo. Ignoramo-los intelectualmente quase tanto como ao Chile
ou à Argentina. (Broca, 1998, p. 68)
Nesta mesma linha, Brito Broca por volta de 1946, num texto
intitulado “O Brasil e as literaturas latino-americanas”, hoje incluído na
coletânea Americanos, escreveu:
Não se compreende como os países latino-americanos
permanecem no desconhecimento recíproco das respectivas literaturas. Dizemos
apenas nos países latino-americanos, porque hoje, não só no Brasil, mas em todo
o continente, já não reina a ignorância de outrora com relação aos Estados
Unidos. (...) Entretanto, dos nossos vizinhos de língua espanhola continuamos a
conhecer somente duas ou três figuras de proa, mostrando a mais completa
indiferença pelos valores que entre eles ainda possa existir. (Broca, 1998, p.
66)
Naquele momento, chegou mesmo a presentear os leitores com
uma generosa sugestão:
Seria um trabalho curioso e de grande importância
documentária historiar as nossas manifestações isoladas e fugazes de interesse
pelas literaturas do Norte e do Sul. (1998, p. 67)
Neste texto, vale observar Brito Broca, referindo-se à
ignorância do leitor brasileiro à novela María, de Jorge Isaacs, sobre a qual
escrevera em 1942, fato este registrado no passado por Merou, em relação ao
desconhecimento da novela Inocência, do Visconde de Taunay, por parte dos
hispanos:
Cuantos de los apasionados de María, sospechan que existe
en el Brasil una dulce hermana de la heroína de Isaacs, aquella hermosa
Innocencia, cuya historia há referido en una obra encantadora el vizconde de
Taunay?... (Merou, 1900, p. 3)
Mais recentemente, Antonio Candido, no texto “Os
brasileiros e a nossa América”, de 1986, comenta a existência de uma acentuada
assimetria no modo como os dois blocos lingüísticos da América Latina se vêem, o
que significa termos avançado muito pouco em direção ao auto-conhecimento,
enquanto latino-americanos.
Ao longo das 469 páginas de El Brasil Intelectual:
impresiones y notas literarias, Martín García Merou discorre sobre as principais
figuras da intelectualidade brasileira do final do século XIX. Figuras como
Sílvio Romero, Tobias Barreto, José Veríssimo, Araripe Júnior, Visconde de
Taunay, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Alberto de Oliveira, Raimundo Corrêa,
Fontoura Xavier, Francisca Júlia, Coelho Neto, Ferreira de Araújo, Carlos de
Laet, Machado de Assis, Quintino Bocaiúva, Carlos Rodrigues, Tobias Monteiro,
Inglês de Sousa, Aluísio Azevedo, Afonso Celso, Rodrigo Otávio e Manuel de
Oliveira Paiva desfilam pelas páginas do livro sob o olhar do crítico portenho.
Através do olhar destas e sobre estas personalidades, Merou
apresenta aos argentinos uma verdadeira história da cultura literária
brasileira. Vale dizer que ao informar seus leitores, cruza seu olhar não só com
o destas personalidades, como também com o olhar de outros hispano-americanos
que já haviam escrito sobre Brasil, mas isto fica para outro momento.
REFERÊNCIAS
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Remate de Males. Número Especial Antonio Candido. Campinas-SP: Depto. De Teoria
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nossa América. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 130.
MEROU, Martín García. El Brasil
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VERÍSSIMO, José. Um americano e a literatura americana.
Homens e coisas estrangeiras. 1ª série. Rio de Janeiro: Garnier,
1902. [topo da
página]
# Magdala França Vianna - Convergências e diferenças culturais nas sociedades
pluriétnicas em situação pós-colonial
Quando se
comemoram quinhentos anos do processo de expansão ocidental, faz-se necessário
verificar como a existência de convergências e diferenças culturais nas
sociedades pluriétnicas em situação pós-colonial atua sobre a representação
política de núcleos de resistência ao apagamento do patrimônio de saberes e
fazeres de sociedades excluídas dos centros de poder.
Uma análise dos nacionalismos surgidos dos processos de
descolonização torna visível, nos povos emergentes desse contexto em épocas
diferenciadas, um confronto entre o desejo de resgatar e afirmar uma
continuidade histórica e a compulsão para ingressar na modernidade de seu tempo.
Segundo os cânones de uma cultura política vigente até então, o resgate do
continuum histórico incide diretamente sobre a legitimação da soberania
nacional, e o ingresso na modernidade instaura a possibilidade de participação
na competitividade de mercado. No momento em que se faz uma revisão do
equilíbrio de forças na circulação dos recursos econômicos entre os centros
hegemônicos do sistema mundial, essa tensão é o pano de fundo das atuais
políticas de naturalização do social e do político.
Um estudo da historiografia e das práticas políticas das
sociedades pós-coloniais mostra a recusa do Estado em considerar o tempo como
dimensão onde se organizam os jogos políticos. Essa é uma característica própria
do nacionalismo promovido pelo Estado. O divórcio entre as memórias sociais e a
historiografia difundida pelos media oficiais traduz-se pela imposição do
esquecimento. Isso significa que o consenso visado é trabalhado em muito pouco
tempo, inviabilizando toda a negociação que o esquecimento forçado pela situação
colonial havia estimulado, favorecendo a emergência da consciência histórica. O
esquecimento imposto, entretanto, paradoxalmente reforçou diversas memórias e o
determinismo do processo histórico, ancorado no par classe-raça, não conseguindo
fazer acreditar a classe como objeto político natural do sistema de
representações sociais, vem incidindo sobre a questão étnica. Os regimes
coloniais tiveram mais sucesso com o investimento no conceito de raça, à medida
que a idéia do caráter natural da identidade coletiva étnica, transmitida pela
via da filiação, tornou-se o elemento central de estruturação das forças
políticas em competição com os recursos, cujo acesso o Estado controla. Nos dois
casos, a dúvida sobre a natureza do sucesso ou do fracasso persiste, uma vez que
as demagogias políticas centradas na classe ou na raça parecem não ter impacto
real senão sobre os discursos e as práticas no âmbito de um espaço estatal. A
consciência de que a classe constitui uma clivagem de acesso ao poder e aos
recursos provocou nas culturas populares urbanas de várias sociedades
pós-coloniais um comportamento compulsivo na busca do essencialismo identitário
atrelado às memórias, muitas vezes congeladas em um espaço significativo de
tempo. A fim de proteger grupos e comunidades do totalitarismo do historicismo
ideológico do regime colonial ou o do socialismo real, as memórias muitas vezes
deixaram de constituir processos culturais para se tornarem relíquias.
As sociedades que giram em torno de suas tradições,
arquivadas em textos, artefatos e imagens, presumivelmente herdadas de seus
ancestrais, trabalham sua continuidade histórica recuperando uma cadeia de atos
necessários que supõe a existência de verdadeiros e falsos atores sociais e
políticos. Há sociedades que herdam o patrimônio de saberes e fazeres em virtude
dos direitos "naturais" de nascimento e de filiação, também há as que usurpam
essa herança ou ainda as que a negam. Considerando-se essas categorias, a
contaminação da herança cultural acumulada significaria, de um dado ponto de
vista, uma perda de identidade e o risco de dilapidação do patrimônio. Assim, a
experiência do tempo seria uma resistência ao tempo, uma luta para preservar
intacta a herança ancestral. O tempo é vivido como obstáculo a superar, no
esforço de preservação dessa herança, uma vez que as mudanças instauram o risco
de enfraquecimento da identidade e de dissolução da sociedade sob o efeito do
tempo. Trazer o passado preservado ao presente seria uma tentativa de anulação
do efeito do tempo. Para outras, entretanto, o tempo é uma experiência do
vir-a-ser social e a sociedade estrutura-se em um processo permanente de tomada
de consciência coletiva e de construção de seu patrimônio cultural. Nesse
contexto, a tradição perde sua especificidade e é vivida apenas como um dos
componentes da cultura, alimentada por diversas mestiçagens com sociedades tanto
contemporâneas como ancestrais, próximas e distantes, ou seja, em situação
transterritorial.
É, portanto, nesse processo que se coloca a questão das
convergências e diferenças culturais e sua dimensão política. A diferença, que
tem sua fonte em uma distinção culturalmente dada, assegura a possibilidade de
comunicação e torna possível o político, uma vez que uma comunidade, concebida
como unidade perfeita de indivíduos idênticos em um sistema de auto-gestão, não
teria necessidade do outro nem possibilidade de comunicação com o outro. Se a
realidade política de uma comunidade estrutura-se em torno de uma representação
sócio-cultural que lhe confere especificidade, no sistema contemporâneo das
representações, uma representação é relativa em relação a outras, em relação à
dos outros. Sendo assim, a discussão sobre os conceitos (entre outros que
incluam a questão da convergência e das diferenças culturais) de classe, raça,
etnia, e sua constituição em atores políticos virtuais a serviço dos mecanismos
ideológicos de poder constitui-se em um pertinente objeto de pesquisa.
Este trabalho situa-se, pois, no âmbito dessa reflexão, e
busca, na análise das narrativas de Patrick Chamoiseau (Martinica) e Ariano
Suassuna (Pernambuco), avaliar a extensão desse construto teórico no processo de
identificação cultural de sociedades pluriétnicas em situação pós-colonial sob
novas formas de imperialismo, ainda que menos visíveis. A opção pela região do
Grande Caribe baseia-se nos conceitos de região que Édouard Glissant desenvolve
em Introduction à une poétique du divers: "Ce que je vois, aujourd'hui, c'est
que les continents 's'archipélisent', du moins du point de vue d'un regard
extérieur. Les Amériques s'archipélisent, elles se constituent en régions
par-dessus les frontières nationales. Et je crois que c'est un terme qu'il faut
rétablir dans sa dignité, le terme de région. L'Europe s'archipélise.
Les régions linguistiques, les régions culturelles,
par-delà les barrières des nations, sont des îles, mais des îles ouvertes, c'est
leur principale condition de survie" (GLISSANT, 1996, p. 44). Trata-se ainda de
discutir políticas culturais e construir sobre o assunto uma abordagem teórica
clara e científica, articulando conceitos, como a negritude de Aimé Césaire, a
crioulização de Édouard Glissant, a crioulidade de Patrick Chamoiseau, Raphaël
Confiant e René Depestre, a transculturação de Fernando Ortiz e Angel Rama, o
hibridismo de Nestor García Canclini, a antropofagia de Oswald de Andrade, a
mestiçagem de Gilberto Freire, o tropicalismo de 68 e o armorialismo de Ariano
Suassuna, que pontuam a discursividade latino-americana em busca de sua função
na sociedade ocidental.
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página]
# Marcos Falchero Falleiros - Ingenuidade e brasileirismo em Manuel Bandeira
O estado de
espírito de uma história infantil a que a obra lírica de Manuel Bandeira dá
expressão aparece bem representado em Lira dos cinqüent’anos, no poema de 1943,
“Testamento”, cujo perfil de discurso público se mostra travado no início, para
a seguir, nos versos finais de cada estrofe, desembestar sua gagueira
constrangida como que auxiliado pelo achado da rima, que apressa o andamento
final, também com a ajuda do fluxo sintático entre estes últimos versos, fazendo
com que seu desfecho se assemelhe à vazão coletiva de um responso – embalo que
leva a um comprometimento “fatal” na última estrofe. Imitado dos versinhos que
um mendigo declamava para o pai do poeta como pagamento pela esmola, o poema
traz tal movimento sensivelmente na segunda e quinta estrofes:
Testamento
O que não tenho e
desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros – perdi-os...
Tive amores – esqueci-os.
Mas no
maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras de minha terra.
Por
outras terras andei.
Mas o que ficou marcado,
No meu olhar fatigado,
Foram
terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive
um filho de meu.
Um filho! ... Não foi de jeito ...
Mas trago dentro do peito
Meu
filho que não nasceu.
Criou-me desde eu menino
Para
arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde ...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou
poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não
faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta
em que não lutei!
Entre camicases e nazismo, no ritmo do poema Bandeira
revela seu amor às formas populares, como no uso freqüente dos versinhos das
redondilhas e da circularidade reiterativa dos versos iniciais no final de seus
poemas, por exemplo, em “Vulgívaga”, em “Vou-me embora pra Pasárgada”, e tantos
outros. Mas, no movimento da forma, também banha a obra o tema do
vivido-a-triste-sina sob o aspecto de uma apresentação ao público, que, na
sonoridade declamatória da formulação, sugere, mesmo sem construção imagética, a
cena receptora de um auditório, mais nitidamente do que o que está sempre
implícito à natureza do fingimento poético na lírica. Na inauguração da obra, em
1917, com “Epígrafe” de Cinza das horas:
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como
os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Em “Vulgívaga”, de Carnaval, 1919:
Fui de um ... Fui de outro ... Este era médico ...
Um, poeta ... Outro, nem sei mais!
Tive em meu leito enciclopédico
Todas as artes liberais.
Em Estrela da manhã, de 1936, o poema homônimo:
Três dias e três noites
Fui
assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário.
Ainda nessa obra, no poema “Oração a Nossa Senhora da Boa
Morte”:
Fui despachado de mãos vazias!
Dei volta ao mundo, tentei a sorte.
No tom humilde do relato, que ecoa sempre o modo popular do
náufrago da vida, tendo sempre para ele alguma solidariedade toda-ouvidos, não
há tragédia grega de um destino indecifrável, mas a familiaridade natural aquém
de uma direção histórica consciente de suas possibilidades de intervenção como
sujeito racional sob viés iluminista. Nessa imagética popular, várias
configurações são possíveis: a festa escolar do menino bem-nascido posto no
palco, o discurso de confidência no lupanar, o choro boêmio no bar do porto -
são imagens que aderem conciliatoriamente a um mundo sempre-o-mesmo que as
acolhe com solidariedade resignada. Nenhuma tragicidade há nessas misérias que
as obscureça com o travo da contradição. O lirismo “menor” vem de uma
subjetividade pouco densa na afirmação contra o mundo, e nada acuada naquilo que
possa ser o exílio de sua acentuada individualização biográfica.
A claridade de sua limpidez moderna recupera em seu choro
lírico conotações remotas das lágrimas de Odisseu. Choro de criança, sem o peso
de dramaticidade sinistra e psicologia escura de depressivos “desterros
transcendentais” - para usar a expressão com que Lukács em Teoria do romance deu
como condição e situação histórico-filosófica para o surgimento do gênero.
A fonte popular é o elemento fundamental para esse
processo, tanto quanto o mundo de aconchego onde seu jorro é colhido. A
resolução feliz do complexo familiar, a amizade terna do pai aninharam a
infância do poeta que iria encontrar nas raízes de seu lirismo o país fabuloso
de Pasárgada. Dos seis aos dez anos, Bandeira viveu no Recife, onde, da primeira
meninice, cantada em “Infância”, floresceu, segundo suas palavras, “ o conteúdo
inesgotável de emoção” que o adulto reconheceria na “emoção de natureza
artística”.
A casa de seu avô como capital e a Rua da União, Rua da
Aurora, Rua da Saudade, Rua Formosa e Rua Princesa Isabel eram a sua Tróada,
conta o poeta. Foram nesses quatro anos, cuja densidade espantosa deixou ao
resto da vida adulta a sensação de vazio, que, no Recife, “com pequenos
veraneios nos arredores”, como ele relata em Itinerário de Pasárgada,
construiu-se a sua mitologia: “e digo mitologia porque os seu tipos, um Totônio
Rodrigues, uma Dona Aninha Viegas, a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de
meu avô Costa Ribeiro, têm para mim a mesma consistência heróica das personagens
dos poemas homéricos”.
No tempo em que a poesia ocupa as primeiras páginas de
jornais, Bandeira aprendeu com o pai que “a poesia está em tudo”. Seus primeiros
contatos com as formas líricas, sob letras e falas de seu pequeno mundo,
ocorreram com os contos de fadas, as histórias da carochinha, as cantigas de
roda, as trovas populares. Ali, no país fabuloso, ouviu os versos de um mendigo
que lhe deixaram como herença a forma e o corpo de “Testamento”, entre tantos
outros versos que acalentaram a infância do menino feliz. Sem lembrar a relação
desses versos com “Testamento”, entretanto Bandeira diz em Itinerário de
Pasárgada:
“Lembro-me de uns cujo autor até hoje ignoro. Ouviu-os meu
pai de um sujeito que um dia, no alpendre de uma casinha no interior de
Pernambuco, lhe veio pedir esmola. Meu pai, que gostava de brincar, disse-lhe:
‘Pois não! Mas você antes tem de me dizer uns versos’. Ora, o nosso homem não se
fez de rogado e saiu-se com esta décima lapidar, cujo primeiro verso,
estropiado, mostra que a estrofe não era de sua autoria:
Tive uma choça, se ardeu-se.
Tive
um só dente, caiu.
Tive uma arara, morreu.
Um papagaio, fugiu.
Dois tostões
tinha de meu:
Tentou o diabo, joguei-os.
E fiquei sem ter os meios
De
sustentar os meus brios.
Tinha uns chinelos ...
Vendi-os
Tinha uns amores ... Deixei-os. ”
O ponto final de quase todos os versos sugere o pensamento
que se articula com dificuldade em razão de um misto de condição simplificada de
linguagem e constrangimento diante do “patrão”. Do mesmo modo articula-se a
assimilação que Bandeira faz deles em “Testamento”.
Assim, ao assimilar essa forma, a poesia “menor” de
Bandeira faz figurar seu encontro com a poesia alta do Ocidente no século 20 em
sua complexidade de “abstrações generosas”, criando voz própria em diálogo com
elas, posta humildemente em sua situação inferiorizada de periferia, em uma
civilização recente e colonizada, dependente e postiça, mas de cuja situação
retira a força da viçosidade e uma autencidade ingênua.
Mas sua individualidade, no recolhimento radical da cerca
biográfica, dá prova de ter alcançado voz brasileira através da recepção em
primeira plana com que a cultura do país agracia sua obra. Assim, a felicidade
da expressão em Bandeira não permite diagnosticá-la apenas com os clichês de uma
filosofia generalizante do tipo “os espinhos da vida”, o que significaria
interpretá-la por sua exterioridade, sem encontrar nela as relações históricas
entre estilo e ideologia, para finalmente entregá-la ao kitsch sentimentalão, de
que cedo o poeta soube se livrar.
O alcance e a expressão da voz brasileira que sua poesia
configura, são aspectos que envolvem uma dinâmica muito mais complexa que as
categorias - já de si imprecisas - do “ingênuo” e do “sentimental” em Schiller,
ou - também pertinentes - as de “homérico” e “bíblico” em Auerbach, ou ainda as
implicitamente elaboradas por Benjamin, quando, em O narrador, a partir da
teoria do romance de Lukács e de sua concepção de “forma do desterro
transcendental”, cria a contraposição entre “narrativa oral” e “romance”,
deixando àquela o sentido da ingenuidade. Entretanto, podemos ouvir as
observações de Schiller em Poesia ingênua e sentimental para aproximá-las da
conceituação de poesia ingênua que pode caracterizar o resultado
histórico-estético de Manuel Bandeira:
“Alguém que observa em si a impressão causada por poesias
ingênuas e seja capaz de nela separar a porção que cabe ao conteúdo, achará essa
impressão jovial, sempre pura, sempre calma, mesmo em objetos bastante
patéticos; em objetos sentimentais, será sempre algo séria e tensa. Isso se dá
porque nas formas de expressão sentimental, ao contrário, temos de unir a
representação da imaginação a uma Idéia da razão e, assim, sempre vacilamos
entre dois estados diferentes”. [topo da
página]
#
Maria Antonieta Pereira - Narrativas do Cone Sul
Hay cierta
ventaja, a veces, en no estar en el centro. Mirar las cosas desde un lugar
levemente marginal.
Ricardo Piglia
Esse lugar, teoricamente, tem muitas vantagens (...) nem
todos os produtos periféricos são periféricos.
Silviano
Santiago
Em "A trama celeste" (BIOY CASARES, 1995), o narrador
informa o desaparecimento do capitão Irineo Morris e do médico Carlos Alberto
Servian, ambos funcionários da aviação argentina. Logo a seguir, transcreve "As
aventuras do Capitão Morris", onde estão narradas as incríveis peripécias do
aviador que, por acidente, penetra noutra dimensão, num mundo paralelo onde
Cartago venceu Roma, fato que define a existência de uma Buenos Aires diferente
da que conhecemos. A partir dessa hipotética mutação histórica, o conto funciona
como uma reflexão paradigmática sobre as categorias nacional/estrangeiro.
Segundo o narrador, "Irineo é tranqüilamente argentino e ignora e desdenha por
igual todos os estrangeiros. Até em sua aparência é tipicamente argentino
(alguns o acreditam sul-americano)". Entretanto, ao despertar ferido no Hospital
Militar de Buenos Aires, Morris é considerado estrangeiro, talvez uruguaio,
provavelmente espião. O piloto que tanto desdenhava os estrangeiros admite ter
sofrido, na pátria, "o desamparo que sentem os que visitam outros países" e,
para não ser condenado à morte, assume a nacionalidade uruguaia, explicando-se:
"Me consolava pensando que para mim um uruguaio não é estrangeiro." Ao final do
relato, o narrador considera que há infinitos mundos paralelos, embora todos os
viajantes sempre cheguem a Buenos Aires. Apesar disso, o destino de Morris acaba
sendo refugiar-se no Brasil.
O conto de Bioy Casares problematiza certas questões de
identidade nacional típicas do Cone Sul. Isso se torna claro não só quando se
mostra a possibilidade de um argentino ser considerado estrangeiro em seu
próprio país, mas também quando o protagonista admite dividir sua nacionalidade
com os uruguaios ou ainda quando ele encontra refúgio numa fazenda brasileira.
Noutras palavras, à medida que o texto indica a existência de uma cultura
rioplatense que irmana argentinos, uruguaios e brasileiros, ele também considera
o Brasil como espaço de diferença radical. No mesmo movimento em que o Uruguai é
pensado como uma espécie de província argentina, a estância brasileira é tão
estrangeira que oferece asilo a um portenho fora-da-lei. Negando e reconhecendo
os limites da nação, o conto revela como a mesclagem transnacional inutiliza
certas demarcações geográficas, ao mesmo tempo em que erige e contesta as
fronteiras culturais.
As questões identitárias dessa região são também
tematizadas no romance Dinheiro queimado (PIGLIA, 1998) cuja trama baseia-se
numa história real, ocorrida entre 27 de setembro e 6 de novembro de 1965,
quando uma quadrilha assalta um banco na província de Buenos Aires. Composto por
Malito, Gaucho Dorda, Cuervo Mereles e Nene Brignone, o bando desenvolve um
audacioso plano de fuga cujo roteiro passa por Montevidéu, inclui a travessia
para o Brasil e pretende terminar em Nova York.
Ao longo do relato, os cruzamentos rioplatenses voltam à
tona, seja quando a cultura gauchesca é evocada através do personagem Dorda,
seja quando esse figurante atribui ao portenho Nando o rosto de um charrua
uruguaio. Nesse relato, mais uma vez, o Brasil figura como território
estrangeiro em oposição a uma América Hispânica regida pelas leis da semelhança.
Tal como no conto de Bioy Casares, os bandidos estarão a salvo se conseguirem
penetrar no sul do país. Nesse caso, do ponto de vista da América Espanhola, o
Brasil passa a configurar o lugar da fuga e do exílio - por um lado, permite a
sobrevivência daquele que está à margem da sociedade, por outro, colabora
involuntariamente para seu desterro. Além disso, o país vai sendo referido como
um espaço utópico, a partir do qual os assaltantes poderiam acessar o grande
sonho norte-americano do poder e da riqueza, através da máfia porto-riquenha de
Nova York. As breves alusões ao Brasil vão, contudo, transformando as utopias em
atopias: evocado por traços que o denotam como espaço de prazer e liberdade, o
país se torna cada vez mais distante e fantasioso. Assim, ir à boate num carro
de chapa brasileira ou tomar cerveja brasileira configuram a remissão metonímica
ao local que poderia servir de trampolim para o centro do mundo, mas que jamais
será alcançado pelos fugitivos.
Quando Ricardo Piglia esteve no Brasil para o lançamento de
Dinheiro queimado, perguntei-lhe porque, nessa obra e no conto de Bioy Casares,
os bandidos sempre procuravam fugir para o Brasil. O escritor riu, como se eu
tivesse contado uma piada, mas não vacilou em responder:
Porque há outra língua, não? Porque o país está na
fronteira conosco, mas tem outra língua. E dá a sensação de ser outro mundo,
outra cultura. Não é a mesma coisa que ir para o Uruguai, para a Bolívia ou para
o Peru. A outra língua é muito atraente como um universo de diferença pura,
mesmo sendo uma língua próxima como é o português. E há outra coisa que me
parece importante, no Brasil, que é a presença da cultura afro, da cultura
negra, que também o converte na imagem do diferente, para o Rio da Prata. É como
uma viagem no tempo, uma viagem a território místico, de aventuras, com um
imaginário múltiplo. (PIGLIA, 1999. p. 63)
Na fala do escritor argentino, a diferença idiomática seria
o fator preponderante para se distinguir o que é estrangeiro. De tal forma isso
é ressaltado que Uruguai, Peru e Bolívia são citados como uma espécie de segunda
pátria. A radicalidade da diferença lingüística desdobra-se na cultura negra do
Brasil, por sua vez traduzida pelas idéias de viagem, multiplicidade,
imaginação. Nessa mesma entrevista, Piglia considerou que o Brasil poderia ser
visto como “um lugar onde se vai buscar uma espécie de essência
latino-americana” (1999. p. 64). Curiosamente, no imaginário brasileiro, muitas
vezes a “essência latino-americana” só pode ser encontrada na América Espanhola,
o que nos leva a pensar que, sob tal rubrica, existe apenas o espaço vazio do
desejo que convoca a todos nós, mercosulinos, a buscar na linguagem do outro a
narrativa de nós mesmos.
Em um dos mais importantes de seus contos, ao suspeitar que
o Aleph da Rua Garay era falso, Jorge Luis Borges também se refere ao Brasil de
forma peculiar:
Por 1867, o capitão Burton exerceu o cargo de cônsul
britânico no Brasil; em julho de 1942, Pedro Henríquez Ureña descobriu numa
biblioteca de Santos um manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o
Oriente a Inskandar Zu al-Karnayn, ou Alexandre Bicorne da Macedônia. Em seu
cristal refletia-se o universo inteiro. Burton mencionava outros artifícios
semelhantes - o sétuplo cálice de Kai Josru, o espelho que Tarik Benzeyad
encontrou numa torre (Mil e Uma Noites, 272), o espelho que Luciano de Samosata
pôde examinar na lua (História Verdadeira, I, 26), a lança especular que o
primeiro livro do Satiricon de Capella atribui a Júpiter, o espelho universal de
Merlin, “redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro” (The Faerie Queene,
III, 2, 19) (...)
(BORGES, 1982. p.127-128)
É sintomático o fato de Borges situar no Brasil, numa
biblioteca de Santos, um manuscrito que trata do Aleph e que, nesse sentido,
utiliza uma simbologia tão cara à sua obra, naquilo que ela significa enquanto
resgate arqueológico-cultural. Conjugando símbolos típicos do Oriente a datas,
nomes e títulos precisos, o conto borgiano instiga a memória arquetípica do
leitor e, assim, forja um cenário familiar e estranho, próprio à imagem
fantástica do Aleph. A localização do manuscrito de Burton em terras
brasileiras, associada à descrição minuciosa de objetos encantatórios
pertencentes a culturas ancestrais, sugere que o país participa de um rol de
imagens fabulosas, longínquas e enigmáticas, fato que confirma sua condição de
espaço estrangeiro.
No entanto, uma visão bem diferente do Brasil é apresentada
no conto “O preço do amor” (PIGLIA, 1989). Nesse relato, o personagem Esteban
reclama com Adela o fato de tê-la visto na companhia de um brasileiro “safado”,
cuja nacionalidade pôde ser deduzida pelo jeito do homem andar na rua. Remetendo
a uma questão real do cotidiano - de fato, o modo de andar de brasileiros e
argentinos é muito diferente - Esteban aborda também as pequenas rivalidades
freqüentemente presentes nas relações Brasil/Argentina. Nessa mesma perspectiva,
desenvolve-se o romance Bernabé! Bernabé! (MATTOS, 1995) onde se discute a
configuração da nacionalidade uruguaia, a partir dos confusos episódios de
Salsipuedes e Yacaré-Cururú, nos quais, respectivamente, são assassinados os
índios charruas e Bernabé Rivera. Ao longo do relato não se poupam críticas ao
Império Brasileiro e à Confederação Argentina, responsáveis, segundo o narrador,
pela apropriação de terras e rebanhos uruguaios. No Brasil, discussão semelhante
é proposta pelo romance A grande arte (FONSECA, 1990), ao apresentar o índio
boliviano Camilo Fuentes, cujo pai teria sido morto na fronteira por um
brasileiro. Indignado com a usurpação de território boliviano pelo Brasil e por
outras razões ainda mais obscuras, Fuentes rejeita solenemente os brasileiros.
Se a literatura hispânica da região percebe o Brasil como o
mais estrangeiro dos países do Cone Sul – e, muitas vezes, como um país
imperialista - do ponto de vista brasileiro todas as nações latino-americanas
são, lingüística e culturalmente, diferentes dele. Além disso, o fenômeno da
estraneidade encontra-se dentro do próprio território nacional. Convivendo com
intensa mistura étnica e cultural, o país desenvolve um olhar habituado à
dessemelhança, ao mesmo tempo em que se sabe incapaz de conhecer profundamente a
si mesmo.
As grandes extensões territoriais, as diversidades
regionais e as dificuldades econômicas contribuem para que a identidade nacional
vacile, ao longo das vastas fronteiras geográficas, mesclando-se a práticas e
linguagens típicas da América Hispânica. Contudo, a consciência de sua própria
diferença é tão intensa que, no Brasil, expressões do tipo “literatura
latino-americana” freqüentemente funcionam como sinônimo de “literatura de
língua espanhola”, não servindo, portanto, para nomear a própria literatura
brasileira sobre a qual, diga-se de passagem, não temos dúvida de que se
localiza na América Latina. Num gesto paradoxal, usamos com freqüência e
relativa facilidade a língua espanhola escrita e falada e, de comum acordo com
nossos vizinhos, inventamos o portunhol, idioma da fronteira feito de mesclagens
e retalhos de sentido que instaura uma permanente atividade tradutória e
cooperativa no Cone Sul.
Além das trocas culturais realizadas nos espaços
fronteiriços, a literatura e a teoria literária do Brasil discutem e adotam
vários conceitos propostos pelo pensamento crítico do Cone Sul, especialmente da
Argentina e do Uruguai. Algumas concepções veiculadas amplamente pela ficção e
pela crítica borgianas foram de tal forma apropriadas pela poética e pela
ensaística de autores brasileiros que hoje fazem parte do acervo comum da
cultura nacional. O exemplo mais significativo dessa interação se encontra na
obra do escritor brasileiro Silviano Santiago. Leitor de Borges desde os anos
50, mais tarde, ele fará a mesclagem do aleph com as noções oriundas do debate
desenvolvido por John Barth sobre a exaustão da literatura e com os conceitos
veiculados pela desconstrução proposta por Derrida. São dessa época as reflexões
que levaram a dois de seus mais importantes ensaios - “Eça, autor de Madame
Bovary” e o “Entre-lugar do discurso latino-americano”. Em ambos os textos,
Santiago utiliza o conceito borgiano de eleição dos precursores, colaborando
para que a crítica literária brasileira desenvolvesse reflexões sobre a tradição
literária do país, num contexto em que a proposta de ruptura da Modernidade não
era mais uma força, mas uma forma canonizada. Na ensaística de Santiago, a
desconfiança antropofágica, que indica o entre-lugar do discurso como um espaço
de combate simbólico, expressa a mesma perspectiva presente no conceito de
mirada estrábica de Ricardo Piglia. As intervenções de ambos os escritores
caracterizam-nos como cidadãos transnacionais, cujas preocupações vão
delimitando uma região que não se constitui pelo grande espaço chamado América
Latina e tampouco se limita às fronteiras nacionais. O estrabismo do olhar e o
entre-lugar do discurso constituem posturas ideológico-estéticas próprias de um
contexto em que a poética de Borges, inventora de origens e de alianças
culturais, colabora para o desenvolvimento do conceito de Sul enquanto espaço de
mesclagens, conflitos e rearticulações discursivas, fato que indiretamente
tematiza a própria idéia de Cone Sul. Descendentes de uma tradição ao mesmo
tempo européia e indígena - e, no caso do Brasil, também africana - Santiago e
Piglia desenvolvem uma memória textual seletiva e dialógica, em constante debate
com a sombra da crítica e da releitura que a sustentam. A consciência de
ultrapassagem das fronteiras nacionais apresenta-se no uso do comentário e da
citação, em que pastiche e paródia permitem a apropriação da memória alheia
européia ou norte-americana.
Nesse sentido, ambos os autores reescrevem fatos decisivos
da História nacional ou regional, abordados dentro da estratégia
dessacralizadora de uma perspectiva do cotidiano, a partir da tematização de
aspectos biográficos, autobiográficos ou relativos à historiografia literária.
Enquanto narrativa que pretende ressignificar a experiência de escritura, as
obras de Piglia e Santiago permitem o surgimento do ponto de vista dos vencidos
e, nesse sentido, reelaboram os rastros de narrativas recalcadas
transformando-os em espaço de emergência de outras possibilidades identitárias.
Assim, os autores retomam os controvertidos temas da traição política, do
homoerotismo, da loucura, da velhice, do anarquismo, da prostituição feminina e
masculina, do escritor fracassado, do ladrão de palavras, do censor, do
pervertido e do assassino. Nesse contexto, as obras apresentam a pátria como uma
construção de linguagem que, recomeçando indefinidamente, por isso mesmo suscita
os diálogos supranacionais que, de uma forma ou de outra, sempre estiveram
presentes no imaginário do Sul.
Entretanto, como lembra Ricardo Piglia, não podemos pensar
a “América Latina com um modelo da nação futura a la Bolívar, todos unidos etc.”
(1997). O reconhecimento das diferenças nacionais e das convergências de
interesses supranacionais exige o investimento em políticas regionais que
reforcem o comércio de signos já existente no Cone Sul. Herdeiros de trocas
significativas - como as desenvolvidas entre Ángel Rama e Antonio Candido, que
resultaram em importantes teorizações sobre o caráter periférico das literaturas
latino-americanas (PIZARRO, 1993. p. 249) - escritores e teóricos desenvolvem
novas reflexões sobre o Sul do continente, de forma a desdobrar a recusa do
binarismo Norte-Sul, através da invenção de identidades regionais. Entre o
global e o local, a idéia de Cone Sul aos poucos vai se definindo como uma
estratégia discursiva que favorece a migração de linguagens, idiomas e sentidos
e, assim, permite formas de pertencimento a um espaço “de significação
descentrada, aberto a modalidades distintas de atuação narrativa” (MIRANDA,
1998).
Talvez as mais interessantes decorrências dessas propostas
identitárias sejam os conceitos elaborados na região, para se pensar a região e
o mundo. Para isso, concorrem os estudos culturais de Beatriz Sarlo, o conceito
de nosotros de Hugo Achugar, o não-lugar da literatura de Eneida Maria de Souza
e a retomada do conceito de margem, por Silviano Santiago e Ricardo Piglia.
Enquanto “espaço de escrita e reflexão que é, na sua excentricidade histórica e
geográfica, metonímia da condição sócio-cultural periférica no processo de
mundialização da economia” (SANTIAGO, 1999) o conceito de margem desenvolvido
por Santiago remete a um lugar preciso, facilmente identificável por sua
exclusão dos grandes centros europeus e norte-americanos. Contudo, ao mesmo
tempo, a idéia também se refere a um lugar atópico, cujo estado de virtualidade
configura a potência necessária para desencadear uma produção teórico-ficcional
pertinente. Quanto a Ricardo Piglia, sua concepção de margem procede de uma
reflexão sobre as Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino,
reduzidas a cinco pela morte do autor. Pergunta Piglia: “Qual seria a sexta
proposta não escrita para o próximo milênio?
E qual seria essa proposta escrita a partir de Buenos
Aires, escrita a partir desse subúrbio do mundo?” E responde: “Me parece que a
proposta para o próximo milênio que eu acrescentaria às de Calvino seria [a]
idéia de deslocamento e de distância (...), a mudança de lugar. Sair do centro,
deixar que a linguagem fale também na borda, no que se ouve, no que vem de
outro.” (PIGLIA, 1999). As reflexões de Piglia, no mesmo gesto, suplementam as
propostas de Calvino e praticam aquilo que propõem: definem a margem a partir da
margem. Essa linguagem descentrada e performática talvez seja a principal
contribuição dos escritores-críticos do Cone Sul, no sentido de se pensar a
literatura do próximo milênio.
Referências
bibliográficas
ACHUGAR, Hugo. Integración y
escenarios culturales. In: ACHUGAR, Hugo,
CAETANO,
Gerardo (org.). Mundo, región, aldea. Montevideo: Trilce, 1994.
BIOY CASARES, Adolfo. La trama celeste. In: CAPANNA, Pablo.
El cuento argentino de ciencia ficción - antología. Buenos Aires: Ediciones
Nuevo Siglo, 1995.
BORGES, Jorge Luis. O Aleph. Trad.
de Flávio J. Cardoso. Porto Alegre: Globo, 1982.
FONSECA, Rubem. A grande arte. 12. ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
MATTOS, Tomás de. Bernabé, Bernabé!
2. ed. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 1995.
MIRANDA, Wander Melo. Local/global. São Paulo: Fundação
Memorial da América Latina, 1998.
PIGLIA, Ricardo.
Prisão perpétua. São Paulo: Iluminuras, 1989.
PIGLIA,
Ricardo. Dinheiro queimado. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
PIGLIA, Ricardo. Entrevista realizada por Maria Antonieta
Pereira. Estado de Minas. Belo Horizonte, 19 jul. 1997. Caderno Pensar.
PIGLIA, Ricardo. Entrevista com Ricardo Piglia. In:
PEREIRA, Maria Antonieta, SANTOS, Luis Alberto B. Santos. Palavras ao sul - seis
escritores latino-americanos contemporâneos. Belo Horizonte: Autêntica/FALE,
1999.
PIGLIA, Ricardo.
www.clarin.com.ar./diario/especiales/viva99.
PIZARRO,
Ana. Angel Rama: a lição intelectual latino-americana. In: CHIAPPINI, Lígia,
AGUIAR, Flávio Wolf de. (orgs.). Literatura e História na América Latina. São
Paulo: Edusp, 1993.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura
nos trópicos - ensaios sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva /
Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1978.
SANTIAGO, Silviano. Silviano Santiago, no corpo da escrita.
Entrevista realizada por Maria Antonieta Pereira e Cleide Simões. Minas Gerais.
Belo Horizonte, n. 1168, ano XXIV, 3 ago. 1991. Suplemento literário.
SANTIAGO, Silviano. Entrevista realizada por Maria
Antonieta Pereira. Minas Gerais. Belo Horizonte, n. 53, nov. 1999. Suplemento
literário.
SANTIAGO, Silviano. Texto inédito. 1999.
SOUZA, Eneida Maria de. O não-lugar da literatura. In:
VASCONCELOS, Maurício Salles, COELHO, Haydée Ribeiro. 1000 rastros rápidos -
cultura e milênio. Belo Horizonte: Autêntica/FALE, 1999. [topo da
página]
# Maria Bernadette Porto - Babel
revisitada: a construção de uma poética das línguas nas Américas
Constituindo-se
como um objeto privilegiado de estudo para todos os que se interessam pela
linguagem, aos olhos de Paul Zumthor (1997), a narrativa bíblica de Babel pode
ser vista como um texto aberto, pleno de virtualidades que foram retomadas e
reinterpretadas ao longo da história, sugerindo as idéias de confusão,
inacabamento, pecado de orgulho, punição divina, impossibilidade de comunicação,
entre outras. Em nossos dias, muitos congressos, revistas e publicações resgatam
alguns aspectos deste mito que aponta para uma pluralidade de direções.
Para nós, que já construímos, no decorrer de muitos anos de
pesquisa, certa bagagem de reflexões em torno das chamadas literaturas
francófonas, no seio das quais, dotados de uma consciência lingüística muito
apurada, os escritores são condenados a pensar a língua (GAUVIN, 1996, p. 7), a
lembrança de Babel nos parece muito enriquecedora, sugerindo promessas
interessantes de futuras investigações. Todavia, ao invés de a encararmos sob a
ótica do pessimismo e da negatividade, preferimos considerá-la, a exemplo de
Octavio Paz (1991), através de sua aproximação com Pentecostes. Assim, trata-se,
antes de tudo, de se ter acesso à compreensão de outrem, para além das
diferenças, e de reconhecer que “cada um, sem deixar de ser o mesmo, é o outro”
(PAZ, 1991, p. 8). Distanciamo-nos, pois, da visão desfavorável da pluralidade
das línguas associada na Idade Média à punição de uma falta antiga (ZUMTHOR,
1997, p. 91) e que, ainda na contemporaneidade, foi vivenciada enquanto
dilaceramento doloroso ou apelo à alienação em sociedades marcadas pelo processo
da colonização, onde se afrontavam a língua materna e a língua do colonizador.
Consciente de que, hoje, os autores escrevem na presença de
todas as línguas do mundo, Édouard Glissant sugere a riqueza da coexistência das
línguas no ato da escrita (GLISSANT, 1995, p. 84), o “imaginário das línguas”
sendo uma característica de nosso tempo. Já em pesquisas anteriores – e, em
particular, em ensaios em que nos detivemos nos chamados autores migrantes do
Quebec – pudemos verificar que mesmo o contato tenso de línguas representado, em
maior ou menor grau, nos textos analisados, assegura a sua criatividade. Além
disto, ainda que domine apenas um idioma – e aqui as análises de Derrida (1996)
e Régine Robin (1993) nos levariam a questionar se é possível possuir ou habitar
uma língua – nenhum autor pode escrever num idioma de modo monolingue (GLISSANT,
1995, p. 84). Isto porque para escrever é preciso que o escritor descubra a
estranheza no seio de sua própria língua, explorando os caminhos nem sempre
familiares e até imprevisíveis de seu idioma.
Inspirando-nos sobretudo nas análises de Octavio Paz
(1991), Jacques Derrida (1987) e Paul Zumthor (1997), buscaremos na referida
narrativa bíblica pontos de apoio para uma breve apresentação de nossas
primeiras reflexões que, por ocasião do desenvolvimento de nosso projeto, se
orientarão no sentido do diálogo estabelecido entre obras das literaturas
quebequense, antilhana e brasileira. Tal diálogo demonstrará possivelmente que,
apesar das diferenças relativas à própria noção de “surconscience linguistique”
que afeta autores oriundos de jovens literaturas (GAUVIN, 1997, p. 6) – onde a
mesma é vivenciada de formas e em tempos diversos – é no próprio exercício da
Literatura Comparada que se dá a superação dos impedimentos decorrentes de
Babel. Lidas sob a inspiração de Pentecostes, as obras a serem estudadas
dialogam entre si, mesmo guardando suas opacidades particulares.
Em primeiro lugar, o desejo coletivo de “se fazer um nome”
que aparece no texto bíblico pode ser associado à necessidade imperiosa de se
afirmar uma identidade no âmbito de sociedades oriundas do sistema colonial. É
sabido que, como a torre de Babel, todo processo de construção identitária é
marcado pelo inacabamento. Sinal da incompletude própria da existência humana
(TODOROV, 1996, p. 100), o inacabamento aqui não se confunde com a noção de
fracasso. Fugindo à idéia de essencialismo, o processo identitário – sempre
presente nas “jovens literaturas” – constitui algo em aberto que supõe a
possibilidade de novos inícios. No que concerne a Babel, segundo Manganelli
(1989), a partir daí, tudo o que acontece ou existe está ligado à lei dos
recomeços. Isto parece insinuar a visão atual da idéia de origem que, na
concepção de autores como Régine Robin (1993) e Daniel Sibony (1991) é passível
de ser continuamente reinventada.
Outro aspecto do episódio babélico que remete a questões da
contemporaneidade refere-se à experiência vivida no espaço. Para Zumthor, a
mesma narrativa se organiza a partir de oposições espaciais: errância e fixação,
terra e céu, espaço dado e espaço a ser conquistado. Estão aí, em jogo, dois
eixos: a horizontalidade do lugar de estadia dos homens, de sua migração e de
sua dispersão final e a verticalidade da obra elevada até o firmamento (ZUMTHOR,
1997, p. 57). Segundo o mesmo autor, na narrativa de Babel verifica-se a
passagem do nomadismo à sedentarização: “eles encontram uma planície em Shinéar
e aí se instalam” diz o texto. Assim, o homem construiu para si mesmo um ponto
de referência no espaço e no tempo. Interessa-nos reconhecer nas pistas
apontadas por Zumthor alguns dados que podem contribuir para as reflexões em
torno dos autores nômades de nosso tempo, vistos como “homens traduzidos,
produtos das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais” (HALL, 1999,
p. 89). Apesar da oposição nômades/ sedentários não se colocar mais exatamente
da mesma maneira em nossos dias, uma vez que a própria noção de distâncias
espaciais tende a se tornar relativa e imprecisa, assim como as configurações
identitárias, admitimos, com ZUMTHOR (1997, p. 141) que, desconfiando das idéias
fixas e de toda espécie de limites, o nômade deixa-se levar pelo movimento e,
mais particularmente, pelo seu corpo que lhe dá a medida do universo. Ou, como
pensa Glissant, a errância se confunde com o apetite do mundo (1995, p. 96), com
a disponibilidade para o plural do Outro.
Explorando um pouco mais a questão espacial detectada por
Zumthor na narrativa bíblica, remetemo-nos agora a duas dicotomias privilegiadas
na obra de Glissant. A primeira, inspirada em Deleuze e Guattari, refere-se à
distinção raiz / rizoma, que, de alguma forma, corresponde às oposições unidade
/ dispersão, verticalidade/horizontalidade e fixação/nomadismo presentes no mito
de Babel. Única e orientada em direção às profundezas do solo, a raiz se
inscreve no eixo vertical, ao passo que o rizoma, raiz múltipla, se estende em
redes, na terra ou no ar, destituindo-se do caráter totalitário associado à raiz
(GLISSANT, 1990, p. 23). Índice dos contatos plurais com o Outro, o rizoma se
articula com a poética da Relação (GLISSANT, 1990), com a abertura para a
pluralidade de línguas e culturas, diferentemente da raiz, presa à sugestão de
monolinguismo. Vinculando-se a tal dicotomia, a oposição território/lugar
(GLISSANT, 1981) também pode ser evocada aqui para reler o mito de Babel à luz
da perspectiva espacial. Se o território – ligado ao fascínio do Mesmo – supõe a
existência de fronteiras remetendo ao monolinguismo, à raiz única e à concepção
de uma memória exclusiva vinculada à História, o lugar corresponde, antes, à
diversidade de histórias e memórias transversais nas quais são convocadas todas
as línguas e são mobilizadas todas as formas de expressão (ao contrário do
território que tende a privilegiar apenas a escrita).
No panorama quebequense atual, com o reconhecimento da
presença de vozes plurais relativas à literatura migrante que contribuiu para o
questionamento da identidade construída em torno da homogeneidade difundida
pelas elites canadenses francesas (BOUCHARD & LAMONDE, 1997), o mito de
Babel adquire particular relevância. Situados em Montreal, Babel em trânsito por
excelência (NOËL, 1992), muitos romances (de autoria de escritores migrantes ou
não), refletem os encontros e desencontros das línguas na cidade cosmopolita.
Necessário se faz esclarecer que, desde sempre, o estatuto
da literatura francófona produzida no Canadá (denominada, inicialmente,
“canadense de língua francesa” e, a partir da Revolução Tranqüila,
“quebequense”) passou pelas reflexões sobre a questão lingüística e pela defesa
da língua francesa. Ainda nos anos 60, a polêmica criada sobre o “joual” trouxe
à baila discussões sobre as próprias condições de existência desta comunidade
marcada pelo sistema colonial. Hoje, com a revisão dos conceitos de identidade
cultural, o debate sobre a(s) língua(s) no Quebec tende a ser colocado de outro
modo. Assim, deixando de ser visto como expressão de uma identidade baseada no
caráter homogêneo dos quebequenses, o francês tende a se constituir o lugar onde
se manifestam representantes de povos diversos, ou, como pensa Simon Harel,
diferentes estranhezas (HAREL, 1989).
No que diz respeito às reflexões produzidas no Quebec sobre
a tradução – decorrência babélica – podemos lembrar que elas constituem um campo
interessante de análise. Ressaltaríamos, de imediato, a representação desta
atividade no plano ficcional. Em muitas obras romanescas, a tradução remete a
situações constrangedoras vivenciadas, no cotidiano pelos quebequenses, em seu
próprio espaço onde “tudo fala inglês” (PORTO, 1997). Em romances mais atuais,
tal prática remete, antes de tudo, à evocação de Babel a partir da
multiplicidade de suas sugestões (em especial, a estética do heterogêneo e do
inacabamento).
No domínio da ensaística desenvolvida no Quebec, atribuindo
ao conceito de fronteira – lingüística e cultural – um lugar privilegiado em
suas análises, muitos autores destacam o papel da tradução no processo de
negociação contínua entre indivíduos e comunidades possuidoras de línguas e
culturas diversas. É o caso, por exemplo, do livro Le trafic des langues de
Sherry Simon (1994), em que, ao analisar romances quebequenses, a autora
reconhece uma poética da tradução.
Por sua vez, interessando-se pela posição dos escritores
francófonos situados no entrecruzamento de línguas, Lise Gauvin dá realce às
estratégias textuais de que se valem tais autores, entre as quais identifica a
tradução (em Réjean Ducharme, por exemplo). Lendo o texto francófono como espaço
lúdico propício aos jogos de língua e às metamorfoses, Gauvin o vê como
travessia de línguas onde se manifestam memórias de outros idiomas e a
possibilidade de uma outra língua marcada pelo heterogêneo – talvez a terceira
língua proposta por Antoine Berman no seu clássico estudo sobre a tradução
(1984), que, aos olhos de Régine Robin, “ao invés de fingir preencher a falta,
designa o horizonte da fissura” (ROBIN, 1993, p. 17). Em poucas palavras, Robin
nos remete à ambivalência babélica: se, por um lado, todo escritor deve
atravessar os limites de seu próprio idioma para criar um outro (mesmo dentro de
sua língua materna), ele se depara com a impossibilidade de superar a falta
inicial.
Como no contexto quebequense, graças ao reconhecimento da
construção de uma outra poética de línguas, fecundada pela lembrança de uma
Babel feliz – como propôs Barthes (BARTHES, 1973) – nas Antilhas de hoje foi
ultrapassada a tendência ocidental à valorização do confronto entre dois idiomas
(o francês contra o inglês, no caso do Quebec, e o crioulo contra o francês, no
contexto antilhano) (GAUVIN, 1997, p. 38). Desta forma, a relação problemática
dos antilhanos com a língua francesa – assinalada já na obra clássica de Fanon
Peau noire, masques blancs foi redimensionada. Como se sabe, os antilhanos não
se vêem mais nos célebres versos do poeta haitiano Léon Laleau: “Vocês conhecem
este sofrimento igual a nenhum outro, o de exprimir com palavras da França este
coração que me veio do Senegal?” (GAUVIN, 1997, p. 89). Também não se trata mais
de escrever contra o francês, como o fez René Depestre durante certo tempo na
sua tentativa de descolonizar tal idioma (GAUVIN, 1997, p. 89). O que importa é
admitir a apropriação da língua francesa assumida por poetas e escritores como
Raphäel Confiant, Patrick Chamoiseau, Ernest Pepin, entre outros. Trata-se de
fecundar a língua francesa a partir da ótica crioula.
É o que afirma a autora Simone Schwarz-Bart ao revelar que,
quando escreve, a língua crioula é o sol que ilumina, aquece e dá vida a suas
idéias em francês, a tal ponto que, sem o crioulo, a língua francesa ficaria de
certo modo como a Bela Adormecida no bosque à espera do Príncipe Encantado. Além
disto, para a mesma escritora, não se trata de traduzir o crioulo em francês – o
que supõe, a nosso ver, a lembrança das impossibilidades de Babel – mas de
admitir que, às vezes, no seu exercício diário, o crioulo está no não-dito e que
é preciso traduzir o não-dito da língua crioula – o que, apesar da opacidade –
garante a tradutibilidade do mesmo idioma (GAUVIN, 1997, p. 121).
Finalmente, é preciso dizer que em nossas reflexões sobre a
representação da língua em obras literárias produzidas nas Américas, não
poderíamos deixar de ressaltar o lugar de inscrição de nossa identidade. Embora
a noção de “surconscience linguistique” (GAUVIN) não se coloque mais para nós
como ocorreu no passado – quando a questão da identidade nacional passava pelas
discussões em torno da especificidade da língua portuguesa no Brasil – muitos
autores de hoje reservam, em seus textos, um espaço significativo para reflexões
sobre nosso idioma, assim como o fizeram em sua época, José de Alencar, Machado
de Assis, Olavo Bilac, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira,
entre outros.
Encarando a língua a partir da idéia da sua conquista
diária por farte de seus falantes, muitos escritores souberam fugir ao mito da
pureza do idioma legado, visto por muitos estudiosos como um tesouro herdado a
ser preservado (cf. PORTO, 1993). Deste modo, de forma poética, Nélida Piñon
realça os lamentos africanos que, “nos últimos quinhentos anos brasileiros”
foram incorporados ao português, tornando-o uma “língua morena” (PIÑON, 1980, p.
14-15), definido pela mesma autora em outro romance como uma “língua salgada,
com ritmos retumbantes” (PIÑON, 1987, p. 407). Embora possamos reconhecer nestas
passagens uma certa visão estereotipada da nossa identidade – associada à
sensualidade da raça negra – identificamos aí sobretudo a valorização do caráter
híbrido próprio da construção identitária.
Já na época do nosso Modernismo, denunciando o hiato entre
a língua escrita (defendida pelos gramáticos orientados pelo modelo da língua
portuguesa da metrópole) e a língua falada no Brasil, foi questionada a questão
da correção e o mito da pureza a que aludimos. Assim, opondo-se ao “falar
difícil” do lado doutor, em seu “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, Oswald de
Andrade propõe uma “língua sem arcaísmos, sem erudição”, “com a contribuição
milionária de todos os erros”, tal como somos e falamos (ANDRADE, 1978). Menos
preocupado com os erros de gramática do que com os “erros de linguagem que
fragilizam a expressão” (PINTO, 1981, p. 131), Mário de Andrade anunciou, um
dia, que escreveria a Gramatiquinha da Fala Brasileira. Também em seu texto
“Dialeto brasileiro” (1925), Manuel Bandeira afirmou que todos os brasileiros
deveriam falar “como as cariocas que não sabem gramática” (PINTO, 1981, p. 209).
Assim, através destas rápidas referências, vemos que, retomando ou atualizando
reflexões anteriores sobre o idioma falado no Brasil, tais autores eram
sensíveis ao caráter heterogêneo da língua portuguesa.
A exploração da heterogeneidade associada à prática
lingüística de Babel se depreende sobretudo em obras mais recentes centradas na
experiência de personagens imigrantes instalados no Brasil, onde se verifica a
representação do entre-dois lingüístico e cultural, vivenciado de forma mais ou
menos traumática (como aparece em A asa esquerda do anjo de Lya Luft). Trata-se
de mostrar a negociação identitária entre dois idiomas, duas culturas e dois
referentes espaciais. É o caso da travessia de línguas, memórias e religiões e
do entrecruzamento da escrita e da oralidade no romance Relato de um certo
Oriente (HATOUM, 1997), situado entre Manaus e o Líbano. Ou ainda, é preciso
ressaltar a exploração de “efeitos de línguas” criados por Ana Miranda em Amrik
(1997), através dos quais a perspectiva da estranheza (de idiomas estrangeiros)
se insinua nos silêncios e entrelinhas da língua portuguesa, fecundada pelos
ecos da alteridade. Língua-torre refúgio, capaz de acolher as vozes plurais do
Outro que dela se apropria, renovando-a. [topo da
página]
# Maria Luiza Berwanger da Silva - Poesia e Alteridade: Mário de Andrade, Augusto Meyer e a
paisagem das “múltiplas moradas”
“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma
sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o
vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... /
Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença /
De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março
de 1926)
“Quem é esse que mergulhou no lago liso do espelho / e me
encara de frente à claridade crua? / Tem na íris castanha irradiações
misteriosas, / ... / Abro a mão - ele abre a mão. / Meu plagiário teimoso... /
Tudo que eu faço morre no gelo de um reflexo / ... / Dói-me a ironia de pensar
que eu sou tu, fantasma...” (Giraluz. MEYER, 1926-1927)
“Audace d’être un instant soi-même la forme accomplie du
poème. Bien-être d’avoir entrevu la matière-émotion instantanément reine.”
(CHAR, 1925-1936)
Perpassa a poesia brasileira a busca da outra voz, voz de
revitalização que o sujeito lírico colhe do espaço da Alteridade.
Do estranhamento de si, da sedução e resistência ao Outro,
do eterno retorno ao Mesmo e da transparência sobre a presença estrangeira,
imagens gravam na página em branco essa fisionomia multifacetada do Modernismo
brasileiro. Paisagem com figuras ou paisagem sem figuras? Indagação que se
oculta sob os versos, nas epígrafes.
A recusa do menino em Mário de Andrade e a indagação do
não-eu em Augusto Meyer representam esse diálogo que a poesia estabelece com a
Alteridade, no qual o ritmo que tece e retece a palavra, modula-o o olhar
infatigável que não se dilui na celebração do Outro. Filtrada toda nuance
imprime no matiz o prazer do único, do múltiplo e do diverso.
Fragmentos como “E me sinto maior, igualando-me aos homens
iguais!...” (ANDRADE, 1987, p.205), “Glória aos iguais! Um é todos / Todos são
um só! / Somos os Orientalismos Convencionais” (p.106), do livro Paulicéia
desvairada de Mário de Andrade, e “Reduzo tudo a mim mesmo, não há nada que me
resista: pois o caminho mais curto / entre dois pontos, se chama ponto de vista”
(p.175), de Canção encrencada, de Augusto Meyer, mascaram o itinerário poético
singular do Uno com o Diverso e que parece consolidar-se na recente obra
Múltiples moradas de Cláudio Guillen.
Já no prefácio, a relação de aproximação e de
complementaridade que o autor fixa da obra anterior Entre lo uno y lo diverso
(1985) com Múltiplas moradas (Ensayos de Literatura Comparada – 1998) inova a
reflexão teórica sobre a Alteridade: “Al eligir un título hoy daria mi
preferencia a otras palabras, lo ‘uno con lo diverso’ o ‘lo diverso con lo uno’,
que sugieren no vaivenes, sino superposiciones; no dialecticas, sino
complexidades” (GUILLEN, 1998, p.23), o que corresponderia, pois, a marcar, na
poesia, não só o movimento de errância do Mesmo ao Outro e desse ao Mesmo, com a
conseqüente delimitação do espaço intervalar, (espaço de dissolução e de
harmonização das polaridades), mas também o trânsito pelas margens, conformando
o espaço poético da distância de que o homem está ausente.
“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma
sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o
vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... /
Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença /
De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março
de 1926)
Desse modo, conjunções e disjunções indissolúveis geram o
efeito do irredutível e da permanência, aquele “noyau dur” (a que se referia
Roland Barthes) que não se deixa mesclar pelo contato com o Outro.
Reconfigura-se a paisagem do eu que sorve dos incessantes desdobramentos do
“hombre invisible” a consciência do provisório e da passagem, representação
exemplar do lirismo disseminado pelas “múltiplas moradas”.
No encerramento do capítulo, a referência a Bernardo
Soares, personagem do Livro do desassossego de Fernando Pessoa (“Toda vida
humana é um movimento na penumbra”), demarca a construção da identidade lírica
pela visão do sujeito como “coexistência e multiplicidade transpessoal”
(GUILLEN, 1998, p.174), significando que: a abordagem do diálogo da Poesia com a
Alteridade, hoje, inclina-se ao prazer da simultaneidade, acentua o duplo
movimento (o intervalar e o das margens), do mesmo modo que distende, ampliando,
o imaginário da paisagem antropofágica: o entrelaçamento de paisagens, produto
da apropriação/transformação, inscrito na apologia do espaço intervalar, não
dissolve o simbolismo das bordas. De certo modo, o traçado baudelairiano da
paisagem do vasto também transparece em Guillen, traduzindo a relação do espaço
com a memória residual tecido e pelo homem invisível.
Tempo e espaço redimensionados articularão, pois, a
coexistência harmoniosa do fragmentário com o uno; como se, a voz que diz em
Mário “Eu sou trezentos, trezentos e cincoenta / mas um dia toparei comigo
mesmo” ocultasse a consciência da eterna procura, da imagem do poeta peregrino
retida desde o Movimento Simbolista e que a poesia modernista de Meyer
revitaliza pela consciência da migração multiplicada: “Meu destino é andar.
Alegria! Os caminhos não têm destino, eles levam à alegria de andar... Eu não
sou, sou uma vontade de ser” (Metapatafísica) (MEYER, 1957, p.193).
No fundo, a metáfora das Múltiplas moradas explicita-se
teórica e criticamente no estudo de Jean Bessière sobre a obra de Blaise
Cendrars, onde diz que “a fábula do lugar é constante... todo lugar é lugar de
outro lugar” (BESSIÈRE, in CHEFDOR, 1999), o que significa modelar o diálogo da
poesia com a Alteridade tanto pelo eixo da transgressão ou da reconfiguração das
fronteiras quanto pelo das ficções ou representações do eu captadas do
magnetismo que o mito do novo ou do lugar exerce sobre a identidade poética.
Guarda a paisagem resíduos, cores e matizes, figurações do
eu que registram o processo de constituição do lirismo mais genuíno, da
emergência à redefinição pela Alteridade. Nas palavras de Michel Collot, em Le
sujet lyrique hors de soi: “La poésie moderne nous impose de dépasser toutes les
dychotomies pour tenter de comprendre comment le sujet lyrique ne peut se
constituer que dans son rapport à l’objet qui passe notamment par le corps et
par les sens, mais qui fait sens et nous émeut à travers la matière du monde et
des mots... Or ce privilège accordé à l’objet de sensation et de langage
n’implique pas la disparition pure et simple du sujet, mais plutôt sa
transformation... il s’invente au dehors et au futur dans le mouvement d’une
émotion qui le fait sortir de soi pour se rejoindre et rejoindre les autres à
l’horizon du poème.” (COLLOT, in RABATÉ, 1996, p.117).
“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma
sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o
vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... /
Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença /
De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março
de 1926)
Convergentes na poética do desdobramento e da
multiplicação, essas três vozes teóricas imprimem, na prática de escrituras
sobre o Outro, a marca da transitividade produtiva do eu, conquanto reacendem,
no olhar comparatista lançado sobre a construção dos “não-lugares” ou “parages”,
o prazer do eco e das constelações da arte vasta e globalizada, além do
intervalo, além das margens.
De certo modo, o texto de jornal O elogio da folha em
branco (1926), de Augusto Meyer, ao evocar a figura da Rainha de Sabá, da poesia
do simbolista belga Albert Samain, faz-se metáfora exemplar dessa inclinação
modernista à diversidade articulada pelo eu: “Voir dans un faste d’or, de
pierres et d’essences, venir à soi son oeuvre en Reine de Saba” (MEYER, 1926,
p.3).
Em produção igualmente periodística, intitulada Os Gaúchos,
Mário de Andrade elogiará justamente esse pensamento cristalino do modernista do
Sul, talhado pelo rigor crítico, representativo, segundo o poeta paulista, da
Literatura gaúcha vista como um todo. Diz Mário de Andrade em um texto de 1939
(Diário de Notícias, Rio de Janeiro): “De todas as literaturas regionais do
Brasil, tenho a impressão de que a gaúcha é a que mais apresenta uma identidade
de princípios, uma consciência de cultura... a literatura do Rio Grande do Sul é
hoje nacional como as que mais o sejam... No momento, Augusto Meyer me parece a
personalidade mais representativa como caracterização regional da inteligência
gaúcha. Uma delicadeza muito nuançada de pensamento, um apego quase agressivo à
cultura, uma profundeza, um refinamento saboroso, uma ausência de largas
sensualidades, uma paciência muito controladora que não permite nunca o fácil
nem o apressado” (ANDRADE, 1993, p.116-117).
Em síntese, a consciência de vate, articuladora da produção
poética, crítica e teórica, nos dois poetas-críticos, com base no projeto
modernista de renovação da linguagem, parece impulsionar, controlando, os novos
rumos da arte brasileira. Sob o traçado firme da dicção crítica que delimita a
teoria do texto poético do Modernismo brasileiro, percebe-se uma outra voz que,
lirismo puro, emerge em busca da plenitude poética. Suave, encontra no
simbolismo da dança o ponto de convergência da inovação teórico-crítica com a
produção poética que reconfigura o espaço da distância entre o Mesmo e o Outro.
Paisagem singular, essa que a dança descortina para a poesia brasileira.
Quase que contemporâneas, as poesias Ciranda de Augusto
Meyer (Coração verde, 1924-1925) e Poemas da amiga de Mário de Andrade
(1920-1930) apostam no simbolismo da dança como imagem exemplar dos
desdobramentos e das figurações múltiplas da subjetividade lírica. Assim, da
poética do jogo aparentemente desprovido de outra intenção que não a da própria
movimentação e gestual do corpo, mas que sorve justamente dessa prática lúdica a
transgressão da distância, aquele sentimento de vazio e de longínquo emergente
da paisagem do pampa, azul e infinito, é com a espontaneidade de uma cantiga de
roda que Augusto Meyer tecerá a imagem da dança como certeza do lirismo
decantado:
“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma
sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o
vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... /
Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença /
De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março
de 1926)
“(...) Vertiginosa ronda, as mãos entrelaçadas / entre a
poeira fina, / ingênua ronda e risos de alegria / as crianças dançam loucas
sarabandas: / Ciranda, cirandinha, / Vamos todos cirandar... / (As mãos
entrelaçadas na vertigem louca, / nós também dançamos, / nós também colhemos a
vertigem boa / de quem dança a vida numa sarabanda...)” (MEYER, 1957, p.25).
Esses versos se esclarecem em Mário na pesquisa do sentimento íntimo, enquanto
relação do sujeito com o espaço exterior, incidindo na diluição (aparente) do
eu: “(...) Oh espírito do ar, dizei-me a rosa incomparável / Que se evola
reagindo em baile no ar! / Baile! Baile de mim no entre-sono! / Não é uma alma,
não é um espírito do ar, não é nada! / É outra coisa que baila, que baila, /
Livre de mim! Gratuita enfim! Fútil de eternidade!” (ANDRADE, 1987, p.279).
Marcar o exercício de disseminação do sujeito invisível na
paisagem desdobrada, na qual a transgressão dos limites do corpo pela dança
fortalece a supremacia do eu, eis, em síntese, o que lega à poesia brasileira a
memória inapagável dos poetas franceses S. Mallarmé e Paul Valéry.
Se a imagem decisiva da dança em Mallarmé como
representação da neutralidade do eu (“la danseuse n’est pas une femme qui danse”
(MALLARMÉ, p.304) recupera a tessitura da subjetividade múltipla na releitura de
Paul Valéry em Degas danse dessin (Pièces sur l’art) (VALÉRY, p.1173) (“suite de
transformations de la forme dans l’espace; qui tantôt se transporte, mais sans
aller véritablement nulle part, tantôt se modifie sur place, s’expose dans tous
ses aspects” (VALÉRY, p.1398)), a fluidez desse estado dançante é compensada
pela constituição do que Valéry denomina de “vie intérieure”, conjunto de
ressonâncias representativas da solidariedade entre o eu e o espaço circundante
cujos limites foram apagados: “Image singulière de l’instabilité”que ordena nos
“mouvements de dissipation”, a dança faz-se registro da energia lírica que o
diálogo entre as artes proporciona.
Nos bastidores da criação poética de Augusto Meyer, o poeta
simbolista Eduardo Guimaraens já antecipara a função poética da dança como magia
da expansão corpórea, paralela à própria errância e multiplicação do eu em um
texto inédito de 1916: “Dança... / Ó Poesia! Dança! / Arte dos ritmos aérea e
luminosa! / Romança / que se canta / sem palavras... / Harmonia silenciosa. /
Sonham as formas... E as linhas / se exprimem / como bôcas... / Quando o seu
frágil corpo / e os seus dois braços de ondas / que se recurvam, / e as suas
mãos, as suas mãos brancas e longas, / e o seu sorriso, / que é tanto / dos
lábios como dos olhos, / dançam, / faz-se tudo música em tôrno!” (SILVA, 1999,
p.313).
“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma
sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o
vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... /
Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença /
De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março
de 1926)
Do mesmo modo, mas já mais distanciado na temporalidade,
Felippe d’Oliveira, em um texto (1929) reiterativo da poeticidade eduardiana,
confirma a relação da dança com a emergência da palavra poética que, produto do
eu, faz-se memória inapagável da pluralidade e da disseminação: “... Dança
estática ou tumultuosa de sensações que acharam o corpo das palavras inertes e
depois ganharam a respiração da vida... Dança de pensamentos cadenciados que se
amplificam ao prestígio de sua voz – comovente e empolgante como o silêncio.
Dança que se propaga de seu instinto para o nosso inconsciente violentado e
acorda ou gera a admiração, a gratidão, o êxtase, a alegria de nosso
encantamento” (SILVA, 1999, p.204).
Entrevista por outro modernista da transição Simbolismo/
Modernismo, Álvaro Moreyra, em obra memorialística, As amargas... não, acentua o
efeito interdiscursivo captado da dança, especialmente a dos Bailados Russos,
que sintetiza em Nijinsky, ao dizer: “A minha geração, apesar de tudo o que
sempre a puxou para o tempo, foi do espaço. Creio que isso veio dos Bailados
Russos... Todas as artes se juntavam nos Bailados Russos e a influência deles
foi profunda sobre a época em tudo. Houve um russo...” (SILVA, 1999, p.225).
Em Mário de Andrade, a intersecção da produção
teórico-crítica (A escrava que não é Isaura) com a poética em Paisagem nº 2
intermediada por Nijinsky expõe o processo de figuração da subjetividade lírica
no diálogo que estabelece com o Outro, mas na clarividência do eu: “São Paulo é
um palco de bailados russos. / Sarabandam a tísica, a ambição, as invejas, os
crimes / e também as apoteoses da ilusão... / Mas o Nijinsky sou eu! / E vem aí
a Morte, minha Karsavina! / Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da /
desesperança, / a rir, a rir dos nossos desiguais!” (ANDRADE, 1987, p.97).
Imagem de uma oscilação poética, Nijinsky ressurge na
poesia de Murilo Mendes, como prática do “homem invisível”, dissolvido na
paisagem, traduzindo, ao mesmo tempo, ausência e presença, alternância e
desestabilização, marcas transgressivas processadas pelo sujeito habitante das
“múltiplas moradas”.
“Nijinsky atrai a força do universo. Escreve um livro por
meio de sinais inventados, registra os passos da dança... Em que território sem
galáxia ou escadas rolantes penetrou Nijinsky? Desfeito o apetite da terra,
suspenso o disfarce do céu... Nijinski sonhará que é dançado pela dança?”
(MENDES, s.d., p.1276).
Nos versos, a finalização pelo ponto de interrogação,
expressando dúvida e hesitação, sela esse metaforismo da dança como registro das
figurações da intimidade que se mostram e se multiplicam na relação com o Outro.
“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma
sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o
vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... /
Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença /
De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março
de 1926)
“Lirismo em diálogo”, a poesia de Mário de Andrade para
Roger Bastide em Poetas do Brasil e a poesia de Augusto Meyer onde “tudo é pago,
tudo são imagens da terra... gauchesco mas sem as limitações do gauchesco”, na
transparência do olhar de Guilhermino César e “evidência mascarada”, na análise
textual fina e rigorosa de Tania Franco Carvalhal, transparecem esse cruzamento
do nomadismo do eu com a constante reinvenção do mito ou da fábula do lugar,
(caminho crítico insinuado pelo ensaio crítico de Mário sobre a poesia
brasileira de 30, sintetizada pelo desejo de partir, inspirado pelo verso
“Vou-me embora pra Pasárgada” de Manuel Bandeira). Renovação do mundo sensorial
e ilusão de infinito, a imagem da dança de ombros, nos dois poetas: “Amigo,
trobemos, clus / O non trobemos, bailemos / A dança d’ombros, e sus! Que
malmaridada é a alma / E a vida, lá vai perdida” (MEYER, 1957, p.215-223);
versos de Augusto Meyer (Poemas de Bilu, 1928?1929), em paralelismo perfeito com versos de Danças (1924)
do livro Remate de males de Mário de Andrade: “Quem dirá que não vivo satisfeito
/ Eu danço / ... Aquele quarto me sufoca / Prefiro ar livre, / Não voltarei. /
Ar livre, ar leve que dança, dança! Dançam as rosas nos rosais... Eu danço manso
a dança do ombro... / Eu danço... Não sei mais chorar!...” (ANDRADE, 1987,
p.147), marca, no pontilhado do conflito existencial pela Arte, a prática das
“múltiplas moradas” do sujeito invisível.
Sob o movimento quase imperceptível da dança de ombros, a
“audace d’être un instant soi-même la forme accomplie tu poème” de René Char,
como figuração do Outro que se decanta pela presença multiplicada do eu, sulca,
na recusa do menino em Mário de Andrade e na dúvida provocada pelo desdobramento
diante do espelho em Augusto Meyer, a consciência clara da fisionomia
multifacetada. “Grand visage de la diversité” diz o poeta e crítico francês
Victor Segalen, voz de antecipação e de síntese da reflexão sobre a Alteridade
vista sob o ângulo do exotismo e da recriação textual, incidindo na poetização
do horizonte e do longínquo. Fábula do lugar reinventado e paisagem das
“múltiplas moradas”, sugerem as vozes da modernidade crítica que, ao revisarem o
fato comparatista como transtextualidade, buscam agregar ao olhar exótico o
prazer da simultaneidade das relações do Uno com o Diverso. Nas cartas que Mário
de Andrade escreve a Augusto Meyer, (no período de 1928 a 1938), o desejo
insistente de conhecer cada vez mais e mais profundamente a literatura do Sul
nas suas raízes genuinamente nacionais e, ao mesmo tempo, a preocupação de
justificar ao poeta gaúcho o móvel articulador do seu processo de criação
literária, (se consciente ou inconsciente), deixam filtrar o esboço de um
projeto cuja feição transgressiva buscaria redimensionar o pensamento
antropofágico pelo sentimento contraditório e paradoxal, mas legítimo e
concomitante, de resistência e aceitação do Outro. Paisagem com figuras, pois, e
paisagem sem figuras, onde o contato com a Alteridade assegura a continuidade do
diálogo, aqui apenas esboçado.
“Minha alma espia o menino / Enquanto a vista devora / Uma
sopa de aletria / Feita de letras malucas / Mas ele não vai-se embora / E o
vulto do curumim, / Sem piedade, me recorda / A minha presença em mim. / ... /
Menino, sai! Eu te odeio, / Menino assombrado, feio / Você renova a presença /
De mim em mim mesmo... E eu sofro.” (Reconhecimento de Nêmesis. ANDRADE, março
de 1926)
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1987.
___. Vida literária. São Paulo: EDUSP, 1993.
BESSIÈRE, Jean.
Cendrars, lieux et frontières. In: CHEFDOR, Monique (Org.). La fable du lieu.
Paris: Champion, 1999. p.11-31.
CARVALHAL, Tania Franco. A evidência mascarada. Porto
Alegre: L&PM, 1984.
CESAR, Guilhermino. A vida literária. In: Rio Grande do
Sul: terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1969.
CHAR, René. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1983.
COLLOT, Michel. Le sujet lyrique hors de soi. In: RABATÉ,
Dominique (Org.). Figures du sujet lyrique. Paris: PUF, 1996. P.113-125.
COSTA, Walter Carlos. Mário de Andrade (1893-1945). Revista
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GUILLEN, Claudio. Múltiplas moradas (Ensayo de Literatura
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LAFETÁ, João Luiz. Figurações da intimidade. São Paulo:
EDUSP, 1986.
MEYER, Augusto. Poesias (1922-1955). Rio de Janeiro: São
José, 1957.
SILVA, Maria Luiza Berwanger da. Paisagens reinventadas
(traços franceses no simbolismo sul-rio-grandense). Porto Alegre: UFRGS,
1999. [topo da
página]
# Marli Fantini Scarpelli - Cartografias Móveis: A poética de fronteiras em Guimarães
Rosa
Em minha tese de doutorado intitulada “Fronteiras em falso:
a poética migrante de Guimarães Rosa” (recentemente defendida na FALE-UFMG, sob
a orientação da Profª Dra. Eneida Maria de Souza), investigo como Rosa
problematiza, em seus cenários discursivos, a hibridez cultural e a
heterogeneidade conflitiva geradas por distintos confrontos, em âmbito regional,
nacional e transnacional, o que possibilita a emergência de zonas fronteiriças
migrantes e reversíveis em homologia aos “espaços sem lugares e tempos sem
duração”, de que fala Althusser (Apud BHABHA, 1998, p. 202).
Neste trabalho, enfoco fronteiras em falso, onde o interior
e o exterior não podem ser separados; entre-lugares liminares, intersticiais,
disjuntivos onde, malgrado todos serem estrangeiros uns aos outros, vigora um
intenso contrabando entre distintas línguas e culturas a agenciar o efetivo
intercâmbio e a permeabilização entre várias alteridades. Falo de uma terceira
margem habitada por culturas híbridas, formada de ex-traditados da história e da
própria geografia, de habitantes de margens e brenhais, que trazem à superfície
dos campos discursivos de Rosa toda uma história de opressão, de exílios, de uma
tradição oral soterrada durante vários séculos de encobrimentos. Falo de um
sertão mais metafórico do que físico metafísico, cujas fronteiras se
volatilizam, fazendo esboroar quaisquer marcos fixos ou hierarquizantes. Falo de
um mapa periférico, cartografado nos subúrbios da história oficial.
Penso que a questão da fronteira — recorrente na vida
profissional e na obra literária de João Guimarães Rosa —, as viagem por muitas
geografias, o convívio com diversas culturas, o conhecimento de várias línguas
são indubitáveis fatores a intervir no enfoque fronteiriço privilegiado na obra
ficcional desse escritor, sobretudo no que diz respeito ao desdobramento e à
permeabilização da perspectiva frente às diferenças culturais.
Viajante contumaz, Rosa desdobra sua vivência para
reincorporá-la criticamente ao sertão mítico, às narrativas orais ouvidas em sua
infância. Da itinerância entre culturas e mundos diversos, o deslocamento de
perspectiva, permeabilizado pela mirada “estrábica” desse intelectual que,
depois da travessia por várias línguas e culturas, reassume o próprio domínio
lingüístico. E que, ao fazê-lo, comporta-se como um tradutor da língua materna.
Tradução, transcriação, transculturação são procedimentos por meio dos quais
Guimarães Rosa estende uma ponte entre o regional e o transnacional, cujos
resultados mais evidentes são não os pólos extremos de sincretização ou
excludência, de submissão ou rejeição, mas a relativização capaz de permear
afinidades e diferenças, convergências e divergências entre o mesmo e o outro,
entre o particular e o universal.
Exemplo dessa permeabilidade pode ser reconhecido em Grande
sertão: veredas, romance em que a dureza geofísica do “sertão” perde o peso da
referencialidade, para expressar uma realidade ambígua e heterogênea, ao mesmo
tempo local e universal: “sertão” é onde “tudo é e não é” (GSV, 11); “Sertão é
quando menos se espera” (GSV, 267); “Sertão é dentro da gente” (GSV, 289); “o
sertão é uma espera enorme” (GSV, 538). Se a multiplicidade do cosmos pode caber
no sertão, a singularidade do sertão também pode difundir-se no cosmos: “Esses
gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou
pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte” (GSV, 8).
Situado entre duas águas, Guimarães Rosa se desdobra entre
o arcaico e o moderno, o sertão e o mundo, tendo certamente usado uma
pluralidade de máscaras, muitas das quais calcadas, a posteriori, em suas
próprias personagens. O constante assédio de críticos literários e jornalistas
(em decorrência principalmente da charmosa conjunção entre o Ministro das
Relações Exteriores e o escritor de prestígio internacional), em contraste à
obrigação de sigilo (exigência protocolar da diplomacia), são em si razão
externa suficiente para se compreender a imagem multifacetada e contraditória
desse Janus sertanejo, que muitas vezes irrompe lúdica e fantasmaticamente no
campo discursivo do escritor.
Em 1963, o crítico uruguaio Emir Rodrigues Monegal (que,
anos depois, viria a tornar-se um importante biógrafo de Jorge Luis Borges)
visita Guimarães Rosa, no Rio de Janeiro, quando este já é Ministro de 1ª
Classe, ocupando o cargo de Chefe do Serviço de Fronteiras no Itamarati. Durante
a entrevista, o escritor explica minuciosamente como constrói sua poética, a
inserção de vários idiomas no português, a exploração deliberada de contradições
etc., o que leva Monegal a perceber a conjunção entre o escritor e o diplomata:
“Enquanto o escutava falar com precisão sem pressa, pensei que esta tarefa devia
ser também um serviço de demarcação de fronteiras” (MONEGAL, 1991, p. 51).
A partir da reconstituição do ambiente literário, da vida
intelectual e profissional de Guimarães Rosa, tendo sobretudo em vista o
exercício de conjugar, em sua escrita, diferentes formas de conhecimento e
formações discursivas de prestígio diferenciado (oral e escrito, popular e
erudito, saber mitopoético e saber epistemológico, intuição e razão), pretendo
verificar que as produções ficcionais e documentais desse escritor contribuem
para a ampliação do conceito de literatura. Ao inter-relacionar-se com vários
campos de conhecimento, a literatura de Rosa, além de rasurar seus próprios
limites, dramatiza a relação intersubjetiva entre história e estória, realidade
e ficção, texto literário e paraliterário, autoria e atoria. Através da própria
forma de intencionar sua obra, Guimarães Rosa se utiliza de operadores que
possibilitam ao leitor compreender a rede intercomunicante entre texto e
contexto, entre formações culturais e discursivas, e, ainda, as múltiplas
relações de sua literatura com as Ciências Humanas, a História, a Antropologia,
a Psicanálise, a Filosofia e a Teoria da Literatura.
Tendo em vista a diversidade da obra rosiana e o locus que
define suas condições de enunciação – zonas fronteiriças assinaladas pela
hibridez e pela heterogeneidade conflitiva – este trabalho se ocupará em (a)
observar a emergência de uma nova forma de habitar o mundo e de novos estatutos
de trocas culturais; (b) discutir os procedimentos autorais/atorais do escritor
a partir das várias personas sob as quais se faz representar no próprio texto –
médico, diplomata, sertanejo, pesquisador, crítico consciente do próprio fazer
poético – e a partir das quais ele pode criar uma abrangência que ultrapassa os
limites da mera literariedade; (c) surpreender o processo de hibridização
cultural entre populações rurais e urbanas, entre arcaísmo e modernidade; (d)
discutir a tensão “assimilação/resistência” de formações discursivas produzidas
em situação colonial, frente às culturas hegemônicas; (e) abordar a interação
desierarquizante entre cultura popular e erudita, oralidade e escritura,
pensamento mitopoético e epistemológico;
(f) tomar o interculturalismo como eixo para repensar
conceitos como “nacionalismo”, “nação”, “pátria”, “relações identitárias”, tendo
em vista a emergência de novos paradigmas relacionais decorrentes, sobretudo, do
atual contexto de globalização e multiculturalismo e suas demandas de
flexibilização de fronteiras políticas e culturais.
A abordagem comparatista que norteará este trabalho se
ampara em três justificativas básicas. A primeira – em concordância com
pressupostos desenvolvidos por Ángel Rama (Apud Candido, 1983) sobre a
literatura produzida no continente a partir de 1910 – advém da constatação de
que a “América Latina desenvolveu o seu sistema literário próprio, em dimensão
continental, formando (...) «um sistema literário comum», do qual o Brasil é
parte integrante e não mais corpo paralelo, como na concepção anterior”
(CANDIDO, 1983, p. 145-46). Exemplo disso está na apropriação criativa às
vanguardas européias e seu desdobramento nas técnicas renovadoras do
regionalismo transnacional, cujo aproveitamento na obra de autores continentais,
como José Maria Arguedas, Juan Rulfo, Roa Bastos, Gabriel Garcia Márquez e João
Guimarães Rosa, institui um modelo comum a essas literaturas. Marcando diferença
em relação aos modelos importados ou impostos pela metrópole, o regionalismo
transnacional inaugura, na América Latina, um novo espaço discursivo. Para
abordá-lo, torna-se necessária a perspectiva comparatista que poderá, a partir
de agora, “assumir o papel que lhe cabe num país caracterizado pelo cruzamento
intenso de culturas, como é o Brasil” (CANDIDO, 1983, p. 215).
Uma segunda justificativa se sustenta na consciência de
que, dada a pluralidade de discursos críticos e de dispositivos teóricos
desenvolvidos pelo comparatismo literário inter-americano, sobretudo na
perspectiva dos Estudos Culturais (a “heterogeneidade cultural”, o
“transculturalismo”, as “culturas híbridas”, o “entre-lugar do discurso
latino-americano”, a “diglosia”, a “hermenêutica diatópica/heterotópica”), seria
inconseqüente uma abordagem de quaisquer obras literárias latino-americanas que
esteja desvinculada das condições simbólicas em que essas obras foram geradas.
A terceira e última justificativa se ampara na premissa de
que os Estudos Culturais e os Estudos Pós-Coloniais propiciaram a alternativa
plástica de colocar a voz recalcada do sujeito subalterno (antes silenciado)
como importante interlocutor de novas trocas simbólicas e culturais. Essa
alternativa deflagra um grande diálogo em que interagem não apenas instâncias
discursivas, mas esferas extrínsecas (ao texto) de produção de sentido que
incluem todos os agentes de transformação sócio-cultural, política e literária.
Dentre esses agenciadores de transformação, além do principal ator – a própria
encarnação do sujeito subalterno –, destaca-se a importante participação de
sociólogos, antropólogos, etnólogos, historiadores, agentes culturais e,
sobretudo do sujeito da enunciação que, enquanto agente de um discurso
alternativo, deixa vazar, em seu campo discursivo, a imagem de um escritor
preocupado com uma causa de ordem sócio-cultural. Dessa forma, a conjunção do
comparativismo latino e ibero-americano com as produções concretas das
“literaturas alternativas” explicita cada vez mais qual é o locus a partir do
qual esses novos agentes podem enunciar e denunciar as próprias condições de
submissão e recalcamento que lhe foram impostas pelo legado colonial.
O esforço teórico-crítico em apreender essas novas formas
enunciativas deve mobilizar-se no sentido de aproximar, comparar e entrecruzar
formações discursivas produzidas em condição colonial com novos modelos de
produção simbólica, a essa altura já assinalados pela marca da heterogeneidade e
da hibridez cultural. Esse procedimento deve fundamentalmente evidenciar a
existência das trocas interculturais provenientes da necessidade de os elementos
compósitos dessa grande totalidade heterogênea e contraditória interagirem e se
colocarem em posição intersticial, ou seja, constituírem seu campo discursivo a
partir de entre-lugares replicantes para, dessa forma, fazer frente ao modelo
homogêneo e hegemônico herdado da pressão cultural imposta pela máquina
colonizadora.
Ana Pizarro percebeu bem a urgência em se utilizar um novo
instrumental comparatista capaz de dar conta dessa literatura alternativa que
emerge de contextos coloniais e pós-coloniais. Na apresentação do livro América
Latina: palavra, literatura, cultura, ela alerta para a necessidade de se
utilizar uma “hermenêutica heterotópica”, para uma melhor apreensão da
pluralidade de tempos culturais – superpostos e seqüenciais – que conformam a
formação do continente latino-americano. Comportando diferentes formas de
imaginário, distintas concepções estéticas e contrastivos modos de relação, as
formações discursivas produzidas no espaço de tensões da história continental,
“articularam-se [segundo ela] em um complexo composto de segmentos de modos de
produção, sociabilidade e imaginário, inseridos em diferentes graus de
desenvolvimento e em diferentes momentos na direção imposta pela metrópole”
(PIZARRO, 1993, p. 28-9). Sua sugestão é a de que, para abordar a complexidade
dessas formações híbridas e heterogêneas, torna-se necessário conjugar a crítica
estética a um instrumental metodológico multíplice, capaz de abranger a
compreensão dos fenômenos gerados pela superposição de distintos planos
temporais, culturais, históricos e sociais que conformam as contrastivas
formações literárias do continente latino-americano.
Como minha investigação privilegia o enfoque fronteiriço da
poética rosiana, não me ocupo de “uma” obra específica de Guimarães Rosa, nem
apenas da abordagem de certos aspectos temáticos ou formais canonizados pela
fortuna crítica do escritor. A recorrência a tais aspectos será pontual, pois
somente ocorrerá na medida em que possa contribuir para a fundamentação de
alguns pressupostos em que se ancora a poética visada. Assim, exploro distintas
virtualidades da “poética de fronteira” em uma ou mais obras rosianas. Um
enfoque maior é dado aos contos “A menina de lá”, A terceira margem do rio” e
“As margens da alegria”, de Primeiras estórias; às novelas “Cara-de-Bronze”, de
No Urubùquaquá, no Pinhém, e “Uma estória de amor (Festa de Manuelzão)”, de
Manuelzão e Miguilim; e principalmente ao romance Grande sertão: veredas que,
sem ser privilegiado em um capítulo específico, estará, contudo, permeando todo
o trabalho.
Ao inserir outros idiomas ao português, Guimarães Rosa
quebra os parâmetros particularistas de língua. Diferentemente da utópica
originalidade isolacionista com que, desde o romantismo, o regionalismo
patriótico e provinciano vinha-se protegendo contra as influências externas e
sobretudo contra a dependência cultural, Rosa põe sua região em relação de
interatividade com outras paragens continentais e universais. Antonio Candido
considera que, dos três momentos de manifestação regionalista brasileira e
continental por ele examinados, somente a terceira vertente – consolidada por
escritores como José María Arguedas, Gabriel García Márquez, Augusto Roa Bastos
e João Guimarães Rosa – cria alternativas inovadoras, permitindo-lhe escapar ao
anacronismo e ao provincianismo a que ficaram sujeitas as vertentes anteriores.
Ao se fixar nas formas mais peculiares da realidade local, em lugar de afirmar a
identidade nacional, como pretendia, tanto o regionalismo romântico quanto o
naturalista acabaram ambos oferecendo à sensibilidade européia o exotismo que
ela desejava, o que, segundo Candido, se torna uma “forma aguda de dependência
na independência” (CANDIDO, 1989, p. 157).
A permeabilização da matriz regional, realizada sob o
influxo da transitividade territorial, lingüística e cultural, permite a
Guimarães Rosa adotar a combinatória de práticas culturais representativas da
índole conflitiva e desafiante com que o Brasil e a América Latina se inserem na
modernidade ocidental. Dessa forma, a obra rosiana ultrapassa os limites do
subdesenvolvimento continental que levaram Candido a refletir que “nossas
literaturas latino-americanas, como também as da América do Norte, são
basicamente galhos das metropolitanas”. Ainda que semeados no quintal
terceiromundista, os germens dessa nova literatura voltada para o ano 2000
proliferam e, sobretudo a partir de Rosa, já dão frutos no jardim das musas.
Malgrado toda a alta aspiração metafísica postulada pelo
escritor em entrevistas e correspondências, tudo ou quase tudo viaja dentro de
sua obra; e, a partir da viagem, desloca, atravessa e se desterritorializa. O
recorrente impulso para a busca – de origem e sentido, de tempo e espaço, do
incondicionado e do indizível – impele personagens rosianas sempre para um outro
lugar. Mas as coisas acontecem, não na ida ou na volta, mas na zona fronteiriça,
na terceira margem onde as demarcações perdem sua visibilidade e tudo entra em
conexão: territórios, águas, línguas, culturas, conhecimentos e insciências. Um
eloqüente exemplo dessa poética do “meio” se encontra neste trecho em que, ao
refletir sobre o sentido de suas travessias, o narrador de Grande sertão:
veredas constata que “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe
para a gente é no meio da travessia” (GSV, p. 60).
Permeável tecido de transformações, em cujas dobras se
matizam temporalidades distintas e espacialidades móveis, o mapa dos territórios
rosianos é aberto e remanejável de sorte que de suas fronteiras discursivas
sempre se espera o surgimento de uma “terceira margem”, uma das mais
emblemáticas imagens dessa cartografia verbal, onde “escrever nada tem a ver com
significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por
vir” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13).
A idéia de integrar, numa mesma rede multíplice e infinita,
conhecimento e emoção, várias experiências e estilos, onde tudo pode ser
continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis, sob o
princípio de amostragem potencial do narrável, institui a totalidade potencial,
conjectural, multíplice dos hiper-romances que emblematizam, segundo Italo
Calvino, a literatura do próximo milênio (CALVINO, 1990, p. 112). Essa
radiografia do hiper-romance como grande rede pode ser reconhecida na grande
arte de Guimarães Rosa.
Como seu personagem “Cara-de-Bronze”, que viaja sem sair do
quarto, o escritor mineiro descobriu, mediante o efetivo trânsito por
inumeráveis países e línguas, a transitar por diferentes temporalidades,
línguas, culturas e geografias, a partir de sua máquina de escrever. A imagem da
interface entre as inumeráveis barreiras desconstruídas pelo Chefe do Serviço de
Demarcação de Fronteiras teria que ajustar-se à forma de um mapa migrante, sem
fronteiras ou legendas. Móvel e remanejável como um tabuleiro de xadrez, o mapa
de Rosa agencia infinitas combinações territoriais, cujo traçado aceita a
intervenção simultânea de negociações e acaso.
Ainda que Rosa conjugue restauração e renovação da tradição
oral, acentuar a tonalidade da cor local não é o procedimento mais forte da sua
escrita, que trata, na verdade, de mesclar as matrizes a partir da superposição
de vários outros matizes. Posto existir na obra rosiana uma forte recorrência ao
acervo da oralidade, ao desclicherizar e reestruturar a morfologia do “era uma
vez”, o escritor-diplomata não só renova e restaura a voz recalcada da tradição
oral, como a recoloca em lúdica interação com a plasticidade dos signos postos
em rotação pelas vanguardas poéticas.
Graças a esse revival, o tradicional “Aí, num belo dia...”
converte-se, numa reviravolta performática, em “Ah, e, vai, um feio dia...”
(GSV, 275). Nos contos de Primeiras estórias, cujo título já traz, em si mesmo,
o emblema do descondicionamento, há incontáveis senhas a abrir ou fechar as
estórias e, em paralelo, a desfossilizar os sentidos esvaziados pela repetição
da mesma clave, como atestam estes exemplos: em “Os cimos”: “Outra era a vez”
(168); em “As margens da alegria”: “Era outra vez, em quando, a Alegria” (7); em
“Famigerado”: “Foi de incerta feita — o evento”(9).
As linhas de fuga do mapa rosiano se deslocam. Em sua
poética de fronteiras, o escritor mineiro agencia, a partir de seu heterotópico
locus de enunciação, uma tal dança de signos, que se perde a noção dos limites
entre eu e o outro, o local e o universal, o oral e o escrito, a renovação e a
restauração. Ao reinventariar, restaurar, reciclar, remanejar, reiventar suas
fontes, Rosa suplementa as potencialidades inconcluídas da literatura (e da
modernidade) brasileira e latino-americana.
Diferentemente de demarcações identitárias e de
cartografias referenciais, os cenários heterotópicos dos mapas rosianos criam
zonas de confluência, onde se institui um intenso contrabando entre línguas e
culturas de diferentes procedências e temporalidades. Essa desmarcação
discursiva dá visibilidade a identidades em curso, a pátrias itinerantes em
permanente confronto e negociação, em cujas fronteiras emerge uma nova forma de
ler e de habitar o mundo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BHABHA, Homi K. O local da
cultura. Trad. Myriam Ávila et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio.
Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das
Letras, 1993. O olhar crítico de Ángel Rama; Literatura Comparada; Uma palavra
instável.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e
outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.
DELEUZE,
Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. 5v. Trad.
Aurélio G. Neto e Célia P. Costa. Rio Janeiro: Editora 34, 1995. v. I.
MONEGAL, Emir Rodrigues. Em busca de Guimarães Rosa. In:
COUTINHO, Eduardo F. (Org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991.
PIZARRO, Ana (Org.). América Latina:
palavra, literatura e cultura. São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, 1993.
Palabra, literatura y cultura en las formaciones discursivas coloniales.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
ROSA, João Guimarães.
Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969 [topo da
página]
# Paulo Sérgio Nolasco dos Santos - Lobivar Matos: Um clássico desconhecido
Para o Professor Lins.
Eu sou o poeta
desconhecido...
Lobivar Matos
Recebi um presente: uma cópia do poema “sol”, inédito, em
manuscrito do próprio Lobivar Matos, escrito no Rio de Janeiro, em 1938.
Para esta reunião do GT de Literatura Comparada, durante o
XV Encontro Nacional da ANPOLL – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa
em Letras e Lingüística –, que se realiza em Niterói, quero retomar a referência
ao “poeta desconhecido”, o sul-mato-grossense Lobivar Matos (1915-1947), para
fazer retornar a presença do ausente (o poeta desconhecido) que se torna um
nome–signo emblemático da própria vida da literatura enquanto história dos seus
textos.
Transcorridos sessenta anos desde que o poeta escreveu este
texto e o momento que o recebi, acompanhado de um “dossiê” Lobivar Matos,
registram-se, grosso modo, dois fatos que se interligam na vida literária, na
crítica e na academia universitária. Primeiro o meu próprio desconhecimento de
um nome expressivo não só da literatura de meu país, portanto, nacional
(desconhecimento agravado mais ainda por se tratar de um poeta
sul-mato-grossense) e depois os reveses e os (des)caminhos à que o sucesso ou a
fortuna de um autor e sua obra estão submetidos, inexoravelmente, aos solavancos
da história literária freqüentemente moldada por interesses de vários mercados,
em especial da alfândega nem sempre atenta que projeta alguns nomes e condena
outros ao silêncio e ao repouso no depósito das mercadorias que não encontraram
boa cotação em seu tempo, ou, quando não, relegados, ao esquecimento total.
De minha parte, o interesse por Lobivar Matos nasceu, como
disse, da leitura do “dossiê” e do livro publicado Lobivar Matos – O poeta
desconhecido, do Professor José Pereira Lins (LINS: 1994). Também, isso veio ao
encontro de um projeto de estudo, ainda restrito, que desenvolvo sobre a
produção artístico-cultural sul-mato-grossense, cujo objetivo parte da
constatação de que a região sul do Mato Grosso não foi devidamente mapeada em
sua rica diversidade cultural. Essa região, do extremo oeste do Brasil, marcada
na sua formação por um variado processo migratório, favoreceu-se grandemente no
desenvolvimento da sua produção artístico-cultural. Daí que, o objetivo
principal desse projeto de estudo é a recuperação, registro e divulgação de
aspectos e/ou questões específicas da região e que ainda não foram devidamente
estudados ou pesquisados.
Assim, quando recebi o material sobre Lobivar Matos, e
sabedor de que tudo o mais estava a minha disposição na biblioteca do Professor
Lins, em Dourados, inclusive as primeiras e únicas edições de Areotorare e
Sarobá, publicados em 1935 e 1936 respectivamente, compreendi que tenho em mãos
um valioso material, que, somando ao corpus fabuloso do que já se constituía um
rico objeto de estudo – o local, a região sul do meu Estado –, além de tudo, o
próprio epíteto com que se batizava Lobivar Matos, “o poeta desconhecido”,
oferece uma chave importante para se repensar as condições sócio-culturais que
interagem na divulgação de um nome, de uma obra, e até mesmo de uma região em
especial, pois, assim como se reconheceu uma inteligente percepção no domínio da
arte poética na obra lobivariana, também se observa o quanto sua cidade natal,
Corumbá – a cidade branca –, com seu casario do porto e o bairro negro, está
presente nos poemas do autor.
Passados sessenta anos, o cognome “poeta desconhecido” faz
ressoar, hoje, a necessidade urgente de uma reedição das duas obras de Lobivar
Matos, cuja importância tanto para a historiografia literária sul-mato-grossense
como para a historiografia nacional é fato já salientado por estudiosos como
Tasso da Silveira, dentre outros, e por Manoel de Barros, amigo e contemporâneo
de Lobivar, que, em jornal do Rio de Janeiro, registrou com propriedade a
“roupagem” modernista que justifica a atualidade de Lobivar Matos: “Aprecio a
roupagem simples com que Lobivar Matos vestiu seus poemas. Não possuem aquele
entochamento compacto da terminologia clássico-acadêmica. Pelo contrário, seu
vocabulário é folclórico, apanhado do povo distante, de lá de Mato Grosso. Os
estudiosos de costumes regionais têm em Sarobá uma fonte de estudos. Estou certo
que o livro de Lobivar Matos, bem lotado de imagem e de realismo abriu para os
jovens do Brasil a janela ampla que dá para a arte moderna, humana e sem
preconceitos”. (Apud LINS: 1998, p. 20)
Com efeito, há que se sublinhar a maestria com que o poeta
corumbaense se utiliza do verso livre, da notação elíptica do verso e da
disposição gráfico-espacial na folha em branco, num procedimento modernista,
para criar imagens que, como no poema “Aranha tecedeira”, brotam da própria
tessitura textual para significar a relação analógico-comparativa entre a
“aranha tecedeira” e o poeta que tece, sem glória, fios de seda, fios leves de
ouro nas fibras da sensibilidade humana! (LINS: 1994, p. 29). Nesse sentido
poderiam se justificar relações de homologia entre o “poeta desconhecido” e o
autor de Da Educação pela pedra, João Cabral de Mello Neto, p.ex., nos poemas
“Tecendo a manhã” e “Catar feijão”. Outros versos lobivarianos tematizam a
grandeza das coisas simples que muitas vezes lembram a poética de seu
contemporâneo Manoel de Barros. Como nessa primeira estrofe do poema
“Lavadeiras”: “A manhã, - lavadeira velha - esfregou o sol e o estendeu na terra
para secar...” (Apud LINS: 1994, p. 15).
Por fim, o cognome com o qual se batizou Lobivar Matos,
além do que se observou, nos faz alerta para repensar uma das questões
fundamentais da historiografia e com a qual muito se preocupa a crítica
literária contemporânea, principalmente os estudos de literatura comparada. Ou
seja, a fortuna crítica de um escritor e as injunções sócio-econômicas que, no
caso de Lobivar Matos, parecem ter sido decisivas para o esquecimento de uma
obra que, sem dúvida, tornou-se uma página da literatura brasileira, e de uma
história de vida, a do próprio Lobivar Matos, entrecruzada por idas e vindas do
Rio de Janeiro para Corumbá que parecem configurar, nesse caso, um ethos
errático, à deriva da história oficial e à margem da vida. Questões como essa,
do inexpressivo ou nenhum acolhimento de um escritor, continuam intrigando os
estudiosos da literatura, seja para melhor avaliar o poder decisivo à que se
submete a literatura pela recepção e quê variantes, como a da difusão mercantil
e/ou acadêmica, acabam por excluir ou incluir obras e autores num cânone que,
hoje mais do que nunca, mostra suas lacerações.
A propósito, Claudio Cezar Henriques, em artigo que estuda
com profundidade o caráter valorativo e as possíveis conceituações do que seja o
termo “clássico”, mostrou que autores de inabalável institucionalização canônica
e “acima de qualquer suspeita” são também “Ilustres” desconhecidos. E cita o
artigo “A recepção de Machado de Assis em Portugal”, de Pedro Calheiros:
“Machado de Assis é um desconhecido em Portugal, e nem tenho a certeza de poder
acrescentar o costumeiro adjetivo que muito serve nestas situações” (Apud
HENRIQUES: 1997, p. 85-105).
Referências
Bibliográficas
HENRIQUES, Claudio Cezar. Sob o
signo dos quatro. Matraga, Rio de Janeiro: n.9, p. 85-105, out./1997.
LINS, José Pereira. “Dossiê” Lobivar Matos. 1998, 25p.
LINS, José Pereira. Lobivar Matos – o homem e o poeta.
Trabalho apresentado no VI Ciclo de Literatura. Dourados: 1998.
LINS, José Pereira. Lobivar Matos – o poeta desconhecido.
Dourados: 1994, 68p.
NETO, João Cabral de Melo. Da
Educação pela Pedra à Pedra do Sono. (Antologia poética). São Paulo: Clube do
Livro, s/d., 256p.
NOLASCO, Paulo Sérgio (Org.). Ciclos
de Literatura. Campo Grande: Editora UFMS, (no prelo).
NOLASCO, Paulo Sérgio. A literatura comparada no extremo
oeste do Brasil. Relatos de Pesquisas. Salvador: UFBA/ANPOLL, set./1997, p.
27-30.
# Rachel Esteves Lima - Identidades tropicais: o latino-americanismo dos anos 60
É digna de nota a escassa
tematização da América Latina na literatura brasileira. Enquanto nos demais
países do subcontinente é abundante a produção literária que procura enfocar o
pertencimento a uma comunidade latino-americana, no Brasil, à exceção de algumas
poucas obras surgidas em dois momentos específicos (anos 20 e 60), parece
predominar um Tratado de Tordesilhas no que se refere à construção de um
imaginário que projete uma visão identitária das nações de colonização ibérica.
De modo geral, pode-se dizer que a percepção da
diferenciação brasileira frente aos hispano-americanos predomina nos discursos
da intelectualidade do país. Exemplo dessa postura é encontrado em Verdade
tropical, de Caetano Veloso. Nas primeiras páginas do livro, o compositor evoca
a paradoxal situação do Brasil, ao tratar do isolamento das comemorações dos 500
anos de seu descobrimento. Se esse evento, descompassado em 8 anos em relação à
descoberta da América, nos situa, num certo sentido, à parte do continente como
um todo, curiosamente, Caetano não deixará de criar, de forma artificial, uma
certa correspondência, ainda que também sob o signo da diferença, entre os
Estados Unidos e o Brasil, marcando, sem justificar, o seu distanciamento da
América hispânica. Segundo ele,
O paralelo com
os Estados Unidos é inevitável. Se todos os países do mundo têm, hoje, de se
medir com a "América", de se posicionar em face do Império Americano, e se os
outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto , o caso do
Brasil apresenta a agravante de ser um espelhamento mais evidente e um
alheamento mais radical. O Brasil é o outro gigante da América, o outro melting
pot de raças e culturas, o outro paraíso prometido a imigrantes europeus e
asiáticos, o Outro. O duplo, a sombra, o negativo da aventura do Novo Mundo.[i]
Sugere-se, nesta passagem, a persistência, posteriormente
confirmada pelo próprio compositor, de um patriotismo que não deixa de ser
eufórico e da aceitação do conceito de identidade nacional, ainda que não mais
estruturado em torno de um dualismo radical entre a autêntica cultura popular
nacional e a imperialista cultura estrangeira sinônimo de indústria cultural
norte-americana , como se fazia até a década de 60. A não inclusão da América
Hispânica no esquema identitário assumido, hoje, por Caetano Veloso cumpre,
aqui, não a função de recusar como fictícia qualquer projeção da "nossa"
diferença, mas apenas a que foi proposta, num breve período da história
brasileira, como conciliação do nacionalismo e do regionalismo latino-americano.
Não obstante o próprio Caetano haver gravado há 30 anos a canção de Gilberto Gil
e Capinan, Soy loco por ti America dessa forma participando também do
descontínuo processo de construção da imagem unificada do ser latino-americano
na arte brasileira , o que se percebe é que a sua evocação permanece eivada de
conotações populistas, que o compositor procura, no momento, evitar.
A proposta desse trabalho consiste na análise das formas
que tomou o "latino-americanismo" da década de 60, em uma abordagem contrastiva
que o correlacione ao pensamento da identidade latino-americana no modernismo,
momento em que, efetivamente, ele se mostra mais incorporado à literatura
brasileira.
Como ponto de partida, retomemos o ensaio “Literatura e
subdesenvolvimento”, de Antonio Candido.[ii] Tal estudo ao mesmo tempo traça uma
configuração e faz parte do momento em que se toma consciência do caráter
estrutural do nosso subdesenvolvimento e se procura promover a unificação
cultural latino-americana, uma vez que foi produzido como colaboração em um
projeto maior patrocinado pela UNESCO, instituição que assumiu no pós-guerra o
objetivo de conciliar identidade regional e universalismo.[iii] Importa-nos dele
reter a noção de que a ruptura com a idéia de "país novo" e a conseqüente
identificação com a cultura latino-americana se dá, na literatura brasileira, a
partir do movimento modernista, sendo retomada mais enfaticamente ao final dos
anos 60 e princípio dos 70, quando é publicado o estudo de Candido. Nesses
momentos, produziu-se um questionamento das concepções evolutivas da história
que, de acordo com Hegel, só poderia reservar um lugar à América no futuro , mas
acabou-se recaindo em um discurso fundacionista, que, no caso do modernismo,
promoveu um retorno às origens, fosse através do elogio da valorização do mundo
indígena pre-colombiano, da evocação de uma harmonia racial evidenciada pela
prática da mestiçagem, ou do elogio do legado cultural latino. Pode-se dizer que
nem mesmo a teoria da dependência, que, na década de 60, enfatizou os processos
históricos, políticos e econômicos, em detrimento das justificativas
culturalistas, na explicação do descompasso da periferia em relação ao centro,
conseguiu romper radicalmente com a noção de herança cultural. O ensaio de
Candido é paradigmático, nesse sentido, tanto no que diz respeito ao seu
conteúdo quanto ao locus de sua enunciação. E, ainda hoje, a recorrência ao
sincretismo cultural encontra lugar no discurso da originalidade, que só pode
ser operacionalizado a partir de um esquema diferencial e dualista, como ocorre
na fala de Caetano.
O latino-americanismo surge, no cenário literário
modernista, através da representação alegórica que opera, muitas vezes, uma
incorporação transnominal da América Hispânica, no processo de construção ou de
“invenção” da tradição cultural brasileira. Sobre ela, se assentariam as bases
para um projeto autoritário de modernização tardia do país. A recorrência à
origem, corporificada pelas pesquisas que tinham como objeto a língua, o
folclore, os costumes e a arte primitiva em geral atenderam ao imperativo do
regime de disciplinarização da sociedade, que se instituiu na América Latina com
a fundamental contribuição da classe letrada. Coube a ela fornecer os símbolos
formadores não apenas da identidade nacional, mas também latino-americana.
Confluem nessa prática, o "messianismo salvacionista" implícito no papel do
intelectual institucionalizador da essência de um povo, a exclusão das
diferenças pela idealização de uma identidade homogênea e a delimitação das
fronteiras que nos separam da modernidade ocidental e que acaba nos
transformando no seu "outro absoluto".[iv]
Pode-se exemplificar esse paradoxo através da estratégia de
"desgeografização" adotada por Mário de Andrade no desenvolvimento do personagem
Macunaíma,[v] que serve tanto para conformar a sua "diversidade na unidade",
como para contrapô-lo à racionalidade ocidental burguesa, quando se enuncia o
resultado de sua plasticidade cultural como ausência de caráter. Ou através da
devoração ritualística da antropofagia oswaldiana, que acaba incorrendo na
mitificação da identidade calcada na abertura ao sincretismo cultural.
O rompimento com a visão unilinear e progressista e o
engajamento no processo de modernização das estruturas sociais convivem na obra
e na vida dos escritores modernistas. Tal ambivalência que talvez constitua a
característica central dessas vanguardas exprime a peculiar situação do
pensamento crítico e da prática intelectual que se constituem na periferia do
capitalismo. A conjunção de temporalidades históricas distintas em um espaço
caracterizado pelas gritantes desigualdades sócio-econômicas implica a
impossibilidade de se seguir o mesmo percurso histórico e de se adotar o mesmo
padrão de racionalidade das nações desenvolvidas. A ausência de uma elite
econômica vanguardista que fosse capaz de ampliar aos setores populares os
benefícios do processo de modernização, a incapacidade de se organizarem forças
de oposição às classes dominantes e a diversidade étnica do país impediram o
advento de uma revolução burguesa e a delimitação de uma esfera cultural
pública, tal como se dera nos países do capitalismo central. A modernidade
brasileira só poderia ocorrer em um cenário de contradições e a classe letrada
teve que recorrer ao Estado na tentativa de promover os avanços dos projetos que
a constituem[vi] e que, em última instância, a beneficiam. Na ambivalência de
seus movimentos, muitos intelectuais acabaram tendo que se confrontar com a
conclusão de que
assim como o
passado do mundo não foi o nosso passado, o seu presente não é nosso futuro.
Somos evolutivamente de outro fuso temporal. Para nós, qualquer revolução
burguesa de liberação das peias feudais, a fim de ensejar o surgimento de um
empresariado shumpeteriano seria tardio.[vii]
Até a década de 60 prevaleceu, entretanto, a ideologia
desenvolvimentista que considerava viável o atingimento de um estágio avançado
do capitalismo, no qual o progresso técnico e os benefícios dele decorrentes
seriam estendidos a todos os países que participassem do sistema de divisão
internacional do trabalho. De acordo com Celso Furtado, a tardia
industrialização brasileira estaria na origem tanto das enormes desigualdades
sociais do país quanto da persistência do autoritarismo político. E é o próprio
economista quem nos leva a concluir que essa conexão entre rígidas estruturas
políticas e industrialização se sustentou na ideologia do desenvolvimento, que
ele, com sua política reformista, ajudara a construir. Reconstituindo um
discurso proferido em reunião na qual defendeu a "Aliança para o progresso"
malogrado projeto que nos anos 50 representou uma arma utilizada pelos Estados
Unidos para desenvolver um panamericanismo sob seu domínio , Furtado afirma:
Não se trata de
fazer a revolução antes que o povo a faça, pois não existe revolução sem povo, e
sim de contribuir com inteligência e realismo para iluminar os caminhos dessa
revolução e evitar que oportunistas e fanáticos assumam seu comando". E ia mais
longe, insistindo em que o desenvolvimento latino-americano tinha como um de
seus suportes a busca da auto-identidade. Disse, enfático: "É por essa razão que
a mística do desenvolvimento tem entre nós uma dimensão nitidamente
nacionalista.[viii]
Esta ideologia foi encampada também pelas esquerdas
latino-americanas, que aderiam a uma política de alianças com as elites locais,
em obediência à ortodoxia marxista, que pressupõe um encadeamento causal no
processo revolucionário. Sem revolução burguesa, não haveria, portanto,
socialismo. Recaía-se, assim, em um estado de suspensão, no qual o presente só
se constituía na espera por um futuro que se podia mirar nos modelos
democráticos ou socialistas existentes, um futuro "que liber[asse] a América
Latina e a transform[asse] em si mesma".[ix]
Como já se antecipou, a ambigüidade dos escritores
modernistas se expressa na participação no projeto de modernização e no
simultâneo questionamento da racionalidade logocêntrica. O recurso ao passado,
através da reativação da cultura popular ou do universo mítico indígena podem,
dessa forma, tanto significar um envolvimento dos escritores na produção
ideológica que sustentaria o nacionalismo e o desenvolvimentismo, dentro de uma
concepção progressista da história, quanto a desidentificação com a lógica
linear do pensamento ocidental.
Os textos sobre a antropofagia, principalmente os
produzidos após o rompimento de Oswald de Andrade com o Partido Comunista,
ocorrido em 1945, podem ser considerados, na literatura brasileira, como os
exemplos mais ricos e disseminadores dessa situação. Como já concluiu Benedito
Nunes, a apropriação da cultura indígena, nessas obras, significa uma
dessolidarização de Oswald de Andrade com os valores da sociedade na qual o
escritor se achava inserido.[x] A "metafísica bárbara " reflete uma visão
cíclica da história, onde se concretizaria a síntese dialética entre o homem
natural e o homem civilizado, na figura do primitivo tecnizado. A utopia
oswaldiana coaduna o anti-patrimonialismo e a moral anti-autoritária do bom
selvagem rousseauniano localizado em tempo e espaço imemoriais e as
possibilidades de redenção humana, proporcionadas pelos benefícios tecnológicos
decorrentes do desenvolvimento capitalista.
A crítica ao messianismo, que traduz a ideologia do futuro
e a opressão nas quais se fundamentam tanto o capitalismo quanto o comunismo,
tem como contrapartida a inabalável confiança na ciência e na técnica enquanto
instrumento fundamental para o retorno "em diferença" ao Matriarcado de
Pindorama. Também aqui, reforça-se a ideologia da "transição", que posterga a
liberação humana das estruturas disciplinares. É o que se depreende das palavras
de Oswald:
Não se pode
confundir uma fase da História com a própria História. Temos que aceitar a
superioridade inconteste do calvinismo baseado na desigualdade como alentador da
técnica e do progresso. Mas, hoje, conquistados como estão os valores produzidos
pela mecanização, chegou a hora de revisar e procurar novos horizontes.[xi]
Segundo o escritor, a abertura a esses horizontes seria
papel a ser desempenhado pela América, onde estaria “criado o clima do mundo
lúdico e o clima do mundo técnico aberto para o futuro".[xii] Pela antevisão de
um devir que constitui, na verdade, uma projeção do pensamento ocidental, dado
que a descoberta do Novo Mundo fundou no imaginário europeu a utopia de um novo
Éden, o escritor acaba recaindo nas narrativas da identidade. A mitologia do
paraíso perdido, que sempre alimentou os discursos ufanistas da cultura
latino-americana,[xiii] renova aqui as suas forças, impedindo que Oswald
conseguisse romper radicalmente com a mentalidade progressista. Seu conceito de
antropofagia e a valorização de uma moral desrepressora, baseada no ócio, na
festa e nas relações intersubjetivas solidárias, lançaram, contudo, as sementes
para que o presente irrompesse na cena cultural brasileira dos anos 60.
Além dos movimentos contraculturais deflagrados a partir de
68, dois momentos da história latino-americana contribuíram para que isso
acontecesse: a revolução socialista de Cuba e a onda de golpes militares que se
seguiram no subcontinente, desacreditando a ortodoxia do pensamento marxista
calcado em anacrônicas noções dualistas e tornando evidente a relação de
“simbiose estrutural” estabelecida entre capital nacional e estrangeiro.
No plano da cultura, a década de 60 representou um divisor
de águas. A concepção "nacional-popular", que praticamente constituiu uma
tradição no pensamento brasileiro, se vê confrontada com a indústria da cultura,
que dificulta a permanência da visão messiânica do intelectual enquanto
responsável pelo projeto educativo e formador da consciência nacional. A
hegemonia das teorias isebianas que pressupunham a construção de uma cultura
original, remetiam ao futuro a condição ontológica do "ser" nacional e
decretavam a existência de uma relação reflexiva entre dependência econômica e
dependência cultural vai se chocar com uma produção artística que as
questionaria veementemente.
Diante de um cenário econômico, político e institucional
que desmentia as promessas utópicas tanto dos desenvolvimentistas quanto da
esquerda pré-64 e da desilusão quanto às possibilidades emancipatórias da
ciência e da técnica, após a invenção da bomba atômica, a "ideologia do futuro"
se vê seriamente abalada e a arte pode, então, se voltar para "o tempo presente,
os homens presentes, a vida presente".[xiv] A pop arte, o tropicalismo e a
contracultura se oferecem, assim, como sintomas das contradições em que se
enredara o capitalismo tardio. A "experiência do desbunde" dos anos 60 se
sustenta, como lembra Carlos Alberto M. Pereira, no seguinte tripé: "hedonismo,
ludicidade e erotização das relações sociais".[xv] A estetização do cotidiano se
traduz no experimentalismo artístico, que incorpora a exploração multisensorial,
tanto nas artes plásticas, quanto no teatro, no cinema, na música e na
literatura. O diálogo com a "cultura internacional-popular"[xvi] não significa,
entretanto, uma abstenção quanto às questões políticas da época. Não se advoga a
autonomia da arte, traduzida no imanentismo de certas experimentações
vanguardistas, mas sim a liberação da subjetividade na produção cultural, sem
corroborar a postura salvacionista que transformava o artista ou o intelectual
em tradutor da consciência da nação.
Evidentemente, mesmo entre os participantes dos movimentos
de renovação surgidos no período notam-se diferenças quanto à interpretação do
que se passava na sociedade e essas diferenças marcarão a forma como é elaborada
a questão da identidade e da temporalidade.
Tem se procurado elaborar, ultimamente, uma analogia entre
o que se passava na teoria econômica e na arena cultural: de um lado, os
defensores do movimento foquista, que advogavam o "socialismo ou a barbárie" e
uma produção artística ainda presa aos critérios de autenticidade e de
genuinidade; de outro, os que acreditavam numa relação de interdependência na
esfera macroeconômica e os novos antropófagos internacionalistas, que
retrabalhavam os ícones da indústria cultural. É fato que as duas tendências
culturais podem ser detectadas nessa época. Não se admite, entretanto, as
posições que enxergam uma relação de igualdade entre as duas esferas. Afinal, se
a teoria de Fernando Henrique Cardoso tende, principalmente hoje, a ser
considerada uma expressão do realismo conformista,[xvii] o mesmo não se pode
dizer de um movimento como o da Tropicália, que representou, na verdade, uma
alternativa à dicotomia desenvolvido/subdesenvolvido e à racionalidade burguesa,
que ainda pautava o pensamento da dependência.
A década de 60 constitui o momento áureo do sentimento de
unidade latino-americana. A consciência de que os países do subcontinente
partilham história e destino comuns evoca projeções identitárias, que rompem até
mesmo a barreira lingüística existente entre as Américas de colonização
hispânica e portuguesa. Como ocorrera em finais do século XIX e início do XX,
essas projeções refletem uma oposição à política de ingerência e desrespeito à
autonomia dos países latino-americanos demonstrados pelos Estados Unidos. O
repúdio ao imperialismo norte-americano justificou, no Brasil, os embates que se
travaram contra a indústria cultural, considerada instrumento de dominação
neocolonial, principalmente no âmbito da música popular brasileira. Mas o fato é
que muitas produções que incorporavam a cultura de massas assumiam também o
repúdio à dominação norte-americana, no plano político, econômico e até
cultural.
O latino-americanismo na arte de Glauber Rocha, Caetano
Veloso e José Agrippino de Paula foi uma expressão desta postura. No entanto, a
produção cultural dos anos 60 foi acusada à época de ambígua e desajustada à
realidade vivida no período. Tal crítica tem sido reativada, ultimamente, o que
evidencia a necessidade de, neste momento, se repensar criticamente o
significado da arte e da cultura, em geral, produzida naquela década. A crítica
mais contundente partiu, na época, de Roberto Schwarz, cujas idéias são hoje
retomadas por aqueles que querem combater a prática de devoração das idéias
estrangeiras pela cultura brasileira.
No artigo "Notas sobre a cultura e a política, 1964-1969",
publicado no calor dos acontecimentos, Schwarz coloca em questão o caráter
atemporal, e portanto a-histórico, da visão de Brasil enunciada pela arte
tropicalista, onde, segundo o autor, convivem harmoniosamente o lado arcaico e o
lado moderno do país. A coexistência dos contrários na alegoria de Brasil criada
tanto naquele momento, quanto no movimento modernista, revelaria o "absurdo"
como essência do ser nacional e desviaria a atenção da luta de classes, num
quadro de profunda repressão política. Neste artigo, o crítico antecipa, sem
contudo nomear, a construção teórica formulada em Ao vencedor as batatas,
publicado em 1981, que se traduz nos conceitos de "idéias fora do lugar" e de
"ideologia do segundo grau". Tais noções se referem à situação criada pela
importação das idéias que, incorporadas pela representação brasileira, cumprem
apenas a função de escamotear a violência das relações sociais aqui
estabelecidas.
Ao recuperar, na contemporaneidade, as idéias de Schwarz,
Paulo Arantes reforça a visão de que o problema é que na vanguarda modernista e
tropicalista, por extensão , o aniquilamento da sensação de inadequação, de
inautenticidade cultural, decorrente do "senso dos contrários", representa uma
"pacificação sem dialética", que se alcança através do "mito
progressista-conservador", representado pela ilusão da existência de um "país
não-oficial". No entendimento de Arantes se revela, a meu ver, justamente a
grande contribuição das narrativas contra-modernas (ou pós-modernas) do
tropicalismo. Nelas, não se postula realmente uma compreensão dialética da
história, onde o futuro deve comandar as ações do presente. Não se propõe uma
síntese, como na proposta oswaldiana, que acaba justificando a "ideologia da
transição" e a missão salvífica do intelectual. Se Schwarz e Arantes
conseguissem relativizar o quadro teórico da dependência cultural, talvez
percebessem que, realmente, a arte da década de 60 certamente guardadas as
devidas diferenças evidencia o absurdo, mas esse absurdo reflete e denuncia
muito mais as contradições do capitalismo tardio, em um país periférico do que
uma literatura que seguisse, nos dias de hoje, os parâmetros da representação
realista.
A ambigüidade que detectamos em Oswald de Andrade talvez
explique o fato de se pretenderem, tanto Glauber Rocha quanto Caetano Veloso e
José Agrippino de Paula, tradutores do legado oswaldiano. A representação
alegórica une a proposta estética de todos eles, mas a influência oswaldiana
assume conotações diferentes nos trabalhos de cada um. Uma dimensão que se pode
chamar ainda de nacionalista percorre as obras de Caetano Veloso e Glauber
Rocha. Em ambas, nota-se a mesma preocupação em formular um discurso
antropológico, que consiga revelar a riqueza cultural brasileira. O ponto de
partida, entretanto, é bastante diferente. Caetano se apropria
antropofagicamente tanto da tradição da música popular brasileira quanto dos
ícones da cultura de massa, mantendo, contudo, o objetivo de transcendê-la
esteticamente, desenvolvendo um produto de exportação, que demonstre a
capacidade de se produzir no Brasil uma mistura original e cosmopolita. Se em
Oswald ocorre, entretanto, a apropriação das técnicas de reprodução, mas não a
incorporação ao mercado (até mesmo em razão de sua inexistência, no período), no
capitalismo tardio as duas esferas tendem cada vez mais a se identificar e a
confundir as hierarquias no terreno da cultura. Esta realidade é facilmente
absorvida na proposta dos tropicalistas, que, lúdica e desculpabilizadamente, se
mostram sintonizados com as tendências estéticas internacionais do tempo
presente.
O mesmo não ocorre com Glauber Rocha, que, embora se
aproprie das técnicas de comunicação massiva, como as da televisão, persiste
rejeitando o sincretismo com a superficialidade da cultura
"internacional-popular". Nesse sentido, o cineasta assume uma perspectiva mais
próxima do nacionalismo romântico[xviii] e sua obra cinematográfica revela a
dimensão épica que resulta em uma maior densidade histórica. A antecipação da
crítica ao messianismo do intelectual em Terra em transe não o impede de dividir
com Oswald de Andrade o comprometimento com a utopia, o que o faz lutar contra
as formas de dominação exercidas pelo imperialismo cultural e recair no discurso
da identidade dos povos oprimidos. Daí a constante recorrência ao jargão
político-econômico criado em torno da noção de Terceiro Mundo, em sua obra
teórica e cinematográfica. Assumindo uma perspectiva estética revolucionária,
Glauber dramatiza em seus filmes, os problemas que unificam a “América nuestra”
evocada por Martí.
Já José Agrippino de Paula leva ao paroxismo, em
Panamérica, o conceito de antropofagia, ao representar a absorção dos discursos
políticos, históricos e artísticos pela indústria cultural. Expõe de forma
crítica, mas sem nenhum recurso à tradição, o espetáculo que constitui a
realidade contemporânea, na qual nada escapa ao caráter mitologizante da mídia.
A estratégia da presentificação é, em Agrippino, levada ao extremo, através do
tratamento sincrônico de fatos históricos ocorridos em momentos distintos, da
erotização das relações mais improváveis na vida cotidiana e da falta de
profundidade dos personagens. O rompimento das fronteiras geográficas entre os
países americanos, mais do que permitir a elaboração de uma crítica ao
imperialismo do norte, já enuncia uma certa homogeneidade cultural no
continente, uma vez que a representação da figura romântica de Che Guevara,
tradutora do esforço latino-americano de resistência, apenas denuncia a
fragilidade dos movimentos revolucionários. Como afirma Evelina Hoisel,
"Agrippino de Paula propõe o texto multinacional, que assume a perspectiva
industrial, tecnológica e hiperbólica do universo das multinacionais"[xix]
(grifo da autora).
Ao contrário do que se passava com Oswald de Andrade, a
sensibilidade pós-utópica de José Agrippino se revela no reconhecimento de que a
técnica não pode levar a um novo Matriarcado, mas sim à destruição humana e ao
caos.[xx] Ao invés de proporcionar a generalização do ócio e da festa, a
automação tecnológica acentua o desperdício e as oposições centro/periferia,
situação que evidencia as contradições que cada vez mais seriam evidenciadas
pelo capitalismo tardio[xxi], que, segundo Ernest Mandel, apresenta uma mistura
contraditória de racionalidade e irracionalidade, que pode fazer explodir o
sistema e, quem sabe, prenunciar uma reorganização do modo de produção. Nesse
caso, a anarquia poderia gerar uma nova utopia, não prevista em nenhuma síntese
dialética. Afinal, ao trazer o futuro para o presente, só se pode produzir uma
história aberta, sem roteiro predefinido.
Referências bibliográficas
[i] VELOSO, Caetano. Verdade
tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.14.
[ii] CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In:
A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, p.140-162.
[iii] Cf. MORENO, César Fernández (Coord.) América Latina
em sua literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.XXIII.
[iv] Cf. CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Crítica de la razón
latinoamericana. Barcelona: Puvill Libros, s.d., cap.3.
[v] Cf. ANTELO, Raúl. Na ilha de Marapatá; Mário de Andrade
lê os hispano-americanos. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL/Fundação Nacional
Pró-Memória, 1986, p.50.
[vi] Cf. CANCLINI, Néstor
García.La modernidad después de la posmodernidad. In: BELLUZZO, Ana Maria de
Moraes (Org.). Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo:
Memorial/UNESP, 1990, p.204-205.
[vii] RIBEIRO, Darcy.
América Latina: a pátria grande. Rio de Janeiro: Guanabara Dois, 1986, p.97.
[viii] FURTADO, Celso. Obra autobiográfica. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1997, v.2, p.241.
[ix] ALMINO, João. Um
falso problema? Folha de S. Paulo, São Paulo, 6 ago. 1988. Caderno Folhetim,
p.B-6.
[x] NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance
de todos. In: ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. São Paulo:
Globo/Secretaria de Estado da Cultura, 1990, p.5-39.
[xi] ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica, p.165.
[xii] ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica, p.145.
[xiii] Cf. HOLLANDA, Sergio Buarque de. Visões do
paraíso. São Paulo: Ed. Nacional/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia,
1977. No cap.VII, o autor nos informa que a disseminação do mito edênico no
Brasil constitui uma exceção na construção do imaginário do brasileiro, pouco
afeito às fantasias que proliferavam na América de colonização hispânica.
[xiv] ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, p.132.
[xv]PEREIRA, Carlos
Alberto Messeder. Retrato de época: poesia marginal anos 70. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1981.
[xvi] ORTIZ, Renato. A moderna tradição
brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.182.
[xvii]
Cf. FIORI, José Luís. Os moedeiros falsos. Petrópolis: Vozes, 1997;
VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O príncipe da moeda.Rio de Janeiro: Espaço e
Tempo, 1997.
[xviii] Cf. VELOSO, Caetano. Verdade
tropical, p.257, VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto, p.215.
[xix] HOISEL, Evelina. Supercaos; os estilhaços da cultura
em Panamérica e Nações Unidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Salvador:
Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1980, p.152.
[xx]
Ibidem, p.123-134.
[xxi] Cf. MANDEL, Ernest. O
capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p.358.
# Rildo Cosson - O
romance-reportagem depois dos anos 70
1. Horizonte
Metodológico
Os gêneros periféricos costumam ser tratados como uma massa
informe. Deles se apreende apenas um punhado de características vagas que mais
justificam a designação dada que a sua verdadeira constituição como gênero.
Muito menos se estuda suas obras individualmente, uma vez que o título genérico
é suficiente para as operações de contraste com os gêneros centrais. Frente tais
limitações de leitura é que se indaga: qual a visibilidade de um gênero
não-canônico como o romance-reportagem? É possível a construção de um cânone do
romance-reportagem conforme os padrões dos gêneros canônicos?
Aprendemos com a crítica feminista contemporânea que a
subversão ou revisão dos cânones estabelecidos é uma das estratégias básicas
daqueles que recusam tomar o campo literário como um espaço de pura expressão
estética. O trabalho de recuperação de autores esquecidos ou apagados, a
releitura de textos considerados menores e a configuração mesma de um cânone
paralelo demonstram que a permanência das obras não depende apenas de seus dotes
artísticos. Todavia, talvez porque lutem por um espaço maior no centro do
sistema literário ou porque desejem garantir maior visibilidade para seus
autores, os estudos feministas e de minorias terminam, em alguns casos,
subscrevendo os mesmos valores estéticos que deram suporte ao cânone oficial. Em
outras palavras, no afã de provar que as obras esquecidas são tão legítimas
quanto aquelas que já estão incluídas no cânone, o crítico deixa de lado as
diferenças e não questiona as razões das semelhanças.
Transposta para a leitura de gêneros não-canônicos como o
romance-reportagem, a situação delineada acima é um tanto mais complexa. Por um
lado, não se trata apenas da inclusão de novos autores e obras em um cânone
estabelecido, mas sim do questionamento das fronteiras estabelecidas para o
literário. Por outro, os gêneros já legitimados não podem ser tomados como
parâmetros de leitura porque eles são parte constitutiva do sistema que garante
a distinção entre canônico e não canônico. De fato, a própria posição central
que esses gêneros ocupam e sobre a qual repousa o conceito de literário implica
necessariamente em separação e exclusão.
Dessas breves considerações se conclui que o
estabelecimento de um cânone para o romance-reportagem exige muito mais que
simplesmente arrolar obras e hierarquizá-las segundo os critérios usuais da
crítica. Na verdade, faz-se necessário toda uma revisão dos aportes teóricos e
dos procedimentos metodológicos que envolvem o questionamento do cânone. Também
é fundamental um estudo amplo do sistema literário vigente a fim de que se possa
explicitar tanto a sua inserção periférica, quanto as possibilidades não
efetivadas. Igualmente importante é o estudo do gênero em seu percurso
histórico, compreendendo desde o estabelecimento de precursores até as suas mais
recentes manifestações. O caminho é longo e exige estudos que ultrapassam as
possibilidades desse texto. Um primeiro passo, que precede mesmo o atendimento
dos requisitos teóricos e metodológicos, consiste em resolver uma questão que a
recepção crítica do romance-reportagem no Brasil impôs ao gênero.
2. Horizonte Crítico
Emergindo com grande sucesso de público na segunda metade
da década de 70, o romance-reportagem recebe inicialmente uma ampla cobertura
jornalística. Nos reviews às obras e nas introduções às várias entrevistas de
José Louzeiro, considerado unanimemente como o principal autor desse tipo de
narrativa, os críticos apontam, como traços positivos do romance-reportagem, a
denúncia social e a mistura de jornalismo com literatura. Tanto num caso como no
outro, o gênero é um exemplo de resistência ao arbítrio do regime ditatorial.
Passado o momento das resenhas nos jornais que se sucedem às publicações das
obras, o romance-reportagem vai paulatinamente sendo apagado dos artigos,
ensaios e textos acadêmicos que compõem o centro da crítica literária. Nas
poucas vezes que o gênero ganha atenção dessa crítica, ele é majoritariamente
visto de maneira negativa. Para os críticos literários, a hibridização proposta
pelo romance-reportagem é um equívoco de época, seja porque transpõe sem
filtragem temas e técnicas jornalísticas para a literatura, seja porque
apresenta uma baixa ou repetida elaboração da linguagem literária. Essas falhas
formais atingem também a sua denúncia que, sem apoiar-se em um ato
verdadeiramente criativo, é apenas uma maneira ingênua, quando não inócua, de
fazer crítica social. Desse modo, o romance-reportagem não deveria nem mesmo ser
visto como um gênero, conforme o fizeram os críticos jornalísticos, mas sim como
um fenômeno de época que imprimiu na literatura os tons e as cores do
jornalismo.
A leitura do conjunto da recepção crítica do
romance-reportagem deixa várias questões em aberto. Aqui nos interessa salientar
essa que faz do gênero expressão malograda de uma época. Em primeiro lugar
cumpre destacar que a posição do romance-reportagem dada pela crítica faz parte
da configuração do campo literário nos anos 70 ou, mais especificamente, do
rearranjo do cânone que se processa após o esfacelamento da frente de
resistência à ditadura. Neste contexto, o romance-reportagem, admitido
momentaneamente no conjunto das obras representativas do período, termina por se
configurar como o aspecto negativo dessa produção literária. Se as obras são
documentais na resistência à ditadura, o romance-reportagem representa o excesso
dessa documentalidade, comprometendo-se mais com a política do que com a
literatura. Se os escritores tomam de empréstimo ao jornalismo fórmulas
narrativas, o romance-reportagem se afirma como a própria fusão de jornalismo e
literatura, adquirindo por esse meio o caráter de obra ‘bastarda’. Se as
narrativas alegorizam, através do fantástico ou do absurdo, o arbítrio
ditatorial, o romance-reportagem realiza essa alegoria com as armas realistas
dos casos singulares. Se as obras literárias do período desconfiam das verdades
e desafiam as certezas sobre o mundo burguês, o romance-reportagem é primário,
unívoco e dogmático em sua tentativa de retratar a sociedade brasileira. Em
suma, qualquer que seja a característica atribuída à produção literária dos anos
70, o romance-reportagem serve de fundo e contraste para que se valorize, apesar
dos problemas detectados, parte dessa produção. Sem o limite alto das
obras-primas ou com esse limite localizado no passado modernista, a crítica usa
o romance-reportagem como ponto de partida para situar determinadas obras acima
do que considera as inconsistências da época.
Mais que isso, é graças a tal mecanismo que a crítica só
consegue ler o romance-reportagem pelas ausências que apresenta, pelo que lhe
falta e não pelo que lhe é peculiar e próprio. É também por cumprir a função de
limite baixo das narrativas literárias da década de 70 que o romance-reportagem
não pode ser visto como um gênero à parte. Daí o apagamento do seu lado
jornalístico que, se mantido, perturbaria a sua assimilação, ainda que negativa,
ao campo literário. Daí o pouco interesse em analisar o conjunto dessas
narrativas e a preferência por exemplo isolados, quando não impróprios para o
sentido que remete a expressão. Daí o uso indiscriminado do rótulo
romance-reportagem para as narrativas dos anos 70, mas o seu progressivo
apagamento fora desse período histórico. Finalmente, transformando o
romance-reportagem em uma tendência da época, a crítica adquiria um instrumento
de fácil manipulação para o seu trabalho de realinhamento do cânone. Dessa
forma, romance-reportagem termina sendo um rótulo geral para todo texto que,
produzido na década de 70, não possui as características necessárias de
elaboração da linguagem literária para ser integrado ao cânone brasileiro.
Todavia, se é verdade que o romance-reportagem teve grande
sucesso nos anos 70, nem por isso pode ser reduzido apenas a um fenômeno de
época. Até mesmo porque a produção de obras do gênero perdurará para além desse
círculo histórico. As décadas de 80 e 90 apresentam novos títulos que asseguram
continuidade ao romance-reportagem, ainda que essa produção receba pouca atenção
e, alguns casos, nem mesmo use o rótulo genérico. São alguns desses títulos que
vamos apresentar brevemente a seguir.
3. Horizonte de Leitura
Se a reprovação da crítica cumpriu, indubitavelmente, um
papel relevante no apagamento do romance-reportagem dentro do cenário cultural
brasileiro, nem por isso obras que misturam literatura e jornalismo deixaram de
ser escritas e publicadas. Em 1987 dois sucateiros invadem uma casa abandonada,
onde antes funcionava o Instituto Goiano de Radioterapia, em busca de qualquer
objeto que pudesse ser vendido no ferro-velho. O resultado dessa aventura chegou
às páginas dos jornais de Goiânia e de todo Brasil como o “caso do Césio-137”.
No mesmo ano, a história é transformada por Fernando Pinto em livro com o título
A Menina Que Comeu Césio[i]. Em 1988, um assalto a banco em Londrina envolvendo
centenas de reféns “parece coisa de cinema”, mas termina é na forma de um livro,
assinado por Domingos Pellegrini Jr. com o título Assalto à Brasileira[ii]. Em
1989, o assassinato de um casal da alta classe média paulista, os Bouchacki, e o
provável envolvimento do filho mais velho do casal no crime também termina sendo
registrado em livro com o título de O Crime da Rua Cuba, por Percival de
Souza[iii]. Em 1993, a juíza Denise Frossard surpreende a imprensa ao condenar a
seis anos de prisão os quatorze maiores banqueiros do jogo-do-bicho no estado do
Rio de Janeiro. Tanto na acusação do promotor, quanto na sentença da juíza uma
obra é citada: Avestruz, Águia e ... Cocaína, de Valério Meinel[iv], publicada
pela primeira vez em 1987.
Também na década de 90, dois outros livros causam impacto
pelo trabalho intenso de reconstituição de acontecimentos históricos. O primeiro
deles, escrito em 1995, é As Noites das Grandes Fogueiras, de Domingos
Meireles[v], dedicado a recontar a trajetória da Coluna Prestes. O segundo, de
1998, é Fera de Macabu, de Carlos Marchi[vi], tratando do caso Coqueiro ou como
diz o subtítulo “a história e o romance de um condenado à morte”.
Todos esses autores citados são jornalistas e também
escritores. Todas as obras referidas acima são reconstruções de acontecimentos
factuais e empregam em maior ou menor intensidade artifícios narrativos
usualmente encontrados em obras de ficção. Pelo menos é isso que nos informam os
editores e apresentadores desses textos. Na orelha de A Menina Que Comeu Césio,
a repórter Marlene Galeazzi explica que “não se trata de um trabalho
exclusivamente jornalístico. Ele pesquisou como um repórter deve pesquisar e
escreveu como deve fazer um escritor”. A contracapa de Assalto à Brasileira
declara que “este é o primeiro livro-reportagem de Domingos Pellegrini, depois
de vários volumes de contos e novelas. Aqui a técnica do narrador se junta à
experiência do repórter para tratar de um fenômeno típico do Brasil pós-Cruzado:
os assaltos com reféns”. Também na contracapa de O Crime da Rua Cuba, o editor
afirma que “apelando para um recurso típico de textos de ficção - um narrador,
uma máquina do tempo - o jornalista Percival de Souza constrói, neste livro, uma
narrativa vibrante, que organiza fatos e hipóteses, pistas e mistérios. Uma
reportagem que enriquece as informações e a discussão de um dos mais
controvertidos crimes dos dias de hoje”. O livro de Valério Meinel traz expressa
a indicação de que é um romance, mas o prefaciador não se engana em dizer que
“Avestruz, Águia e... Cocaína é um belo romance com as cores vivas de fantástica
reportagem, digna de merecido Prêmio Esso” (p. 7). Na orelha, os editores também
enfatizam que o livro é “um documento definitivo, onde ficção e realidade se
confundem para levar o leitor às profundezas do mega-esquema de intimidação e
corrupção montado pelos reis do bicho”. Domingos Meirelles declara na introdução
de seu livro que se trata de “um relato histórico, captado com a técnica de
investigação do jornalista e montada com a paixão do repórter” (p. 28), mas a
apresentação de Maurício Azêdo não deixa de registrar que “nada do que está
presente na obra é fruto de ficção ou fabulação”, porém “como este momento e
seus agentes não foram focalizados pela lente fria do historiador profissional,
mas pelo olhar sensível do repórter, capaz de recompor, com alma, carne e ossos,
personagens/seres feitos com a massa, inclusive a de sonhos e ilusões, que forma
as criaturas humanas, a narrativa assumiu um ritmo romanesco” (p. 12). Também
Carlos Marchi, em sua “Nota do Autor”, explicita que “todos os personagens,
fatos e datas aqui narrados são verdadeiros” (p. XVI), mas indica ao leitor que
em alguns momentos recorreu a construções ficcionais.
As apresentações desses livros em muito se assemelham com
aquelas que introduziam os romances-reportagem dos anos 70. Todavia, nenhum
deles assume a filiação ao gênero. O livro de Fernando Pinto não contém nenhuma
indicação de gênero ou estatuto narrativo. Pellegrini Jr. adota a chancela de
livro-reportagem[vii]. O caso de Percival de Souza é de uma narrativa que, sendo
reportagem, utiliza-se dos recursos da ficção. No posfácio de seu livro, Valério
Meinel, não por acaso um dos grandes nomes do romance-reportagem da década de
70, explica que escreveu uma reportagem na forma de romance para evitar
problemas com a justiça. As obras de Domingos Meirelles e Carlos Marchi estão
registradas como história do Brasil e parece ser essa a ambição maior dos
autores, como se pode ver na preocupação de apresentar bibliografia, fotografias
e reproduções de documentos.
Mas há aqueles que parecem não temer processos judiciais,
nem são partidários de novas denominações, nem receiam restringir o público
leitor através de um compromisso genérico. Adotando o rótulo de
romance-reportagem temos pelo menos três obras que ultrapassam a década de 70. A
primeira delas é Lula e a Greve dos Peões, do jornalista Antonio Possidonio
Sampaio[viii], publicada ainda em 1982. Trata-se de um registro fortemente
engajado das greves do ABC que sacudiram a ditadura na segunda metade da década
de 70. O autor se utiliza de várias estratégias narrativas, a mais curiosa delas
é uma certa proximidade com a estrutura de enunciação de Grande Sertão: Veredas.
Já nos anos 90, temos os textos A Prisioneira do Castelinho do Alto da Bronze,
de Juremir Machado[ix], e Para sempre, Flamengo, de Jeferson de Andrade[x]. No
primeiro caso, temos um conto de Cinderela às avessas no qual se denuncia a
situação de opressão das mulheres nos anos 50. No segundo, conforme indica o
título, uma tentativa de registrar as agruras e as emoções dos torcedores do
Flamengo como um time de massas e do futebol como o esporte das multidões.
A feitura narrativa dessas obras é diversificada e, muitas
vezes, insatisfatória para olhos adaptados aos textos inteiramente ficcionais. O
rigor documental, até excessivo em alguns casos, parece indicar uma maior
proximidade com o discurso jornalístico. A escolha dos temas é mais ampla e
menos imediata do que na década de 70. Nada disso, porém , desautoriza uma
continuidade do romance-reportagem como gênero. Se é verdade que nem todas as
obras que afirmam promover o encontro da literatura com o jornalismo podem ser
tomadas como romances-reportagem, também é certo que várias delas possuem todas
as propriedades discursivas fundamentais que fazem desse tipo de narrativa um
gênero separado quer do romance, quer da reportagem.
A indicação desses textos não se pretende uma busca
sistemática de títulos que misturam jornalismo e literatura dando continuidade
às obras rotuladas como romances-reportagens nos anos 70. Mesmo assim, essas
indicações esparsas comprovam que o gênero sobreviveu ao seu momento de apogeu
inicial. Sobreviveu sem sua designação genérica. Sobreviveu com a sua designação
genérica. É tal sobrevivência que está demandando uma leitura do gênero para
além dos limites estreitos da década de 70 que lhe foram designados pela
crítica. Seria este um primeiro passo no sentido de construir o cânone de um
gênero não-canônico como o romance-reportagem?
Pelotas, outono de 2000
Notas:
[i] Brasília: Ideal, 1987.
[ii] São Paulo: Busca Vida, 1988.
[iii] São Paulo: Atual, 1989.
[iv]
2 Ed. Porto Alegre: L&PM, 1994.
[v] 5 ed. Rio de
Janeiro: Record, 1997
[vi] Rio de Janeiro: Record,
1998.
[vii] Conforme se pode ler no subtítulo do livro
de Edvaldo Pereira LIMA, Páginas ampliadas - o livro-reportagem como extensão do
jornalismo e da literatura. Capinas, SP: Editora a UNICAMP, 1993, o
livro-reportagem também relaciona jornalismo com a literatura. Note-se, porém,
que os títulos dos romances-reportagem de 70 não aparecem nesse estudo, apesar
do autor apontar vários exemplos de contaminação dos discursos literário e
jornalístico, como é o caso do New Journalism e de Euclides da Cunha.
[viii] Romance-reportagem. São Paulo: Escrita,1982.
[ix] Romance-reportagem. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
1993.
[x] Romance-reportagem. Rio de Janeiro:
Irradiação Cultural, 1996. [topo da
página]
# Rosana Cristina Zanelatto Santos - Representações da mulher em narrativas literárias e
históricas
Procuramos,
dentre outras questões, ressaltar em nossa pesquisa de doutorado a hipótese de
que há, na realidade empírica e nas formas que a representam – a literatura, a
história –, uma transformação progressiva de conceitos básicos, trabalhando,
mesmo que implicitamente, com a idéia da longa duração, ou seja, tentando
identificar conexões entre comportamentos, mentalidade e a construção de
modelos/clichês literários e históricos num período de tempo que ultrapassa os
limites de períodos cronológica e factualmente marcados. Para tanto, analisamos
a construção das personagens femininas – mais especificamente, Isabel de Aragão
e Inês de Castro – na Crónica de D. Dinis, em edição organizada por Carlos da
Silva Tarouca com base no texto inédito do Código Cadaval 965, e na Crónica de
D. Pedro, de Fernão Lopes, e nos poemas dramáticos de António Patrício, Dinis e
Isabel – conto de primavera e Pedro, o Cru, ambas produções da década de 10 do
século XX. Esclarecemos que, de início, não pretendíamos nos deter sobre as
crônicas; elas nos interessavam na medida em que alguns episódios e personagens
por elas retratados são o mote da ação dos poemas de Patrício. No entanto, ao
longo da pesquisa, foi perceptível que as crônicas estão marcadas pela presença
de personagens nas quais os traços pessoais e históricos anulam-se em favor de
uma caracterização aistórica, o que nos levou a analisá-las.
Consideramos tanto o texto literário quanto o texto
histórico como narrativas de acontecimentos, seguindo a distinção traçada por
Aristóteles em sua Poética:
Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por
escreverem verso ou prosa (pois bem poderiam ser postos em verso as obras de
Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que
eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as
que poderiam suceder. (1993, 1451b, p. 53)
Acrescentemos às reflexões aristotélicas que a mão
“tecedeira” das narrativas literárias e das históricas seleciona e organiza os
conteúdos que lhe interessam, realizando um trabalho depurativo na construção de
modelos/clichês. Nesse processo de seleção – aqui nos referimos de modo especial
aos textos analisados em nossa pesquisa de doutorado –, insere-se “(...) a
mulher ausente [, morta,] – lar simbólico eminentemente receptivo e sem qualquer
dúvida superinvestido onde, a despeito de si mesmos, os homens albergam as suas
contradições e os seus sonhos.” (MICHAUD, [s.d.], p. 148)
O mote do cavaleiro que serve sua dama por amor, mesmo que
ela esteja ausente, morta – como acontece nos poemas de António Patrício: Isabel
é a rainha moribunda e Inês, a rainha entronada depois de morta – é o ponto de
partida de onde parte a fantasia de poetas e cronistas.
É a sensualidade transformada em ânsia de sacrifício, no
desejo revelado pelo macho de mostrar a sua coragem, de correr perigos, de ser
forte, de sofrer e sangrar diante da amada. (...) O homem não se contentará
somente em sofrer; ambicionará salvar do perigo ou do desespero o objeto de seu
desejo. (HUIZINGA, 1978, p. 74)
Essa estilização do amor parece ser fruto de uma
necessidade dos homens de todos os tempos, uma força tão vibrante quanto a vida.
O amor é um ritual transbordante de apelo passional, capaz de engendrar um
sistema simbólico de normas que modula as emoções e auxilia o homem a escapar da
barbárie. O espírito humano precisa dessas formas simbólicas para sobreviver.
Nesse contexto, a morte não é uma representação macabra;
ela é o limite entre a brevidade das glórias – dentre elas, o amor – e dos
infortúnios terrenos e a possibilidade, por via do reconhecimento das limitações
humanas, da redenção da alma e da extensão eterna de um amor que nasceu terreno.
Nos textos analisados em nossa pesquisa, com destaque para os poemas de António
Patrício, a morte é extensão natural da vida:
Dinis, como a
si mesmo
Só a morte é
real, e quando a vemos, tudo recua em corredores de sonho...
O Bobo
A mim lembra-me
um conto, tudo isto. A Morte está a contá-lo, está a contá-lo, ela quedou assim
p’ra ouvir melhor...
Dinis
Não quero que
acabe. Não acaba. (Como implorando) Ninguém venha ainda...
(...) Não quero
mal à Morte: está connosco. Sinto-a à nossa roda. (PATRÍCIO, 1919, p. 168-169)
Pedro
Parece-me...
parece, minha Inês, que despertei... Estava a teu lado... Tu – sempre dormindo.
Ergui a pedra do outro Paço... do meu lar... E ainda com terra da cova, ainda
contigo... voltei a Portugal... do outro reino... (Levanta a mão-cheia de terra:
beija-a: fica a olhá-la) (...) A terra... a terra que fechou a tua boca – o
segredo do amor p’ra além da Morte... (Beija-a de novo) É terra santa.
(PATRÍCIO, 1925, p. 81)
Quanto aos textos históricos, a morte é vista de modo mais
doloroso, porém, com a mesma expectativa de um possível reencontro n’outro nível
que não o terreno. Sabemos que Isabel de Aragão morreu depois de D. Dinis e após
a morte do rei, teria proferido as seguintes palavras:
Pois Deus por seu gramde poder e profundo juizo houue por
bem, que ha morte delRey meu senhor e marydo antecypase a minha, e sem su vyda
eu fico e sou tamto como morta, e de rezão eu oje mory com ele, (...) Porque a
vyda que sem ele vyver, seja com doo e trysteza pera sempre. (TAROUCA, 1947, p.
242)
Na Crónica de D. Pedro, no capítulo em que se narra a
trasladação de Inês de Castro para Alcobaça, o cronista reforça o papel da
memória na manutenção da presença da morta:
Porque semelhante amor qual el-rei Dom Pedro houve a Dona
Inês raramente é achado nalguma pessoa, porém disseram os antigos que nenhum é
tão verdadeiramente achado como aquele cuja morte não tira da memória o grande
espaço de tempo. (LOPES, 1977, p. 166)
Ao retomar e revitalizar mitos caros à cultura portuguesa –
o amor entre Dinis e Isabel e Pedro e Inês -, António Patrício conseguiu captar
e representar os anseios do espírito humano e que, por isso, resistem à ação do
tempo. O poeta busca o retorno ao princípio erótico/vital, conservado sob o
manto da morte, visto que perdido na vulgarização e na cassação da naturalidade
humana perpetradas pela sociedade materialista e tecnicista do século XIX.
Referências
bibliográficas:
ARISTÓTELES. Poética. Trad.
Eudoro de Souza. 2. ed. São Paulo : Ars Poetica, 1993.
HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Trad. Augusto
Abelaira. São Paulo : Verbo; Editora da USP, 1978.
LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro. [s.l.] : Horizonte,
1977.
MICHAUD, Stéphane. Idolatria: representações
artísticas e literárias. In: FRAISSE, Geneviève; PERROT, Michelle (org.).
História das mulheres no Ocidente. Trad. Cláudia Gonçalves e Egito Gonçalves.
Porto : Afrontamento; São Paulo : Ebradil, [s.d.]. (V. 4 – O século XIX)
PATRÏCIO, António. Dinis e Isabel – conto de primavera.
Lisboa : Livrarias Aillaud e Bertrand, 1919.
_____.
Pedro, o Cru. 2. ed. Lisboa : Livrarias Aillaud e Bertrand, 1925.
TAROUCA, Carlos da Silva (org.). Crónica de D. Dinis.
Edição do texto inédito do Cod. Cadaval 965. Coimbra : Universidade de Coimbra,
1947. [topo da
página]
# Rosani U. Ketzer - Representações de autoritarismo em obras da literatura
contemporânea na RDA
O trabalho tem
por objetivo analisar representações de autoritarismo em obras da literatura
alemã contemporânea. Entre os autores selecionados estão Christoph Hein, Erich
Loest e Christa Wolf. Eles têm em comum, além de serem oriundos da extinta
República Democrática Alemã (RDA), o fato de retratarem sistemas autoritários e
também de tematizarem fatos históricos relacionados com a repressão, ocorridos
durante a vigência do regime socialista na RDA.
Entre as obras dos autores abordados, foram escolhidas Der
Fremde Freund (1982), de Christoph Hein, Zwiebelmuster (1985), de Erich Loest, e
Was bleibt (1990), de Christa Wolf. Nelas, é tematizada a angústia das
personagens frente ao autoritarismo. Sem entrar aqui na discussão das ciências
políticas em torno da definição dos termos ‘autoritarismo’, ‘totalitarismo’ e
‘fascismo’, tomamos por base um conjunto de características comuns aos sistemas
autoritários para selecionar o pano de fundo extraliterário para esse estudo.
„Trata-se de sistemas que têm uma estrutura monística de governo, que detêm o
monopólio sobre armas, economia e imprensa e que procuram implantar uma
ideologia de Estado oficial com auxílio de uma polícia secreta, que controla os
indivíduos“ (MÖLLER-ZEIDLER, 1995, p. 219). Essas características eram inerentes
ao regime socialista da RDA, que surgiu após a II Guerra, no bojo da ocupação
soviética, e se prolongou até a queda do Muro de Berlim, em 1989.
Dentro do regime socialista alemão, a repressão - entendida
aqui como movimento que visa a suprimir uma oposição real ou imaginária - era
aguçada em situações de crise política. Por ocasião do levante de trabalhadores
em junho de 1953, por exemplo, tanques soviéticos reinstauraram a ‘ordem’,
reprimindo os protestos. Nos anos seguintes, intelectuais que pediam reformas
foram presos, professores universitários perderam o direito à docência,
escritores como Erich Loest foram proibidos de publicar. Em 1961, com a
construção do Muro de Berlim, os cidadãos perderam o direito de viajar para o
lado ocidental; viajar passou a constituir-se em um privilégio concedido pelo
Estado em troca do apoio ao sistema vigente. O serviço secreto, denominado
„Staatssicherheitsdienst“ ou simplesmente „Stasi“, estendeu sua rede de
espionagem por todo o país, ameaçando não só os intelectuais, mas também os
trabalhadores.
Cenários de insegurança e medo, de repressão, são
retratados nas obras dos autores aqui abordados. Eles viveram o período
autoritário do regime socialista em seu país, sendo que Erich Loest e Christa
Wolf tiveram contato com o autoritarismo do regime nazista na juventude.
Enquanto Christoph Hein, que começou a publicar em 1980, e Christa Wolf, que
iniciou sua carreira literária em 1962, sempre permaneceram no lado oriental,
Erich Loest – escritor desde 1950, preso em 1957 por motivos políticos e
condenado a vários anos de prisão – mudou-se para a Alemanha Ocidental em 1981.
Loest sofreu várias formas de censura enquanto escrevia na
RDA. Seu romance Es geht seinen Gang oder Mühen in unserer Ebene (1978) passou
por todas as instâncias da pré-censura, como era de praxe (editora, ‘Lektor’,
chefe da editora, Departamento de publicações do Ministério da Cultura). Foi
publicado e, depois de esgotada a primeira edição, uma segunda edição foi
proibida, caracterizando um caso de pós-censura. Como conseqüência dos atos de
censura, o escritor deixou seu país e passou a publicar na Alemanha Ocidental.
Christa Wolf e Christoph Hein fazem parte de um outro grupo de escritores da RDA
que, embora tentasse manter uma posição crítica em relação ao regime socialista,
permaneceu-lhe leal até o fim. Imbuídos de uma visão anti-imperialista, esses
escritores, ao mesmo tempo „críticos e leais“ (DOMDEY, 1996, p.167), pregavam a
reforma do sistema, cujas mazelas eram incontestáveis. Mas, para que a ‘opção
Socialismo’ pudesse ser mantida, continuavam aliados ao regime. Como Erich
Loest, Christa Wolf também foi submetida à pré-censura e, em pelo menos uma
ocasião, houve pequenos cortes em sua obra Kassandra (1983), motivados pela
censura. Christoph Hein, embora não tenha sofrido censura direta em seus textos,
condenou-a em um famoso discurso no X Congresso dos Escritores da RDA em 1987,
classificando-a como „prescrita, inútil, paradoxal [...]“ (HEIN, 1990, p.144s.).
A diferença essencial entre os autores é que, enquanto Loest radicalizou sua
crítica para uma crítica ao sistema como um todo, Wolf e Hein visavam, com sua
crítica, à reforma do sistema.
No contexto da literatura alemã contemporânea, Erich Loest
figura entre os escritores vindos do lado oriental, cuja temática continua
centrada na RDA, mesmo depois de já viverem há muitos anos no lado ocidental.
Christa Wolf, considerada a mais importante autora da RDA e, devido à sua
projeção também na Alemanha Ocidental, uma das maiores escritoras da Alemanha
unificada, igualmente fez da RDA um de seus temas principais. Christoph Hein, de
uma geração posterior, é considerado um grande prosador e dramaturgo, cujo tema
recorrente são conflitos do cotidiano na RDA.
Christoph Hein mostra a dor e os sofrimentos da vida na RDA
através de personagens calcadas em pessoas comuns, retratando seu dia-a-dia no
trabalho e sua vida particular em Der fremde Freund, publicado em 1982. Erich
Loest procura apresentar, como na maioria de seus romances, um retrato realista
e crítico da RDA em Zwiebelmuster, publicado na Alemanha Ocidental em 1985,
quando o autor já havia deixado seu país. Também realista e crítico é o retrato
da Alemanha Oriental feito por Christa Wolf em Was bleibt, onde ela mostra os
métodos de espionagem que eram usados contra a população na extinta RDA. Embora
tenha escrito o livro em 1979, a autora só liberou sua publicação dez anos
depois, quando o regime socialista havia caído, caracterizando, com isso, um
caso de auto-censura.
1. Der fremde Freund (Christoph Hein, 1982): angústia, medo
e silêncio
A personagem central da novela de Christoph Hein, a médica
Claudia, é retratada como sendo uma pessoa extremamente solitária, que esconde
sua vulnerabilidade sob um manto de frieza. Uma das experiências que mais a
marcaram em seus tempos de adolescência é a chegada de um tanque a sua cidade. A
cena faz referência ao dia 17 de junho de 1953, data histórica na RDA, em que
ocorreu um levante de trabalhadores, insatisfeitos com a situação nas fábricas,
onde era exigido um aumento constante de produção. O levante foi reprimido pelos
tanques soviéticos, que se tornaram um símbolo de repressão na literatura
produzida na RDA.
Em Der fremde Freund, a chegada do tanque à pequena cidade
provoca perplexidade na população, que entretanto não se manifesta sobre o
assunto, com medo da repressão. Também na escola não se fala sobre o estranho
acontecimento; a professora, agitada, passa mal e é levada para casa por dois
alunos. O pai de Claudia a aconselha a não fazer perguntas na escola, nem
discutir sobre o fato, pois não seria o momento oportuno. E, de fato, “nenhum
dos alunos quis saber algo, e os professores, igualmente, nada disseram.” (145 –
Tradução minha; citações seguintes, idem) As lembranças de Claudia sobre a
reação das pessoas à chegada do tanque explicam a causa do silêncio dos adultos:
“Não entendi por que não se podia falar sobre o assunto. Mas como realmente
nenhum dos adultos falava sobre o tanque, percebi que uma conversa também podia
ser algo perigoso. Senti o medo dos adultos de falarem uns com os outros. E
fiquei quieta, para que eles não precisassem falar.” (145-6) O medo das pessoas
de expressar sua opinião diante de acontecimentos políticos é típico de regimes
ditatoriais, que usam a força, simbolizada pelo tanque, para reprimir
manifestações da população. A adolescente Claudia associa esse medo de falar
abertamente sobre fatos políticos com outro sentimento, que teve ao ouvir as
explicações de sua mãe sobre sexualidade: “Eu temia que, depois de uma conversa
importuna imposta a eles sobre um de seus tabus, novamente seres repugnantes,
com doenças venéreas, me seguiriam para dentro dos meus sonhos. Eu aprendi a
calar.” (146) Assim, sentimentos de medo e angústia se misturam e influenciam a
postura adotada pela personagem daí por diante.
2. Zwiebelmuster(Erich Loest, 1985): alienação
Em Zwiebelmuster, a repressão causa a alienação da
personagem principal, o escritor Hans-Georg Haas. O grande sonho do escritor é
fazer uma viagem para o lado ocidental, o maior privilégio que a RDA tem a
oferecer a seus cidadãos: visitar um país fora do bloco socialista depende da
concessão de uma licença especial por parte do regime. Na visão da personagem,
esse privilégio está diretamente ligado a seu status como escritor, pois só os
autores renomados conseguiriam o visto para países ocidentais. Assim sendo, ele
procura desenvolver sua carreira literária dentro dos limites estéticos e
ideológicos estabelecidos pela política cultural. Por não conseguir fazer a
sonhada viagem, acaba sentindo-se um cidadão de segunda classe e ficando
alienado em um mundo próprio, internado numa clínica psiquiátrica, à mercê das
decisões do partido.
O regime autoritário é representado pela polícia política
secreta, pela existência de um partido único, pela distribuição de privilégios e
pela atuação de órgãos de censura institucionalizados. A princípio, o
autoritarismo não incomoda o escritor, já que ele se sente integrado ao sistema,
do qual espera obter o privilégio maior: a permissão para viajar para o
Ocidente. Para Haas, o destino da viagem não faz muita diferença; para cada
país, ele imaginou um tema sobre o qual poderia escrever para justificar a
viagem. Por isso, Haas não consegue superar sua frustração e sua angústia, ao
perceber que o partido lhe nega o privilégio. Ele perde sua auto-estima e passa
a cometer pequenos atos de rebeldia, de insubordinação às normas estabelecidas.
Cenas de autoritarismo e de repressão também são
apresentadas no contexto de uma passeata organizada por um grupo ecológico, que
protesta contra a poluição de uma fábrica de cimento, causadora de danos à saúde
da população. Por ter participado da passeata, a filha do escritor, Marion, fica
proibida pelos agentes secretos de ver seu namorado holandês, considerado um
‚inimigo da classe operária‘, simplesmente por ser de um país capitalista. O
texto faz alusões à luta ideológica existente na época da Guerra Fria, que se
refletiu intensamente na Alemanha dividida.
3. Was bleibt (Christa Wolf, 1990): angústia e bloqueio
psíquico
A narrativa tem como tema a angústia da personagem central,
uma escritora de meia idade, que está sendo espionada pelo serviço secreto de
segurança do Estado. Bloqueada pela angústia, a escritora não consegue escrever.
Na tentativa de superar o bloqueio, a personagem volta-se para dentro de si
mesma, buscando, através de um processo de conscientização, retornar ao caminho
da autonomia.
O tema das reflexões da personagem narradora é o efeito da
espionagem sobre sua personalidade. Uma das conseqüências da repressão a que
está sendo submetida seria a intimidação. Segundo a narradora, esta seria
exatamente a intenção dos agentes do serviço secreto: “Provocar o medo, que,
como se sabe, leva muitas pessoas a transigir, outras a ações precipitadas que,
por sua vez, podiam servir de novo como demonstração de indícios para a
necessidade da observação.” (21) O medo faz com que a personagem escritora se
sinta seqüestrada, conforme sua própria descrição: “Seqüestro, sim, era isso,
seqüestrada, em aflições.” (17) Com essa afirmação, a narradora admite sua
subjugação e seu medo, causados pela espionagem. Ela se sente tratada como
coisa, degradada a objeto.
O fato de a personagem escritora sentir medo até nos
momentos em que não está sendo espionada pelos agentes, que normalmente ficam
dentro do carro em frente a sua casa, aponta para a internalização do medo. O
medo continua agindo, mesmo quando os agentes não estão por perto, e torna-se um
fenômeno permanente. Aterrorizada, ela sente sua personalidade ameaçada: “O mais
puro horror, eu não sabia que ele se anunciava como insensibilidade.” (80) O
efeito do terror sobre a personagem é sua dissolução como sujeito autônomo.
O reconhecimento das estruturas totalitárias de poder e
também de suas próprias ilusões pressupõe a superação do medo. Significa
enfrentar o processo doloroso de conscientização. A personagem narradora reflete
sobre a dificuldade de reconhecer a ‘verdade’ sobre as estruturas da sociedade,
de se livrar de ilusões e medos, de ver as próprias fraquezas. O medo de perder
a esperança relacionada com o socialismo da RDA e a dor da conscientização
causam conflitos de identidade: “Eu mesma. Quem era essa. Qual dos múltiplos
seres que constituem ‘eu mesma’. Esse que queria conhecer a si próprio? Esse que
queria resguardar-se? Ou aquele terceiro que ainda estava tentado a dançar a
mesma música que os jovens senhores lá fora em frente à minha porta?” (57) Com a
expressão “jovens senhores lá fora”, a narradora refere-se aos agentes do
serviço secreto que a observam da rua. Para superar seu bloqueio e reconquistar
sua autonomia, a narradora precisa acreditar que um dia teria “tirado” de si e
escorraçado “aquele terceiro”, e que ela “realmente queria isso”. Isso significa
que ela tem de desistir de um de seus “múltiplos seres”, superando sua tendência
de concordar com o regime estabelecido e perdendo seu medo da repressão.
4. A repressão e a destruição da personalidade
Nos três textos aqui abordados, a repressão é causadora da
destruição da personalidade das personagens retratadas. Em virtude da
personalidade destruída, as personagens podem apresentar perda de autonomia e de
autoconfiança, sentimentos de angústia, medo e até de completa insensibilidade.
As personagens estão sujeitas aos ditames do Estado, dependentes da estrutura
político-social vigente. Nesse sentido, elas são apresentadas como vítimas da
repressão. Entretanto, há diferenças na tipificação das personagens quanto a sua
reação ao sistema: a médica Claudia, de O amigo distante, acomoda-se ao sistema
vigente, tentando proteger-se por uma aura de invulnerabilidade; o escritor
Haas, de Zwiebelmuster, acaba internado numa clínica psiquiátrica, na
dependência de um terapeuta; já a narradora escritora de Was bleibt supera sua
crise existencial e retorna à sua independência, que havia perdido
temporariamente, voltando a escrever.
A “variante real-socialista, específica, de destruição da
identidade” (KRAUSS, 1991, p. 19) está relacionada, nos três textos, com o
autoritarismo. O choque, direto ou indireto, com as estruturas repressoras
ocasiona a alienação ou, como no caso da personagem narradora de Was bleibt, uma
ruptura com o sistema e a conseqüente luta por autonomia.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
DOMDEY, Horst. “Kritik und
Loyalität. Aspekte einer Typologie der Kritik von DDR-Autoren (Historische
Skizze)”. In: Trilateraler Forschungsschwerpunkt ‘Differenzierung und
Integration’. DFG, Züricher Gesamtsymposium, Boldern, 1995. Hg. von Michael
Böhler u.a., Zürich, 1996.
HEIN, Christoph. Die fünfte
Grundrechenart. Aufsätze und Reden 1987-1990. Frankfurt a.M.: Luchterhand, 1990.
HEIN, Christoph. Der fremde Freund. Berlin, Weimar:
Aufbau Taschenbuch, 1993.
KRAUSS, Hannes. “Mit
geliehenen Worten das Schweigen brechen”. In: Text+ Kritik, Hg. von Heinz Ludwig
Arnold, Heft 111 Christoph Hein. München, Juli 1991, p.16-27.
LOEST, Erich. Zwiebelmuster. München: DTV, 1988.
LOEST, Erich. Es geht seinen Gang oder Mühen in unserer
Ebene. München: DTV, 1978.
LOEST, Erich. Der vierte
Zensor. Vom Enstehen und Sterben eines Romans in der DDR. Köln: Wissenschaft und
Politik, 1984.
MÖLLER-ZEIDLER, Sabine. “Literatur und
Autoritarismus. Die zensierte Sprache in der Lyrik”. In: CZIESLA, Wolfgang u.
von ENGELHARDT, Michael (Hg.) Vergleichende Literaturbetrachtungen. München:
Iudicium, 1995, p.219-43.
WOLF, Christa. Was bleibt.
Frankfurt a.M.: Luchterhand, 1990.
WOLF, Christa.
Voraussetzungen einer Erzählung: Kassandra. Darmstadt, Neuwied: Luchterhand,
1983. [topo da
página]
# Sébastien Joachim - Desconstrução da escrita, da identidade cultural, no tempo
da cybercultura
Resumo: Certas concordâncias surpreendentes aparecem entre
os pensadores da Cybercultura (Pierre Lévy, André Lemos, etc.), os estudiosos da
pós-colonialidade (Leela Gandhi, Eurídice Figueiredo, etc. ). De ambos os lados,
se efetua uma desterritorialização do conceito da escrita tal como se
desenvolveu no Ocidente, e se propõem (nos termos de Michel De Certeau) Des Arts
de Faire/Artes de Fazer, assim como novas modalidades de estar na linguagem e no
mundo. Sobretudo discorre-se sobre a subjetividade, a comunidade a alterar ou
abolir com vista a um “refaçonnage” (como diz Georges Balandier), uma
reconstrução. Chega-se a um (in)certo utopismo. Parece que estamos saindo do
mundo dos textos e do significado, para nos dirigirmos rumo ao mundo da
experiência. É uma mudança que Roland Barthes previa nos anos 70.
1. Barthes
Roland Barthes (1997:811-822) tem apostado na energia e
“vibrações da linguagem”, no texto-produção, que culminam na concepção lacaniana
de significância:«A significância significa um trabalho infinito do significante
sobre si mesmo: o texto não pode, pois, coincidir exatamente (ou de direito) com
as unidades lingüísticas ou retóricas ainda reconhecidas pelas ciências da
linguagem, e cuja divisão subtendia sempre a idéia de uma estrutura finita».
Mais adiante, Barthes precisará a sua definição da
significância: ela é um “processo” liberado da «lógica do ego-cogito» cartesiano
e que se envolve em « outras lógicas ... desconstrutoras», indiferentes à
significação imediata, sendo esta a face de uma vontade de domínio. Ora, em vez
de procurar qualquer domínio, o sujeito (leitor ou escritor) que ingressa na
língua deveria aceitar a crise da enunciação e a perda que ela acarreta. Ele é
ultrapassado pela atividade de linguagem e caem na heterogeneidade, num
além-normas e afora da metafísica da verdade, que supõem essas normas. Resta
como tarefa: a exploração da língua que trabalha o sujeito, uma atividade que o
expulsa de posições convencionais ou preestabelecidas.
Se entendessemos bem o pensamento de Barthes, afirmaríamos
que a língua-signo nos colonizava; ao passo que a língua-discurso, a língua
dinamizada pela enunciação e pela significância nos descoloniza. Veio um momento
de sua exposição onde Barthes (op. cit., 818) assimila a significância às
imagens dialéticas de Walter Benjamim: «La signifiance est lueur, fulgurations
imprévisibles des infinis du langage... / A significância é clarão, fulgor
imprevisível dos infinitos da linguagem», e o trabalho significante se assemelha
ao «trabalho do sonho».
Há, neste Barthes do verbete “théorie du texte” do
Dicionário citado, uma passagem escandalosa para a tradição literária, como
serão quinze a vinte anos depois certas passagens de Pierre Lévy sobre o
hipertexto e a cybercultura (Sallenave, 1997:79-85) . Vale a pena citar in
extenso essa guinada:
“La théorie du
texte ne se croira pas tenue d’observer la distinction usuelle entre la “bonne”
et la “mauvaise” littérature: les principaux critères du texte peuvent se
retrouver, isolément, dans des oeuvres rejetées ou dédaignées par la culture
noble, humaniste (...). On ne peut, en droit, restreindre le concept de “texte”
à l’écrit (à la littérature) (...). Toutes les pratiques signifiantes peuvent
engendrer du texte.”
“A teoria do texto não se acha obrigada a respeitar a
distinção habitual entre a boa e a má literatura; os principais critérios de
texto podem ser encontrados, isoladamente, nas obras rejeitadas ou desprezadas
pela cultura humanista (...). Não se pode, de direito, restringir o conceito de
“texto” à escrita (à literatura) (...). Todas as práticas significantes podem
engendrar texto.”
Barthes citou logo depois a pintura, a música, o canto, a
escultura e preconiza uma “subversão dos gêneros”, uma “transtextualidade”. Tudo
isso se aparenta à nova visão da hipermedia, com seu achatamento das hierarquias
e a promoção das enunciações de onde vieram. Em termos expressos, Barthes
descarta do texto a hermenêutica e, através delas as noções de comunicação, de
“mensagens”, de “enunciados”, de “produtos finitos”(Barthes:1997:819) e propõe
uma prática ou pragmática ou ação social, via, por parte de cada falante, o seu
empenho em «produções perpétuas, em atos enunciativos, através dos quais o
sujeito continua lutando” a caminho de seu vir-a-ser. Por ele, esta se
realizando assim, aqui, “uma prática erótica da linguagem”, obras de amadores e
não de tecnocratas da linguagem, como têm-se revelado a casta tradicional dos
“escritores, professores, intelectuais”.
Barthes era perfeitamente consciente de que tomava uma
crucial virada ideológica. Para assegurar sua posição, recorreu a um recurso
sociológico à altura: encontrou-o na noção kristeviana de ideologema. Com
efeito, esse conceito « permite articular o texto com o intertexto e de pensá-lo
nos textos da sociedade e da história”. No entanto, Barthes completa esta
definição entrelaçando texto e intertexto num único tecido inconsútil,
proliferação infinita de escrita/enunciação sempre nova que anula toda relação
de exterioridade entre texto e comentário, escrito e leitor, destinador e
destinatário, mas assevera “variações irracionais (inverossímeis) da pessoa e do
tempo.”
Trata-se de uma “prática transgressiva”, que derruba todas
nossas tradições da escrita, da forma de socialidade, que através dela, se
expressava. O discurso da comunidade virtual dos cibernautas dirá que aqui não
há texto-modelo a imitar, nem código universal ao qual submeter-se queira ou não
queira. O inter-texto do inter-leitor ou do ator do texto “se situa”, tal como o
hipertexto, ao alcance de muitos, e próprios a ninguém, «no intercourse (itálico
no original) infinita» de códigos peculiares de seres singulares em devir, e “a
percepção está”, como queira Nietzsche “para além da forma grosseira das
coisas”.
"Não somos bastante sutis, diz Barthes citando Nietzsche,
para perceber o escoamento provavelmente absoluto do devir; o permanente» da
escrita «só existe graças a nossos órgãos grosseiros, que resumem e reduzem as
coisas aos planos comuns, enquanto nada existe sob forma (sous cette forme). A
árvore é a cada instante uma coisa nova, afirmamos a forma porque não
apreendemos a sutileza de um movimento absoluto. Conclui, então Barthes: «O
texto também é esta árvore, de que a etiqueta nominal colada (provisoriamente)
sobre ela não passa de uma iniciativa de nossos órgãos grosseiros".
Constatamos uma grande convergência entre Henri Meschonnic
(In Barthes,1997: 702-706) e Roland Barthes: mesma recusa das convenções que
aprisionam o sujeito, elogio do deslocamento permanente, a prevalência da
significância. Meschonnic enfatiza ainda mais o ritmo, o corpo, a não
consciência dos inter-sujeitos de discurso barthesianos, atropelando o
lingüístico em sua derivação organizada para o «desconhecido» (in Barthes1997:
706).
Esse atropelamento ou saída do lingüístico, da linguagem
dos signos, corresponde a uma recusa do discurso instituinte e instituído, que
encontraremos ao mesmo tempo que uma desconstrução do sujeito clássico, nos
escritos dos estudiosos apelidados de pós-coloniais.
1. Os Pós-Coloniais
Caminharemos daqui em diante na companhia dos estudiosos da
Pós-colonialidade. A tonalidade das pesquisas “pós-coloniais” se percebe no
livro de Leela Gandhi (1998) assim como nos escritos e ficções de J. M. Coetze..
Mas também em diversos estudos brasileiros entre os quais se destacam o último
livro de Eurídice Figueiredo (1999) e uma meia dúzia de opúsculos de Zilá Bernd.
2.1. Leela Gandhi e pós-colonialistas anglófonos.
Começamos pelo livro de L. Gandhi, porque esse ramo de
estudos foi iniciado pelos anglo-saxãos. O livro de Leela Gandhi é um repertório
considerável de textos de filósofos como Foucault, Deleuze, Derrida, Lyotard, e
também de representantes do pensamento pós-colonialista.
Esta segunda categoria se divide em dois grupos: de um
lado, há os pensadores pós-colonialistas strictu sensu, entre os quais contam-se
percursores como Mahatma Gandhi, Jean-Paul Sartre e seus discípulos (Frantz
Fanon, Albert Memmi) e os grandes expoentes atuais Homi K. Bhabha, Gayatri
Spivak, Ashis Nandy; de outro lado, há os escritores que muitas vezes se
expressam implícita ou explicitamente em teóricos como Salman Rushdie, Yole
Soyinka, J. M. Coetze. Gandhi os faz dialogar entre si.
Como Barthes o deu a entender, o poder está instalado na
linguagem. O colonizador falou, cobrindo com sua voz a voz do colonizado; o
ex-colonizado terá que levantar voz e se tornar audível por uma substituição do
lugar, uma mudança de espaço, de enunciação e de altura. Isto, Leela Gandhi o
exprime admiravelmente numa citação de Ashis Nandy: «(...) Modern colonialism did, of course, rely on the
institutional uses of force and coercions”(“hierarchies of subjects and
knowledges”).» (Nandy, in Gandhi, 1998:15).Tem que ter uma “reinscrição”, na
qual o colonizado inversará a imagem, a fala e até a mente: “This colonialism
colonises minds ...”(Gandhi, 1998:15), “it is crucial for postcolonial theory to
take seriously the idea as a psychological resistance to colonialism’s
civilising mission” (Gandhi,1998:17).
É mister agir, comenta por sua vez Leela Gandhi
(Gandhi,1998:18), afirmar a heterogeneidade onde dominava uma falsa
homogeneidade (Gandhi,1998: 28). Como anteriormente Barthes, a estudiosa indiana
contesta o ego-cogito cartesiano e a filosofia da identidade, da mesmidade, que
rasura o outro (Gandhi, 1998:40). É preciso intervir no texto da História, em
todos os textos recebidos, perturbar o dispositivo enunciativo, possibilitar um
conhecer e um conhecer-se diferente. Esse ensinamento, que tem muitos
patrocínios, é compreendido de modo diferente na prática dos escritores
africanos (Soyinka, Rushdie). Eis aqui algumas práticas estrangeiras aos
comentários de Leela Gandhi. Nos a recolhemos de Richard Samin especialista da
Literatura sul-africana. Existem escritores sul-africanos cuja estratégia
consiste em reificar o outro, devolvendo ao Branco o seu desprezo. Outros
recusam simplesmente de representar esse outro por ser em demasia distante e
imprevisível. Até agora, não saímos da escrita e não rompemos com a
representação nem com a memória.
A singularidade de J. M. Coetze é de proceder de outra
maneira. Ele reatualiza, diz Samin, o conselho sartreano de 1948 (Sartre:1948) e
o estende a todo seu universo romanesco: «À astúcia do colonizador», diz Sartre,
«era preciso responder por uma astúcia que derruba o opressor presente na língua
falando esta língua por conta própria e destruindo-a» . Por isso, Coetze pula
fora do espaço de representação linguageira constituída pela ideologia
liberalista com seus “pressupostos semânticos” e suas estruturas; em vez de
criticar a ideologia racista ou xenófoba, paternalista ou assistencialista
reinante, ele «transgride as convenções genéricas e recorre a uma
intertextualidade sistemática»(Samin, 1998: 156).
Como estratégia, a intertextualidade torna contemporâneos
uma variedade de textos; estes em vez de olhar para a montante, tecem novas
relações sincrônicas, novas aventuras que olham à jusante e bloqueiam portanto
toda representação. Eis como, no dizer de Richard Samin, Coetze consegue essa
façanha:«Em seus romances concebidos no “modo alegórico, ele mistura a epopéia,
a pastoral, a narrativa iniciática ou onírica as histórias de aventuras e a
narrativa aparentemente realista, e ele utiliza narradores marginalizados que se
questionam constantemente sobre sua existência, seus valores ou o estatuto do
discurso que eles produzem. Simultaneamente os textos de Coetze insistem sobre a
materialidade discursiva incorporando suas próprias condições de enunciação, —
seja qual for a sua forma de apresentação (documento de arquivo, jornais,
cartas, ou confissões), — de tal maneira que eles não tem sentido fora do ato de
comunicação que os institui»(Samin, 1998:156)
Assim como a texto-produção de Barthes, o texto coetziano é
a-referêncial, começa e caminha com o próprio ato de leitura, torna logicamente
impossível a coincidência entre o eu da enunciação e o eu do enunciado, nos
envolve em “contradições”, “silêncios”, “aporias”, se assemelha aos eventos que
pontuam a experiência de um estar-no-mundo.
2.2. Pós-colonialistas brasileiros e francófonos.
Depois deste exemplo, que ultrapassou os limites que temos
estabelecidos, passamos a ótica francófona da Pós-colonialidade. É a partir
daqui que pretendemos principalmente mostrar o paralelismo dos discursos
literários e tecno-científicos sobre a tradição da escrita assim como a utopia
que vislumbram esses discursos.
Em 1998 e 1999, saíram no Brasil dois livros que oferecem
uma visão mutuamente complementar sobre o pensamento pós-colonialista: o livro
de Eurídice Figueiredo, Construção de identidades pós-coloniais na literatura
antilhana e o livro organizado por Edson Luiz André de Sousa intitulado
Psicanálise e colonização.
O segundo livro (Edson de Sousa: 1999) tematiza a memória
(Amélia de Bulhões), a identidade mestiça e a utopia (Zilá Bernd). O livro de
Eurídice Figueiredo elabora em torno das noções aparentadas de crioulização,
mestiçagem, hibridismo, heterogeneidade. Zilá Bernd retoma à sua maneira esses
assuntos. Ela vê no ideologema da mestiçagem algo que recebe apoio teórico da
noção deleuziano-guattariana de rizoma e que, em nosso tempo, põe em xeque o
“ideal” de homogeneidade. Este “ideal” da alta “modernidade” é para Zilá Bernd,
como um canto de sereia perante as subjetividades emergentes da colonização de
ontem e de hoje.
O analista Contardo Calligaris emite críticas contundentes
sobre o “essencialismo e o apego ilusório à verdade deste sujeito moderno;” mais
ainda sobre a saudade que muitos brasileiros pretensamente emancipados nutrem em
segredo para essa dimensão arcaica de sua mente; ele finalmente chama atenção
sobre um trabalho de luto inacabado na América Latina, ao descrever o sujeito
daqui em oscilação permanente entre a memória e a utopia.
Maria Amélia Bulhões arranca também as máscaras. Se valendo
do socioleto do construtivismo e das neurociências, ela começa por traçar
positivamente as linhas norteadoras da nova subjetividade que deveríamos
cultivar em sintonia com a atualidade: uma individualidade “que realiza, a cada
momento, reelaborações das recordações”, de tal sorte que o passado se
reconstrói, se traduz num permanente devir ... Amélia Bulhões bate forte nos
maníacos das comemorações e celebrações. Para ela são avestruzes que evitam
mexer numa identidade que necessita de ser substituída. O passado vira assim
como um armazém de acessórios e de disfarces. As minorias não podem, não devem
se pagar o luxo de se entregar a um “passado embalsamado” e paralisante. A
urgência é de ir em frente, rumo à descoberta de nova socialidade e novos
sentidos. Observando a interatividade trazida pela Cybercultura, Amélia Bulhões
acrescenta:« A globalização, através das redes de informatização, estabeleceu
uma intercomunicação de signos que rompeu com as territorialidades, impondo a
temporalidade do presente permanente.»
Nesta configuração interativa, já estamos deixando para
trás o paradigma literário que vanguardista como Roland Barthes já não
representava mais. A autora insiste sobre a diversidade e a multiplicidade de
memórias, que assegurariam heterogeneidade, pluri-pertencimento; aptidão a
renegociar incessantes pactos sociais ... Amélia se expressa como uma internauta
que teria se penetrado no campo de estudos pós-coloniais. Antes de entrar em
mais detalhes, convém escutar uma das vozes mais autorizadas do Brasil na
problemática da pós-colonialidade: Eurídice Figueiredo (1998).
A memória da época colonial só pode ser uma memória
espúria, uma falsificação, parece dizer Eurídice, quer sozinha, quer em
companhia de E. Said, A. Memmi, Edouard Glissant. Daí, a urgência de uma
desconstrução de uma derrocada, como diz Sartre, do poder instalado na
linguagem. É, do resto, rente à linguagem que Eurídice Figueiredo procede à sua
desconstrução do homogêneo e da memória, tendo por escolha os escritores e
pensadores das Antilhas. Focalizamos em especial Edouard Glissant.
Cronologicamente, Glissant é uma figura-emblema da resistência cultural nas
Antilhas, depois de Frantz Fanon (o autor de Les Damnés de la terre, Peau noire,
masques blancs). Adotando ao ângulo de visão de Glissant, Eurídice(Figueiredo,
1998: 74-79) apresenta dois componentes da antilhanidade: a hipótese de uma
koiné, ou língua franca, que circularia do francófono Glissant aos anglófonos
Derek Walcott, V. S. Naipaul, passando pelo cubano Nicolas Guillen; um segundo
componente, que seria «o pensamento arquipélago».O grande livro de Glissant,
Poétique de la Relation (cf. Figueiredo, 1998: 79) explicita o que se entende
por «pensamento arquipélago».É «uma abertura para a complexidade do diverso, em
ruptura com qualquer essencialismo, com qualquer pensamento de sistema. Note-se
de passagem que a linguagem escrita/tipográfica é tida por “um pensamento de
sistema”.»
A Poética da relação de Glissant ergue-se contra essa
cristalização, protesta contra as “construções identitárias” duras e puras, e
hasteia a bandeira das identidades nômades, mutantes, múltiplas. Analisando os
romances de Edouard Glissant, Eurídice se depara com reflexões que achamos
consoantes com a “filosofia” hipertextual. O romancista (e poeta) acabava de
qualificar a escritura dos novos descolonizados como sendo uma intraduzível e
descontínua «irrupção de irrupção» (Figueiredo,1998:92). Lemos em seguida, a
respeito da recusa de um certo universal racionalizante que impera no Ocidente.
Glissant, dando as costas a este universal, formula uma estética crioula. Nela,
como antes em Meschonnic, o ritmo será rei, um ritmo que “desterritorializa a
língua francesa” engendrando um outro falar, barroco, multilíngue,
dessacralizante, de-sistematizante, imprevisível, impredictível.
Chamaremos a atenção enfim a um outro tema de Glissant que
Eurídice Figueiredo levantou: a subjetividade mestiça. É preciso ainda e sempre
repartir da problemática da escrita como sistema transcendente e “imobilizador
dos corpos”, apagador de vozes plurais até a revolução rabelaisiana e
bakthiniana. Lançando mão dessas descobertas, «o projeto literário de Glissant»,
nos diz Eurídice quer “conciliar o absoluto da escrita (nos frisamos) com o não
absoluto da oralidade, fazer uma síntese crioula, mestiça híbrida entre dois
mundos, o Ocidente e as tradições populares não-européias”(Figueiredo, 1998:
100).
A crioulização como unidade na diversidade, Glissant o
explicita em seu livro Le Discours Antillais, mas ela será reinterpretada pelo
autores do manifesto da crioulidade (Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël
Confiant, - três antilhanos). No entender deles “a crioulidade seria uma ‘visão
interior’ da antilhanidade, com ênfase na “cultura popular tradicional” em vez
do aspecto “geopolítico” contido na palavra “americanidade” (esta, um análogo da
antilhanidade).”(Figueiredo, 1998)
A expressão “visão interior” reportada por Eurídice
Figueiredo, nos lembra considerações similares apresentadas por Dominique Combe
no seu livro Poétiques Francophones(1995). O sonho conciliatório de Glissant
teria sido realizado, segundo Combe, em Pluie et vent sur Télumée Miracle de
Simone Schwarcz-Bart e, na Suíça romana, nas ficções de Ramuz. Numa e outra
obra, a imaginação dos autores cria a visão, fundada numa relação sensível com
os mitos e o imaginário de seu ambiente telúrico. O resultado é uma combinação
quase intraduzível, em que os termos locais não precisam ser ostensivamente
marcados:«Je ne suis pas un tubercule de glaïeul, de sorte que je ne peux pas me
promettre si je sortirai jaune ou rouge de la terre. Demain notre eau peut
devenir vinaigre ou vin doux, mais si c’est vinaigre, n’allez pas me maudire,
laissez tranquillement dormir vos malédictions au creux des fromagers, car
dites-le moi, n’est-ce-pas un spectacle courant,ici à Fond-Zombi, que la
métamorphose d’un homme en diable.» (Simone Schwarcz-Bart).
Realmente, Proust tinha razão: o estilo é uma questão de
visão, e não de língua(s). E os melhores escritores pós-coloniais assim como
seus exegetas ilustram perfeitamente que a antropologia cultural passa pelo
estilo.
Bibliografia
BARTHES, Roland. Théorie du texte. In:
Dictionnaire des genres et notions littéraires. Paris,
Encyclopaedia Universalis/ Albin Michel, 1997, pp. 811-822.
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GANDHI, Leela. Postcolonial theory. New York, Columbia
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literatura de Yole Soyinka. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1999.
SAID, Edward. Culture and Imperialism. London, Chatto and Windus, 1993.
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Paris, Messène, 1998, cap. XI, pp. 147-157.
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DE CERTEAU, Michel. L’invention du quotidien, 1- Arts de
faire. Paris, Folio-Essais, 1990.
BALANDIER, Georges.
Le Détour. Fayard, 1985. [topo da
página]
# Sílvia Maria Azevedo - O
Brasil romântico visita a Europa
Assim em vez de
considerar a poesia do Brasil como uma bela estrangeira, uma virgem da terra
Helênica, transportada às regiões do novo mundo, nós diremos que ela é filha das
florestas, educada na velha Europa, onde a sua inspiração nativa se desenvolveu
com o estudo e a contemplação de ciência e natureza estranha.
Santiago Nunes Ribeiro. Da nacionalidade da literatura
brasileira
A experiência de ter vivido ou simplesmente viajado pela
Europa foi compartilhada, como se sabe, por muitos de nossos escritores
românticos. Gonçalves de Magalhães, Porto-Alegre, Torres Homem, Gonçalves Dias,
João Francisco Lisboa, para citar apenas alguns nomes, fazem parte da extensa
lista de brasileiros que fizeram a sua estada européia, sobretudo durante a
primeira metade do século XIX. Causa estranheza, no entanto, e foi Brito Broca
quem chamou a atenção, que poucos tenham se interessado em deixar depoimentos de
suas andanças pelo Velho Mundo. Outro fato igualmente conhecido é que, ao lado
da França, a Itália exerceu igual fascinação entre os românticos brasileiros,
sendo ambos os países largamente visitados por eles. Viagens, algumas delas
imaginárias, como a de Álvares de Azevedo. Quando morava em São Paulo, na
Chácara dos Ingleses, o poeta tinha no quarto uma estampa de Veneza, diante da
qual ele teria comunicado a Chica Prosa, no relato de Pires de Almeida, “tudo o
que aquela vista lhe sugeria, demorando-se em descrever Murano e Chioggia, as
cavalgadas de Byron nos bairros de Veneza e os diálogos de Giuliano Moddado com
esse poeta e o ateu Shelley, à beira da laguna em que vinham espreguiçar-se,
ainda sussurrantes, as ondas do Adriático.”(BROCA, 1979, p.141). Não é difícil
identificar a presença de Bryon, de resto, explicitamente citado na passagem, na
“viagem” do poeta de A noite na taverna a Veneza. Já Fagundes Varela, que também
se deixou contagiar pelo fascínio da Itália, visita o país, no poema
“Fragmentos”, das Noturnas (1861), na companhia de Lamartine, autor do romance
Graziella. Agora é Nápoles, tornada “um território lamartiniano” (BROCA, 1979,
p.141), a cidade que configura a Itália imaginária do romântico brasileiro. Mas
a Itália tornou-se igualmente território de Alfred de Musset, por conta da
dramática relação amorosa que o autor de Mémoires d’un enfant du siècle vai
viver com Georg Sand em Veneza, em dezembro de 1833.
Mais ou menos por essa época, quatro anos mais tarde, um
viajante brasileiro, não se contentando em visitar a Itália com os olhos da
imaginação, preferiu “ir ver as coisas com os próprios olhos da cara”, na feliz
expressão de Machado de Assis. (ASSIS, s.d., p.74). Esse brasileiro foi João
Manuel Pereira da Silva (1817-1898), escritor da geração de 30 do século XIX
que, na companhia de muitos outros, introduziu o romance de folhetim no Brasil.
Apenas para lembrar, dessa geração também fizeram parte Justiniano José da
Rocha, Firmino Rodrigues da Silva, Josino do Nascimento, João José de Sousa e
Silva Rio, Brito Broca, quase todos tendo vivido por algum tempo em Paris, de
onde trouxeram a nova moda literária.
Ao contrário de seus contemporâneos que, como se disse,
andaram pela Europa, e não deixaram registro das experiências de viajantes,
Pereira da Silva foi um dos primeiros escritores brasileiros a dar depoimento
sobre a Itália, no texto que ele chamou de Reminiscências, cuja primeira parte
foi publicada em 1859, na Revista Popular. Num certo sentido, e com alguns anos
de atraso, pode-se dizer que tanto Reminiscências quanto a Revista Popular vêm
cumprir as expectativas que a Minerva Brasiliense não pode honrar junto ao
leitor, quando anuncia, em 1o. de agosto de 1845, a publicação das Cartas da
Itália, de Araújo Porto Alegre, e estas não aparecem, como nunca apareceram em
qualquer outro periódico. Se tivessem vindo a público, ou antes, se tivessem
sido escritas, as Cartas da Itália poderiam fornecer informações importantes
sobre a estada de Porto-Alegre, em companhia de Gonçalves de Magalhães, na
Itália, em 1834.
Viajante incansável, o autor de Os varões ilustres do
Brasil escreveu páginas interessantes também sobre suas peregrinações pela
Alemanha, registradas em “Viagem pela Alemanha em 1837”, mais tarde recolhidas
no livro Variedades literárias, publicado em 1862 pela Garnier. Faz parte dessa
coletânea, ainda outro texto, “Impressões de viagem”, doze cartas que Pereira da
Silva escreveu, de outubro de 1851 a março de 1852, sobre a viagem que fez por
essa época pela Europa, e que Brito Broca acredita que tenham sido publicadas
nos jornais do Rio de Janeiro (BROCA, 1979, p.166)
Reminiscências, como o próprio título sugere, é a
recuperação pela memória das duas visitas que o escritor brasileiro fez a Roma:
a de 1837, quando ele tinha apenas 20 anos, e a de 1858, com 41. Na leitura do
texto fica claro que o narrador-viajante do texto de 58 não é mais o jovem de
37, e sim um homem maduro que pode se orgulhar das realizações que constam de
seu curriculum: fundador da Revista Nacional e Estrangeira (1839-1841), com
Josino do Nascimento e Pedro de Álcântara Bellegarde; organizador, em 1847, da
antologia de biografias brasileiras, Plutarco Brasileiro, título mudado para Os
varões ilustres do Brasil, em 1858; colaborador, já em 1838, de diversas folhas
literárias e jornais, entre eles a revista Niterói – para a qual colaborou ainda
em Paris -, o Jornal de Debates, O Chronista, O Gabinete de Leitura, o Museu
Universal e o Jornal do Comércio. Neste, saíram, em 1839, os “romances
históricos”, Religião, amor e pátria e O aniversário de D. Miguel em 1828, o
segundo com tiragem à parte. Ainda na linha da narrativa histórica é a “crônica
portuguesa do século XVI”, Jerônimo Corte Real, publicada em 1840, e reeditada
em 1854.
É com distanciamento que esse homem maduro de 1858 olha a
viagem que aquele outro, o giovinettodo passado, fez a Roma. Portanto, a cidade
que aparece no texto de 1859, e à qual os leitores da Revista Popular são
apresentados, é uma Roma recuperada por dupla distância: o distanciamento da
idade e o distanciamento temporal e espacial, também este último, sendo
plausível supor que Pereira da Silva tenha escrito o texto quando já se
encontrava no Brasil. “Pungem-me saudades sempre que vêm-me à lembrança as duas
visitas que fiz à bela terra da Itália !” (R. P. , p.85), é como começam as
Reminiscências de Pereira da Silva. É curioso pensar que as “saudades” das quais
o narrador se queixa, digam respeito, antes à viagem de 37 do que a de 58, já
que o viajante brasileiro deixara Roma, na segunda vez, há um ano apenas. É bem
verdade que a saudade de alguém ou de algum lugar não se mede pelo maior ou
menor afastamento no tempo...
De qualquer forma, o leitor, tanto de hoje como talvez o de
59, gostariam de conhecer as impressões que a “cidade eterna” deixou no
giovinetto de vinte anos, que, em visita à Itália, age, pensa e sente o país
como se fosse um italiano, ou melhor, fingindo ser um italiano, mas sem a
intermediação do homem maduro de 58. Tanto maior é a curiosidade do leitor,
quanto o interesse do estudioso, porque o rapaz que fingia ver a Itália à
italiana, foi alguém “para quem cifrava-se a vida no sonho dos amores, e no
descuidado dos anos.” (R. P., p.85). O que faz supor que, na primeira visita à
Itália, esse jovem romântico, como tantos outros que perambulavam na época pela
Europa, também teria feito a viagem na companhia de Byron Musset, Lamartine,
eles também viajantes-escritores, responsáveis por criar uma Itália feita de
imagens românticas, aquela mesma que vai povoar o imaginário de poetas
brasileiros, como Álvares de Azevedo, e também o de Pereira da Silva em 1837. Já
que o autor de Reminiscências não escreveu no passado as memórias de sua visita
a Roma - e se o tivesse feito, bem outra seria a “fotografia” da cidade -, é só
através da lembrança do homem de 59, que vive no presente, que é possível
fazê-lo, o que é sempre um consolo não apenas para o pesquisador como também
para a cultura literária brasileira, sempre carente da memória do passado.
Mas não é verdade que Pereira da Silva na quadra da
juventude não tenha se preocupado em deixar registradas as impressões do
viajante que percorre a Europa. Como se disse, no ano em que esteve na Itália, o
escritor brasileiro andou também pelo país de Goethe, e é no texto que escreve
então, “Viagem à Alemanha em 1837”, onde é possível ouvir a voz, entre vivrante
e emocionada, do nosso romântico. Lessing, Schiller, Hoffmann, Wieland,
Winkelmann, além do próprio Goethe, é claro, seriam os companheiros nessa
peregrinação, matrizes de imagens por meio das quais o escritor brasileiro
registra suas impressões sobre o país. Como a da viagem que Pereira da Silva faz
à noite, depois de deixar Nuremberg: “Era noite fechada quando deixamos
Nuremberg. Pela estrada rolava solitária e surdamente a nossa carruagem, quando,
de repente, o som de uma harpa veio arrebatar-nos a esse sono inquieto, que se
pode dormir em viagem, apesar de, cansado, o corpo procurar repouso. De um
pequeno castelo gótico, que ficava encostado ao caminho, vinha o som harmonioso.
A harpa no deserto àquelas horas mortas da noite, tocada, sem dúvida por algum
anjo, produziu o efeito maravilhoso que nos é impossível descrever
fielmente.”(BROCA, 1979, p.165) Prosseguindo viagem, a certa altura, o viajante
brasileiro chega mesmo a identificar o som de uma balada de Schiller. “Pura
atmosfera romântica do medieval e do gótico”, é como Brito Broca sintetiza esse
fragmento da viagem noturna do jovem Pereira da Silva pela Alemanha, em 1837.
Vinte anos mais tarde, em Reminiscências, quase com as
mesmas palavras, o escritor volta a dizer que vai desistir de “descrever
fielmente”, desta vez, Roma. Mas fica por aí a semelhança entre os dois textos,
ou se se quiser, o apelo ao mesmo efeito retórico. Na verdade, no texto de 58, o
narrador acha que “é impossível descrever-se Roma” (p.89), mas por outras
razões: em primeiro lugar, porque, antes dele, muitos outros “ilustres poetas”
já o fizeram, o que é o mesmo que dizer que nessa altura da vida o viajante
brasileiro está dispensando as companhias literárias que no passado o
acompanharam nas andanças pela Europa; em segundo lugar, porque a cidade oferece
hoje um espetáculo de degradação, pobreza e abandono, quadro esse que os
“ilustres poetas” deixaram de fora dos retratos que pintaram de Roma, dessa
forma criando uma imagem falsa da cidade, de uma Roma que não existe mais (se é
que um dia existiu).
Voltando pela segunda vez a Roma, não é somente a atmosfera
de encantamento que se desfaz. Como que despertando de um sonho, o viajante
brasileiro, que percorre os lugares que no passado povoaram a sua imaginação, se
dá conta agora de que está correndo perigos bastante concretos. Como no passeio
noturno pelos arredores de Roma: “Perigoso é de noite percorrê-los. Se não se é
assaltado por quadrilhas de ladrões, que despojam o viajante, é pestilenta a
atmosfera, e pode uma febre pútrida arrancar-lhe a saúde e levá-lo à sepultura.”
(p.86)
De fato, na segunda visita, nem Roma, nem Veneza são as
cidades italinas prediletas do viajante brasileiro. Se elas representavam a
Itália poética de quando ele era um giovinetto, hoje estão imersas na
decadência, que o nosso escritor faz questão de registrar. A Itália de 1858, a
Itália moderna, está em outro lugar, é representada por outras regiões, como a
Sardenha, por exemplo, que atraiu mais a atenção de Pereira da Silva “pelo
desenvolvimento de sua indústria, a natureza de suas instituições livres” (p.86)
Mesmo que nosso escritor diga que, na segunda viagem à
terra de Dante, tenha mudado “a cor das lentes com que via os objetos”, de tal
modo que é sob a óptica da “razão calma e do conhecimento do mundo” que eles
passam a ser revistos, é a Itália feita de imagens românticas, aquela
vislumbrada pela imaginação da juventude, que vai criar uma “impressão profunda”
(p.85) no jovem Pereira da Silva, de tal forma que o homem maduro jamais vai
conseguir se subtair. É esta Itália, quando visitada pela primeira vez, e que
ficou na memória do escritor, que vai inspirar as Reminiscências, o que não quer
dizer que predomine no texto o tom de nostalgia, e sim o da indignação contra o
estado de decadência de um país, cujos lugares mais sagrados, como a cidade de
Roma, “seu doce nome” (p.87) os brasileiros, desde a infância, na escola,
aprendemos a amar e respeitar.
Na tentativa de visitar Roma como se fosse da primeira vez,
esforço que traduz o propósito de recuperar aquele outro viajante que Pereira da
Silva foi na época, o narrador de 58 desenvolve algumas estratégias narrativas,
uma delas, o jogo com as formas verbais do passado e do presente: “Entrei em
Roma, quando primeiro a vi, pela porta do povo. Descortina-se a cidade eterna do
alto de um montículo, a algumas léguas de distância.” (p.86). Se bem que, com a
predominância do presente, predomina com ele a visão de uma cidade degradada.
Outro recurso narrativo é manter o tom de perplexidade e espanto do jovem que,
finalmente, vai conhecer a célebre cidade: “Mas seria Roma na realidade? Não
estaria eu sob a impressão de um sonho agradável e sublime? Eram deveras o
Tibre, o Capitólio, o Panteon, e o Coliseu que me apareciam?” (p.87) É pouco
provável, porém, que a emoção de que o escritor diz-se estar possuído, seja a do
homem de 58: “Era tão grande a minha emoção, que a todos os companheiros de
viagem fazia perguntas, e os lábios balbuciavam, e a língua tremia de medo, que
eram elas desconxavadas, e mal significavam o pensamento que me dominava.”(p.87)
Finalmente, o recurso talvez mais eficaz na recuperação da Roma vista no
passado, é trazer para as Reminiscências a presença de Byron, através do poema
que ele compôs em louvor à cidade, e que começa com o seguinte verso: “Ó Roma! Ó
meu país! Cidade santa!” (p.87). Como de costume entre os escritores brasileiros
da época que se valiam de citações e epígrafes, Pereira da Silva igualmente não
informa o leitor nem sobre o título do poema, nem sobre o nome do tradutor para
o português. De qualquer forma, é essa Roma feita de imagens românticas,
recriada pela imaginação do poeta inglês, que elevou a cidade à condição de
pátria dos cidadãos de todas as nacionalidades, o retrato que melhor representa
o viajante brasileiro de 37.
Apesar do esforço de trazer de volta o jovem escritor para
o texto que, em 1859, a Revista Popular vai oferecer aos seus leitores, quem
fala aqui é o Pereira da Silva político e historiador que, de longe e de fora,
toma posição quanto ao contexto italiano da época, o que lhe possibilita falar
ao mesmo tempo do Brasil. Isso explica que, quando da segunda visita a Roma,
grande parte do depoimento diga respeito à entrevista que o viajante brasileiro
teve com o Papa Pio IX, com quem conversa sobre questões que, no Brasil da
época, eram motivo de grandes polêmicas: os casamentos mistos, a influência do
clero e do catolicismo, a necessidade de novos bispados, a criação de seminários
teológicos e cabidos. Há que se lembrar que quando foi deputado, Pereira da
Silva esteve envolvido na discussão desses problemas, sob os quais estava
latente o conflito entre a Igreja e o Estado. Como no pronunciamento de 28 de
junho de 1855, em que era de parecer que cabia à repartição do Império,
encarregada do ensino superior, a regulamentação das duas faculdades de
teologia, então criadas, e não à Justiça e Negócios Eclesiásticos. Ainda que sua
intenção fosse discriminar as atribuições do poder eclesiástico e do poder
temporal, em nenhum momento o deputado Pereira da Silva vai abjurar a religião
católica, empregando na época, em defesa própria, palavras que vão ecoar no
texto de 59: “Senhores, eu sou católico e reconheço como chefe da minha igreja o
Sumo Pontífice; ninguém o acata, venera, o respeita e admira mesmo mais do que
eu; a respeito dos mandamentos da Igreja sou o seu súdito mais humilde e
obediente; não concorrerei senão para dar força moral e esplendor à tiara
sagrada, que é a salvação do mundo.”(MARTINS, 1977, v.III, p.6)
As impressões favoráveis, registradas nas Reminiscências,
tanto de Pio IX quanto de Gregório XVI, com quem o nosso viajante igualmente tem
entrevista em 1837, funcionam no sentido da defesa incondicional da Igreja, num
momento em que o poder desta vinha sendo contestado, não apenas no Brasil, mas
também na Itália. Não esquecer que, na época, a Itália lutava por se consolidar
enquanto nação, e é nesse contexto de luta política que a soberania do Papa
estava sendo posta em xeque. Isso talvez explique a veemente defesa que Pereira
da Silva faz do poder espiritual, não admitindo que este fique sob a tutela do
poder temporal: “(...) não pode o poder temporal separar-se da pessoa do Papa.
Por outra forma seria destruição, e não reforma, e traria ela perda irreparável
para Roma, e para a Igreja Católica, que é a nossa mãe, a mãe da sociedade
moderna, a mãe da humanidade inteira.”(p.91)
Se as questões da conjuntura italiana contemporânea, a
partir das quais o Brasil se vê representado, são objeto de interesse do Pereira
da Silva político, os monumentos, os museus e as obras de arte são os pontos que
atraem o olhar do historiador. Também aqui, em dando destaque às realizações dos
homens do passado, e que fizeram de Roma uma cidade eterna, o nosso escritor
estará se remetendo ao Brasil. O que permite dizer que, em 58, são dois os
viajantes que visitam Roma pela segunda vez: o político e o historiador, cada um
a seu modo falando do país de origem.
A cidade de Roma vista pelo historiador Pereira da Silva é
a Roma da Igreja Católica, representada por monumentos e obras de arte do
passado em louvor, quase todos, à religião de Cristo: o museu do Vaticano e do
Capitólio, os frescos de Rafael e de Miquelângelo, os quadros de Murillo,
Ticiano, Dominichiano, Caravaggio, Correggio. Também o Panteon de Agrippa e o
Coliseu de Vespasiano têm destaque no inventário do historiador brasileiro, que
se refere àquele último usando uma linguagem que ficaria melhor na boca do
ficcionista do que na do historiador: “Gostava o povo rei de espetáculos cruéis,
e bárbaros. Com os animais ferozes batiam-se os gladiadores para divertimento
público (...). Regavam com seu sangue aquela terra milhares de cristãos
mártires; nas lutas selvagens com leões e tigres despedaçavam-se os seus corpos
aos gritos e aplausos da multidão infrene.”(p.93) Apesar desse e de alguns
outros deslizes mais “poéticos”, parece que Pereira da Silva, no propósito de
recuperar os “elementos necessários da antigüidade”(p.93) de Roma, pretende
dispensar os intermediários, isto é, as companhias literárias que devem ter
visitado com ele, em 1837, a cidade santa. O que é fácil compreender,
configurando-se a “objetividade” como o comportamento que o autor de
Reminiscências julgaria mais adequado ao papel do historiador.
Por isso mesmo, é nas estátuas e nas obras pictóricas da
“antigüidade”, criações às quais a pedra e as telas permitiram ganhar vida
eterna, que o historiador vê representada a “objetividade” que busca no passado.
Ao mesmo tempo, e num momento em que a Itália está vivendo um dos períodos mais
conturbados de sua história, imersa em conflitos que dificultam a consolidação
política, são os monumentos de Roma que conferem identidade ao território
italiano. Em sendo esta a função dos monumentos históricos romanos referenciados
em Reminiscências, é possível pensar que, na verdade, o escritor brasileiro não
estaria levando em conta que a Itália era um território formado por realidades
geográficas, históricas e lingüísticas bastantes difereciadas, tal como a região
da Sardenha, e cidades de Veneza, Nápoles e Roma.
No outro lado do Atlântico, o Brasil, país de onde provinha
esse viajante, há pouco mais de trinta anos havia conquistado a Independência,
desfrutando de uma situação política que a Itália ainda não tinha conseguido
alcançar (1870 é a data que formalmente registra a unificação italiana), em que
pese as inúmeras revoltas que grassavam pelo território brasileiro durante
grande parte do século XIX, pondo em risco a unidade do Estado nacional. Em
contrapartida, os monumentos históricos e artísticos que estão em Roma, conferem
à Itália uma identidade, aquela que, no Brasil, é buscada pelos intelectuais e
escritores da geração de Pereira da Silva.
Nesse sentido, deve-se mencionar os primeiros esboços de
história da literatura brasileira que começam a ser elaborados na época, a
exemplo do projeto incompleto de Joaquim Norberto de Sousa Silva, publicado de
forma esparsa na Revista Popular, entre 1859 a 1862. A esta história literária,
como a outras diferentes, posteriormente escritas, cabe dizer que todas “se
articulam ou se articularam como projetos constitutivos (grifo do autor) da
própria nação e nacionalidade literária, atuando mais comos discursos fundantes
do nacional do que propriamente como expressão reflexa da nação ou “nações”.
(WEBER, 1997, p.18) O que significa dizer que esses projetos de história
literária “compõem, imaginam e instituem a própria nação ou “nações”, em íntima
correlação com os interesses históricos que as sustentam.”(Weber, 1997, p.18)
Por uma questão de espaço, fica para outra ocasião o desenvolvimento dessa
proposta de interpretação das histórias literárias brasileiras, em particular, o
projeto de Joaquim Norberto.
Qualquer que fosse a imagem ou imagens de Brasil que essas
histórias literárias vieram a construir, poderim ser tomadas como o equivalente
dos monumentos históricos que conferiam identidade à Itália, mesmo que essa
identidade, como no caso brasileiro, resultasse da invenção de viajantes, como
Pereira da Silva, que a visitaram no século XIX.
Se as histórias da literatura brasileira e os depoimentos
de viagens pelo Brasil, estes cada vez mais freqüentes nas páginas da Revista
Popular, são expressões da busca da nacionalidade, nem por isso se pode dizer
que os intermediários literários, responsáveis pela criação de uma Itália
imaginária, foram descartados pelos nossos românticos. No ano de 1857, um
escritor, que vai ter participação decisiva no processo de formação do romance
brasileiro, começa a sua carreira de ficcionista, igualmente valendo-se das
imagens literárias da Itália.
Esse escritor, todos sabem, é José de Alencar, autor de
Cinco minutos, obra de “evidente inspiração lamartiniana”(BROCA, 1979, p.144),
publicada no Diário do Rio de Janeiro. Só para relembrar, Carlota, a heroína do
romance, não pode corresponder ao amor do narrador porque está tuberculosa.
Viaja então para a Itália, em busca de melhores ares, que possam curá-la da
doença fatal, o que fato vem a acontecer, cabendo aqui a observação perspicaz de
Brito Broca: “O encanto dos românticos pela Itália levava-os a emprestar ao
clima a virtude de curar uma tuberculosa em último grau.”(BROCA, 1979, p.145)
Além da cura, o casamento de Carlota com o narrador, realizado na igreja de
Santa Maria Novella, em Florença, acrescenta um toque de sonho ao final feliz da
história. Sem dúvida, o desenlace ideal para realimentar o imaginário romântico
das jovens leitoras do romance de Alencar.
Referências
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Universidade de São Paulo, 1977, v.III (1855-1877).
-
Pereira da Silva, João Manuel. “Reminiscências”, In: Revista Popular, t.I, 20 de
janeiro de 1859, 85-94.
- Weber, João Ernesto. A nação
e o paraíso. A construção da nacionalidade na historiografia literária
brasileira. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1997. [topo da
página]
# Vera Lucia Soares - Movências
Identitárias
1. Tema e
objetivos da pesquisa:
Centrando, já há bastante tempo, minhas pesquisas sobre a
questão identitária no Maghreb, através do diálogo entre a literatura e a
história, venho tecendo algumas hipóteses sobre a mobilidade da construção da
identidade nesses países recentemente saídos da colonização e que passo a
explicitar.
Se, no período colonial, a grande questão se colocava entre
a assimilação aos modelos impostos pelos franceses e a resistência dos estratos
culturais autóctones, após as independências, desencadeou-se um processo de
descolonização de cunho nacionalista com vistas à construção de uma identidade
nacional pautada unicamente nos valores árabe-islâmicos. Contra essa política se
levantaram as vozes dos intelectuais francófonos, às quais se juntaram as de
outras minorias, como as dos berberes, para reivindicar uma identidade plural
capaz de expressar a diversidade cultural do Maghreb pós-colonial. É justamente
essa identidade plural realizada no encontro da tradição com a modernidade que
as obras literárias dos escritores maghrebinos de língua francesa da fase
pós-colonial reconstroem de forma metafórica.
Embora privilegiando a questão da reconstrução da
identidade nacional em suas obras, alguns desses escritores, como Rachid
Boudjedra e Tahar Ben Jelloun, vinham se mostrando, já há algum tempo, sensíveis
à problemática da e/imigração, preocupação que se intensificou ultimamente
devido a uma nova onda de emigração de argelinos em direção à França, provocada
pela radicalização do movimento fundamentalista na Argélia. As dificuldades
vividas pelos imigrantes têm levado também outros escritores maghrebinos, entre
os quais Leila Sebbar e Malika Mokeddem, a repensarem a questão identitária para
além das fronteiras nacionais, voltando o seu olhar para os imigrantes, não
apenas para esses que foram obrigados, recentemente, a se exilar na França por
motivos políticos ou ideológicos, mas sobretudo para aqueles que para lá
emigraram a partir da Segunda Guerra, ainda durante o período colonial, atraídos
pelas condições salariais oferecidas pela metrópole que, na época, necessitava
urgentemente de mão-de-obra.
Esses primeiros imigrantes acalentavam um sonho: o de
regressarem a seus países com uma boa situação econômica, sonho que com o tempo
foi se tornando cada vez mais distante. Assim, em lugar de voltar, eles acabaram
trazendo a família e se radicando definitivamente na França, o que não significa
que tenham abdicado suas tradições culturais e religiosas. Vivendo em guetos e
discriminados pelos franceses, esses imigrantes não só conservaram suas práticas
culturais como as transmitiram aos filhos vindos ainda crianças ou já nascidos
na França. Esta chamada “segunda geração” ou geração beure vai, então, viver uma
experiência identitária complexa: culturalmente, seus representantes se
encontram entre dois pólos de base, francês/maghrebino, mas simultaneamente
esses dois pólos se abrem à multiplicidade e permitem uma pluralidade de
combinações identitárias entre as duas culturas. Assim, os beursseriam ao mesmo
tempo franceses e maghrebinos, nem franceses nem maghrebinos, franceses
não-maghrebinos e ou maghrebinos não-franceses (MANOPOULOS, 1999).
Esta minha nova pesquisa se propõe justamente a analisar
essas movências identitárias que muitos deles, fazendo-se escritores, vão
expressar em seus textos literários. Escapando a toda e qualquer noção fixa de
identidade, suas narrativas desconstroem as oposições binárias entre os dois
pólos de base e criam, neste entre-lugar ou neste Terceiro Espaço (BHABHA,
1998), possibilidades infinitas de construções culturais pluri-identitárias.
Dentre os escritores representantes da chamada “segunda geração”, cujas obras
constituem parte do corpus desta pesquisa, encontram-se: Azouz Begag, Nina
Bouraoui, Farida Belghoul, Leila Houari.
Um dado interessante é que essa produção literária da e
sobre a imigração vem ocupando um espaço cada vez maior no interior da
literatura francesa como um todo, sendo esse tema privilegiado não apenas por
escritores de origem maghrebina, mas também por alguns escritores franceses
autóctones, como Michel Tournier e J.M.G. Le Clézio. E há que se considerar
também sua boa recepção por parte da crítica francesa.
Com base nesses dados, teci uma hipótese a ser comprovada
ou não durante a realização desta pesquisa: a de que a inserção dessa literatura
emergente no seio da produção literária francesa seria o indício de uma possível
“crioulização” da cultura francesa. Ao falar de “crioulização”, refiro-me ao
“fenômeno de crioulização” de Édouard Glissant, segundo o qual, as culturas
atávicas (aquelas que afirmam sua identidade como raiz única) tendem a se tornar
compósitas, ou seja, culturas onde a identidade deixa de ser de raiz única para
ser “raiz indo ao encontro de outras raízes” (GLISSANT, 1996, p. 22-23). A seu
ver, tal fenômeno, que caracteriza o que ele chama de “Neo-America”, se estende
hoje pelo mundo inteiro através do contato cada vez maior entre as culturas
criando “micro- e macroclimas de interpenetração cultural e lingüística” (1996,
p. 19). Logicamente, quando essa interpenetração ganha força, as culturas
atávicas, vendo-se ameaçadas de diluição, tendem a defender seu estatuto de
identidade como raiz única, o que gera discriminações e conflitos dos mais
diversos.
A França, que sempre nutriu um forte orgulho por seus
ancestrais gauleses, por sua língua e cultura e que, por conta disso,
desenvolveu toda uma política assimilacionista nas suas antigas colônias,
encontra hoje na grande massa de imigrantes maghrebinos e seus descendentes -
que com suas diferenças culturais constituem parte significativa da população do
país - uma ameaça à sua pretensa identidade de raiz única. Digo pretensa porque
todas essas culturas que se dizem atávicas foram compósitas em suas origens.
Na verdade, a questão da imigração maghrebina na França
tomou rumos imprevisíveis dando origem, por exemplo, ao recrudescimento do
racismo e de posições nacionalistas exacerbadas, como as defendidas pelo partido
nacionalista de Le Pen e partilhadas por um bom número de franceses.
Conviver com a diferença, ser si mesmo sem se fechar ao
outro é o grande desafio do mundo de hoje, tanto para as culturas ditas atávicas
como para as compósitas. Na França, esse desafio, a meu ver, já começa a ser
enfrentado por essa literatura da e sobre a imigração que, por conta do
imaginário, aponta o que Paul Ricoeur chama de “soluções poéticas” (1985) para
essa questão identitária ligada à imigração, fazendo da narrativa literária um
espaço de construção de identidades móveis e plurais.
A construção dessas narrativas literárias, que são
narrativas de um tempo vivido, tem na memória a sua mola propulsora. Através das
lembranças daqueles que viveram e ou vivem essas experiências, essas narrativas
vão desvelando as “zonas sombrias” da memória oficial (ROBIN, 1989) sobre o
processo imigratório na França desde a Segunda Guerra ao mesmo tempo em que
reconstroem uma memória outra desse tempo, uma memória feita de fragmentos da
vida cotidiana, a partir da qual se poderá, então, reescrever a história desses
imigrantes e de seus descendentes.
Por outro lado, parece-me interessante verificar de que
forma a experiência da imigração se expressa literariamente no seio de uma
cultura compósita. Nesse sentido, me proponho também a analisar alguns romances
brasileiros centrados sobre a imigração de origem árabe no Brasil (basicamente a
libanesa), buscando cotejá-los com textos da literatura da e sobre a imigração
maghrebina produzida na França. Dentre esses romances brasileiros, destaco
Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, e Amrik, de Ana Miranda.
Os objetivos visados pela presente pesquisa resumem-se,
portanto, nos seguintes:
·
analisar a narrativa ficcional como espaço de construção de
identidades marginais, móveis e plurais;
·
estudar o tema das movências identitárias em textos
produzidos na França por escritores originários do Maghreb ou descendentes de
imigrantes maghrebinos, assim como em textos de escritores franceses autóctones;
·
analisar a situação e o impacto dessa produção literária
emergente, ou seja, da literatura sobre e das imigrações no interior do cânone
literário francês;
·
verificar até que ponto a inserção dessa literatura
emergente no seio da produção literária francesa poderia ser interpretada como
indício de uma possível “crioulização” (GLISSANT, 1996) da cultura francesa;
·
fazer dialogar textos dessa literatura sobre e das
imigrações na França com textos da literatura brasileira centrados sobre a
questão da imigração libanesa no Brasil, no sentido de verificar as formas pelas
quais essas diferentes construções narrativas expressam a experiência da
movência identitária entre as culturas oriental e ocidental;
·
repensar os conceitos de identidade e cultura não mais como
noções acabadas e monolíticas, mas como construções dinâmicas, inacabadas e
abertas ao contato com o outro.
2. Considerações teórico-críticas e metodológicas:
Para tratar do tema das movências identitárias em obras da
literatura sobre e das imigrações produzidas na França e no Brasil considero
pertinente adotar uma perspectiva cultural-comparatista, vislumbrando a leitura
dessas obras a partir do contexto histórico-cultural e social em que elas se
inserem, ou seja, enquanto representações do paradoxo que caracteriza o final do
século XX, onde ao mesmo tempo em que a chamada “globalização” da economia e da
mídia dilui as fronteiras entre as nações e facilita o contato entre diferentes
culturas, movimentos separacionistas explodem por todos os lados dando origem a
guerras absurdas que destroem populações em nome da diferença étnico-cultural.
Nesse sentido, o diálogo com outras áreas do saber, como a
História, a Antropologia, a Sociologia e a Fisolofia, se faz fundamental, uma
vez que a questão das movências identitárias se constitui hoje em dia não apenas
em uma experiência vivida pelo homem, ser migrante por natureza, mas também em
um processo histórico-social de conseqüências imprevisíveis. A interação com
essas outras disciplinas longe de representar o desprestígio da obra literária
é, ao contrário, um enriquecimento, tendo em vista que as trocas
teórico-metodológicas permitem leituras diferenciadas de um mesmo texto. Além do
mais, o caráter estético do texto literário continua preservado e até mesmo
valorizado, pois é justamente através da sua poética que se expressam as
múltiplas temporalidades e espacialidades que dão conta dessas identidades
móveis, errantes e plurais.
Assim, dentre os teóricos com os quais dialogo mais de
perto, ressalto, evidentemente, alguns cujas reflexões não se fecham na
especificidade de seu campo de conhecimento, mas que, ao contrário, buscam
sempre a interação com outras disciplinas, como é o caso de Edward Said, Édouard
Glissant, Paul Ricoeur, Tzvetan Todorov, Régine Robin, Homi Bhabha, Pierre
Bourdieu, Jacques Le Goff, Michel De Certeau.
A defesa que faço do diálogo da literatura com outras áreas
do saber não se restringe a uma necessidade específica do meu tema de pesquisa.
A meu ver, é no diálogo que se estabelecem as trocas enriquecedoras que nos
permitem refletir, relativizar nossos pontos de vista, desconstruir e
reconstruir conceitos, enfim, descobrir novas perspectivas para nossas
pesquisas. É nesse sentido que acredito deva caminhar não apenas o nosso GT de
Literatura Comparada, mas também os demais GTs da ANPOLL.
3.Referências bibliográficas:
Textos literários:
BEGAG, Azouz.
Le gone du Chaâba. Paris: Seuil, 1986.
__________.
Zenzela. Paris: Seuil, 1997.
BELGHOUL,
Farida. Georgette!Paris: Barrault, 1986.
BEN JELLOUN,
Tahar. Les raisins de la galère. Paris: Fayard, 1996.
BOUDJEDRA, Rachid. Topographie idéale pour une agression
caractérisée. Paris: Denoël, 1975.
BOURAOUI, Nina. La
voyeuse interdite. Paris: Gallimard, 1991.
HATOUM,
Milton. Relato de um certo Oriente. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
HOUARI, Leïla.
Zeida de nulle part. Paris: L’Harmattan, 1985.
LE
CLÉZIO, Jean-Marie Gustave. Désert. Paris: Gallimard, 1980.
MIRANDA, Ana. Amrik. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MOKEDDEM, Malika. Des rêves et
des assassins. Paris: Grasset&Fasquelle, 1995.
SEBBAR, Leïla. Schérézade: 17 ans, brune, frisée, les yeux
verts. Paris: Stock, 1982.
TOURNIER,
Michel. La goutte d’or. Paris: Gallimard, 1986.
Textos teóricos:
BHABHA, Homi K. O
local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
BOURDIEU, Pierre (ss. dir. de). La misère du monde. Paris:
Seuil, 1993.
CERTEAU, Michel de.L’inventiondu quotidien
l: arts de faire. Paris: Gallimard, 1990.
GLISSANT,
Édouard. Poétique de la relation. Paris: Gallimard, 1990.
__________. Introduction à une poétique du divers. Paris:
Gallimard, 1996.
LE GOFF, Jacques. Memória.
Documento/monumento. Enciclopédia Einaudi, v. 1: Memória-História. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1984, p.11-50 e p. 95-106.
__________. As mentalidades: uma história ambígua. In: LE
GOFF, J., NORA, P. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1976, p.68-80.
MANOPOULOS, Monique. Décentrage et
pluri-identités dans Les A.N.I. du Tassili de Akli Tadjer. Le
Maghreb Littéraire, Toronto: Éditions La Source, v. III, n. 5, p. 65-80, 1999.
RICOEUR, Paul.
Temps et récit 3: le temps raconté. Paris: Seuil (poche), 1985.
ROBIN, Régine. Le roman mémoriel: de l’histoire à
l’écriture du hors-lieu. Montréal: Éditions du Préambule, 1989.
__________. Le deuil de l’origine. Une langue en trop, la
langue en moins. Paris: Presses Universitaires de Vincennes, 1993.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do
Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
__________. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da
América: a questão do outro. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
__________. Nous et les autres : la réflexion française sur
la diversité humaine. Paris: Le Seuil, 1989. [topo da
página]
# Zilá Bernd - As relações
literárias interamericanas
São dois os
objetivos da presente exposição: (1) situar as tendências atuais da linha 4:
Relações literárias interamericanas, a qual se propõe não apenas a abrigar
pesquisas comparadas entre as literaturas das três Américas como também a
refletir sobre o estatuto do comparativismo literário interamericano; (2)
apresentar os projetos futuros e seus possíveis desdobramentos incluindo a
proposta de criação de um novo GT que será apreciada no XV Encontro Nacional e
que, se aprovado, terá por título “Relações Literárias Interamericanas”.
(1) Tendências atuais da linha 4
Dentro desta linha as pesquisas cartografaram a geografia
das Américas nas seguintes direções: a) Quebec/Brasil, através de estudos
comparados entre a literatura de língua francesa do Quebec e a literatura
brasileira; b) Antilhas/Brasil, através de etudos entre a literatura francófona
das Antilhas (Caribe) e a literatura brasileira; c) América Latina/Brasil e d)
América do Norte/Brasil, com estudos sobre literatura norte americana
(estadunidense e canadense anglófona) e suas relações com a literatura
brasileira.
a) Quebec/Brasil: consolidando uma tradição da UFF
(Universidade Fed. Fluminense) e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do
Sul) que, desde o início dos anos 90, possuem cursos em nível de Pós-Graduação e
pesquisa na área das literaturas francófonas das Américas, os trabalhos mais
relevantes originaram-se de pesquisadores dessas universidades.
Maria Bernadette Porto (UFF) editou volume coletivo
intitulado Fronteiras, passagens, paisagens na Literatura Canadense (Niterói:
EDUFF/ABECAN, 2000) no qual ela própria assina um artigo que contém de alguma
forma a síntese sua pesquisa : “Mutações e (i) migrações no espaço quebenquense”
. Seu texto recorre à revisão crítica de noções privilegias como a questão da
origem, as travessias da identidade e a representação do entre-dois. Desenvolve
nesse texto o rico filão das chamadas literaturas migrantes, ou seja, aquelas
cujos autores lidam com dois horizontes culturais: o de seus países de origem e
o do Quebec, país de adoção. Segundo a própria autora, a literatura migrante
“trouxe o heterogêneo para a paisagem ficcional do Quebec graças à incorporação
de outras histórias, memórias e referências culturais, propondo relfexões em
torno das travessias identitárias realizadas no Quebec por autores e personagens
que conhecem de perto a vivência do exílio.” São de grande valia teórica à
Bernadette Porto as teses de Daniel Sibony (L’entre-deux; l’origine en partage.
Seuil, 1991) e de Régine Robin (Le deuil de l’origine. Vincennes, 1993).
Na mesma obra, Nubia J. Hanciau, da FURG (Fundação
Universidade do Rio Grande), elabora estudo sobre uma escritora que foge a
qualquer tentativa de classificação por encarnar ela própria uma constante
migração: trata-se de Nancy Huston, nascida na província canadense anglófona de
Alberta, mas que fez uma opção por escrever em francês e por viver em Paris. A
análise de Nubia Hanciau destaca, no conjunto dos romances da autora e também de
sua produção ensaística, uma das linhas de força de sua obra que é a questão das
ambiguidades identitárias, destacando seu desconforto face a assumir uma
identidade identidade canadense e sua necessidade de empreender uma viagem de
volta ao país natal, a Alberta. Nesse retour au pays natal, Nancy Huston procede
à redescoberta da América, oferecendo aos leitores descrições da paisagem do
Novo Mundo como um campo de infinitas possibilidades.
Zilá Bernd, da UFRGS (Universidade Fed. do Rio Grande do
Sul), em publicação coletiva intitulada Identidades e estéticas compósitas
(PPG-Letras/UFRGS e La Salle, 1999), focaliza no adjetivo “compósito”, associado
aos conceitos de “identidade” e “estética”, sua atenção, pretendendo com ele
abarcar o conjunto de mesclas, hibridações, justaposições e aglutinações que
ocorrem na geografia ficcional americana. Segundo Glissant, compósito opõe-se a
atávico (culturas enraizadas em suas crenças e em seus respectivos territórios).
O choque brutal dessas culturas atávicas produziu, nos territórios colonizados,
culturas compósitas, marcadas pela diversidade. Provar que as identidades, no
contexto das três Américas, podem ser “compósitas”, o que constitui sem sombra
de dúvida um oxímoro, é uma das propostas do livro organizado por Zilá Bernd e
Cícero Lopes.
b) Antilhas/Brasil : também na linha da investigação das
“feições das identidades culturais”, Maria Nazareth Soares Fonseca, da PUC-MG,
trabalha com os conceitos de impureza e contaminação como operadores para a
análise de entrecruzamentos e flutuações dinâmicas de espaços em transformação.
O antilhano Edouard Glissant fornece preciosa ossatura teórica à reflexão de
Maria Nazarteth que investiga não apenas textos literários, como os de Nicolás
Guillén e de Patrick Chamoiseau, como também as pinturas híbridas de Wilfredo
Lam, visando uma releitura de textos e objetos culturais a partir de novos
lugares.
c) América Latina/Brasil: o trabalho da profa. Vera Follain
de Figueriedo não foi informado.
d) América do Norte/Brasil: duas pesquisadores trabalham
com as literturas de língua inglesa da América do Norte: Gisele Fernandes (UNESP
de Assis) e Eloína Prati dos Santos (UFRGS). Gisele, no momento realizando
programa de pós-doutorado nos Estados unidos, analisa a obra de Don Delillo, sob
a ótica do Pós-moderno (Hutcheon, Jameson) para mostrar como seus romances de
natureza contestadora querem fazer do leitor um sujeito atuante capaz de
consquistar sua consciência histórica e assim reconstituir e fazer a História de
seu próprio país. As pesquisas de Eloína , a partir de autoras canadenses de
língua inglesa, apresenta um texto em que, privilegiando o feminino, fornece uma
via de acesso à obra de Susanna Moodie. Essa escritora, de origem inglesa que
emigrou para o Canadá, apresenta pela vivência pessoal do entre-dois, a própria
dualidade canadense e a difícil sobrevivência no espaço do Novo Mundo. Usa
igualmente como fundamento teórico, a obra da autora canadense Linda Hutcheon
para apontar a sobrevivência de personagens ex-cêntricas na literatura canadense
e na escrita feminina.
2. Continuidade e desdobramentos futuros
Projeto CD-ROM: ANTOLOGIA DE TEXTOS FUNDADORES PARA UMA
TEORIA DA LITERATURA COMPARADA INTERAMERICANA
No âmago da linha de pesquisa: Relações Literárias
Interamericanas, está o desejo de estabelecer o diálogo entre as literaturas das
três Américas e aperfeiçoar métodos de Literatura Comparada para viabilizá-lo. A
tentativa de estabelecer, via literatura, “relações interamericanas”, passou
pela constatação da dificuldade de acesso a textos fundacionais não só para o
conceito de americanidade e americanização, como para questões ainda anteriores
como pertença à(s) América(s), autonomização e dependência literárias, questões
básicas para se pensar o possível estatuto de um comparativismo literário
interamericano. Textos pioneiros e seminais para abordagem desses temas ou nunca
haviam sido traduzidos para o português, ou pertenciam a edições esgotadas.
Pensamos que seria prioritário para levar a cabo nossos objetivos, traduzir para
o português textos escritos originalmente em inglês, francês e espanhol,
disponibilizando-os em um único multimídia, o CD-ROM, que teria a imensa
vantagem de poder armazenar ainda hipertextos, imagens e sons e de oferecer-se à
consulta entrecruzada de informações.
O projeto CD-ROM, coordenado por Zilá Bernd, na UFRGS, está
em fase final de preparação, devendo estar concluído em forma de cd-rom
propriamente dito e disponível em linguagem HTML na Internet até fevereiro de
2001. Mais de 50 pesquisadores de todo o Brasil e do exterior integraram o corpo
de tradutores e comentaristas, no sentido de viabailizar a empreitada que
colocará em um único meio mais de sessenta textos que apresentam duas grandes
características: textos fundadores do literário e do identitário nas três
Américas e textos fundacionais para uma teoria da literatura comparada
interamericana. Fazem parte do primeiro conjunto textos de distintas naturezas
(ensaios, manifestos, poemas, etc) que, desde o início do século, procuraram
problematizar as questões de autonomização e identidade americanas como os de
Aimé Césaire, Price Mars, Fernando Ortiz, Lezama Lima, Ralph Emerson, Borduas,
Mário e Oswald de Andrade, Machado de Assis, entre outros. No segundo grupo de
textos, elencamos os mais relevantes no que tange à sua repercussão através das
Américas, por seu caráter inovador e dessacralizante como os discursos da
negritude e da crioulização (René Depestre, Edouard Glissant e Patrick
Chamoiseau), os calcados nas questões identitárias ( Gérard Bouchard, Jocelyn
Létourneau, Maximilien Laroche), os que propõem novas leituras do texto
literário no entrecruzamento com os estudos culturais (Linda Hutcheon, Firmat,
Silviano Santiago, Ana Pizarro, Antonio Candido, Octavio Paz e Alejo Carpentier)
e os que peliteiam claramente a possibilidade de comparação entre as literaturas
das Américas (Wlad Godzich, Roger Bastide, Piglia, Eduardo Galeano, Mario Valdez
, Walter Mignolo e Néstor Garcia Canclini). Temos a esperança de poder, com o
CD-ROM, colaborar para superar o desconhecimento entre as culturas das Américas
e intensificar um diálogo crítico mais sólido e criador.
O principal desdobramento foi a proposta de pesquisadores
que não integravam o GT de Comparada de criação de um novo GT que receberia a
denominação mesma da linha 4 : RELAÇÕES LITERÁRIAS INTERAMERI-CANAS, tendo a
profa. Eurídice Figueiredo (UFF) como coordenadora e a profa. Zilá Bernd como
vice. Esta proposta será avaliada durante o XV Congresso da ANPOLL em Niterói,
em junho de 2000, confirmando uma tradição da própria ANPOLL, segundo a qual
linhas que se fortalecem, atingem um grau de maturidade e um número considerável
de interessados se desmembrem constituindo novos GTs.
Com esse desdobramento, os estudos americanísticos ganharão
um fôlego maior abrigando pesquisadores interessados nas literaturas americanas
que se exprimem em português, espanhol, inglês e francês. Dando prosseguimento
aos objetivos da linha pretende-se trabalhar mais especificamente no sentido da
migração de conceitos como os de americanidade, americanização, negritude,
crioulização, entre outros, bem como das estratégias de construçào/desconstrução
identitárias que se valem de mecanismos tais como mestiçagens, hibridações,
transculturações, etc. no longo e ainda não concluído processo de constituição
das culturas e das literaturas das três Américas. Procurar determinar as
similitudes e as discrepâncias desse processo de formação constitui-se em uma
das tarefas a serem privilegiadas pelo grupo.
Acompanhar as transferências culturais através das
Américas, cartografar textos que – em diferentes países – caracterizaram-se como
verdadeiras “declarações de independência intelectual”, acompanhar o trânsito e
a migração de determinados conceitos, flagrando a formação de processos de
hibridação, como barroco e o realismo maravilhoso, são possibilidades que se
oferecem para o próximo biênio. [topo da
página]
XVII Encontro
Nacional da Anpoll - Gramado 2002
# Anelise Reich Corseuil - O
Documentário como Forma de Representação: Entre o Real e o
Exótico
Contextualização
A proposta de
Hayden White de equiparar a narrativa ficcional histórica `a historiografia
oficial aponta para uma transgressão das fronteiras associadas à ficção e à
história. Para White, a narrativa histórica ficcional é capaz de imaginar uma
alternativa para as realidades existentes e construir significação para a
fragmentação histórica (The Content of the Form 157). Essa transgressão de
fronteiras disciplinares é identificada também por vários críticos culturalistas
como Ella Shohat e Robert Stam. Para eles, a transgressão de fronteiras
disciplinares no momento atual vem associada `a influência e proliferação de
imagens e narrativas, fabricando ícones culturais e fatos históricos que fazem
parte de um imaginário coletivo globalizado. O termo definido por Alison
Landsbergh como prosthetic memory, ou "memórias postiças" ,utilizado para
descrever como a memória popular pode ser moldada por tecnologias de massa que
possibilitam ao espectador incorporar como experiência individual eventos
históricos não vivenciados (citado em Burgoyne, pág.3), resume bem a influência
que ícones e imagens podem passar a exercer no imaginário coletivo. Apesar de a
produção e a disseminação destas memórias não estarem organicamente relacionadas
com a experiência pessoal do indivíduo, o que pode viabilizar uma certa
alienação, elas também possibilitam um engajamento com fatos passados que podem
servir como "uma base mediadora para uma identificação coletiva" (Burgoyne
pág.6). As imagens de Zapruder do assassinato de J. F. Kennedy ou a reencenação
dos três soldados de Iwojima levantando a bandeira americana durante a II Guerra
Mundial no cenário do World Trade Center ilustram a influência que imagens
documentadas ou documentários podem exercer no imaginário de uma coletividade
globalizada.
Nesse cenário cultural, o documentário tem sido objeto de
estudo e de discussões críticas variadas que demonstram, na sua grande maioria,
a dificuldade que se tem em defini-lo como gênero ou como discurso capaz de
representar uma realidade específica. Teóricos anglo-americanos, como Bill
Nichols, em Representing Reality, e William Guynn, A Cinema of Nonfiction,
apresentam definições conflitantes, colocando o documentário no foco de uma
discussão maior que se relaciona com a crise da representação no contexto
pós-moderno. Para Guynn, “os filmes documentais se constituem em documentos, no
sentido que a palavra [o documento] tem dentro das ciências humanas:
representações fieis (aqui filmadas ao invés de escritas) de eventos que ocorrem
fora ou independentemente da consciência do documentarista" (Guynn, pág.13). O
trabalho de Guynn reitera uma perspectiva mais mimética das artes, no sentido em
que afirma a capacidade do documentário de representar o evento "real” com uma
retórica própria de um enunciador que distingue "o espectador do enunciado das
imagens, reestabelecendo assim a heterogeneidade de certos elementos do
siginificante, e chamando a atenção para a segregação dos dois espaços do cinema
[o do documentário e o do espectador]” (pág. 231). Observa-se no texto de Guynn
uma tentativa de atribuir ao documentário os elementos que o distinguem e ao
mesmo tempo o aproximam do cinema ficcional. A relação tempo e espaço--a relação
entre lugares (aqui e lá) e entre tempos (antes e agora)--vem demarcada pela
retórica própria do enunciador do documentário, que neutraliza a ilusão criada
pelo cinema e pelo filme ficcional de aproximar o espectador de "um falso
presente" enquanto o filme é projetado na tela.
Em Representing Reality, Bill Nicholls apresenta uma
definição do documentário que se baseia nos elementos que podem diferenciá-lo de
outras formas narrativas. O conceito de argumentação serve como base para tal
diferenciação: "o documentário retoma e utiliza uma relação indexical ao mundo
histórico...a evidência do documentário é neste sentido diferente, menos por ser
de uma ordem inteiramente distinta da evidência histórica do filme ficcional (as
autênticas armas e pinturas do filme de época, por exemplo), mas porque as
evidências não servem às necessidades da narrativa em si" (116). Para Nicholls,
a evidência do documentário não é um toque estético, “não é um elemento exposto
e motivado de acordo com as necessidades da coerência narrativa. Ao contrário, a
evidência do documentário nos remete ao mundo e suporta argumentos elaborados
sobre aquele mundo diretamente. (É ainda representação mas não ficcional)”(pág.
116). Nas formulações de Guynn e Nicholls há uma ênfase nos aspectos retóricos
diferenciadores do filme ficcional e documental. Para Guynn, tem-se a presença
do mediador, enunciador, como elemento distintivo entre um universo e o outro;
para Nicholls, o documentário tem um caráter argumentativo acerca de
instituições, momentos históricos e/ou realidades sociais/geográficas distintas.
A despeito das diferenças elaboradas por esses teóricos,
pode-se traçar um paralelo entre o filme histórico ficcional e o documentário no
contexto da teoria narrativa de Hayden White, que equipara o texto histórico ao
ficcional, na medida em que narrativas históricas também se preocupam com a
produção de significados através de uma coerência textual. Para White, no
processo de seleção, organização e projeção de fatos e personagens históricos,
diversas crônicas e narrativas históricas têm uma tendência a moralizar a
história. O crivo interpretativo de diferentes historiadores ou diretores vai,
desta forma, definir a inclusão ou a exclusão de significantes históricos
específicos afim de que o conjunto de imagens ou o texto em questão construa um
significado específico (White, págs.26-47). Neste sentido, os documentários e
filmes históricos veiculados na grande mídia podem também ser vistos como
representações com cunho ideológico específico através do qual certas etnias e
nacionalidades são representadas na grande mídia. A teoria narratológica pode
ser, desta forma, uma importante ferramenta na análise de documentários,
sugerindo uma estreita relação entre construção da narrativa e formas de
representação. Esta relação pode ser observada através de aspectos técnicos,
como o conceito de fechamento e abertura do texto, a relação entre a
argumentação e construção narrativa, a relação entre o sujeito e o objeto, e a
questão da autoridade do narrador como elemento enunciador e mediador entre a
realidade do espectador e do mundo representado.
Nesse contexto, este trabalho busca analisar o documentário
canadense "Um Lugar Chamado Chiapas" (1998), de Nettie Wild, como uma forma de
representação da revolução de Chiapas. Sem descartar o pressuposto básico nas
definições de Guynn e Nicholls, ou seja, de que o documentário tem uma forma
narrativa distinta da ficcional (seja ela argumentativa ou conceitual), os
documentários tentam representar uma realidade específica ao mesmo tempo em que
se constituem como formas narrativas carregadas de significado.
Em Um Lugar Chamado Chiapas ocorre também a justaposição de
duas linguagens: a representação do real, Chiapas, enquanto local específico de
conflito entre Zapatistas e o governo mexicano, e a forma como a câmera
transforma a realidade de Chiapas em imagens esteticamente belas, chamando a
atenção para questões como enquadramento, posição de câmera e efeito de luz.
Ocorre aí um certo distanciamento entre o real e a sedução proporcionada pelas
imagens. A diretora do documentário, Nettie Wild, também constrói um universo de
imagens, onde o realismo do conflito é substituído por uma visão mais subjetiva
e metafórica.
O documentário, ganhador do título de melhor documentário
produzido no Canadá em 1998, recebendo o Genie Award em 1999, apresenta o
levante Zapatista do Exército de Liberação Nacional, comandado pelo
subcomandante Marcos, contra as políticas do presidente do México, Zedillo. O
conflito se dá em conseqüência da implantação do NAFTA (North America Free Trade
Agreement), no México, em 1994. A narrativa em off explica que o NAFTA facilitou
não apenas o impedimento, por parte do governo mexicano, do assentamento de
índios Maias mas também o boicote da produção de milho pelos indígenas Maias,
uma vez que o milho consumido no México passou a ser importado dos EUA por um
valor inferior ao produzido pelos indígenas. Membros da Igreja que tentam
intermediar o conflito, a população indígena, vitimada pela ação de grupos
paramilitares formados por zapatistas e latifundiários são documentados na
narrativa através de entrevistas.
O documentário pode ser definido como "politicamente
correto", na sua tentativa de apresentar para diferentes audiências um olhar
externo ao conflito de Chiapas. Nettie Wild posiciona-se como estrangeira que
busca apresentar uma perspectiva pessoal ao problema político de Chiapas. Nas
cenas iniciais do filme sua narrativa em off traça um panorama político de
Chiapas, apresentando uma leitura pessoal enquanto elemento externo ao conflito.
Na cenas subseqüentes, apresenta-se a equipe de Nettie tentando penetrar no
território de Chiapas. Nettie aparece em plano médio, dentro de sua caminhonete,
questionando os guardas sobre a necessidade de apresentar-lhes um passaporte,
uma vez que ela já se encontra em território mexicano e que ali não deveriam
existir fronteiras. O filme coloca uma pergunta sobre Chiapas--"que lugar é
este?"--para respondê-la em seguida com um seqüência de imagens onde um mapa do
México apresenta alguns pontos em vermelho: pequenos vilarejos de Chiapas, que,
conforme a narrativa em off explica, são “fronteiras dentro de fronteiras”,
determinando diferenças internas ao próprio território mexicano. Ou seja, a
proposta do documentário é representar essas diferenças internas ao México, ao
invés de homogeneizar as diversas etnias e interesses.
A seqüência em voz-off, explicando, através do mapa, a
trajetória realizada pela equipe de Nettie, continua a informar que a partir do
vilarejo La Realidad não há mais estradas. O subtexto da visita sugere um
problema de representação, ou seja, que o local não pode ser representado em
termos de uma cartografia, remetendo-nos, indiretamente, às várias correntes
migratórias de cartógrafos que vieram às Américas durante os séculos XVIII e
XIX. A ausência de estradas para representar o espaço de Chiapas, pode ser visto
como uma leitura paródica de textos colonialistas históricos ou exploratórios de
Literatura de Viagem, em que autores como Humboldt "reinventavam" a natureza da
América do Sul em tom dramático e grandioso, convertendo o que já era
conhecimento comum dos habitantes do lugar em conhecimento europeu, nacional e
continental (Pratt, pág.120). Várias outras seqüências do filme reiteram a
postura consciente da documentarista do processo de representação em discursos
globalizantes, universais que se outorgam certa autoridade para falar de uma
realidade histórica distinta e específica. Na seqüência em que Nettie entrevista
o comandante Marcos, à audiência é dado escutar as perguntas de Nettie, com o
enquadramento de Marcos, sem que Nettie apareça em cena. A inversão de papéis,
entrevistado e entrevistadora, é revelada quando Marcos pergunta a ela há quanto
tempo está em Chiapas. Ele então comenta que oito meses é um tempo muito pequeno
para entender Chiapas, explicando que ele está lá há doze anos e "só agora
começa a compreender melhor o lugar". Pode-se ler a inversão de papéis como
forma de inverter as posições, entrevistado e entrevistador, evidenciando, mais
uma vez que Nettie democraticamente aceita a crítica de Marcos, que a coloca
como observadora externa e incapaz de compreender a totalidade do conflito de
Chiapas.
A entrevista também possibilita ao sub-comandante Marcos
ocupar um espaço como articulador de um discurso próprio que questiona o
posicionamento da documentarista estrangeira (detentora do poder em representar
Chiapas). Mas, uma vez que o sub-comandante Marcos também é externo--ou seja,
não reativo-- a Chiapas (ele está lá há aproximadamente 12 anos, tendo uma
origem desconhecida e híbrida, meio indígena, hispânica, talvez sendo oriundo da
Cidade do México como professor de filosofia), a entrevista possibilita também o
questionamento da própria autoridade de Marcos como intérprete de Chiapas.
O documentário permite uma leitura de sua prática
discursiva, como forma de metadocumentário, devidamente auto-reflexivo, na
medida em que questiona a sua própria forma discursiva como representação de uma
realidade distinta que é Chiapas. Na seqüencia dos créditos, os entrevistados
são reintroduzidos no momento inicial da tomada de câmera, quando então aparecem
em atitude informal, fazendo pose para a câmera de maneira displicente, rindo e
tecendo comentários. Essas seqüências finais dos créditos (bem como a entrevista
com Marcos) sugerem uma releitura do documentário, não mais como elemento capaz
de captar a realidade mas como discurso mediador de diferentes realidades, uma
vez que o aparato cinematográfico (com suas tomadas, inclusão e exclusão de
cenas, enquadramento, edição de som) é revelado como um aparato.
Simultaneamente, os entrevistados sugerem que suas entrevistas também são uma
encenação, uma performance, talvez organizada para que estrangeiros possam
vê-los de forma mais assimilável. Muitas dessas representações, por
conseqüência, implicitamente, negam agência aos sujeitos do relato, para depois
incluírem essa falta de agência no subtexto do documentário, como uma crítica
inerente à própria forma discursiva do documentário atual.
O filme poderia assim ser visto como discurso
metadiscursivo, questionador da suposta capacidade do documentário em
representar uma realidade de forma neutra, sem artifícios narrativos; ou seja,
como produto cultural inserido no momento em que ele é produzido: o momento
pós-moderno--dentro de uma postura politicamente correta, onde os indígenas ou
correligionários dos Zapatistas têm um espaço para se apresentarem como sujeitos
de um momento histórico particular. Ao mesmo tempo em que esses indivíduos
tentam se articular como sujeitos de sua história, o documentário revela os
problemas inerentes ao próprio aparato utilizado para representá-los: um
documentário produzido por estrangeiros--agentes de uma outra história que não é
a dos nativos de Chiapas.
Paralelamente à metalinguagem que revela os processos de
mediação na produção do documentário, ocorre um efeito de sedução do espectador
através de imagens extremamente bem elaboradas, com efeito de iluminação e
enquadramento que produzem imagens simbólicas e poéticas. Essas sequências
possibilitam à audiência do filme a substituição momentânea de imagens de uma
realidade de miséria, crise e tensão por imagens estéticamente bem elaboradas.
Essa parece ser a leitura viável de várias cenas apresentadas no filme. Duas
cenas ilustram esse processo de estetização da realidade. Em uma das tomadas
iniciais, o espectador é introduzido a uma igreja em Chiapas, onde velas acesas
são seguradas próximas a uma lápide. O cinematografista utilizou-se de um ângulo
extremamente baixo para ressaltar a luz difusa das velas queimando. O efeito de
luz criado pelas velas, como se pudessem ter existência própria, embeleza a
imagem ao mesmo tempo em que simbolicamente reforça o poder quase mítico que
elas têm para aquela comunidade de pessoas reunidas na igreja. A fotografia
seduz o espectador em dois aspectos: distanciando-o do contexto em que as
pessoas que seguram as velas estão inseridas, alienando-o assim do momento
histórico que elas vivem (os mexicanos acenderam as velas para livrarem-se das
mazelas vividas) e esteticizando uma imagem que poderia ter tido um outro tipo
de enquadramento--um enquadramento em ângulo alto, por exemplo, colocaria em
evidência o coletivo, pois mostraria as pessoas reunidas dentro da igreja em
detrimento do brilho das velas, que definitivamente dá maior valor estético à
fotografia do filme. A beleza das tomadas atinge seu ápice quando o rosto de uma
menina indígena, em close, tem seu perfil ressaltado pelo efeito de iluminação
das velas.
Há uma segunda seqüência que ilustra a questão da
substituição do coletivo pelo valor estético. A seqüência ocorre quando a câmera
mostra em plano médio a imagem de uma mulher com duas crianças, puxando pesadas
cargas de madeira. Ocorre um diálogo entre a narradora e a mãe que diz aceitar
ser fotografada sob a condição de receber 20 pesos por foto, 20 para ela e para
cada um dos seus dois filhos. A discussão continua e a câmera focaliza as
crianças individualmente. O significado da imagem que em um primeiro momento
revela o trabalho de semi-escravidão a que as crianças estão sendo submetidas é
substituído pela beleza e exotismo da cena: um close de uma criança maia. A
imagem da criança que fixa o olhar na câmera torna-se quase desmaterializada,
uma vez que o meio externo, constituído pela carga de madeira, a família e a
mata, é excluído da fotografia.
A teoria literária tem definido o termo “estética realista”
como conceito problemático, uma vez que o realismo e o naturalismo pictorial de
Emile Zolá, Theodore Dreiser, ou de Graça Aranha vêm associado a uma estética
que se diz destituída de metáforas ou de uma sintaxe rica. Em diferentes
discussões sobre o realismo, o valor do romance realista não está na estética do
belo, mas sim na capacidade de expor de forma verossímil problemas coletivos,
ressaltando diferenças de classe, questões econômicas, educacionais,
institucionais, quase de forma documental (Furst págs.1-23).. A relação que se
traça aqui neste trabalho entre o exotismo e o realismo focaliza a dicotomia
entre a sedução da fotografia do documentário—no caso específico do documentário
que me proponho a analisar Um Lugar Chamado Chiapas—e do seu distanciamento da
economia de escassez vivida pelos índios Maias na região de Chiapas. Parece
ocorrer, neste documentário, uma simbiose entre o “politicamente correto”, de
uma narrativa que muitas vezes se questiona como discurso mediador de uma
realidade distinta, e imagens para exportação, ou seja, imagens belas de um
território marginalizado.
O documentário, de forma similar à ficção histórica,
constrói o passado histórico ou realidades distintas, possibilitando que o
elemento representado se articule, seja através de uma narrativa, com um
conteúdo mais ou menos argumentativo do que o texto ficcional, ou com elementos
idênticos à narrativa ficcional, tais como a construção do sujeito/personagem, a
voz narrativa, a montagem de imagens metafóricas ou simbólicas, ou até mesmo na
utilização de uma estética similar à ficcional. No caso específico de Um Lugar
Chamado Chiapas, a realidade histórica e geográfica de Chiapas estabelece uma
relação de diálogo com o documentarista e com o espectador, possibilitando a
articulação de uma crise que transcende o próprio espaço representado para
questionar os métodos e formas de representação.
Obras
Citadas:
Burgoyne, Robert. “Memory, History and the Digital Imagery in Contemporary
Film”. (http://www.markszine.com/104).
Furst,
Lilian R. All is True: The Claims and Strategies of
Realist Fiction. Durham: Duke University Press,1995.
Guynn, William. A Cinema of
Nonfiction. London: Associated U. P., 1987.
Nichols, Bill. Representing
Reality. Bloomington: Indiana U. P., 1991.
Shohat,
Ella and Robert Stam. Unthinking Eurocentrism:
Multiculturalism and the Media. London and New York: Routledge, 1994.
White, Hayden. The Content of the
Form: Narrative Discourse and Historical Representation. Baltimore: The
Johns Hopkins U. P., 1987. [topo da
página]
# Ângela Dias - Imagens/Ficções
da crueldade contemporânea
Escrever como
um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E, para isso, encontrar seu
próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio
terceiro-mundo, seu próprio deserto.
Deleuze/Guattari, Kafka por uma
literatura menor
A reconhecida propensão ao realismo1 da literatura brasileira, na cena pós-moderna, está
longe de proporcionar um leque previsível de dicções, sobretudo na tendência
dominante de dramatização da cidade contemporânea. Se o conflito sem vinculação
explícita à luta de classes, como o constatam vários críticos (Gomes, 2000:68),
constitui uma das constantes, o influxo midiático-instantaneísta, sob o qual se
processa tal produção, relativiza a perspectiva mais ou menos distanciada, ainda
atuante em expressiva parcela da literatura realista, na tradição moderna.
Com efeito, o dilúvio imagético, no qual estão imersos
habitantes e metrópoles, dentro e fora da ficção, imiscui e confunde olhares e
objetos, numa especularidade ofuscante entre imagens-mercadorias e
corpos-fetiches. Neste carrossel compulsivamente auto-reproduzido, o circuito do
desejo feito máquina faz funcionar peças, pessoas e materiais e transforma tudo
e todos, sem exceção, em engrenagens de um processo imanente, em que o "erótico
opera todo um investimento político e social"(Deleuze&Guattari; 1977:94).
Justamente tal implicação entre eros, poder e funcionamento
dissuade a tradicional figura hierarquizante da Lei em favor de um exercício
linear e contíguo, em que cada segmento conecta-se com o do lado para operar "a
burocracia como desejo, isto é como exercício do próprio
agenciamento"(Deleuze&Guattari; 1977:84). Por isso mesmo, nas sociedades de
consumo do capitalismo pós-industrial, a compreensão tradicional de cultura,
como adiamento da violência por meio da representação, fragiliza-se e, de certa
maneira, entra em crise.
Na instabilidade de um "aqui-agora" fluido e movediço, a
figura abstrata do antigo poder estratificado, refém da transcendência,
atualiza-se como véu midiático e dissemina-se na selva de signos das cidades. Em
sua progressão obscena, a visibilidade espetaculosa encobre, o excesso produz
carência e a opulência hedonista agride e incita à violência.
Assim a última versão do totalitarismo nas sociedades de
consumo, administradas pela sedução e pela manipulação das massas, de um lado,
submete o corpo à pornografia glamourizada da fantasia multimidiática e de
outro, exercita-o no ritmo alucinante da violência banalizada, pela disputa da
cupidez indiferente com o ressentimento da fome.
Não obstante a modalidade mais flexível de aparição, o
totalitarismo pós-moderno compartilha, com outras manifestações históricas, a
convergente aposta na pobreza da experiência. É que o tempo da
mercadoria-fetiche, como bem o reconhecia Adorno, é o presente perpétuo, em que
a figura-chave da repetição do mesmo, como sempre novo, isola os acontecimentos
da injunção que os produziu, destacando-os de seus respectivos horizontes, para
fixá-los na bricolage indiferente do momento que passa.
O aludido caráter maquínico do desejo, como poder
disseminado e imanente, segundo a dupla Deleuze/Guattari, encarna, justamente, o
nexo de equivalências e vínculos entre homens e coisas, inerente ao aparato
tecno-econômico do desenvolvimento capitalista, desde a modernidade. A natureza
neutralizadora de tal deriva, em sua aversão a qualquer outro valor, que não
seja o "de troca", autentifica sempre e cada vez mais a formulação benjaminiana,
de 1939, sobre o avesso de barbárie inerente a cada documento de cultura, no
percurso da História.
Encravado visceralmente nesta injunção, hoje, globalizada,
o atual romance urbano brasileiro plural, híbrido e com assídua tendência à
autocrítica vem, com relativa frequência, dramatizando o princípio de
crueldade2 como diretriz de organização formal.
A imagem da crueldade entendida como violência sádica, agressividade perversa ou
ainda pornografia banal e obsessiva ao imprimir-se no espelho do texto, em plena
sintonia com a lógica do mercado, encontra expressão efetiva na repetição como
traço característico.
Assim, a tradução narrativa do que denominamos de
"bricolage transcultural"3 característica do
regime audiovisual e do paradigma informático, dominantes na cultura brasileira
atual alia a repetição, como forma básica de expressão, ao fragmentarismo, de
fatura e formatos diferenciados. Por outro lado, o presente perpétuo de nossas
metrópoles, enfeitiçado pelo mito da modernização redentora, grava na cena
ficcional, o perfil de vitrines e superfícies, através da percepção plana e
extensivamente plástica de panoramas e personagens.
Portanto, em divergência com o que, em termos mais gerais,
compreendemos por realismo convencionalmente caracterizado pela "presença do
pormenor, sua especificação e mudança"(Candido,1993:124); a perspectiva
contemporânea aludida certamente aproxima-se do que Antonio Candido configura
como o "estilo, a concepção de vida e arte de Edmond de Goncourt", com base no
pastiche concebido por Proust, ao final de Em busca do tempo perdido. Conforme
constata, então, o crítico:
O olhar de tal escritor pára na superfície e não discrimina
em perspectiva, nem correlaciona as impressões com referência a um princípio
integrador. Daí cada pessoa ou objeto adquirir um valor por assim dizer
absoluto, que se esgota na descrição ou no juízo. Ao contrário, a arte do
narrador (Proust) pretende descrever de muitas maneiras, recomeçar de vários
ângulos, ver o objeto ou a pessoa de vários modos, em vários níveis, lugares e
momentos, só aceitando a impressão como índice ou sinal. É uma visão dinâmica e
poliédrica, contrapondo-se a outra, estática e plana. (Candido, 1993:127)
Evidentemente que o caráter superficial desta plasticidade,
pouco perspectívica, caso a comparemos com a busca do(s) sentido(s) no mais
profundo no latente sob a paisagem manifesta primeiro, se deve a uma espécie de
interação intersemiótica com as transparências e espelhos da ciranda virtual que
nos rodeia; e depois, tem que ser tomado, grosso modo, como uma constante
passível de variações e nuances, segundo escritores e regimes de expressão.
No intuito de esboçar uma amostragem do pluralismo das
dicções urbano-literárias recentes, escolhemos comparar duas narrativas que,
embora bastante diferenciadas, compartilham as características acima
mencionadas: a dramatização de figuras da crueldade, a repetição como
procedimento crucial, a composição em blocos fragmentários, com relativa
autonomia e o extremo visualismo na composição de cenas e na narração de
episódios.
Cidade de Deus, de Paulo Lins, e Sexo ,de André Sant`Anna,
embora, à primeira vista, pouco tenham em comum, com exceção do fato de
ficcionalizarem as duas maiores cidades brasileiras, o Rio de Janeiro e São
Paulo, serão aqui aproximadas, a partir de dois fragmentos, duas cenas, duas
tomadas cruciais, tanto pelo seu poder imagético de síntese
psico-político-social, quanto pela pregnância das linguagens à metamorfose que
dramatizam.
Tratam-se de duas conversões. Em ambos os episódios,
personagens marginalizados, pobres e excluídos, convertem-se a uma seita
protestante de franca aceitação popular. Tal correspondência entre as versões
literárias da prática social e o contexto extra-literário empresta uma inegável
solidez sociológica às narrativas. Entretanto, ä "estabilidade da paisagem
sociológica, capaz de fundir o mundo de dentro do romance com o mundo de fora e
a vida cotidiana do leitor" (Dias,1999:83), no caso de ambas as obras, não
confirma o realismo da técnica, à moda novecentista.
Se a geografia da cidade desponta, em cada narrativa, em
modalidades bastante diferenciadas, a referência que constitui também se
encontra mediada de formas específicas e distintas.
À propósito de Cidade de Deus, Wander Miranda observa que
"a aderência ao referente", explicitada ao final do livro nas "Notas e
Agradecimentos" - "Este romance se baseia em fatos reais"(Lins,1997:549) - de
uma parte, assinala o movimento da escrita na direção da fotografia, enquanto
que, de outra, não é suficiente para promover a naturalização dos dados
representados (Miranda,2002:184). A nosso ver, tal insuficiência do apêndice
explicativo - quando são expostos a base antropológica e seus desdobramentos
ficcionais, integrantes do caprichoso processo de produção da obra - não se
deve, apenas, "à ênfase do estatuto literário pela indicação auto-reflexiva"
(Miranda,2002:184) contida na epígrafe, ou ao que esta última possa ocasionar,
como declaração de princípios.
Acreditamos que, tanto nesta caudalosa narrativa, quanto na
quase-novela de André Sant'Anna, o diferencial frente à dicção do realismo
novecentista, se deva ao ponto de vista, ou seja, à posição dos respectivos
focos narrativos diante da geografia das cidades que se dispõem a contar.
Panofsky já reconhecia o quanto as "perspectivas desempenham o papel ativo de
formas simbólicas"(Panofsky apud Bosi,1988:21), daí, a necessidade de sua
determinação num empreendimento comparatista4.
Se ambas as obras partilham das características alinhadas
acima, a mais marcante delas, a dramatização da figura da crueldade, indica seu
compromisso com a pobreza da experiência como forma, e por isso, talvez, com "o
estilo coletivista do que a dupla Deleuze/Guattari conceitua como "literatura
menor""(Dias,2001:73).
Em outro texto, já assinalamos, no caso específico de Sexo,
a crucial vinculação entre pornografia, canibalismo e consumo que opera, ao
"arrancar de sua própria língua uma literatura menor", na pronúncia de uma
linguagem dissecada por "um uso intensivo, assignificante", capaz de dar conta
da "clonagem estratificada dos personagens, uns pelos outros, bem como da
natureza heterodirigida de suas mais íntimas satisfações"(Dias,2001:73).
O acento coletivista característico do gênero "pornografia
terrorista", previsto, em 1975, no conto "Intestino Grosso" de Rubem Fonseca
como resposta à impossibilidade de uma "literatura de autor ou de mestre" (Dias,
2001:71) conduz o narrador sem rosto de Sexo à encenação da crueldade como
ritual obsceno, escrito em sua grafia pornô pela obsessiva banalidade. Com
efeito, a trama enredada de relações sexuais, diferentes apenas no grau da
escatologia e da perversão, desdobra as metonímias de estilos e mundos
segmentados, mas, igualmente heterodirigidos, ao encenar, com distintas
paisagens e figurantes, a mesmice fetichista do corpo como mercadoria.
A materialização do "caráter oprimido da língua", através
de um estilo inchado de apostos e redundâncias e da nomeação perifrástica de
quase todos os personagens, inabilitados para o nome próprio, encarna a fala do
deus "ex-machina" do mercado embutida na onipresença da máquina midiática5.
Neste sentido, a cena da conversão de "O Negro, Que Fedia",
indicia o regime geral da focalização ausente e irônica, pela tomada sutil da
auto-ilusão consumada, no transe do exorcismo que, afinal, retira do próprio
fingimento a sua força de verdade.
Agora eu peço, em nome de nosso senhor Jesus Cristo, que
todos os demônio, aqui presentes, se manifeste. Pode aparecer Exu Caveira, venha
Tranca-Rua, venha que, hoje, Jesus vai dar uma surra em vocês. Eu ordeno que
todos os agente do mal se manifeste agora, em nome do Senhor, em nome de Jesus
Cristo! Amém, gente.
O Negro, Que Fedia, olhou
impressionado para as pessoas que começaram a se contorcer pelo templo. A
Trocadora Do Ônibus No Qual O Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos Os Dias,
Às Seis Horas Da Tarde indicou para o Negro, Que Fedia, os dois ajudantes do
Pastor, que andavam pelo templo à procura de demônios incorporados e se
aproximavam da fila de cadeiras onde estavam o Negro, Que Fedia e a A Trocadora
Do Ônibus No Qual O Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos Os Dias, Às Seis
Horas Da Tarde. A Trocadora Do Ônibus No Qual O Negro, Que Fedia, Voltava Para
Casa Todos Os Dias, Às Seis Horas Da Tarde, cochichou no ouvido do Negro, Que
Fedia:
- Vai com eles e entrega seu coração a Cristo.
O Negro, Que Fedia, andou na direção dos dois ajudantes
do Pastor. Um dos ajudantes do Pastor colocou uma de suas mãos sobre a cabeça do
Negro, Que Fedia, e a empurrou para baixo. O Negro, Que Fedia, olhou para os
fiéis que se contorciam e passou a imitá-los. Nesse momento, O Negro, Que Fedia,
entregou seu coração a Cristo e estrebuchou sinceramente. Havia mais de cem
demônios possuindo a alma do Negro, Que Fedia. (Sant'Anna, 1999:62,63)
O antecedente da passagem em questão, no nível do enredo,
coloca a conversão como pré-requisito da conquista sexual da Trocadora pelo
Negro, Que Fedia. Aqui, o agenciamento social e administrativo do desejo ao
colocar a religião, como uma das drogas propiciadoras do sexo numa relação com
as outras mais caras(cocaína, bebidas alcóolicas de elite, maconha), consumidas
pelos demais personagens, de nível social superior classifica o exorcismo da
"entrega do coração a Cristo"(Sant'Anna, 1999:61), no templo do Pastor
protestante, no último lugar na escala, de prestígio social, tanto pela absoluta
ausência de glamour, quanto pelo grotesco que encarna.
Além disso, a desterritorialização da língua, concretizada
pela própria narrativa, e igualmente, pela fala estropiada do pastor, configura
a técnica de Sant'Anna como o pastiche mais que perfeito da estética
hiper-realista. Afinal, ao combinar acurácia morfológica, no senso detalhista
das descrições realistas, e des-historicização do contexto e das motivações, o
discurso reverte o auge do próprio ilusionismo num espelho em que a "expressão
material intensa"(Deleuze&Guattari, 1977:30) da violência, do kitsch e da
banalidade sociais opera uma espécie de "sóbria revolução", por objectualizar o
inumano na chapada assignificância da linguagem.
Partindo de uma língua escavada, em completo jejum de "todo
uso simbólico, ou mesmo significativo, ou simplesmente
significante"(Deleuze&Guattari, 1977:79), o narrador de Sexo chega, pelo
trânsito intersemiótico implicado na construção hiper-real, à materialização de
uma espécie de jogo de armar reversível. Suas imagens estáticas e coloridas
podem intercambiar fragmentos umas das outras. Assim como nos livros infantis de
figuras em tiras, a cara de um pode caber no tronco de outro, o terno de um
completar-se com a metade do outro, ou suas gravatas misturarem-se. A montagem
das figuras desencontradas, cara de um, tronco de outro, ao justificar
comicamente a brincadeira, de certa forma, retoma o caráter previsível dos
personagens e a estereotipia de suas escolhas sublinhados pelo próprio enredo do
romance6.
Já a conversão de Alicate, o bandido temido, e sua mulher
Cleide, em Cidade de Deus, ao concretizar um foco narrativo radicalmente
diferenciado do de Sexo, conduz ao reconhecimento da versatilidade da
perspectiva no romance. Aqui, o hibridismo da condição do autor sua dupla
experiência como estudante e bolsista universitário e habitante da neofavela
condiciona o ir-e-vir do foco narrativo entre o "ponto de vista interno e
diferente"(Schwarz,1999:163), a distância da câmera midiática no flagrante veloz
da crueldade rotineira e o "agenciamento coletivo da enunciação"
(Deleuze&Guattari, 1977:28)
Nas três posições, a metamorfose do narrador materializa um
"processus" em que o gueto espacializa a violência como desejo, poder e
exercício continuado. No entanto, o local, entroncando-se no Eros capitalista da
metrópole, não possui margem de escolha. Nele, a distribuição entre oprimidos e
opressores, a ciranda de peças, pessoas e matérias, decorrem de cada estado da
máquina (...) em tal momento (...) constituindo unidade com o funcionamento de
um certo número de engrenagens, o exercício de um certo número de poderes que
determinam, em função da composição do campo social sobre o qual têm ação, tanto
seus mecânicos quanto seus mecanizados (Deleuze&Guattari, 1977:79).
A economia maquínica deste entroncamento em que a dinâmica
do gueto aflui para o estuário da metrópole e dela reflui, segundo Renato Gomes,
aproxima Cidade de Deus de outras narrativas que fazem convergir "o tom
nostálgico e a desilusão pós-utópica, (...) na demanda de uma legibilidade que
se atrela às marcas identitárias" (Gomes,2000:72).
Talvez a grandeza de Cidade de Deus resida, justamente,
nesta tensão da voz narrativa, repartida entre a nostalgia antropocentrista da
metáfora e ou o seu "fragor (...) realista ou simbolista" e a "violência de um
Eros burocrático, policial, judiciário, econômico ou
político"(Deleuze&Guattari, 1977:58).
A passagem da conversão, certamente, poderá esclarecer a
instável gangorra da voz narrativa sua reiterada alternância entre o ponto de
vista interno do narrador neo-romântico, apaixonado pela idéia de fazer
literatura, e o thriller repetido da câmera precisa, no recorte e na edição da
crueldade voraz.
Na churrascaria, apenas um bêbado tomava a saideira, os
funcionários alternavam-se no banho. O amigo de Mineiro, juntamente com o
patrão, separava os cheques do dinheiro vivo. Os dois seguranças foram rendidos
facilmente, pois estavam juntos na hora em que os bichos-soltos atacaram.
Alicate mandou que todos se deitassem no chão. Ninguém reagiu.
( )
Entrega tua alma ao Senhor e
terás a vida eterna. Só Cristo salva de todo sofrimento e liberta do fogo do
inferno. Arrepende-te de teus pecados que o paraíso te espera! Aleluia!
Alicate escutava calado o que aquele homem de terno de
tergal azul-marinho dizia segurando uma Bíblia, poucos minutos depois de ter
chegado em casa e revelado seus planos a Cleide. Quando o homem acabou de falar,
todos os seus acompanhantes ergueram a voz com palavras do mesmo campo semântico
e com a eloquência de quem fala o mesmo texto todos os dias.
Como é que eu faço para conseguir tudo isso aí?
É só aceitar Jesus no coração!
Como...?
O senhor deixa nós entrar
um pouquinho?
Hã-ram.
O homem
de terno de tergal sentou no sofá junto com os outros três religiosos. Alicate
ficou em pé no canto esquerdo da sala, Cleide ao seu lado. Escutavam os membros
da Igreja batista pregar o Evangelho.
Agora vamos ouvir
a palavra do Senhor:
A segurança
daquele que se refugia em Deus.
Aquele que habita no
esconderijo do Altíssimo, à sombra do Onipotente descansará.
Direi do Senhor. Ele é o meu Deus, o meu refúgio, a minha
fortaleza e nele confiarei.
Porque ele te livrará do
laço do passarinheiro, e da peste perniciosa.
Ele te
cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas estarás seguro: a sua verdade
é escudo e broquel. Não temerás espanto noturno, nem seta que voe de dia. Nem
peste que ande na escuridão, nem mortandade que assole ao meio-dia...
Tudo em Alicate se transformara em emoção saltitante e
jubilosa, ao ouvir essas palavras. Encarava e via sinceridade tão visível quanto
as retinas do orador. Todo seu cerne se abrira às palavras de Cristo. De seus
olhos, duas festas brilhantes, nasciam lágrimas mudas que sorriam ao vento que
percorria os mil cantos da sala. Cada versículo fora uma estrada que lhe puxava
a alma. Um sorriso foi tomando corpo em seu rosto. Era a bondade divina que o
chamava. Os galhos da goiabeira, o rio correndo, a brisa do mar, Cleide, o filho
que teria com ela, as estrelas no infinito, a pipa no céu, a lua, o canto triste
dos grilos, tudo, tudo foi Deus quem criou. Lá fora, o sol explodia nas esquinas
e todas as coisas já eram tão diferentes. Aceitar Jesus era poder renascer numa
mesma vida. Sua meta era a de ser feliz para poder mudar o mundo através dos
ensinamentos do Senhor. O milagre da conversão modificou as metáforas de seu
semblante. A paz estava agora presente em todas as coisas. O sentimento de
felicidade em Cleide também era de absoluta pureza. O futuro chegou para se
entocar ali dentro de seu peito.
O amor, Deus é amor...
balbuciou.
O cristão mudou-se sem se despedir dos
amigos, um mês depois da visita dos religiosos. Largou baralho, canivete, o
revólver, os vícios. De uma vez por todas deixou de lutar contra o azar. Volta e
meia dizia para Cleide que ele sim tinha arrebentado a boa. Conseguiu um emprego
na empresa Sérgio Dourado, onde foi explorado por muito tempo, mas não ligava. A
fé afastava o sentimento de revolta diante da segregação qu sofria por ser
negro, desdentado, semi-analfabeto. Os preconceitos sofridos partiam dessa gente
que não tem Jesus no coração. Teve dois filhos com Cleide e sempre que podia
voltava em Cidade de Deus para pregar o Evangelho. (Lins, 1997:151,154,155,156)
A desterritorialização da linguagem pelo descritivismo
estirado da denotação se vale, nos momentos mais ágeis, da gíria "bicho-solto",
ou seja, do jargão corrente entre a bandidagem da neofavela. Este circuito
aberto entre a função dêitica do relato, nos clips-fragmentos-episódios, e o
agenciamento coletivo da enunciação a língua geral entranhada na literária,
corroendo-a e rebaixando-a tem efeito decisivo sobre a fatura da obra. Desmente
a escrita fotográfica do novecentos, seja porque a volatiliza como imagem na
tela midiática da narração, seja também pelo "princípio da crueldade" que põe em
funcionamento, com uma precisão desrealizante e decisivamente sensacionalista.
Talvez possamos, por aí, compreender, ao lado do
hiper-realismo desta escrita de menos, comprimida pela feroz velocidade da
violência, a aura tardo-naturalista envolvendo os personagens, figuras sem
estofo ou interioridade, mas visceralmente plantados na injunção local. Neste
sentido, a permeabilidade da neofavela ao Eros capitalista da metrópole, além de
relacionar as duas narrativas em pauta, e, especificamente, os personagens
negros das passagens mencionadas Alicate e o "Negro, Que Fedia" também delineia
o horizonte inumano compartilhado. É que, as "cidades partidas", vistas do
gueto, ou fora dele, constituem o mesmo maquinismo desejante enlaçado à mediação
do fetiche: no presente perpétuo, a aura da mercadoria, o fantasma, "a virtude
espectral da moeda".
Em Sexo, o escavar da língua assume a obviedade e o
infantilismo "tatibitati" das cartilhas de alfabetização, uma espécie de jejum
diante de qualquer marca, bem próximo ao que seria o "sex appeal do
inorgânico"(Benjamin apud Matos,2002:90), característico da mídia televisiva.
Aqui, o narrador performático de Cidade de Deus, ou circula por seus espaços,
assumindo, com a câmera na mão, a brusca gestualidade da violência e a fala do
marginal ou então, sobrecarrega-se com o peso dos signos e com a pomposa
respeitabilidade do "aedo", na responsabilidade da épica mesmo que jurada pela
cotidiana crueldade, ou, mais simplesmente, rebaixada pela inexistência de
heróis:
"Poesia, minha tia, ilumine as certezas dos homens e os
tons das minhas palavras. É que arrisco a prosa mesmo com balas atravessando os
fonemas. É o verbo, aquele que é maior que o seu tamanho, que diz, faz e
acontece. Aqui ele cambaleia baleado. Dito por bocas sem dentes e olhares
cariados, nos conchavos dos becos, nas decisões de morte."(Lins,1997:23)
Se a dicção dos episódios-clipping guarda a distância da
câmera para os grandes "travelings" das fugas e perseguições, apresenta também a
proximidade de uma escuta permeável ao "ponto de subdesenvolvimento", ao
"patoá", ao "terceiro-mundo"(Deleuze&Guattari, 1977:28) próprio da língua
geral que irriga e renova as engrenagens do gueto, como máquina desejante. Esta
mesma ambiguidade caracteriza a fala pejada pela vontade da literatura, peculiar
ao narrador-aedo, nostálgico, localista, aplicado cultor das marcas perdidas e
dos enredos apagados pelo tempo. É justo esta sua forte tendência à captação
neo-romântica da natureza, do tempo, da infância e das franjas do enredo que vai
capacitá-lo ao mergulho subjetivo nos sentimentos e inclinações de determinados
personagens, tomados, quase sempre, em situações-limite.
O trecho da conversão de Alicate concretiza, aliás, com
excelência, o acento marcadamente personalizado, antropocêntrico e intensamente
tomado pelo investimento do sentido, inerente ao ponto de vista interno, com sua
substancial pavimentação retórica.
É como se a absurda ausência de nexo, finalidade ou medida
em que se desdobra a máquina do relato, com sua épica concatenação de episódios
mais ou menos fragmentários, contíguos, e com uma relativa autonomia que os
torna, a muitos, passíveis de serem tomados isoladamente fosse compulsivamente
compensada pela opulenta dicção do narrador, pródigo em metáforas, simbolismos e
explícita intenção de poesia. Contra a repetição "ad nauseam" das engrenagens do
sadismo narrativo, em sua edição hiper-real nas precisas lâminas de rigorosa
crueldade; surpreendente, o narrador assume o verbo edulcorado. E sem medo da
ênfase kitsch, não se cansa de reafirmar o apego à memória do lugar, e a valores
mais duradouros, como o amor, a família, a amizade, a religião.
Aliás, existem no relato inúmeras passagens sobre
experiências ou transes místicos dos "bichos-soltos", mas, certamente, nenhuma
tão flagrantemente abonada por um desinibido movimento de hipérbole retórica
como esta, a da redenção de Alicate. As metáforas se sucedem, mais ou menos
banais, com níveis mais ou menos inquietantes de pieguice, como podemos
depreender, na amostragem que se segue, de alguns clímaxes de entusiasmo
metafórico:
De seus olhos, duas festas brilhantes, nasciam lágrimas
mudas que sorriam ao vento que percorria os mil cantos da sala. Cada versículo
fora uma estrada que lhe puxava a alma. Um sorriso foi tomando corpo em seu
rosto. Era a bondade divina que o chamava. (...) O milagre da conversão
modificou as metáforas de seu semblante. (Lins, 1997:155,156)
O exagero não é absolutamente paródico, pelo contrário faz
parte dos momentos de "territorialização", como diria a dupla Deleuze/Guattari,
deste narrador ansioso por positivar seu povo, seu locus; por incluir, fixar,
colocar seus personagens excluídos ao abrigo de alguma inclusão. Contudo, o mais
extraordinário é que, o convívio repetido pelas mais de quinhentas páginas desta
neo-épica entre tais ocorrências de auto-legitimação do narrador, inflado de
Literatura, e o maquinismo do relato, vertiginoso e violento, funciona. Apesar
do desequilíbrio entre tons, ritmos e valores, ou, justamente por causa dele, o
fato é que a objetividade irrecorrível e repisada das sequências se conjuga aos
intervalos reflexivos, às recapitulações de trajetórias, e aos surtos líricos,
com um resultado final profundamente inquietante e ambíguo.
A linguagem dissecada dos "takes" violentos, o traçado
minimalista no registro da língua geral da neofavela, em seus extremos de dor ou
susto, os centros múltiplos do foco narrativo mais ou menos abrangente, mais ou
menos rasante, confluem na ousadia de uma des-epopéia: a epopéia da barbárie
urbana brasileira, em que a insistente vontade da literatura termina por gerar a
dissonância de um conjunto em que o deserto de valores coletivos convive,
estapafúrdio, com algumas poucas ilhas de tropical lirismo.
Não é por outro motivo que a conversão de Alicate, mesmo
enfeixada pela objetividade no balanço final das mazelas, ensaia uma das poucas
afirmações de todo o volume.: "Teve dois filhos com Cleide e sempre que podia
voltava em Cidade de Deus para pregar o Evangelho" (Lins,1997:156). Em
compensação, a única benesse reservada pela irônica ausência do narrador de
Sexo, ao "Negro, Que Fedia", foi o seu "orgasmo que fedia, abençoado por Cristo"
(Sant'Anna,1999:143).
NOTAS
1
A acepção de realismo aqui referida extrapola o estilo de época "stricto sensu"
para subscrever a compreensão de Antonio Candido que abrange "modalidades
modernas que se definiram no século XIX e vieram até nós." (Candido, 1993:123)
2
A acepção do princípio de crueldade, aqui invocada, adota, de início, a
formulação de Clément Rosset, no livro de mesmo nome, para, em seguida,
problematizar suas implicações, como capacidade de formalização tensionada a um
limite, e ou a um horizonte nebuloso, o do colapso do sentido. Nesta direção
apontam inclusive os comentários do filósofo: "Por "crueldade" do real entendo (
) a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade. (...) Mas entendo
também por crueldade do real o caráter único, e consequentemente irremediável e
inapelável, desta realidade - caráter que impossibilita ao mesmo tempo
conservá-la a distância e atenuar seu rigor pelo recurso a qualquer instância
que fosse exterior a ela. Cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como
crudus (cru, não digerido, indigesto) designa a carne escorchada e
ensanguentada: ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos (...) no
presente caso a pele, e reduzida assim à sua única realidade, tão sangrenta
quanto indigesta." (Rosset, 2002:17,18)
3
Remeto, a respeito, para o artigo de minha autoria publicado na Revista da
ANPOLL nº 10, jan-jun.2001, p.11-22, onde desenvolvo o conceito, bem como suas
implicações para o trabalho intelectual, hoje.
4
Este é exatamente o contexto em que, muito produtivamente, Bosi usa Panofsky,
para fundamentar a comparação entre as obras de Graciliano Ramos e Guimarães
Rosa.
5
Consultar sobre o romance Sexo, o artigo de minha autoria ("Violência e miséria
simbólica" In: Estudos Históricos Sociabilidades, Rio de Janeiro, nº28, 2001,
p.71-85)que desenvolve uma interpretação detalhada sobre os traços estruturais e
estilísticos do exercício da literatura menor.
6
A esse respeito, é ilustrativo o espelhamento da troca das noivas pelo mesmo
motivo, entre dois executivos: o Jovem Executivo De Gravata Vinho Com Listras
Diagonais Alaranjadas e o Jovem Executivo De Gravata Azul com Detalhes
Vermelhos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Alfredo. 1988 Céu Inferno
Ensaios de Crítica Literária e Ideológica. São Paulo, Ática.
DELEUZE, Gilles & GUATTARI , Félix. 1977. Trad. Júlio
Castañon Guimarães. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda.
DERRIDA, Jacques. 1994. Espectros de Marx O Estado da
dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Trad. Anamaria Skinner. Rio
de Janeiro, Relume-Dumará.
DIAS, Ângela Maria. 2001
"Violência e miséria simbólica na cidade de André Sant'Anna". Estudos Históricos
Sociabilidades.nº28, p.71-85
_____ . 2001 "Por uma
retórica da imagem: mídia e cultura brasileira contemporâneas". Revista ANPOLL,
nº10, jan/jun, p.11-22.
_____ . (org) et al. (1999) A
missão e o grande show Políticas culturais no Brasil dos anos 60 e depois. Rio
de Janeiro, Tempo Brasileiro.
FONSECA, Rubem. 1975.
"Intestino Grosso". Feliz Ano Novo. Rio de Janeiro, Editora Artenova S.A.
GOMES, Renato Cordeiro. 2000 "Representações da cidade na
narrativa brasileira pós-moderna: esgotamento da cena moderna?". Alceu Revista
de Comunicação, Cultura e Política. V.1, nº1, jul/dez, p.64-74.
LINS, Paulo. 1997. Cidade de Deus Romance.São Paulo,
Companhia das Letras.
MIRANDA, Wander Melo. 2002 "Cenas
urbanas A violência como forma". IN: BIGNOTTO, Newton. Pensar aRepública. Belo
Horizonte, Editora UFMG.
SANT'ANNA, André. 1999. Sexo.
Rio de Janeiro, Sette Letras. [topo da
página]
# Eliane Ferreira - Machado de
Assis e as teorias do comparatismo na América Latina
Resumo: Este
estudo retoma a “teoria do molho” machadiana com o objetivo de relê-la numa
perspectiva das teorias do comparatismo elaboradas pelo próprio Machado, em
muitos aspectos antecipadora da vertente atual dos estudos de Literatura
Comparada, notadamente pela sua atuação como tradutor e crítico-teórico do
traduzir. As leituras de textos pouco analisados pelos estudiosos machadianos
tais como os prefácios, os pareceres emitidos quando censor do Conservatório
Dramático Brasileiro e a crítica teatral demonstram o quanto Machado desde o
início de sua carreira literária percebeu a importância do papel da tradução no
percurso dos escritores como propiciador do diálogo entre textos, na formação da
nacionalidade de um país e sua representatividade específica no cenário cultural
da capital imperial do Segundo Reinado Brasileiro como um dos elementos que
contribuíram para a modernização do país.
Roland Barthes convida escritores futuros a seguirem o
conselho de Julio Cortázar - começar por traduzir.1 Dois outros escritores latino-americanos, já em
época anterior a esse pronunciamento, começaram suas produções literárias pela
prática tradutória: Machado de Assis, no século XIX, e Jorge Luis Borges, no
século XX. Muito se sabe a respeito de Borges, tradutor, enquanto Machado de
Assis é pouco reconhecido nessa atividade. Jean-Michel Massa, valendo-se das
fontes para o estudo de Machado de Assis e da bibliografia levantada por Galante
de Sousa, é o pioneiro em trabalhar com a tarefa tradutória stricto sensu
exercida pelo escritor oitocentista. Sendo um pesquisador da produção juvenil de
Machado, a tradução não poderia deixar, de fato, de integrar seus estudos. O que
me causou um certo estranhamento foi constatar que a tese complementar,
apresentada para a obtenção do título de doutor em Letras pela Faculté des
Lettres de Poitiers, intitulada Machado de Assis traducteur, em 1970, não tenha
sido traduzida para o português, tendo em vista o ineditismo do assunto
abordado. Como ignorar essa atividade tradutória exercida por Machado, que
traduziu, de acordo com Massa (1970:11), 45 textos de variados gêneros
literários? Desse número, pelo menos dezesseis são traduções de textos
dramáticos de Beaurmachais, Musset, Dumas Fils, V. Sardou, dentre outros, além
do romance de Victor Hugo, Os trabalhadores do mar. Há fragmentos de Oliver
Twist, de Charles Dickens, óperas, contos e poesias, em sua maioria pertencente
ao cânone ocidental, tais como Shakespeare, Dante, La Fontaine, Lamartine,
Chateaubriand e Poe, além de ensaios. Ressalto que esse estudo de Massa não foi
retomado, até onde pude verificar, por nenhum biógrafo, estudioso ou crítico
brasileiro2. John Gledson, em seu Machado de
Assis e confrades de versos (1998: 7), utilizou esse estudo de Massa como fonte
para rastear os originais das poesias canônicas traduzidas por Machado de Assis.
Gledson publicou pela primeira vez os poemas de Lamartine a La Fontaine
traduzidos por Machado com os originais para que se avaliasse a “perícia do
tradutor” (1998: 7), além de tecer uma história em torno dessas traduções que
são, para ele, “um aspecto menor de um aspecto menor” (1998: 7) da obra do
escritor brasileiro.
Com relação a prática tradutória exercida por Machado de
Assis, apenas dois críticos brasileiros alertaram para a lacuna tanto na
historiografia literária quanto nos estudos machadianos sobre esse assunto. José
Arimatéia Pinto do Carmo, autor do livro sobre as traduções de Capistrano de
Abreu (1953), assim se referiu ao fato:
Os pesquisadores de nossa evolução cultural ainda não
cogitaram de um estudo sobre a maneira como se conduziram vários de nossos
grandes nomes, como tradutores. Seria proveitosa tal verificação porque
ensejaria oportunidade para estudar-se tarefa a que se voltaram com carinho
ontem: Norberto de Sousa Silva, Odorico Mendes, Ramiz Galvão, Rui Barbosa,
Carlos de Laet, João Ribeiro, Machado de Assis, etc... hoje: Monteiro Lobato,
Gustavo Barroso, José Oiticica, Sérgio Buarque de Holanda, Eugênio Gomes, Carlos
Domingues, Raimundo Magalhães Júnior, além de outros. (...) É estranho, quanto a
Rui e Machado, que os seus numerosos biógrafos, alguns minuciosos e competentes,
não pesquisassem com maior carinho, e até mesmo omitissem, essa particularidade
a que ambos se entregaram (Pinto do Carmo, 1953:10).
Lêdo Ivo, ao comentar sobre a tradução de Machado de Assis
do romance Os trabalhadores do mar de Victor Hugo, ressalta também a falta de
interesse dos críticos e biógrafos de Machado de Assis por sua práxis
tradutória:
As atividades de Machado de Assis como tradutor não têm
sido esmiuçadas pelos seus críticos e biógrafos, que se agarram ao exemplo da
tradução de “O Corvo”, de Edgar Allan Poe, contentando-se com esse episódio
afortunado e fazendo apenas menções sumárias à parte quase total do ofício.
Registra Lúcia Miguel Pereira que ele traduziu, entre 1860 e 1867, nada menos de
sete peças teatrais, inclusive O Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, e o
romance Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo. Não são, porém, estabelecidos
os vínculos entre autor e tradutor, como se não tivesse havido entre ambos
qualquer comunicação ou proveito (IVO, 1976: 51).
A ressalva quanto à falta de interesse pelo papel exercido
pela tradução nas culturas em geral, apontada por José Arimatéia e Ledo Ivo,
também é assim considerada por Susan Bassnett:
Note-se que, embora a tradução pareça ter exercido um papel
importante no desenvolvimento de culturas nacionais, este fato foi quase
ignorado por historiadores culturais, e não há absolutamente nenhuma pesquisa
sobre a função da literatura traduzida dentro do sistema literário. A
Renascença, por exemplo, tem sido geralmente vista como um período de atividade
intensa de tradução, embora qualquer levantamento sistemático do que foi
traduzido, por que, por quem e como, não ocorreu. Em um ensaio escrito em 1976,
Even-Zohar argumenta que certas condições determinam uma acentuada atividade
tradutória em uma cultura. Ele identifica três casos principais: quando uma
literatura está num estágio inicial de desenvolvimento; quando a literatura for
periférica ou “fraca”, ou ambas; quando há momentos cruciais, crises ou vácuos
literários em uma literatura (BASSNETT, 1993: 142).3
Compartilhando as percepções de José Arimatéia, Lêdo Ivo e
Susan Basnett, meu estudo analisa o envolvimento de Machado de Assis com a
atividade tradutória, amplamente praticada no contexto cultural da Capital do
Império, devido à predominância de um teatro importado, que propiciava a
permanência da presença do tradutor dramático nos bastidores dos palcos
fluminenses.
A tradução, à época, era a protagonista da cena cultural do
Segundo Império Brasileiro. A ubiqüidade do fenômeno se manifesta não apenas na
tradução de romances-folhetim, mas igualmente na tradução de peças teatrais para
um tablado efervescente. O teatro traduzido ocupa tanto os espaços públicos das
casas de espetáculos, quanto os espaços privados dos saraus literários. Essa
intensa atividade tradutória coloca em cena as tensões da coexistência do modelo
europeu com a busca de afirmação de uma cultura nacional inerente ao período
pós-independência, expressas pelo debate da cor local. O fato de Machado não
compartilhar com seus contemporâneos o entendimento de cor local, no sentido
dado pelo Romantismo – o etnocentrismo, o indigenismo, a paisagem natal como
elementos essenciais para se criar uma literatura nacional genuína –, coloca-o
em discordância com o momento cultural pelo qual a nação passava no século XIX,
em busca de sua própria identidade. Alternativamente, ele elabora o conceito de
pecúlio cultural, que implica um diálogo da contemporaneidade com a tradição e
uma redefinição da cor local.
Assim, a partir de Even-Zohar, o meu estudo levanta e
confirma a hipótese de que a tradução teatral e de romances em folhetins
preenche uma lacuna no sistema literário do século XIX. O teatro, por ser uma
das principais manifestações culturais da capital imperial, necessitava de um
repertório crescente e variado, de forma que o tradutor dramático era peça
fundamental para manter os teatros sempre com novidades vindas do estrangeiro.
No entanto, esse intenso fluxo tradutório, como o próprio Machado de Assis
ressaltava, tinha efeitos paradoxais, uma vez que, ao se buscar preencher a
falta de uma produção dramática e romanesca, outras formas de esvaziamento eram
geradas, como a inibição do desenvolvimento de uma dramaturgia nacional. Além
disso, os binarismos comumente conferidos aos conceitos tradicionais da operação
tradutora: cópia e originalidade; fidelidade e infidelidade, são elementos
prementes na agenda cultural do período.
Já, nessa ocasião, Machado praticava sua “teoria do molho”,
pois acrescentava às suas traduções “os temperos de sua fábrica” e declarava-se
eclético em absoluto, ou seja, estava aberto ao diálogo entre literaturas,
podendo desse modo ser considerado um comparatista avant la lettre na medida em
que seu ponto de vista coaduna com os pressupostos teóricos da Literatura
Comparada no tocante ao processo de descolonização dos países colonizados.
Embora bebesse nas fontes européias utilizadas como “comida para seus
pensamentos”, lembrando um ritual antropofágico, ele ruminava os diversos
alimentos e os tranformavam em pratos tipicamente machadianos, pois tirava de
cada coisa uma parte e fazia o seu ideal de arte, que abraçava e defendia.
Suplementando a afirmação de Afrânio Coutinho de que Machado, com esses
pensamentos, havia gravado num aforismo toda a sua teoria da originalidade
(1966: 32), cito uma passagem dos Diálogos e reflexões de um relojoeiro para
reforçar essa assertiva: “Já alguém afirmou que citar a propósito um texto
alheio equivale a tê-lo inventado”. Além da modernidade desse ponto de vista,
Machado já entendia a importância de se saber conviver com as diferenças
culturais e de toda ordem quando afirmava que “nem tudo tinham os antigos nem
tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o
pecúlio comum.” (1953, p.148, v. 29). Desfaz-se aí a noção de débito imanente ao
intelectual latino-americano, além de apontar para a evolução dos estudos
comparatistas que no século XVIII praticava a comparação entre obras literárias
clássicas e modernas quando gerou-se a famosa Querela dos Antigos e dos
Modernos. Após esta data, como afirma Eduardo Coutinho,
inúmeros foram os casos isolados de escritores ou críticos
que, marcados por acentuado senso de cosmpolitismo, realizaram estudos
comparativos de autores, obras, movimentos, ou até literaturas de maneira geral:
Goethe, Herder, Lessing, Mme. Stäel, os irmãos Schlegel, Henry Hallam e Sismond
(2001, p. 955, v. 2).
À essa relação não poderia faltar o nome “Machado de
Assis”, que tanto como escritor quanto crítico literário e teatral realizou a
análise comparatista dentro da própria literatura brasileira quanto da européia,
norte-americana, latino-americana e oriental. E nesse processo, a tradução foi
um componente fundamental para a constituição tanto da identidade nacional
quanto da identidade do escritor. Começou por “imitar” o poeta inglês, William
Cowper (1790), ao “traduzir” o poema “On the receipt of my mother’s picture” em
1856, e de uma peça teatral La chasse au lion, de Vattier et De Najac em 1860,
quando enfrentou “a dialética do começo e de origem”, ao adotar
uma estratégia discursiva na qual não se nega jamais o
vigor da origem e, contudo, não se desautoriza a possibilidade de um novo
começo. Trata-se da estratégia de manter um equilíbrio entre começo e origem e
que poderia ser caracterizada como a estratégia de apropriação, particularmente
visível em sua atividade como tradutor (BELLEI, 1992: 89).
Das traduções que realizou no início de sua carreira
literária, a do ensaio “Queda que as mulheres têm para os tolos” foi uma das
mais significativas, pois esta lhe serviu de inspiração para a escrita de sua
primeira peça teatral, Desencantos (1861) e por cadeia, dos romances
Ressurreição (1872) e Dom Casmurro (1899/1900), já que todos esses textos
abordam a questão da escolha que a mulher deve fazer entre um homem de espírito
e um homem de juízo. Como, segundo Helen Caldwell (1960: 19), o “germe” de Dom
Casmurro, considerado uma adaptação de Otelo, de William Shakespeare, para a
cena contemporânea brasileira, pode-se concluir que o romance mais polêmico do
escritor brasileiro tem por modelo a “teoria amorosa” traduzida por Machado, em
1861.
Machado de Assis, em todas as traduções que fez, “se
permitiu algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não
deveria ser um ofício de menor valor que qualquer outro na carreira de um
escritor, embora assim continue a ser considerado e, respeitando o original, sem
servilidade, exerceu essa atividade durante toda a sua carreira literária (1856
a 1908). Sua atuação enquanto tradutor e crítico-teórico dessa prática se
constituiu pela contradição, pois ao mesmo tempo em que traduzia peças teatrais,
por exemplo, considerava o tradutor dramático um entrave para o surgimento de
talentos nacionais. Em crítica teatral de 1859, comparara esse tradutor a uma
entidade, uma espécie de criado de servir que passava de uma sala a outra os
pratos de uma cozinha estranha. “Ainda mais essa!”, exclamava. (1953, p. 17, v.
29).
De acordo com Susan Bassnett, “o tradutor como escravo ou
servo do texto original é uma metáfora poderosa que adentra o século XIX.
Implícita nessa metáfora está a idéia de dominação do autor do texto-fonte sobre
o texto-alvo subserviente” (BASSNETT, 1993: 147).4 Essa definição refere-se à transposição de uma
língua para outra, no sentido estrito do “modelo esquemático da tradução”. A
definição de Machado, lato sensu, refere-se à subserviência do tradutor
dramático em atender às demandas do mercado empresarial teatral, com a qual não
concorda. Para Machado, quando parecerista do Conservatório Dramático
Brasileiro, uma tradução deve ser bem elaborada, devendo o tradutor ter
conhecimento das duas línguas que traduz, independentemente de se tentar fazer
uma tradução “literal”, pois o movimento em si, de passar de um idioma para
outro, já torna essa pretensão de espelhamento impossível. Segundo George
Steiner,
O modelo esquemático da tradução é o de uma mensagem
proveniente de uma língua-fonte que passa através de uma língua-receptora,
depois de ter sofrido um processo de transformação. A escolha reside no fato
evidente de uma língua diferir-se da outra, e para que a mensagem consiga
“passar” é necessário que se dê essa transformação interpretativa que algumas
vezes é descrita, embora nem sempre com acêrto, em termos de codificação e
descodificação.5
Servir é viver ou trabalhar como servo, aquele que se põe à
disposição de alguém, que exerce as funções de criado, assim como o tradutor
dramático prestava serviços de tradução aos empresários teatrais,
auxiliando-lhes, sendo-lhes útil na medida em que contribuíam para manter as
casas de espetáculos abertas. Tal servilidade era vista, pelo menos naquele
momento, como negativa para Machado por colaborar para estagnação do teatro
brasileiro e, conseqüentemente, com o atraso cultural da nação.
Analogamente, a tradução depende dos “mecenas”, da
patronagem, conforme a teorização de André Lefevere, ou seja, os “poderes
(pessoas, instituições) que auxiliam ou impedem a escrita, leitura ou reescrita
da literatura”. A patronagem
envolve outros elementos, como o ideológico, o econômico e
o de status (...) e pode ser exercida por pessoas, classes sociais, editores, a
mídia, etc., que geralmente atuam através de instituições que regulam a escrita
e a distribuição da literatura: academias, periódicos de crítica, o
estabelecimento educacional, etc. (Lefevere, 1985: 227-228).
A questão da servidão do “criado de servir” coaduna-se
também com o parasitismo de toda ordem – social, econômico e literário no Brasil
oitocentista, podendo ser relacionada com a prática tradutória na medida em que
esta, por viver em situação de dependência do texto original, sem produzir de
fato um trabalho, por ser vista como tarefa improdutiva ou por depender de uma
patronagem, pode ser elucidada através das crônicas de “Aquarelas” que Machado
de Assis escreveu em 1859, no mesmo ano em que definiu a atuação do tradutor
dramático.
A associação do tradutor a um parasita remete à distinção
entre trabalho produtivo e improdutivo na medida em que se considera o traduzir
como um trabalho, este seria classificado como improdutivo por não exigir nenhum
esforço do tradutor, que já tem o texto pronto, escrito pelo autor do original,
sendo assim um “criado servil” parasítico, como pensavam Smith e Marx a respeito
da improdutividade. Segundo Hannah Arendt:
tanto Smith quanto Marx estavam de acordo com a moderna
opinião pública quando menosprezavam o trabalho improdutivo, que para eles era
parasítico, uma espécie de perversão do trabalho, como se fosse indigno deste
nome toda atividade que não enriquecesse o mundo. Marx certamente compartilhava
do desprezo de Smith pelos “criados servis” que, como “convivas ociosos... nada
deixam atrás de si em troca do que consomem.” No entanto, todas as eras
anteriores à era moderna, ao identificar o trabalho com a escravidão, tinham em
mente precisamente esses criados servis, esses caseiros, oiketai ou familiares,
cujo trabalho era exigido pela mera subsistência e que eram necessários para o
consumo isento de esforço, e não para a produção (Arendt, 1986: 97-8).
Já para Theo Hermans (1985: 103-135), a servilidade do
tradutor está diretamente vinculada à noção de fidelidade ao original, revelando
hierarquias análogas às do agregado com a família que o acolhia, ou do escravo
ao seu senhor. Sobre o uso das metáforas pelos tradutores, Hermans escreveu o
ensaio “Images of Translation – Metaphor and imagery in the Renaissance
Discourse on Translation” (1985), no qual “demonstra que naquele período as
concepções de literatura, tradução e imitação consistiam em uma relação
paradoxal umas com as outras. A tradução era vista como uma forma particular e
restrita de imitação (1985: 103). A definição de Machado de Assis para o
tradutor dramático também reflete, através das metáforas de servilidade, não
apenas a condição subalterna do tradutor, mas o cenário brasileiro contraditório
de uma situação de pós-independência e escravocrata ao mesmo tempo.
Nesse contexto contraditório, Machado de Assis como
escritor do seu tempo e do seu país não deixou de contribuir para a permanência
dessa situação. Por subtração, ele elaborou uma teoria da tradução, que em
muitos aspectos assemelha-se às teorias de tradução desenvolvidas a partir da
década de 70 do século XX, notadamente com relação ao entendimento pós-moderno
de tradução proposto por Else Vieira em sua tese de doutorado – Por uma teoria
pós-moderna da tradução (1992). Apoiando-se em teóricos da tradução como
Susan-Bassnett, André Lefevere, Jorge Luis Borges, os irmãos Campos, Derrida,
dentre outros, Vieira considera, por exemplo, a ficção como nova fonte de
teorização para a tradução. Sua hipótese pode ser confirmada pela análise que
fiz do romance Dom Casmurro, de acordo com os pressupostos teóricos apresentados
por ela. Nessa perspectiva tradutológica, a “história de amor” de Bento Santiago
e Capitolina representam a reescrita não apenas de Otelo de Shakespeare, mas das
principais peças teatrais do dramaturgo inglês. Leitor voraz dos textos
shakespeareanos, Machado embebeu-se nas lições do mestre e escreveu seu romance
mais lido e estudado pelos leitores comuns e especializados, conseguindo atar,
finalmente, as duas pontas de sua carreira literária — a de tradutor, iniciada
em sua juventude, paralelamente com a de dramaturgo, que se estendeu até a sua
velhice, e a de romancista, já maduro, ao revelar ou desvelar, ao colocar a
descoberto a veia teatral que sempre o acompanhou como as “inquietas sombras” do
Fausto.
Para concluir, gostaria de citar alguns ensaístas, críticos
e teóricos que demonstram a importância da tradução para Teoria Literária e
Literatura Comparada:
As literaturas servem de códigos lingüísticos diversos, e
só se comunicam, em grande escala, através de traduções. Paradoxalmente, como
adverte o crítico francês, René Etiemble, o sonho de uma “Weltliteratur”, uma
literatura realmente universal, dependerá cada vez mais do progresso dessa arte
tão menosprezada – a tradução (Onélia BARBOSA, 1975: 28).
O conceito de tradução, que há muito se tem infiltrado no
campo da Teoria da Literatura, é um dos termos que tem enriquecido o campo
literário e ampliado sua atuação. Seu sentido remete não apenas à prática usual
da tradução, a transformação interlingual de um texto em outro, mas também ao
processo de leitura e reescrita de um texto, aproximando-se do significado amplo
de intertextualidade. Grande número de estudiosos confirmam a estreita aliança
entre a operação que recai na paráfrase, no plágio ou na paródia (Eneida Maria
de SOUZA, 1993: 34-35).
É um truísmo afirmar que a questão da tradução literária
não se esgota apenas nos conhecimentos lingüísticos. O tradutor, ele próprio,
também é um intérprete crítico dos conteúdos culturais, onde podem ser
encontrados fatores extralingüísticos, pois a língua é apenas um dos elementos
utilizados na criação literária. Questões como gênero, tema, época, às vezes
mais relevantes, podem influir no processo tradutório. A tradução tem grande
interesse para a Literatura comparada nos estudos de recepção, que aferem o
acolhimento obtido pela obra traduzida. A análise da recepção estética abrange o
levantamento da fortuna crítica, isto é, o grau de aceitabilidade junto ao
público leitor e a avaliação dos processos utilizados na tradução (Gentil de
FARIA, 1996: 124).
A tradução permite considerar o escritor, a língua e o
público sob um ângulo novo: o tradutor, dividido entre a submissão ao texto e
seu temperamento, entre a crítica e a criação; o público, cujas exigências devem
ser cuidadas mais que de costume, porque, postas à parte as traduções
clandestinas executadas a título de exercício de estilo ou de testemunho de amor
por uma obra estrangeira, a tradução corresponde sempre a uma violenta
necessidade de publicidade, e, sem escrúpulos, proclama-se comercial e
cosmopolita (BRUNEL, 1990: 133).
Como bem lembra Tânia Carvalhal, Van Tieghem,
ao empregar o termo “passage”, evoca metaforicamente a
situação intervalar da Literatura Comparada que se coloca “em meio a”,
registrando sua característica essencial. Sabemos todos que aquele autor logrou
fixar em seu manual pioneiro o que era usual na prática corrente: o estudo da
natureza dos empréstimos e sua história (CARVALHAL, 1991: 10).
Analogamente, o ato tradutório também se efetiva por esse
rito de passagem assim como o da Literatura Comparada posicionando-se no
“entre-lugar” entre a língua de partida e a de chegada. Grandes escritores, como
Machado de Assis, ao praticarem essa “ponte necessária” para suas criações,
valeram-se dos empréstimos para construírem seus próprios textos, pois o
processo tradutológico implica a importação de um outro código lingüístico que
será transformado em uma linguagem própria. Susan-Bassnett, em seu livro
Comparative Literature – a critical introduction (1993), comentado por Carvalhal
“chama atenção para a importância dos cross-cultural works, nos quais avulta o
interesse pelas traduções”. Para Carvalhal,
no exame dos processos de transferências culturais, os
estudos de traduções, juntamente com as teorias sobre a tradução, tornam-se
relevantes, na medida em que traduzir ilustra o próprio processo estético. Por
outro lado, a transcendência de fronteiras culturais, implícita nesse processo,
encaminha para outras indagações e novas abordagens metodológicas. Muitas vezes
essas são fornecidas pelos estudos de gênero e pelos estudos interculturais
(1996: 16-17),
Mediante o exposto, termino com uma citação de Machado de
Assis para demonstrar o quanto seus pressupostos teóricos aproximam-se do
conceito atual de Literatura Comparada no tocante à mobilidade e a amplitude da
área com “inúmeras possibilidades de xploração, que deixou de lado o anseio
totalizador de suas fases de formação e consolidação, e se ergue como um diálogo
transcultural calcado na aceitação das diferenças e numa visão de mundo em que
categorias como as de centro e periferia sofreram significativa reestruturação”,
como afirma Eduardo Coutinho (2001, p. 956. v. 2).
“A literatura, como Proteu, troca de formas, e nisso está a
condição de sua vitalidade”. 6
Machado de Assis.
NOTAS
1
- Ver BRUNEL, 1990, p. XIX.
2
- Caso algum pesquisador tenha informações sobre o assunto, ficarei agradecida
pela contribuição.
3
- No original: Noted that although translation appeared to have played a major
role in the development of national cultures, this fact was almost ignored by
historians of culture, and there is no research at all on the function of
translated literature within a literary system. The Renaissance, for example,
has generally been perceived as a time of intensive translation activity, yet
any systematic assessment of what was translated, why, by whom and how had not
taken place. (...) In a paper written in 1976, Even-Zohar argues that certain
conditions determine high translation activity in a culture. He identifies three
major cases: when a literature is in an early stage of development; when a
literature perceives itself to be peripheral or ‘weak’ or both; when there are
turning points or crises or literary vaccums (in: BASSNETT, 1993: 142).
4
- Tradução de Marie-Anne Kremer: “the translator as slave, the servant of the
source text, is a powerful metaphor that endures well into the nineteenth
century. Implicit in this metaphor is the idea of dominance of the source text
author over the subservient target text”.
5
- El modelo esquemático de la traducción es el de un mensaje proveniente de una
lengua-fuente que pasa a través de una lengua-receptora, luego de haber sufrido
un proceso de transformación. El escolho reside en el hecho evidente de que una
lengua difiere de la outra, y para que el mensaje logre “pasar” es necesario que
se dé esa trasnformación interpretativa que algunas veces es descrita, aunque no
siempre com acierto, en términos de codificación y descodificación (1995: 50).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Letras) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte.
6
- Essa citação foi retirada do Dicionário antológico machadiano – Idéias e
imagens de Machado de Assis de Raymundo Magalhães Júnior (1956, p.
216). [topo da
página]
# Eneida Menna Barreto - A
Literatura como representação da História
O protagonista,
Dr. Olímpio, figura carismática e contraditória é apresentado por um narrador
onisciente. Exerce na vida pública a função de político, embaixador e ministro.
E, no entanto, na vida privada, mostra-se incapaz e frágil com seus afetos. Em
muitas situações, sua vida parece ser superficial, ficcional, representada e não
a vivida na realidade. Os arroubos de paixão reserva-os para a política e para a
amante da vida toda: Urânia (Nini).
A hierarquia social, contaminada pelos ares da época, tem
mais evidência nos papéis femininos. Sempre um narrador perspicaz possibilita
ampla visão das personagens, dos fatos, dos costumes, das vestimentas,
conferindo veracidade ao relato: "Lembrado então de que ainda não possui um
retrato da esposa, Olímpio telegrafa a Pelotas, chamando o pintor Frederico
Trebbi ". (Pedra da Memória, p.318)
Tanto a mãe de Olímpio, Dona Plácida, quanto a esposa,
Charlotte, a condessa austríaca, manifestam a inadequação ao meio. Ambas cultas,
e dominando mais do que a língua materna, priorizam as leituras no sentido de
ultrapassar a solidão e como um modo de acentuar a distância cultural que as
separa do meio social. A Condessa, fechada em si mesma, nega amor ao marido e
aos filhos.
A individualidade marca o mundo masculino nas suas relações
familiares, salientando ressentimentos de um convívio superficial. Cada
personagem locomove-se dentro de uma lógica irônica, hostil. O ponto de
observação do narrador favorece esse tipo de olhar crítico, com autonomia, para
perceber as animosidades.
Ligados à família de Olímpio, e tendo, de certo modo, seus
destinos traçados, Astor, Proteu e Páris fazem parte de um opulento mundo
material, embora frio, nas relações humanas. Astor, cuja falta de consciência
não lhe possibilita dar um sentido à vida, visualizando-a como ela é, consome
álcool, deixando as coisas acontecerem. Encarna a decadência familiar e, no
entanto, nada o detém em ressaltar o ridículo das situações. Proteu expõe, com
seu comportamento, aquilo que não era para ser revelado: sua homossexualidade
latente. Dessa forma, afronta os princípios da sociedade viril em que vivia.
Páris, narrador de si mesmo, relata sua trajetória, de forma, às vezes,
hilariante e irônica. Neto bastardo de Olímpio, filho de sua única filha Selene
(esta enlouquece ao dar à luz), sabe tirar proveito da posição que ocupa. Seus
elos familiares são superficiais, quase fictícios, isentando-o de qualquer
comprometimento afetivo que o impossibilite de agir como age: com ironia, com
descaso, desvalorizando a opinião alheia à respeito de si mesmo. A delimitação
do espaço físico que lhe coube, como herança, está em oposição à sua voz
narrativa que desvenda mistérios e revela as impurezas das vidas que o cercava:
os dez metros que lhe destinaram ao redor do Castelo, tem o contraponto de sua
audácia de narrador. Todavia, modificará seu comportamento, quando o afeto
entrar em seu coração, através da tia, Beatriz.
As sombras do Castelo iluminam o relato. O leitor, entre
fascinado e estarrecido vê, sente e ouve, na concretude da narrativa, o
movimento das personagens: materializadas, com sentimentos capazes de romper a
passividade e despertar a sensibilidade.
Nesta trilogia, Assis Brasil não faz somente o resgate da
História do Rio Grande do Sul e, por extensão, a do Brasil. Suas personagens
instigam a reflexão sobre a existência humana, sobre as relações familiares,
sobre as possibilidades não realizadas, estimulando o leitor a participar do
processo de construção do sentido da narrativa, problematizando o texto, pondo
em xeque a verdade histórica. O romance passa a ser visto não ele próprio como
irônico, mas, também, como sendo a ironia da própria História.
Bibliografia:
ARISTÓTELES. A Poética
Clássica. São Paulo: Cultrix,1995.
ASSIS BRASIL,
Luiz Antonio. Perversas Famílias. 3. ed. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1994.
ASSIS BRASIL. Pedra da Memória. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1994.
ASSIS BRASIL, Luiz Antonio. Os Senhores do Século. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1994.
BENJAMIN, Walter. Magia e
Técnica : Obras Escolhidas. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.
CESAR, Guilhermino. História da
Literatura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1956.
CHAVES, Flávio Loureiro. História e
Literatura. 2.ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1991.
CHIAPPINI, Lígia, AGUIAR, Flávio Wolf de. Literatura e História na América Latina. São Paulo:
EDUSP, 1993.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
ISER, Wolfang. Teoria da
Literatura em suas fontes. 2.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
v.II: Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional.
KOSIK, Karel. Dialética do
Concreto. 6.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1969.
LE
GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Ed. da
UNICAMP, 1994.
LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imáginário. São Paulo: Brasiliense, 1984.
p.7.
WHITE, Hayden. Meta-História : A imaginação Histórica do Século XIX.
2.ed. São Paulo: EDUSP, 1995.
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da
Cultura. São Paulo: EDUSP, 1994. [topo da
página]
# Gilda Bittencourt - Fronteiras do Conto como Gênero e
Representação
Dentro da
proposta de Linha de Pesquisa Limiares Críticos do GT de Literatura Comparada, a
nossa intervenção tem a finalidade de relacionar aspectos da pesquisa
individual, que desenvolvemos atualmente, com um dos tópicos escolhidos para
definir o embrião do projeto integrado da Linha, que, aqui no caso, é "A
representação como Mediação".
A referida pesquisa está centrada no conto literário
contemporâneo do Brasil das décadas de 70 a 90 do século XX, e o objetivo
principal que temos perseguido ao longo dela é identificar concepções de conto,
através da leitura analítica da produção ficcional de contistas brasileiros, e
do discurso crítico sobre o gênero.
A focalização neste tema tem nos levado a analisar mais de
perto a real situação do gênero em nosso país e a ampliar o conhecimento sobre a
própria teoria do conto, cujo embrião se localiza, indiscutivelmente, nas idéias
de Edgar Allan Poe, que fermentaram idéias e conceitos, solidificados e
desenvolvidos, particularmente, nos âmbitos das críticas norte e
latino-americanas ao longo do século XX. Por outro lado, o assunto também nos
levou a investigar a crítica brasileira sobre o conto, tentando sistematizá-la
em torno de certas questões recorrentes nos estudos, ensaios e artigos que
tratam do gênero, sobretudo aqueles publicados em jornal.
Esta visão mais ampla sobre a situação do conto e da sua
crítica em nosso país, tem nos possibilitado, também, estabelecer, de forma mais
consistente, relações com a contística e com o discurso crítico
latino-americanos e a refletir sobre certas questões de ordem teórico-crítica
que vem surgindo ao longo das leituras, sobre as quais temos elaborado trabalhos
apresentados em diferentes ocasiões, em eventos nacionais e internacionais.
Estes problemas são de várias naturezas, mas, de um modo geral, se relacionam
aos modos de apresentação e de organização interna dos relatos, à participação
do conto na configuração das literaturas nacionais da América Latina, à
identidade do gênero e suas transgressões e às reflexões dos próprios contistas
em torno do conto.
O tópico que aqui desejamos apresentar de forma sintética
resulta, da mesma forma, de observações e leituras de narrativas curtas,
brasileiras e latino-americanas contemporâneas, e que dizem respeito às rupturas
e às infrações às convenções tradicionalmente associadas ao gênero e à
problematização do conceito de representação.
O fato de pertencer ao gênero narrativo faz com que a
concepção de conto demande uma série de requisitos necessários ao seu
reconhecimento enquanto tal. O primeiro deles é de que ali se conte uma
história, pressupondo, com isso, a existência de um enredo onde os fatos se
interligam numa seqüência causal e cronológica, capaz de produzir
transformações, de tal sorte que o final da narrativa represente sempre uma
mudança em relação à situação inicial. Esta noção de transformação também está
ligada a uma outra característica das narrativas em geral que é o seu caráter
teleológico, na medida em que os fatos se organizam na história com vistas ao
seu futuro desfecho. As narrativas também costumam definir um espaço, físico e
social, onde se desenrolam as ações e onde atuam as personagens, seres
ficcionais, semelhantes a nós, que agem no sentido de concretizar as
transformações, motivadas por um desejo, uma vontade ou um objetivo (concreto ou
abstrato) capaz de movê-las e de fazê-las prosseguir nessa busca.
Outro elemento importante é a presença de um narrador,
sujeito enunciador do relato, cujas escolhas quanto ao ângulo, distância e modos
de narrar interferirão fundamentalmente sobre a natureza do narrado,
condicionando, inclusive, a maior ou menor confiabilidade da sua narração
perante o leitor.
Ao lado dessas questões de gênero, aqui apenas esboçadas, o
conto, como narrativa, prevê uma noção de representação, onde as palavras
desempenham a função simbólica de remeter a uma outra realidade e de construir
um sentido para este mundo criado pela linguagem. Esta noção, originada no
ancestral conceito de verossimilhança aristotélico, estabelece a relação da obra
literária com o real possível, mas não necessariamente verdadeiro, já que, como
fruto da imaginação do artista, cria seu próprio universo ficcional. Ao lado
disso, o conceito aristotélico também diz respeito à verossimilhança interna,
relacionada à coerência com o social e culturalmente aceito e à interligação
entre as partes da obra .
Todas essas questões estão também nos fundamentos do
Realismo, não como corrente estética oitocentista, mas como concepção
intemporal, onde o ponto comum é a adesão ao real e a credibilidade do que é
narrado, sugerindo com isso que as coisas, os fatos e as pessoas ali presentes
derivam diretamente da estrutura do mundo. Segundo Jonathan Culler, o realismo
também trabalha com a "verossimilhança cultural", por remeter a práticas que
fazem parte do nosso mundo social, além de ser ilustrativo das concepções do
gênero correspondente, no caso, o narrativo (In: MARTIN, Wallace. Recent
Theories of narrative, p. 67-68), reforçando assim a ligação entre a noção de
representação, o realismo e a verossimilhança.
Se partirmos da idéia de que a identificação de uma
narrativa está condicionada ao acatamento das convenções (referidas
sinteticamente acima) e do conceito tradicional de representação, muito da
produção literária contemporânea não poderá mais ser considerada verdadeiramente
uma narrativa e, nesse sentido, o conto literário é uma das modalidades em que
esse processo desconstrutor mostra-se bastante freqüente.
Não são poucos os casos, nas contísticas brasileira e
hispano-americana que temos analisado, de textos que subvertem totalmente as
convenções acima referidas, no que tange a aspectos mais formais como enredo,
temporalidade, espaço, focalização, voz narrativa e personagem, mas que também
contrariam aquela idéia de transformação, de compromisso com o real e o
culturalmente aceito.
Assim, a questão do enredo e suas implicações na seqüência
lógica e temporal dos acontecimentos fica comprometida em narrativas de autores
como Clarice Lispector, João Gilberto Noll e Caio Fernando Abreu, onde a
interligação dos fatos segue um fluxo interior e subjetivo, dominado pela emoção
ou pelas sensações daquele que narra, ou então onde o relato se resume a um
instantâneo da realidade, desvinculado de um fluir temporal que preveja um antes
ou um depois. O mesmo acontece em contos totalmente fragmentários, constituído
de várias cenas, aparentemente aleatórias e sem ligação (principalmente em João
Gilberto Noll).
Da mesma forma, a idéia de que o conto representa um real
possível e convencionalmente aceito, social e culturalmente, fica subvertida em
histórias fantásticas, em que a transição entre real e irreal é incorporada, sem
choques, ao fluir natural dos acontecimentos, como acontece nas narrativas dos
brasileiros Murilo Rubião, José J. Veiga e Moacyr Scliar e nas obras de inúmeros
contistas hispano-americanos.
A mistura de planos narrativos extra e intradiegéticos, a
discussão da própria ficcionalidade do que está sendo narrado, ou do gênero do
texto, a composição polifônica que incorpora discursos variados em que se
confundem a História, a biografia, o ensaio, o diário e a própria ficção,
simulando, irônica e parodisticamente, um registro erudito ou científico através
de citações e alusões bibliográficas, são algumas das características da chamada
metaficção, igualmente uma das formas de romper com as convenções do gênero
narrativo identificadas em contos latino-americanos contemporâneos. Nesse caso,
porém, o que se observa no confronto entre as contísticas brasileira e
argentina, por exemplo, é uma maior incidência dessa prática entre
representantes da última - como Cortázar, Borges e Ricardo Piglia, citando
apenas os mais conhecidos - do que em escritores brasileiros, onde os exemplos
são bem mais esporádicos. Tal diferença merece, sem dúvida, uma investigação
mais demorada.
Nessa breve exposição, pretendemos não só mostrar o estado
atual da nossa pesquisa, mas também esboçar alguns pontos possíveis de
intersecção com o tópico proposto pela Linha, indicando formas de desenvolvê-los
no sentido de uma convergência produtiva e teoricamente pertinente; ao mesmo
tempo, esperamos abrir possibilidades de diálogo e trocas que sejam
enriquecedoras para a construção de um projeto integrador que represente, de
fato, os rumos do pensamento teórico-crítico deste grupo de pesquisadores.
# Gustavo Bernardo1 -
A Fronteira da Palavra
"The world is
but a word" - William Shakespeare
Shakespeare já dissera, em Tímon de Atenas: o mundo é não
mais do que uma palavra.
A declaração põe sob suspeita todas as palavras e, por via
de conseqüência, as nossas ciências. As palavras de Shakespeare e, por extensão,
as palavras da literatura, põem sob suspeita tudo aquilo que chamamos de
"realidade". Como a ciência se mostra, a cada época, insuficiente, a ficção
comparece como via indireta de acesso à realidade, uma vez que as vias diretas
esbarram em becos epistemológicos. Entretanto, a ficção se define como antônima
da realidade, o que a mantém em situação de paradoxo permanente.
Vamos examinar essa fronteira tentando vê-la na interface,
ou na passagem, entre dois campos fraternalmente bélicos: ficção e filosofia.
Como esses campos são ligeiramente imensos, tentemos restringi-los partindo do
pensamento do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser, que procurou construir
toda a sua obra como uma ficção filosófica. Flusser atravessava as fronteiras
não apenas entre a filosofia e a ficção, mas também das línguas que dominava -
alemão, português, inglês e francês: traduzia-se e retraduzia-se constantemente,
buscando mudanças radicais de perspectiva, ao mudar a língua em que
escrevia.2
Filosofia e ficção parecem que são irmãs: odeiam-se quando
muito próximas, sentem falta uma da outra quando distantes. Platão e Aristóteles
são os casos emblemáticos: embora o primeiro tenha procurado expulsar os poetas
da sua República ideal e o segundo os tenha acolhido, aquele é que era o
verdadeiro poeta. Desde então, alguns filósofos flertaram com a ficção. Como
parte desse grupo, Wittgenstein chegou a sugerir que convinha fazer filosofia
como poesia.
Vilém Flusser tentou atender à recomendação de
Wittgenstein. O filósofo praguense escrevia simultaneamente (isto é, traduzia a
si mesmo) em alemão, português, inglês e francês. Pensava a literatura buscando
aproximar a filosofia da ficção. Vilém refletia sobre a literatura como se
fizesse epistemologia, isto é, pensando sobre o próprio pensamento. Se a
literatura suspende a relação entre a palavra e as coisas a um nível imaginário,
semelhante ao real mas jamais real, então a teoria da literatura se obriga a
suspeitar da "realidade" do que chamamos... realidade.
A metáfora da caverna, em Platão, já promovia a ligação, ao
mesmo tempo produtiva e conflituosa, entre a ficção e a filosofia. Flusser
explora esta ligação no artigo "Da ficção", publicado em 1966. Muitos pensadores
teriam vivenciado o mundo como ficção enganadora, dos platônicos aos românticos,
mas na pós-história estaríamos vivenciando a ficção como a única realidade; o
mundo que nos cerca parece ele mesmo ficção.
No entanto, dizer "ficção é realidade" implica contradição
entre termos, se um termo se define como a negação do outro. Para pensar essa
contradição, Vilém partiu da mesa sobre a qual repousavam os seus livros,
entendendo que aquela mesa era uma ficção chamada "realidade dos sentidos". A
mesma mesa, considerada sob o aspecto da física teórica, seria um campo
gravitacional quase vazio sobre o qual flutuariam outros campos chamados
"livros". Este aspecto, no entanto, seria também outra ficção, a que se poderia
chamar: "realidade da ciência exata". Dependendo do ponto de vista a mesa é ora
sólida, ora oca. Perguntar qual dos pontos de vista é mais "verdadeiro" carece
de significado. Dizer "ficção é realidade" implica afirmar a relatividade e
equivalência de todos os pontos de vista possíveis.
E se fosse possível eliminar os pontos de vista possíveis
para contemplar a essência da mesa? Restaria, nesse caso, apenas
"intencionalidade pura". A rigor, a mesa pode ser definida como a soma dos
pontos de vista que incidem sobre ela, ou como a soma das ficções que a modelam,
ou ainda como o ponto de coincidência de ficções diferentes. Se conseguíssemos
eliminar essas ficções como camadas de uma cebola, restaria o mesmo que na
cebola: nada. Não há centro. O raciocínio leva a abismo que provoca vertigem.
A maneira como Flusser pensa a literatura ajuda a pensar o
abismo. Vilém reconhece duas maneiras de apreciar literatura: ou como resposta,
ou como pergunta. No primeiro caso, a obra literária é percebida como resposta a
contexto ou texto anterior - quando se tenta medir o abismo para controlá-lo. No
segundo caso, a obra literária é percebida como pergunta ao leitor - quando se
tenta descer no abismo para vivenciá-lo. O filósofo prefere descer no
abismo.7
Abraham Moles, que reconhecia em Vilém Flusser um dos mais
importantes filósofos brasileiros, via no seu pensamento a alternativa entre a
sistematicidade do tratado e a fluência do ensaio. A esta alternativa chamou de
"ficção filosófica". Ao ler a fábula que Flusser escreveu, Vampyrotheutis
infernalis, Moles percebeu a brecha pela qual se podiam relacionar vida e
filosofia.8
Para o filósofo, o fabuloso é o limite do imaginável. As
fábulas flusserianas são experiências em sentido estrito, sem garantia prévia do
resultado. Elas tentam religar os campos da ciência, da filosofia e da poesia,
tornados estanques pela modernidade. Por isso, Moles via a obra de Vilém Flusser
como science fiction, embora de maneira diversa da ficção científica que nos
acostumamos a reconhecer nos seriados televisivos: não se trata de ficção da
ciência, mas sim de ciência como ficção.
Rainer Guldin esboça hipótese complementar à de Moles:
"Flusser via a si mesmo, no começo, como um escritor de textos literários, mas
logo considerou que a melhor coisa para ele era ser um escritor de ensaios.
Ainda que tentasse escrever de um modo mais literário, seu estilo como que
hesitava até se tornar um pouco pomposo, quase kitsch"9. Suas tentativas de ficção "pura" esbarravam numa
certa grandiloqüência que incomodava antes a ele mesmo. Escrever ensaios seria
uma maneira de cortar esta tendência, esforçando-se para disciplinar o caos que
emprestava força a seu estilo.10
A hipótese de Guldin chama a atenção para a luta interna de
Flusser, no corpo mesmo do seu texto, entre o escritor e o filósofo - entre a
ficção e a filosofia. A luta interna de Vilém Flusser não manifesta apenas a
crise moderna das ciências e, extensivamente, da realidade; é como se ela nos
alertasse da necessidade de lutar dentro de si mesmo e da língua, e não contra
alguém ou algo.
Entretanto, semelhante ênfase na ficção é perigosa: pode
conduzir tanto ao relativismo paralisante quanto à obsolescência da literatura.
Se os discursos dos políticos e as falas dos locutores de telejornais se mostram
estruturados por técnicas ficcionais, o circo e o show deixam de ser necessários
à vida porque a vida passa a ser um show. O fenômeno foi comentado por Benjamin,
que temia a estetização da política, e por Guy Debord, que criticou a sociedade
do espetáculo. No filme Maridos e esposas (1992), dirigido por Woody Allen, o
personagem representado pelo próprio diretor afirmava que "a vida não imita a
arte - imita maus programas de televisão". Mostrava como a ficção pode denegar a
realidade, ou melhor: como qualquer ficção, literária ou política, pode ter como
objetivo eliminar as outras ficções e as outras realidades.
A objeção, porém, tem sofrido de simplificação excessiva.
Alguns pesquisadores se apoiam no caso do historiador alemão Ernst Nolte, que
levantou dúvidas a respeito da verdade do Holocausto, para refutar
relacionamento mais estreito entre ficção e filosofia. Se tudo é ficção, ora,
então Auschwitz é ficção; se Auschwitz é ficção, ora, então ou Auschwitz sequer
existiu, ou, na melhor das hipóteses, não foi tão sério assim (não matou tantos
judeus assim). Como a conclusão é claramente absurda, deduz-se que dizer que
"tudo é ficção" seria um equívoco grave. Em conseqüência, a ficção filosófica,
indistinguindo os campos, não seria fecunda. 11
O ponto fraco da objeção é pensar a ficção com conotação
pejorativa, em oposição à realidade, que teria conotação ontologicamente
positiva. Ainda que "a fumaça dos acontecimentos nuble a visão dos
contemporâneos", como pensava Braudel, os documentos dos próprios arquivos
nazistas atestam a tragédia dos campos de concentração. Supor Auschwitz como
ficção não implica supor, de modo algum, que Auschwitz não existiu, porque
implicaria supor ficção como igual a nada. O que se quer dizer é diferente e não
implica relativismo fácil: afirmamos que Auschwitz e Hiroshima existiram
inicialmente como ficções que se disfarçaram de verdades únicas, modelos de
mundo que fingiram que não eram modelos mas sim o próprio mundo. Por isso, seus
efeitos foram tão devastadoramente reais.
Loucura, então, não é entender que ficção seja realidade,
que Auschwitz ou a bomba sejam ficções. A loucura reside na reificação da
História e dos acontecimentos, horrorizando-se perante Auschwitz sem percebê-lo
como um sintoma da sociedade do aparato que transforma todos em funcionários de
uma função. Esta sociedade aperfeiçoa seu controle para dispensar até mesmo os
controladores. Auschwitz não foi apenas um crime contra os judeus, foi um crime
contra a humanidade. Nos termos de Flusser, Auschwitz não foi sequer apenas um
crime contra a humanidade, porque representou uma conseqüência lógica do
pensamento ocidental, isto é, da fé linear e absurda no progresso.
Logo, é preciso suspeitar das crenças que fabularam
Auschwitz e Hiroshima; é preciso suspeitar de quaisquer crenças que fabulam
sínteses totalitárias como se não fossem fábulas, para recuperar a fé: a fé na
realidade.
Ficções são modelos necessários, porque sem eles não se tem
acesso à realidade. Por isso, o filósofo preferia enxergar não apenas a obra
literária como pergunta: a realidade também seria um espantoso ponto de
interrogação. O conhecimento é uma relação concreta da qual o conhecedor e o que
se conhece são suas extrapolações abstratas.12
Ao contrário da impressão usual, o conhecimento é um dos fatos concretos que
fundam o mundo no qual vivemos. O sujeito e o objeto são não mais do que
hipóteses - ainda que hipóteses indispensáveis. "Eu conheço esta mesa" denota
uma intenção concreta e confirma que esse conhecimento, compartilhado por outros
sujeitos, é ele mesmo concreto - o "eu" e a "mesa" é que permanecem como
abstrações, ainda que necessárias. Se sinto dor no estômago, apenas a dor é fato
concreto; "eu" e "estômago" não são mais do que extrapolações abstratas. Se
considero o nazismo como um mal, apenas o juízo de valor "mal" é um fato
concreto; "eu" e "nazismo" são igualmente extrapolações abstratas.13
Flusser não isolava a literatura dos demais processos de
conhecimento, percebendo-a tão esforço de ciência quanto a ciência ela mesma.
Trata-se sempre de querer saber, porque, como sempre, ainda não se sabe.
Aristotelicamente falando, o conhecimento do possível deve preceder o
conhecimento do real, porque o real se dá apenas enquanto virtualidade e
possibilidade. Compreender o real como ele é implica observar algo em processo
de realizar-se e atualizar-se - implica observar o que ainda não aconteceu ou,
talvez, o que já não esteja mais acontecendo.
O problema é epistemológico e ontológico. Se a realidade
não há, quem pode dizer que é? Em outras palavras, como aprender a ser real,
isto é, a ser o que ainda está sendo? Essa é a questão que o ator (interpretado,
por sua vez, pelo ator Jeff Daniels) coloca para o seu personagem (interpretado
pelo mesmo ator) em A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen: "você não pode
aprender a ser real. É como aprender a ser anão. Não é uma coisa que dá para
aprender".
Aprender a ser real exige o aprendizado da ironia. Estamos
sempre aprendendo a ser reais, porque ainda não somos. A ironia é a nossa arma
lingüística contra o nada: ficção contra ficção. Para Flusser, “a vida é a
ficção não há morte, e o pensamento é a ficção não há vida”.14 Vivemos negando a morte e construímos,
entrementes, a civilização. Pensamos negando a negação anterior, tentando frear
o fluxo do sempre diferente num quadro de categorias compreensíveis e
comprimidas. Definimo-nos como os únicos seres vivos que se sabem mortais, mas,
lembra Ortega Y Gasset, no íntimo não nos reconhecemos mortais. Em nenhum caso
vivenciamos nascimento e morte: “meu nascimento é uma história, um mito que
outros me contam, mas ao qual não pude assistir e que é prévio à realidade a que
chamo vida, enquanto a minha morte é outra história, outro mito que nem sequer
me podem contar. Resulta que essa estranhíssima realidade que é minha vida se
caracteriza por ser limitada, finita e, não obstante, por não ter nem princípio
nem fim”.15
A vida humana, nessa perspectiva, é uma ficção séria – um
teatro triste. É quando se torna necessário assumir a ironia como atitude
existencial. A ironia transparece nas paredes de vidro de “Axolotl”, conto de
Julio Cortázar que fala da fascinação de certo escritor por um animal anfíbio em
forma larval, provido de brânquias e com olhos de ouro, exibido em um aquário
público. O personagem olha o anfíbio dia após dia, tentando compreender esse
outro tão outro. Em determinado momento, o personagem descobre-se vendo seu
ex-rosto do lado de fora do aquário: “eu era um axolotle e sabia agora
instantaneamente que nenhuma compreensão era possível”.16 O homem agora é que passa a ser o outro, visto
pelo lado de dentro do aquário com olhos de axolotle.
O axolotle de Cortázar é tão anfíbio e monstruoso quanto a
ficção, fazendo par com o monstro do filósofo. O protagonista do romance de
Flusser, o Vampyroteuthis infernalis, é um espécime raro de polvo, com vinte
metros de diâmetro. O animal serve ao filósofo como o axolotle serviu a
Cortázar: olha-o tão intensamente que de repente espanta-se olhando o próprio
olhar. Flusser encarou esse outro-tão-outro para alcançar suficiente distância
da condição humana e escrever fábula que fosse ao mesmo tempo “cientificamente
exata e fantasia desvairada”. Reconhece a dificuldade de captar Vampyrotheutis
nas redes de pesca e nas do conhecimento, porque vivemos separados por abismo: a
pressão que ele habita nos achata, o ar que respiramos o asfixia. Se o prendemos
em aquários a fim de observar seu comportamento, eles se suicidam devorando os
próprios tentáculos. Ignoramos nosso próprio comportamento, se ele conseguisse
arrastar-nos para a profundeza a fim de observar-nos.17
Mas a barreira que separa o ser humano do Vampyrotheutis
pode ser compreendida através da fábula, que representa uma tentativa de
criticar a nossa existência vertebrada do ponto de vista molusco. Como em toda
fábula, fala-se sobretudo do homem, embora um “animal” sirva de pretexto. Esta
fábula é programa científico: olhar buscando outro olhar e buscando captar o
momento em que se olha. Esse programa é igualmente literário, ou seja, fabuloso:
a fábula comparece no lugar da realidade e do objeto para que objeto e realidade
sejam.
Assim ele classifica os animais em apenas duas categorias:
os que evoluem em nossa direção, “homens imperfeitos”, e os que divergem de
nossa direção, “homens degenerados”. Mamíferos são homens imperfeitos, enquanto
que aves, répteis e moluscos moles representariam a degeneração do humano.
Flusser apóia-se na seguinte hipótese, claramente irônica: “o nojo recapitula a
filogênese”18 – ou seja, quanto mais afastado um
animal do homem tanto mais nojo nos causaria. Quando a vida esmagada (sob o
nosso sapato) é mole, sentimos nojo. Vampyrotheutis é animal mole, lento e
viscoso, mas perturba-nos sobremaneira porque a sua estrutura revela-se
complexa: “a espiralidade é o tema fundamental do organismo molusco”19 porque moluscos são animais retorcidos sobre si
mesmos, tendendo a aparente involução em todos os detalhes e como um todo. Em
Vampyrotheutis a tendência para a retorção é tão violenta que seu corpo se
retorce até que a boca devore a cauda – como se o uroboro estivesse vivo o tempo
todo no fundo do mar.
Da sua boca saem tentáculos que parecem pernas, mas ainda
têm outro órgão de locomoção: o jato. Expelem água na água, propelindo-se para
trás com grande velocidade. Alimentam-se e respiram provocando vórtice
centripedal que aspira o ambiente, e locomovem-se expelindo a água provocando
redemoinho; trata-se de animais-redemoinhos com respiração e locomoção
sincronizadas. Os Vampyrotheutes têm dois olhos iguais aos nossos nos mínimos
detalhes, mas funcionam de modo um pouco diferente: enquanto os nossos captam
raios solares refletidos por objetos, os deles captam raios emitidos pelos
próprios órgãos que iluminam as regiões abissais e são então refletidos pelos
objetos. Isso significa que a sombra platônica, fundadora do mundo das idéias,
não lhes é acessível!
O oceano, habitat do Vampyrotheutis, pode ser visto por
dois modelos. Quem vive no mar o vê como paraíso tridimensional e fluido repleto
de sons e luzes, noite eterna iluminada pelos raios emanados de seres vivos: “um
jardim que sussurra, brilha e dança”. Mas nós não vivemos no mar. De nosso ponto
de vista vemos um abismo, ou melhor, o inferno: “buraco preto e frio, sob
pressão achatadora, repleto de temor e tremor, habitado por seres viscosos e
repugnantes que se entredevoram com alicates e dentes”.20
Ambos os modelos são verdadeiros, mas ambos os modelos não
podem dar conta do que descrevem. É preciso passar de um modelo a outro,
suspendendo crenças e forjando outras crenças. Na verdade, como explica Flusser,
é preciso libertar-nos da crença pia em modelos, sobretudo do modelo segundo o
qual a existência seria encontro de um sujeito com objetos. Tal modelo pressupõe
que poderia haver sujeito sem objeto ou o contrário, e que estes podem se
encontrar como podem não se encontrar. Tal modelo traz por conseqüência o
problema eterno do “realismo-idealismo” (quem vem primeiro: o objeto ou o
sujeito?), que é problema eterno por ser problema falso. Se a existência é um
estar-no-mundo, se sujeitos se relacionam com objetos e com outros sujeitos, a
realidade é precisamente este relacionamento. Logo, toda modificação do objeto
implica modificação do sujeito assim como toda modificação do sujeito implica
modificação do objeto, porque o que se modifica é o relacionamento.21
A estrutura do mundo espelha a estrutura do organismo. Como
isto vale para qualquer ser no mundo, vale para Vampyrotheutis: “seu organismo
espelha o abismo, seu abismo o organismo”.22 Ao
encontrarmos Vampyrotheutis e seu abismo, reconhecemos existência comparável à
nossa que nos permite salto de mundo a mundo. Este salto, de mundo habitual para
mundo fabuloso, é propriamente a metáfora.23
O filósofo não recusa nem o abismo nem o simulacro. Ao
contrário, ele os abraça.
NOTAS
1 Gustavo Bernardo é
professor de teoria da literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
autor do livro A dúvida de Flusser, a ser publicado pela editora Globo em 2002.
Uma variante do presente texto foi publicada em: SANTOS, Paulo Sérgio Nolasco
dos (org). Literatura comparada: interfaces e transições. Campo Grande: Editora
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, 2001; pp. 59-76. Em forma de
conferência, ele foi apresentado no Seminário As Margens da Tradução, na UERJ,
em agosto de 2001, no 4º Deutschen Lusitanistentages - 4º Congresso da
Associação Alemã de Lusitanistas, em Germersheim, na Alemanha, em 12 de setembro
de 2001, e no 10º Simpósio "Vilém Flusser: philosopher of multiplicity -
plurilingualism and translation", no Monte Verità, em Ascona, Switzerland
(Suíça), em 26 de outubro de 2001.
2
Conferir o artigo de Rainer Guldin, "Traduzir-se e retraduzir-se: a prática da
escrita de Vilém Flusser", em KRAUSE, Gustavo Bernardo. As margens da tradução.
Rio: Caetés, 2002 - e também na edição nº 1 do site "Dubito Ergo Sum", de
janeiro de 2002: http://planeta.terra.com.br/arte/dubitoergosum .
3
Em NUNES, Benedito. Hermenêutica e poesia: o pensamento poético. Belo Horizonte:
editora da UFMG, 1999; p. 161.
4
O texto de Rainer Guldin, "Traduzindo e retraduzindo", estuda à exaustão e com
perfeição o espantoso método de Vilém Flusser para pensar-se e criticar-se:
submeter suas idéias ao crivo crítico-ontológico de outras línguas, através do
processo de traduzir a si mesmo.
5
Conferir meu artigo "Da prece à literatura"; in KRAUSE, Gustavo Bernardo &
MENDES, Ricardo (orgs). Vilém Flusser no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2000, e a conferência apresentada em Puchheim, na Alemanha, em Simpósio
Internacional sobre Vilém Flusser, em 6 de março de 1999: Vom Gebet zur
Literatur: Das Denken Vilem Flusser's (traduzida para o alemão por Edith
Flusser).
6
Ribeirão Preto, SP: O Diário, 26 de agosto de 1966.
7
FLUSSER, Vilém. Da religiosidade. São Paulo: Comissão Estadual de Cultura, 1967;
p. 59.
8
RAPSCH, Volker (ed). Überflusser: Die Fest-Schrift zum 70, von Vilém Flusser.
Düsseldorf: Bollmann Verlag, 1990, p.53: "Vilém Flusser, einer der wichtigsten
gegenwärtigen brasilianischen Philosophen, schlägt uns einen anderen,
grundlegenderen Ansatz vor, einen, den wir Philosophiefiktion nennen wollen. (…)
Das neueste Buch von Flusser schlägt uns allerdings einen Zugang zum Verhältnis
der Philosophie und des Lebens vor, der dank einer mutigen Konstruktion den
Kunstgriff des Abstandnehmens bis ins Äußerste treibt, was ja für die
phänomenologische Einstellung grundlegend ist."
9
Carta que nos enviou em 9 de outubro de 2000.
10 Flusser started out with a view of himself as a writer
(of literary texts?), but found out soon enough that the best thing for himself
was to be a writer of essays. Whenever he attempted to write in a more literary
way his style faltered becoming slightly pompous, even a bit kitsch - the style
of historical romance, history as novel. Writing essays then was a way to
reduce, to cut back this tendency. And it is this very effort to order and
discipline the chaotic that gives form and strenght to his style.
11 - A objeção é levantada com bastante freqüência. O
professor João Cezar de Castro Rocha, por exemplo, explicita a sua divergência
propondo a seguinte distinção, em mensagem de e-mail que nos manda em 1 de
setembro de 2001: “os modelos que automatizamos no comércio social, e de cuja
engrenagem esperamos (e com razão) resultados pragmáticos, denominaríamos
realidade, assim, com indicação precisa do seu estatuto ficcional, mas, no
limite, tratar-se-ia, por assim dizer, de uma ficção coletiva na qual
acreditássemos e em função da qual agiríamos. Já aos modelos que assumimos
enquanto constructo reservaríamos o estatuto de ficcionais. Veja que se trata de
uma distinção menos fenomenológica do que pragmática, como realizado pela
sociologia fenomenológica de Alfred Schütz. Creio também que o argumento de
Flusser – tal campo de concentração é uma ficção – é mais relevante do ponto de
vista político do que filosófico. Explico. Do ponto de vista político, revelar a
indistinção potencial entre nazismo e sociedade instrumentalizada pelo lucro
capitalista, sobretudo se expressa por um judeu que perdeu a família em campos
de concentração, possui uma força política invejável. Já do ponto de vista
filosófico promove uma indistinção que creio, diminui a complexidade da
questão.” A despeito da qualidade do argumento, creio que a distinção proposta
seja precisamente outra ficção – no caso, uma ficção pragmaticamente
conveniente.
12 - FLUSSER, Vilém. “On Edmund Husserl”. Publicado em New
York, no primeiro volume da Review of the Society for the Czechoslovak Jews, em
1987: “Knowledge is a concrete relationship, of which the “knower” and the
“know” are abstract extrapolations.”
13 - If I feel a pain in my stomach, only the pain is a
concrete fact; “I” and “stomach” are nothing but abstract extrapolations from
that concrete fact, extrapolations explaining the concrete fact. If I judge
Nazism to be evil, only the value judgement “evil” is a concrete fact; “I” and
“Nazism” are merely abstract extrapolations from this concreteness.
14 - FLUSSER, Vilém. Da religiosidade; p. 88.
15 - ORTEGA Y GASSET, José. Ideas sobre el teatro y la
novela. Madrid: Alianza Editorial, 1999; p. 130: “sólo hay dos cosas que la vida
– la cual es siempre la de cada cual – en absoluto no puede ser, que no son,
pues, posibilidades de mi vida, que en ningún caso pueden acontecer. Esas dos
cosas ajenas a mi vida son el nacimiento y la muerte. Mi nacimiento es un
cuento, un mito que otros me cuentan, pero al que yo no he podido asistir y que
es previo a la realidad que llamo vida. En cuanto a mi muerte es un cuento que
ni siquiera pueden contarme. De donde resulta que esa extrañísima realidad que
es mi vida se caracteriza por ser limitada, finita y, sin embargo, por no tener
ni principio ni fin.”
16 - CORTÁZAR, Julio. Final del juego. Madrid: Alfaguara,
1993; p. 156: “Yo era un axolotl y sabía ahora instantáneamente que ninguna
comprensión era posible.”
17 - FLUSSER, Vilém. Vampyroteuthis Infernalis; p. 1, na
versão datilografada em português. Tivemos acesso à versão em português graças à
gentileza de Edith Flusser. Na versão alemã, p.9: “Es ist nicht leicht, sich ihm
taxonomisch zu nähern. Und nicht nur taxonomisch. Menschen und Vampyrotheutis
leben getrennt voneinander. Wir werden von dem in seinem Abgrund herrschenden
Druck zerschmettert, und er erstickt an der Luft, die wir atmen. Wenn wir seine
Verwandten in Aquarien sperren, um sie zu beobachten und aus ihnen auf ihn zu
schließen, bringen sie sich um: Sie verschlingen ihre eigenen Arme. Wie wir
selbst uns betragen würden, wenn er uns in seine Tiefen mitrisse, in denen nur
seine Leuchtorgane die ewige Nacht durchbrechen, bleibt offen.
18 - Idem; p. 5. Na versão alemã, p. 14: “Der Ekel
rekapituliert die Phylogenese”.
19 - Idem; p. 6. Na versão alemã, p. 16: “Diese
Spiralsymmetrie ist überhaupt das Grundthema des Molluskenkörpers”.
20 - Idem; p. 25. Na versão alemã, p. 33: “Wir sehen ein
kaltes schwarzes Loch, das von Zähne – und Kieferklap – pern erfüllt ist und
unter einem alles zermalmenden Druck steht.”
21 - Idem; p. 26. Na versão alemã, p. 34: “Konkret ist
weder der Organismus noch die Umwelt, weder Subjekt noch Objekt, weder Ich noch
Nicht-Ich, sondern das Zusammentreffen beider. Es ist absurd, sich ein objektloses Subjekt oder ein
subjektloses Objekt vorstellen zu wollen, eine Welt ohne mich und mich ohne
Welt. Da-sein heißt in der Welt sein. Wenn es also Veränderungen gibt, dann
nicht, weil ich mich verändere oder weil die Welt sich verändert, sondern im
Gegenteil: weil sich die konkrete Beziehung Ich-Welt verändert, und das zeigt
sich phänomenal in Veränderungen meiner selbst und der Welt dort draußen. Das
muß man im Auge behalten, will man sich dem vampyroteuthischen Dasein nähern.”
22 - Idem; p. 27. Na versão alemã, p. 35: “Der Organismus
spiegelt die Welt und die Welt den Organismus.”
23 - Idem; p. 27. Na versão alemã, p. 36: “Nicht um eine
Theorie handelt es sich also, sondern um eine Fabel. Es handelt sich darum, aus
der tatsächlichen Welt in eine fabelhafte Welt
hinüberzuwechseln.” [topo da
página]
# Helena Tornquist - Representação simbólica no regionalismo
modernista
Para el
escritor la memoria es tradicion. Una memoria impersonal donde se hablan todas
las lenguas.
Ricardo Piglia
As palavras do escritor argentino, citadas na epígrafe, vêm
a propósito quando se intenta explicitar, com apoio no conceito de cronótopo
formulado por Bakthin,1 a singularidade de um
discurso ficcional referido a certa continuidade de tempo e espaço, a saber, da
literatura produzida no sul do Brasil, nas primeiras décadas do século XX.
Cabe ressaltar que, ao retomar aqui a temática da
gauchesca, não se pretende apenas aproximar autores e obras sobre o tema,
apoiadas num imaginário comum, mas destacar, na diversidade das estratégias
ficcionais, formas relacionadas à notação da série histórica e
geográfico-cultural do fato literário. De modo especial, procura-se atentar para
as possíveis correspondências e semelhanças formais, temáticas e simbólicas,
resultantes de uma atitude comum voltada para a escavação do passado, para a
determinação e fixação da arkhé primordial.2
É amplamente conhecida a forte marca do tema da tradição
nas representações simbólicas de autores regionalistas do continente
sul-americano, mais especificamente dos estados que limítrofes da Argentina e
Uruguai. Embora para a história literária a existência de temas e motivos comuns
não impediu que os sistemas literários consolidados no decorrer do século XIX
seguissem caminhos diversos, a presença do homem primitivo, desde as primeiras
manifestações literárias, oferece elementos à discussão: por exemplo, uma
leitura que se interesse precisamente pela problemática do trânsito de temas e
motivos entre as diferentes nações e busque as razões de sua sobrevivência
“apesar dos sistemas diferenciados que passam a integrar”.3 Em outras palavras, interessa saber até que ponto o
imaginário comum interfere na construção do fazer literário do universo regional
da campanha – os campos que se estendem do pampa argentino, passando pelo oeste
uruguaio até à campanha sul-rio-grandense – um espécie de entre-lugar, marcado
por um ethos primitivo comum, configurador, como lembra José C. Pozenato, de um
universo regional preciso.4
A celebração da vida aventureira dos primeiros habitantes,
que vinha dos tempos coloniais, estava presente nos chamados “cantos de
monarquia” de origem portuguesa, como na poesia dos “payadores” do pampa cujo
fulcro era o tipo humano autóctone sul-americano. Mas, como enfatiza Guilhermino
César,5 a aura que passou a envolver o homem
típico da região, entretanto, foi construída pelos românticos, tanto nos países
do Prata como no contexto brasileiro. É o caso de Bartolomé Hidalgo, de
Estanislao del Campo, de Jose Hernández, autores oitocentistas mencionados por
Jorge Luís Borges em seu ensaio sobre a gauchesca, que vivem em Montevideo ou
Buenos Aires, numa comprovação da origem culta dessa poesia apresentada como
popular.6
No Brasil, não seria diferente, pois além de José de
Alencar que concebeu O Gaúcho dentro do projeto de fixação dos diferentes tipos
humanos que integravam a identidade nacional, há que lembrar O Vaqueano, escrito
por Apolinário Porto Alegre, membro da Sociedade do Partenon Literário. Logo
adiante, já na fase pré-modernista, o tema ressurge com o escritor Simões Lopes
Neto, em contos que tiveram origem na pesquisa folclórica do homem letrado.
Se o tema da gauchesca teve papel destacado na formação das
diferentes literaturas, as vanguardas estéticas do século XX não conseguiram (ou
não pretenderam) apagá-lo; assim, é possível encontrar escritores identificados
com essa temática em diferentes pontos do sul do continente, tanto nos países de
língua espanhola (basta lembrar Ricardo Güiraldes e o próprio Borges), como no
Rio Grande do Sul, onde, além de Simões Lopes (que teve sua reconhecida
tardiamente), se destacaram, num primeiro momento, Roque Callage, Alcides Maia e
Darci Azambuja
Numa demonstração de que a temática campeira efetivamente
circulava entre os que interessavam pela realidade local, ultrapassando as
fronteiras entre os países,7 praticamente todos
esses textos davam destaque ao que é identificado com o “modo de ser gaúcho”: o
gosto da ação enérgica, o espírito de fronteira, o alarde de coragem – um ethos
fortalecido pela extensão territorial e o isolamento dela decorrente, e pelo
caráter das lutas da Independência.
Levando-se em conta que, a exemplo das formas de
comunicação lingüísticas, as representações artísticas permanecem, apesar das
demarcações de fronteira, sejam elas externas ou internas, é possível ver as
manifestações literárias como elementos formadores de uma comunidade cultural,
pois, se há um caráter heteróclito acentuado nas diferentes regiões que integram
o continente latino-americana, com a modernização capitalista, este foi
sensivelmente atenuado pelo estabelecimento de canais internos de
comunicação.8
Ademais, confirmando constatações de Benedict Anderson
àcerca da língua enquanto elemento de consolidação das comunidades imaginadas, é
visível nessas narrativas a preocupação com a linguagem, razão por que é para
essa dimensão do texto que vai se orientar a análise das obras selecionadas: a
saber, o romance Memórias do Coronel Falcão9 de
Aureliano de Figueiredo Pinto, fixando aspectos típicos da vida agro-pastoril da
região da campanha, próxima das Missões e o livro de contos intitulado Bulha
d’Arroio,10 do catarinense Tito Carvalho, cujo
olhar se volta para a paisagem cultural dos campos de Lages, região integrante
do planalto catarinense.
Com o título de Memórias do Coronel Falcão, Aureliano de
Figueiredo Pinto narra a saga de um proprietário rural que, à instância de
amigos, aceita participar da vida política e se transfere para a cidade, onde
acaba se dando mal, perdendo ainda quase todos seus bens. Quando retorna ao
campo, é a memória que vai dedicar os último anos de sua vida, onde passa a
trabalhar em companhia de um afilhado no quinhão de terra que lhe havia legado.
Como Dom Casmurro dedica-se à rememoração do passado, tentando “atar as pontas”
dos fatos vividos para melhor compreender o que ocorreu. Na verdade, em seu
discurso temos a confirmação de que a luta do homem contra o poder é a luta da
memória contra o esquecimento.
No entanto, a evocação dos acontecimentos em que se
envolveu não representa toda a matéria de seu discurso: esta se constitui de
modo mais amplo, representando a evocação do passado distante, seja através de
formas de representação que povoam o imaginário da campanha, seja através da
assimilação dos modelos literários que escolheu, como se percebe em passagens
claramente alusivas a Simões Lopes Neto e Alcides Maia, bem como na citação de
autores de língua espanhola, entre os quais Ricardo Güiraldes. Coincidentemente,
nos textos destes escritores, a memória representa o elo de ligação com o
universo da gauchesca. Dizendo de outro modo, nesses textos a evocação do
passado mítico, por uma voz repassada de nostalgia, confere um caráter de
oralidade a discursos cujo denominador comum é tornar presente uma época
caracterizada pela vida rude e primitiva, época em que os campos ainda não
haviam conhecido as marcas da modernização.
No romance Don Segundo Sombra de Güiraldes, a narrativa se
estrutura no desdobramento da memória do narrador-personagem Fabio Cáceres, que
decide rememorar os fatos vividos. Observa-se que ele o faz conscientemente,
procurando pesar suas atitudes, julgá-las com a isenção que o distanciamento do
tempo assegura. Esse procedimento é também o do Coronel Falcão, com a diferença
de que a evocação quase lírica do narrador criado por Güiraldes, dividido em
contemplador e contemplado, em um ser que viveu11 uma aventura plena e outro que evoca do plano
futuro, o passado feliz que viveu tem efeito muito distinto no caso do escritor
rio-grandense. O recurso formal do duplo registro nada tem de lírico: a voz de
Falcão, ao contemplar o presente, apresenta o tom desiludido, irônico, de um ser
revoltado com os homens, que contamina todo seu discurso.
Mas o romance de Aureliano apresenta outras características
que sugerem a inexistência de fronteiras nacionais. A cena de abertura é
emblemática – homens do campo em plena atividade, falam entre si em espanhol
(-Cayó el velo/-Cayó la felpa) num tom de refrão vão contanto as aparas de lã
que cortam das ovelhas. Don Juan, Don Medina, Velén são homens típicos desse
entre-lugar, que, despedidos dos saladeiros, não têm emprego fixo e vão andando
entre as estâncias para tarefas ocasionais.
A ambientação na região da fronteira é palpável também nas
referências do narrador a autores da literatura argentina, através de obras
largamente conhecidas, a músicas que ali chegavam nas ondas do rádio, e mesmo, a
histórias que integravam a tradição popular. (Quadras do Martin Fierro são
declamadas e letras de tango servem contraponto ao sofrimento do narrador).
Já no que diz respeito à linguagem, chama atenção a
presença constante de termos em língua espanhola. Entre outras ocorrências,
temos: “escucha”, “santafecino,” “tempraneras”, “cochonilho”. A referência ao
código da tradição do gaúcho se manifesta também nos níveis de língua: sendo a
oralidade a marca do discurso narrativo, ela atua no sentido de reforçar o
caráter intercultural que o falar gauchesco assume na região fronteiriça. Há,
por exemplo, falas inteiramente em espanhol, contribuindo para compor os tipos
humanos que atuam nas estâncias. A propósito, deve-se registrar que, homem de
muitas leituras, o autor valia-se freqüentemente de alusões e citações em língua
estrangeira, destacando-as no texto mediante o recurso das aspas; entretanto,
nos diálogos em língua espanhola, ele deixou de fazê-lo, e assim orientou
expressamente seu editor, sob o argumento de que pertenciam a um campo
lingüístico comum. Em seu entendimento, o mundo da campanha era unificado pelo
linguajar comum,12 ao qual, nem o rio Uruguai,
nem o Quaraí nem a “linha” ofereceriam barreiras.
(Re)criando o
passado comum
Os textos escritos por Tito
Carvalho são representativos de uma região distante da campanha gaúcha, mas que,
por suas peculiaridades, aproxima-se pela atividade agro-pastoril ao modus
faciendi da região sul-rio-grandense. Sendo natural de Orleães, cidade situada
ao pé da Serra do Mar, a permanência do escritor em São Joaquim, por certo
tempo, possibilitou-lhe o contato com a zona rural e o gosto pela vida livre do
homem do campo. Efetivamente, essa região se destaca no planalto catarinense –
os chamados campos de cima-da-serra – pela topografia semelhante à da campanha
gaúcha, o que favoreceu a prática da criação de gado em extensão.
Demonstrando ter assimilado o ethos típico da campanha,
seus textos passam a priorizar o tema da gauchesca. Datam da fase da vida em que
Tito Carvalho conheceu de perto os costumes rurais, o romance campeiro Vida
Salobra e os contos de Bulhas d’Arroio.13 Se
nessas narrativas, a memória não recebe tratamento idêntico ao que foi percebido
nos romances de Figueiredo Pinto e de Güiraldes, assinala-se a presença de uma
voz narrativa que fala de uma época pretérita, evocando acontecimentos
singulares, os quais, reunidos no tecido narrativo, descrevem um quadro rural
que, em tudo, intenta reproduzir o passado da campanha.
Efetivamente, a leitura desses contos sugere a atmosfera
das narrativas de Simões Lopes Neto (especialmente das que integram os Contos
gauchescos ) na ênfase ao falar e ao agir do tipo humano da campanha. Há, por
exemplo, um claro diálogo intertextual entre “Valentia” e “Nego Bonifácio” e, no
que se refere à crueza e a violência próprias de desavenças pessoais, entre
“Contrabandistas” e “Santa Luzia”, ao registrar, em contraponto com esses
aspectos certos costumes antigos, como o namoro e as festas de casamento. Há ou,
ainda, os contos “Baitatá” e “Entrevado” que lembram as assombrações registradas
em Lendas do Sul, para só ficarmos em alguns exemplos.
Assim, é possível afirmar que, passadas cerca de quatro
décadas, Tito Carvalho olha a região em que vive com os mesmos olhos do rapsodo
do Sul; nela identifica os traços do homem rural fixados nas narrativas de
Simões Lopes Neto – desde o dia-a-dia do homem do campo, envolvendo desde o
trato com o gado, a alimentação, o vestuário, até às atividades domésticas mais
restritas a mulher, e festas e crendices populares.
Entretanto, convém ressaltar, que, assim procedendo, Tito
Carvalho não realizou um mero decalque. Escritor consciente de seu ofício, se
acolheu o imaginário do universo ficcional fixado pelas narrativas referidas aos
campos do sul, é visível que teve cuidado de registrar as particularidades da
paisagem local. Ao leitor atento, por exemplo, não escapará que, a certos
momentos, os campos não têm como limite a linha que demarca as fronteiras
nacionais, mas a serra e seus despenhadeiros, configurando, de modo preciso, os
campos do planalto catarinense, situados a mais de 800m do nível do mar.
Mas a força paradigmática da literatura gauchesca
manifesta-se nos contos de Tito, exercendo-se claramente em dois níveis: no
nível da linguagem regional, cuidadosamente reproduzida, e no nível do
imaginário, que preside as histórias narradas. Chama atenção nesse trabalho de
recriação, o registro, observado na obra de Aureliano, de muitos espanholismos,
tais como, bichará, buenacho, cachicholo, chibarro, guasca, manotaço, gaudério,
piá, posteiro, pinguancha, trancucho, entre outros. E o glossário de cerca da
500 palavras, no final do livro, não deixa de ser sintomático: é a prova de que
Tito Carvalho tinha consciência da dificuldade que seus leitores, vivendo em
outra região, encontrariam diante de um linguajar do campo com variantes que não
eram praticadas na região.
Embora não haja um narrador como o velho e experiente Blau
Nunes dos contos de Simões Lopes, tão integrado à narrativa que o mundo começa a existir quando ele começa a falar14, também podem ser apontados nesses textos, os
motivos conhecidos da narrativa gauchesca, centrados, como se disse, na
exaltação da figura do gaúcho típico, bem como nas características fixadas no
imaginário popular: o amor à liberdade, a honradez, a coragem, a bravura
alardeada, a afeição pelo cavalo. Chama atenção um aspecto: a luta que sustenta
contra os que ameaçam a paz tem como inimigo os espanhóis, o que, por certo, não
teria respaldo na história da região. A propósito, convém lembrar que as
narrativas centradas no tipo humano da campanha quase nunca utilizam o termo
gaúcho. Isso já ocorrera no texto pioneiro de Apolinário Porto Alegre, tanto que
ele preferiu intitular seu romance de O Vaqueano; o mesmo se constata no romance
de Aureliano Pinto:15 a figura do gaúcho é
apenas sugerida, como uma espécie de modelo distante, contribuindo, por exemplo,
para construir a auto-imagem de homem poderoso que se faz visível nas ruas da
vila, montado garbosamente em seu cavalo. Já Tito Carvalho, além de tomar por
modelo o tipo humano idealizado da gauchesca, explicita a referência no
personagem do conto “Santa Luzia,” o que não deixa de ser uma representação
dialetal às avessas, pois, ao que consta, o termo gaúcho não é usual no falar da
região do planalto catarinense.16 Se a
representação simbólica que vincula à figura mítica do homem primitivo persiste
nos contos referidos à uma região situada muito além dos limites da campanha
sul-rio-grandense, é possível concluir que o modelo narrativo adotado pelo
escritor, ainda que com apoio nas vivências do escritor, foi responsável pela
permanência de elementos do imaginário do sul: a convenção literária superou,
assim, a força da mimesis.
Cabe destacar ainda que, Aureliano F. Pinto, mais próximo
do palco das ações do homem da campanha, ironicamente, não faz uso do vocábulo
gaúcho. Os “heróis” mencionados em seu romance, Dom Quixote e Napoleão, no
retiro da ilha de Elba, são símbolos da derrota, da perda de ideais, numa clara
alusão ao momento histórico em que escreve, quando o mundo do campo passava por
radicais transformações, a figura do gaúcho não seria mais que sombra do
passado.
Às narrativas examinadas pode-se aplicar a observação de
Ricardo Piglia a propósito de autores da gauchesca rio-platense: Un escritor
trabaja en el presente com los rastros de una tradición perdida.17 O trabalho do memorialista consistiria, pois, em
fixar essa tradição, sem deixar de pensar no sentido de seu ato. Aproximando a
produção de dois escritores, que, por razões diversas, ficaram um tanto à margem
do processo literário de seu tempo, é possível afirmar que com suas criações
eles não deixaram de comprovar que as obras literárias contribuem para a
dissolução dos limites criados pelos homens.
NOTAS
1
- Para Bakhtin, cronótopo, ou correlação do tempo e do espaço históricos e
reais, é indissociável do fenômeno literário. Cf. BAKTHIN, M.Questões de
Literatura e de Estética. 2ed São Paulo: Huicitec, 1990.
2 - DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão
freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2201.p.7-8
3
- Para Guilhermino César há apenas uma coincidência de temas, pois a literatura
que se constrói no Rio Grande do Sul afirma a herança portuguesa, não
apresentando em comum com a dos países vizinhos mais que essa coincidência de
temas e motivos. Cf. CESAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do
Sul. 2ed.Porto Alegre: Globo, p 30..
4 - Para o autor,
a regionalidade repousa sobre uma temática e um modus faciendi regionais,
entendido este último não como toda a maneira de se posicionar frente ao mundo
(o estilo de vida), mas como o conjunto que engloba a praxis e o ethos. Convém
lembrar que a argumentação de Pozenato segue outra direção, já que seu interesse
está voltado para as questões do regionalismo e sua repercussão no contexto
brasileiro. POZENATO, José Clemente. O regional e o universal na literatura
gaúcha. Porto Alegre: Movimento, 1974, p. 20 et sqq,
5
- Os “os cantos de monarquia” que se encontram nos Cancioneiros coletados por
Simões Lopes Neto e Augusto Meyer centravam-se na vida errante do homem
primitivo da região, que, como uma monarca altaneiro, percorria os campos
montados em seu cavalo. CESAR, G. Op. Cit. p. 48.
6 -
Cf. BORGES, Jorge Luís. El Martin Fierro. Buenos Aires: Emecê, 1979. p. 11.
7
- Sabe-se que as relações entre as literaturas podem se dar por circulação,
contato ou transmissão. Cf. CIONARESCU, A Principios de Literatura Comparada.
Barcelona: Universidad de la Laguna, 1961.
8 - Como
lembra Valdés, não se pode esquecer que, se tal situação tinha o mérito de
aproximar o que permanecia distante, ela trazia em si a contradição, pois seu
modo de atuar funcionava também como elemento desmembrador do sistema literário.
VALDÉS, Mario. Apresentação. In: POLAR, Cornejo. O Condor Voa. Belo Horizonte:
EDUFMG, 2000.
9 - PINTO, Aureliano de Figueiredo.
Memórias do Coronel Falcão. Porto Alegre: Movimento, 1973.
10 - CARVALHO, Tito. Vida Salobra e Bulhas d’Arroio.
Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura, 1975.
11 - Cf. TACCA, Oscar. As vozes do romance. Coimbra:
Almendina, 1983.
12 - O editor C. J. Appel refere esse fato, afirmando que
consultado sobre o procedimento, Aureliano preferiu não destacar os enunciados,
por pertencerem à língua da fronteira. Cf. Memórias do Coronel Falcão.
Apresentação, p 15.
13 - Este é o único ângulo da
produção do escritor que a crítica em geral registra, pois a coletânea de
crônicas de Gente do meu caminho publicadas semanalmente na imprensa, só foi
reunida recentemente em livro, numa co-edição da Fundação Catarinense de
Cultura: CARVALHO, Tito. Gente do Meu Caminho. Florianópolis: EDUFSC, 1998.
14 - POZENATO, J. Op,cit. p. 47.
15 - MEYER, Augusto. Gaúcho, história de uma palavras. In:
Prosa do Pagos. Porto Alegre: Globo, 1978.
16 - Se o
adjetivo gauderiando é usual, a designação de gaúcho para o homem que exerce as
atividades nas propriedades rurais não é comum entre os falantes dessas região.
Esta observação tem caráter empírico, pois se trata de testemunho de antigo
morador da região.
17 - PIGLIA, Ricardo. Memoria y
Tradición, In: Revista ABRALIC. Anais do 2 CONGRESSO ABRALIC. Belo Horizonte:
1991. v. 1.p 61 [topo da
página]
# Ilva Maria Boniatti - A
representação do regional na obra de José Clemente Pozenato
A Literatura
Comparada aponta para além das fronteiras de um país específico e para além dos
limites impostos pelas diferentes áreas do conhecimento. É nesse sentido que se
pode pensar na ampliação das perspectivas de abordagem das obras literárias, de
modo a perceber não só as diversas culturas nacionais, mas também as relações
que se estabelecem entre a Literatura e as demais esferas da atividade humana.
O projeto A Representação do Regional Na Obra De José
Clemente Pozenato propõe o estudo da diversificação regional. Através da
re-leitura pretende-se revisar alguns conceitos operatórios, ampliando-os
através da pesquisa bibliográfica. Nesse percurso, tem-se buscado pesquisar,
progressivamente, a questão da identidade e do nacional, com ênfase aos estudos
teóricos organizados por Raul Antello, em Identidade e representação ( 1994);
por Ana Luiza Andrade, em Leituras do Ciclo (1999); e ainda por Eneida Maria de
Souza e Wander de Mello Miranda, em Literatura Comparada – ensaios (1996) .
Também , nos Anais da ABRALIC, as questões da identidade e do nacional vem sendo
tratadas com consistência teórica, abrangendo e ampliando o conceito do
regional.
A obra literária de Pozenato é formada por livros de
poemas, ensaios culturais, novelas e romance, como se pode ler em sua
bibliografia. Para avançar na investigação, pretende-se examinar a
correspondência do escritor com outros escritores ou pessoas ligadas à vida
literária, as entrevistas que concedeu, as reportagens sobre vida e obra, além
da fortuna crítica.
A leitura crítica da obra de Pozenato corresponde, na
prática, aos entendimentos comparatistas de que os gêneros paraliterários
complementam o conjunto produtivo de um escritor, oferecendo dados importantes
para a pesquisa. Esta posição teórica contraria o entendimento disseminado pelos
textualistas e formalistas, para quem a biografia e a subjetividade do autor
deveriam ser desconsiderados nos estudos literários.
A partir dessa perspectiva, a Literatura Comparada se
constitui como um campo permanentemente aberto, em constante interação
interdisciplinar e interdiscursiva. Assim, se a intertextualidade surge, nos
estudos comparatistas, como uma exigência metodológica, ela se transforma, na
prática, no cotidiano construtor da pesquisa. O trabalho em desenvolvimento
serve-se, pois, da leitura intertextual para definir seu corpus de modo
contrastivo, aproximando textos literários e paraliterários e ressemantizando,
nessa trajetória, os conceitos de nacional e literário.
A metodologia proposta baseia-se, portanto, no
estabelecimento de relações intertextuais que permitem investigar
transformações, tensões e diálogos entre textos. Desse modo, vem sendo lidos
textos críticos de autores, como Antonio Candido, Roberto Schwartz, Silviano
Santiago, Beatriz Sarlo, Ángel Rama, Nestor Garcia Canclini, Antonio Cornejo
Pollar, Haroldo de Campos, Walter Mignolo, Homi Bhabha e outros, com vistas a
identificar a recepção das teorias. Especificamente, este projeto pretende
questionar o modo como os textos paraliterários, referentes à obra e à fortuna
crítica de José Clemente Pozenato (biografias, entrevistas, textos críticos,
roteiros para cinema e para mini-séries de TV, cartas e diários) dialogam com os
textos literários consagrados. Além disso, propõe-se também a examinar esse
encontro intertextual e sua contribuição para o entendimento teórico do nacional
e do literário. Assim, a pesquisa procura incorporar à análise textual a leitura
de gêneros paraliterários, como as biografias, os depoimentos, as entrevistas e
a correspondência entre escritores e artistas estudados. Tal incorporação
consiste no reconhecimento de que toda interpretação das práticas culturais tem
que levar em conta o envolvimento subjetivo, como também o espaço social em que
atuam os agentes culturais.
Uma pesquisa comparatista caracteriza-se pela investigação
bibliográfica e pelo exame dos conceitos teóricos que melhor correspondem às
necessidades operacionais e metodológicas exigidas pelo “corpus” examinado.
Nesse sentido, a pesquisa ora proposta toma como hipótese secundária o fato de
que os arquivos de um escritor fornecem documentos importantes para a releitura
de sua obra, uma vez que iluminam aspectos teóricos essenciais para a
valorização da diferença comum às culturas híbridas.
Além disso, outra hipótese secundária é a de que os gêneros
paraliterários possibilitam re-conceituar noções canonizadas, como a do nacional
e do literário. A datação e o deslocamento são válidos para a interpretação
contemporânea, uma vez que possibilitam interpretar um conjunto de obras à luz
das circunstâncias regionais de sua produção.
Este projeto, que vem mapeando e interpretando a obra de
Pozenato, situa-se na perspectiva de identificar a ação e o papel dos diversos
mediadores culturais como elementos de inter-relação comuns a universos
sócio-culturais distintos, nos processos de construção de valores e de avaliação
crítica.
Dentre as conclusões parciais deste projeto, encontra-se o
estabelecimento da relação entre o discurso da história e o discurso literário.
No contexto da região de Cima da Serra, o escritor José Clemente Pozenato dá voz
aos colonos italianos, fixando sua história e o percurso de adaptação cultural
na região colonial de Caxias do Sul. Suas obras de ficção ilustram a preocupação
em registrar para melhor compreender o doloroso processo de êxodo dos italianos
que deixam a miséria e a desesperança do Velho Mundo em busca de um paraíso de
bonança, riqueza e fartura: o país da Cuccagna.
BIBLIOGRAFIA DE
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Discutindo com Alfredo Bosi. [topo da
página]
# Lea Masina - Mediações de um
tema: A violência da voz nas literaturas de fronteira
O
que tenho diante dos olhos, impresso ou manuscrito, é apenas um pedaço do tempo,
coagulado no espaço da página ou do livro. Enfrento aí uma dificuldade dupla. De
um lado, o afastamento proveniente da historicidade de meus conceitos críticos e
de seus pressupostos, projetando sobre um objeto diferente minha própria
identidade cultural. De outro, minha ignorância (tratando-se de um texto sobre o
qual pesa o presumir-se uma oralidade) do modo de articulação do auditivo sobre
o visual numa civilização de forte dominância oral. Somente a prática permite,
se não resolver, ao menos esclarecer empiricamente essas contradições., Por
cruzamento de feixes de informações, por deslocamento de perspectiva e de
visada, a partir de um ponto de vista intuitivamente escolhido, esforçarmo-nos
para sugerir um acontecimento: o acontecimento-texto; “representar” o texto-em
ato, integrar essa representação no prazer que se sente na leitura.
(Paul Zumthor, A Letra e a Voz).
A etapa de trabalho que ora desenvolvo no projeto de
pesquisa “Influxos platinos na literatura brasileira”1 consiste em identificar as mediações da voz nas
literaturas de fronteira. Nessa perspectiva, busco resgatar a voz que se
manifesta de modo nem sempre claro e muitas vezes latente nos textos de
narradores gaúchos considerados pela crítica como regionalistas ou
neo-regionalistas.
A revisão do regionalismo gaúcho é, portanto, questão
decorrente dessa perspectiva crítica. Para apreender o registro literário das
falas locais foi preciso romper com as hierarquias entre os subsistemas
literários e comparar os diferentes falares, examinando as relações entre a
literatura oral e a escrita. Curiosamente, a grafia da fala das personagens foi
um dos principais argumentos de que se serviu a crítica modernista para
desvalorizar a literatura regionalista gaúcha considerando-a anacrônica e
reacionária. Segundo as tendências dominantes no Brasil nos anos setenta e
oitenta, a fala das personagens, grafada com suas diversidades fonéticas,
acentuava a distância entre o narrador culto e as personagens rudes e incultas,
evidenciando o afastamento eles, eis que o autor, ao contemplar de longe as suas
personagens, as reificava.2 Nesse mesmo sentido,
liam-se as descrições das paisagens campeiras como “manchas” que contaminavam o
texto, estratificando-o e transferindo para ele a imobilidade de uma visão de
mundo congelada no tempo. Assim, concluía-se que as literaturas regionalistas e
neo-regionalistas eram conservadoras e reacionárias por serem saudosistas de um
passado épico perdido e, também, por registrarem a fissura entre as vozes do
narrador e das personagens, com isso acentuando seus desníveis sociais e
culturais.
Não obstante o consenso da época, que considerava as
manifestações regionalistas no Rio Grande do Sul como sendo “velha praga” ou
“insidiosa presença”3, elas sobreviveram
mediadas por outras linguagens. Além de sua representação no discurso de
epígonos provincianos, tais manifestações podem ser lidas nos textos de artistas
plásticos, de escritores, músicos, teatrólogos e cineastas que retomam o filão
sob novas perspectivas. Assim, a permanência da temática regionalista pode ser
entendida como índice de diferenciação e de resistência à homogeneização ditada
pela cultura globalizada, o que se acentua na segunda metade do século XX. Nesse
sentido, é possível pensar as articulações possíveis entre intertextualidade e
retórica, eis que a distância cronológica com relação aos textos literários dos
primeiros regionalistas permite perceber com maior clareza as oposições
culturais que se configuram nos diferentes modos de dizer.
Por outro lado, além de confundir-se, hoje, com o conceito
amplo de literatura fronteiriça, o regionalismo está presente nos textos que
diferenciam as etnias formadoras o substrato cultural do Rio Grande do Sul. Ele
se acentua quando a nostalgia e o sofrimento de um sentir transitório
articula-se na linguagem. Embora não seja este o enfoque do meu trabalho,
refiro, como exemplo, a expressão dos imaginários das literaturas judaica,
alemã, portuguesa e outras, presentes no Rio Grande do Sul e também em outras
regiões culturais do Brasil e de outros países, que sugerem um mapeamento
temático e identitário para a produção literária em geral.. Muito mais do que
diversidades locais, o regionalismo, assim entendido, expressa tensões culturais
e processos de apropriação e transformação de bens simbólicos que representam um
nicho importante para os estudos comparatistas.
O exame da literatura de fronteiras permite supor que o
desejo de definir e preservar uma identidade local, objeto de inúmeros estudos
comparados e transdisciplinares, está presente na orquestração de múltiplas
vozes. A partir do século XIX, essa heterogenia foi o modo proposto pelo
escritor regionalista para dar conta da função social que a comunidade
discursiva do seu tempo atribuía à literatura. Cabe lembrar, a esse respeito, as
reflexões do crítico peruano Antonio Cornejo Polar com relação ao paradoxo
latino-americano decorrente do surgimento da modernidade num corpo social
historicamente atrasado: a voz dominante do escritor, comum nas narrativas
regionalistas e costumbristas brasileiras e platinas, está a apontar para la
simultaneidad contradictoria de dos tiempos diversos com sus racionalidaddes
diferenciadas, en la conciencia de un solo sujeto (um sujeito social constituído
pelos criollos independentistas)4. A busca da
harmonia vocálica, uma das facetas da modernidade, impôs ao escritor o dever de
falar como um sujeito social, ainda que, muitas vezes traído por ideologias de
classe. Assim, nos textos fundadores do regionalismo gaúcho, a correspondência
entre a intenção do escritor e o desejo de atender a um imperativo ético,
decorrente de seu papel na mediação de idéias e culturas, teve por conseqüência
o predomínio de sua voz sobre as demais. Convém lembrar que os escritores eram
provenientes da oligarquia sul-rio-grandense, tendo vivido na campanha e
residindo, depois, nas capitais do país. Do mesmo modo ocorreu no Uruguai e na
Argentina, onde o escritor era o jornalista, o homem de letras, o político, cuja
voz e liderança se alojavam no texto literário, entendido como espaço de
exposição e defesa da modernidade. Como já tive ocasião de desenvolver em
livro5, o escritor Alcides Maya exemplifica essa
tendência. No entanto, a conseqüente intenção propedêutica dessa expressão
literária virá a ser transformada, no Rio Grande do Sul, pela Geração Gaúcha de
306, representada por escritores que substituem
a voz dominante e patriarcal por outras, irmanadas e conjugadas em torno do
constructo teórico de povo. Cabe, aqui, lembrar as transformações sociais que
ocorrem no Brasil nos anos 30, muitas delas ligadas à ditadura de Getúlio Vargas
e ao aproveitamento das mitologias locais como elementos de propaganda
demagógica e propagação de idéias nacionalistas e populistas.
Por outro lado, uma visada ampla da literatura gaúcha
permite ver que o fronteiriço absorve o constructo teórico do regionalismo e o
transforma sob o influxo das culturas platinas. A identidade ibérica e as
analogias históricas e sociais entre o Brasil e os países do Prata tiveram por
conseqüência uma similitude de temas e motivos comuns às literaturas
rio-platenses e brasileira. Dentre esses, impõe-se a violência que, sob
diferentes formas, está presente na constituição dos imaginários dominantes.
Conforme divulguei em ensaio recente7, o
sofrimento que advém da condição de ser fronteiriço decorre da incerteza do
pertencimento, eis que o locus de enunciação do escritor situa-se entre
diferentes mundos. Operar a aproximação teórica dos conceitos de gauchesca e
regionalismo de fronteiras torna--se obrigatório porque as regiões fronteiriças
articulam a superposição e a inclusão de diferentes culturas, em permanente
tensão. Nas regiões de fronteira, a busca do entendimento da identidade passa,
necessariamente, pela indagação: quem são os “nós” e quem são os “outros” cujas
vozes promanam de um espaço em que se multiplica a heterogeneidade. Ao fazê-lo,
o texto literário transforma a língua, incorporando a oralidade à escritura.8
No Rio Grande do Sul, o “mal estar” do homem fronteiriço
está presente na obra de muitos escritores. Nascidos e criados em cidades da
fronteira, como Alegrete, Livramento, Quaraí, Uruguaiana, e emigrados para a
“cidade letrada”, para usar a expressão de Ángel Rama, suas obras trazem a marca
lingüística da diferença que se acentua se lida em sua polifonia e, portanto,
numa relação de intervocalidade, tal como concebeu o antropólogo e medievalista
francês Paul Zumthor. Para ele, nas mediações da “tradição” ocorre o domínio da
variante. A partir desse elemento, impõe-se a noção de “movência”, segundo a
qual pode-se ouvir uma rede vocal imensamente extensa e coesa (...) que seria o
murmúrio dos séculos; do mesmo modo, pode-se também ouvir, isolada, a própria
voz do intérprete9.
Na literatura sul-rio-grandense, o registro escrito de
expressões orais, ou os textos escritos com a intenção de preservar e
representar a oralidade, sugerem examinar a polifonia, recuperando a recepção
dos destinatários do texto, quaisquer que sejam as modalidades e o estilo de
performance que se manifesta exclusivamente pela voz10. Além disso, é preciso observar a margem de
liberdade deixada pelos textos à voz de cada um de seus intérpretes, eis que
contornos frouxos os limitam de modo imperfeito; fronteiras mal traçadas, muitas
vezes incompletas, unem-nos a outros textos mais do que os separam11.
As hipóteses traçadas por Zumthor, com relação à rede
mediadora das comunicações intervocálicas, sugerem novo entendimento com relação
à literatura sul-rio-grandense de fronteiras. Se a corrente intervocal repercute
literal e sensorialmente o eco de outros textos, podendo transformá-los, a voz
do narrador e a voz das personagens representam um conjunto social
diversificado, porém homogêneo e coerente em suas profundeza, eis que a poesia
engloba e representa todas as práticas simbólicas do grupo humano; aqui, convém
lembrar que alguns textos fundadores da literatura gaúcha, como o Martín Fierro,
de Hernández, o Tabaré, de Zorrilla de San Martín, e, ainda, textos registrados
e recolhidos em diversos cancioneiros regionais brasileiros, põem em circulação
uma rede de memórias compartilhadas. Além disso, se a intervocalidade atua ainda
com mais evidência quando os poetas em causa viveram no mesmo território, cabe
pensar que a relação entre os escritores fronteiriços obriga a contemplar o
aspecto performático. Nesse sentido, seu repertório temático renova-se sob os
influxos das analogias sociais e históricas, como representação dos imaginários
de culturas limítrofes.
Embora a performance passada não possa mais ser
reconstituída e, portanto, fuja à exatidão do intérprete, os estudos da
literatura de fronteiras devem considerar a “movência” dos textos e suas
transformações, eis que da palavra ao escrito, ou vive-versa, há uma
descontinuidade12. Além disso, a voz não tem
modelo mas, porque ocorreu, ela tem valor. Este identifica-se com a experiência
mediada, porque toda palavra pronunciada constitui, enquanto produto vocal, um
signo global e único, tão abolido quanto percebido.13 Então, se o texto literário é fruto de uma pulsão
psíquica que se articula em palavras, são estas o espaço de convergência de
sentimentos, visíveis, perceptíveis, recalcados que se transformam em imagens em
busca de representação. A pulsão, por sua vez, decorre de experiências e de
situações limites, arquivadas ou borradas na memória, que se atualizam para que
o escritor possa respirar. Na região das fronteiras gaúchas, a violência da lide
cotidiana, impressa no comportamento e nos procedimentos diários das estâncias e
das regiões que fazem a divisa entre os países meridionais da América do Sul,
potencializou-se nos imaginários das guerras e, principalmente, na indefinição
do espaço de pertencimento do sujeito. Entretanto, a mediação da violência, que
ocorre na voz, não se limita à diacronia dos acontecimentos. As guerras de
demarcação de fronteiras, as lutas entre oligarquias dos campos, os embates pela
dominância política das regiões, o caudilhismo, as charqueadas, as práticas
rudes, os cometimentos que amesquinham o homem ou que o vitimizam – seja ele o
índio charrua e guarani, o negro escravo, o criollo, ou o gaúcho brasileiro e
rioplatense - determinam um espaço fronteiriço e seus imaginários.
Nesse sentido, estudar a mediação da violência implica
examinar o processo de transformação das narrativas orais em textos escritos e o
desejo, subjacente a estes, de reproduzir a força original de vozes subjugadas
pelo tempo. Acredita-se, desse modo, que a mediação da voz para o texto
literário, embora transforme os significados, mitigando a violência primordial,
expõe as marcas dessa origem. Cumpre rasteá-las para contextualizar a voz que
grita, denuncia, argumenta ou silencia, eis que o texto literário possui
diferentes registros com os quais procura dar conta de compromissos éticos e
estéticos que o escritor mantém com o seu tempo.
Por outro lado, sabe-se que o “entre-lugar”, o
“fronteiriço”, o “híbrido” e constructos similares são conceitos teóricos já
bastante saturados por conotações diversas. Têm eles em comum o fato de se
fundamentarem os estudos comparados latino-americanos, representando a
contribuição teórica de críticos e pesquisadores cujo pensamento e cuja visão
convergem para a constatação do compromisso ético da América Latina com o
conhecimento e o respeito à diferença. As duas últimas décadas de estudos
comparados enfatizaram a importância das teorias pós-coloniais para o
entendimento e a reavaliação crítica da cultura latino-americana. Sem perder de
vista a importância da literatura, os estudos comparados estão, em sua maioria,
recuperando o contexto como condição indispensável para a avaliação crítica de
um processo cultural. Grupos de investigadores latino-americanos vêm-se reunindo
em congressos e eventos acadêmicos, patrocinados por centros de pesquisa
europeus, com a finalidade de operacionalizar projetos integrados que pesquisem,
dentre outras coisas, a cultura das fronteiras. O desejo de contribuir para a
compreensão desses processos estimula a escuta das vozes silenciadas pela
história; mas exige também a revisão do processo hermenêutico que, com
fundamentos epistemológicos datados, muitas vezes contribuiu para encerrar
debates ou dar por concluídas questões às quais o tempo veio a dar continuidade.
É o caso da tendência à expressão regional, que se metamorfoseia e amplia.. Essa
persistência do elemento regional pode ser entendida também como resposta à
“ameaça” da globalização e do cosmopolitismo decorrente da imigração de alemães,
italianos, judeus, poloneses e castelhanos. Esta outra face seria o desejo de
preservação de uma identidade aglutinadora gaúcha, o que explica o fato de os
imigrantes participarem ativamente de centros de tradição e cultura, que
funcionam como núcleos de transculturação.
O projeto que desenvolvo propõe ouvir outras vozes que,
fazendo eco aos lamentos de Martín Fierro, ocupam já por dois séculos as
fronteiras gaúchas. No seu percurso, tenho constatado que a violência da voz não
é, apenas, metáfora da exclusão social ou do cerceamento da expressão verbal. A
dominância de particularidades da voz, na leitura performática e, portanto,
sintonizada com o contexto de produção, permite a hipótese de que ela recobre a
dor de um corpo violado. Nele, destaca-se a profunda interação telúrica com o
espaço geográfico e com a natureza transgredida. E, muito mais do que um ardil
romântico, a interação dos sujeitos com seu objeto texto manifesta um desejo de
pertencimento e de identidade.
Atropelados pelo capitalismo que chegava ao Brasil e pelo
avanço do poder hegemônico regional, desaparecem as personagens que narraram as
primeiras histórias regionais. No entanto, seu registro mnemônico opera a
“tradicionalidade” não apenas como “assimilação do mesmo” mas como nova
articulação de arquivos. É preciso, pois, reler e aproximar esses arquivos e,
assim, recuperar a força performática das vozes de um tempo perdido que, ainda
hoje, insistem em se fazerem ouvir.
NOTAS
1
- O projeto integra o projeto coletivo Arquivos brasileiros, arquivos
argentinos: confluências, Linha de Pesquisa Memória e Representação Literária na
América Latina, coordenado pela Profa. Dra. Maria Antonieta Pereira, GT de
Literatura Comparada da ANPOLL.
2 - Os estudos de Ligia
Chiappini : Regionalismo e Modernismo (1978) e No entretanto dos tempos (1988)
constituem referência obrigatória quando se trata o Regionalismo Gaúcho. Neles a
autora estabelece uma tipologia da narrativa regionalista, aprofundando o estudo
da obra de Simões Lopes Neto.
3 - Essa opinião era
também partilhada por Ligia Chiappini e Walnice Nogueira Galvão, que
representaram um dos segmentos mais representativos e importantes da crítica
brasileira nos anos 70 e 80.
4
- POLAR, Antonio Cornejo. La literatura hispano-americana del siglo XIX. In:
STEPHAN, Beatriz Gonzales et all. Esplendores y miserias del siglo XIX: cultura
y sociedad en America Latina. Caracas: Monte Avila, 1995. 11-23. p. 19.
5 - MASINA, Léa. Alcides Maya, um Sátiro na Terrra do
Currupira . Porto Alegre: IEL/Unisinos, 1998.
6 - O
assunto é tratado em diferentes ensaios em: MASINA, Léa e APPEL, Myrna Bier. A
Geração Gaúcha de 30. Porto Alegre: EDURGS, 2000.
7
- Refiro-me ao artigo As exéquias da crueldade, cujo resumo apresentei no
encontro preparatório para o Congresso da ANPOLL ,realizado em outubro de 2001,
em Porto Alegre, e que foi pubicado pela Revista de Literatura Brasileira da
FAPA em 2001.
8 - A propósito: TORRES, Maria Inés de.
Los otros/los mismos: periferia y construcción de identidades nacionales en el
Río de La pLata. In: STEPHAN, Beatriz et all: 1995, p. 243-260.
9 - Para Menéndez Pidal, a “tradicionalidade, ou
“assimilação do mesmo”, procede da “ação contínua e interrupta das variantes”.
Combina (contrariamente à transmissão puramente escrita) reprodução e mudança: a
“movência” é criação contínua.. ZUMTHOR, 1993, p.145.
10 - Segundo Zumthor, a intervocalidade se desdobra
simultaneamente em três espaços: aquele em que cada discurso se define como o
lugar e transformação (mediante e numa palavra concreta) de enunciados vindos de
outra parte; o de uma audição, “hic et nunc”, regida por um código mais ou menos
rigorosamente formalizado, mas sempre, de algum modo, incompleto e entreaberto
ao imprevisível; enfim, o espaço interno ao texto, gerado pelas relações que aí
se amarram. Id. ibidem.
11 - ZUMTHOR, op. cit. p. 147.
12 - ZUMTHOR: 1993, p. 220.
13 -
Id. Ibidem.
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ZUMTHOR, Paul. Performance,
recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000. [topo da
página]
# Lyslei Nascimento - O corpo,
a tradição e o arquivo: Jorge Luis Borges e Moacyr Scliar
Segundo um
comentador medieval do Talmude, as quatro cores principais eram o vermelho, o
preto, o branco e o verde, as cores do pó do qual o homem foi criado: vermelho
do sangue, preto das entranhas, branco dos ossos e verde da pele
pálida.
Alberto Manguel
Não há arquivo
sem o espaço instituído de um lugar de impressão. Externo, diretamente no
suporte, atual ou virtual. Em que se transforma o arquivo quando ele se inscreve
diretamente no próprio corpo?
Jacques Derrida
No contexto contemporâneo, uma pseudo-expressiva democracia
parece estar cooptada por um poder de consumo e de exibição do corpo que se
apresenta, invariavelmente, quer no espaço público, quer no espaço privado, sob
a mira de poderosos refletores, empanado de maquiagens, travestimentos
espetaculares e performances de sentimentos e ações. Alheia a essa fascinação do
indivíduo pela imagem do corpo – próprio e alheio – nos chamados “shows de
realidade” – a crítica é, muitas vezes, falsamente tolerante às performances do
corpo que se exibe e se oferece ao olhar do outro como mercadoria prêt-à-porter,
alienada nos célebres minutos de fama de que já nos falava Andy Warhol.
Cada vez mais, o corpo é manipulado como suporte e objeto.
No afã do consumo, ele parece perder contornos e a especificidade do ser, do
indivíduo, comprometendo, assim, sua talvez ilusória corporeidade. Por isso, o
corpo é submetido à máscara, à encenação e a simulação. É claro que aqui não
estamos falando do teatro e da representação dramática, mas no simulacro de uma
realidade que se auto-apresenta como verídica e espontânea.
O corpo, dessa forma, é encenado numa tentativa de
virtualizar o que de humano ainda resta nesse tipo de representação. O braço
erguido, a partir dessa perspectiva, não é mais o braço e o tronco pode
oferecer-se como página, tela ou massa de modelar. A espetacularização do
objeto-corpo faz com que a leitura do corpo, antes confinada aos limites da
pele, migre para o domínio do obsceno, daquilo que está fora da cena,
paradoxalmente, para além do corpo.
A contrapelo da exibição narcísica e consumista do
corpo-objeto, alguns artistas se empenham na recuperação de uma memória do corpo
abrindo tensões, abalando pseudo-anatomias e reavaliando o conceito de corpo
diante de um mundo que perdeu, de uma certa forma, a memória do próprio corpo.
Os fragmentos dessa arqueologia dá-se através de traduções quase arcaicas do
passado. O corpo é, assim, resgatado do frio esquecimento do objeto, exumado do
arquivo morto da metáfora para, alucinado e delirante, propor um viés. O corpo
resgatado pode se apresentar, paradoxalmente, no instante fugaz dessa
recuperação, como um arquivo desmemoriado e amnésico, arquivo primitivo e
ancestral que ressurge no corpo, inscrito na pele, através de vestígios e
tatuagens: cicatrizes da memória.
No fabuloso livro dos seres imaginários2, numa espécie de manual de estranhos seres, uma
miscelânea incompleta, como o são todas as miscelâneas e todos os arquivos,
Jorge Luis Borges anuncia que é seu desejo que os curiosos que porventura
viessem a freqüentar aquelas páginas, pudessem, de alguma maneira, brincar com
as formas variáveis da sua escrita reveladora de um mundo que se apresenta, como
no nosso tempo, um caleidoscópio.
Borges dedica um dos seus verbetes ao Golem. A lendária
criatura da tradição judaica, cujo relato mais célebre é aquele construído pelo
Maharal de Praga, o Rabi Judá Leon, no século XIV. As informações contidas no
verbete expõem alguns detalhes de sua criação através da combinação de letras.
Essa possibilidade, que tanto provocou a alma investigativa dos cabalistas,
afiançava que no Livro ditado pela inteligência divina, as Sagradas Escrituras -
nada podia ser admitido como casual, nem sequer o número das palavras ou a ordem
dos signos. Assim, eles se dedicaram a contar, combinar e permutar as letras da
Escritura Sagrada, urgidos, afirma Borges, pela ânsia de penetrar nos arcanos do
Eterno e recriar o mundo.
Conta-se, na velha lenda judaica, que quando o gueto de
Praga estava sendo saqueado, as mulheres violadas e as crianças queimadas, o
rabino Judá Leon (1525 – 1609), moldou um corpo humano de argila. As assoprar
nas suas narinas, esse corpo, antes sem vida, começou a se mover. Então, o
rabino sussurrou no ouvido da criatura uma palavra mágica e escreveu na sua
testa (algumas versões dizem que a escrita foi na mão ou num pequeno pergaminho
que foi introduzido na boca do homem de barro) a palavra hebraica ‘met, que
significa verdade. Alguns relatos afirmam que a palavra escrita e assoprada pelo
rabino é o Nome perdido de D´us, o selo da verdade.
O Golem, depois de adquirir fôlego de vida, saiu do gueto e
atacou os agressores, massacrando-os. Há inúmeras variações, também, do que se
segue na narrativa. Uma afirma que o Golem, aspirando a ser homem, apaixona-se
pela filha do rabino e este, temeroso dessa união, decide destruí-lo; outra
assinala o caráter torpe do Golem quando o rabino, ao se esquecer de retirar o
selo do Golem, este, em frenesi, corre pelas vielas do gueto destruindo tudo que
havia a sua volta até que o selo, a palavra mágica, é quebrado e o corpo
orgânico do Golem se transforma em pó. Ainda em outra versão, o Golem é
destruído apagando-se da palavra/selo ‘emet, a letra inicial, o Aleph. Ao se
apagar o som aspirado do da primeira letra do alfabeto hebraico, o som vocálico
desaparece e ‘emet se torna met, que significa morto.
No corpo do Golem, as palavras e as coisas adquirem outras
significações. Elas recuperam os desígnios da vida e da morte, os registros
ancestrais da criação. O caráter de falibilidade e mortalidade da criatura,
porém, espelha as incompletudes tanto desse corpo criado pelas mãos e pelas
palavras do rabino, emulando a criação do homem por Deus, quanto da escrita. O
jogo com as letras e as palavras, com as combinações e os remanejamentos do
alfabeto, espelham, misteriosamente, a escrita de D´us ao criar o homem.
No poema de Borges, o caráter místico e sacralizado da
lenda é filigranado pelos jogos entre palavra e criação e entre criador e
criatura; pelo caráter reduplicador dos relatos, das imagens, dos temas e,
também, pelo acúmulo de classificações, listas, ordenações que estão sempre
assinalando a impossibilidade de um arquivo fechado, de um corpo fechado. O tom
de fábula que o poeta simula no poema confere um desdobramento mágico entre o
tempo da escrita e o tempo narrado em que Adão e as estrelas conheciam o Nome
misterioso e terrível de D´us.
A insinuação de uma dúvida poética, dizem os cabalistas,
referenda menos a citação do que a ela põe crédito. O pecado, dizem, rasurou o
nome poderoso, o verbo da criação, o Nome terrível. Dessa rasura resulta o
esquecimento de como pronunciá-lo. A inscrição e sua rasura provocam, pois, uma
perda: o esquecimento do Nome, o esquecimento do ato criador.
Através de procedimentos de busca do saber, os exercícios
narrativos, na esfera das práticas combinatórias, o artificioso, Rabi Leon, tal
qual um escritor quando se debruça no ofício de escrever, se deu a permutações
de letras e a complexas variações. Por esses exercícios cabalísticos, se
esforçava em descobrir o que julgava perdido entre as páginas da Escritura ¾ o
Nome que é a Chave. A construção do Golem ¾ esse corpo informe, amorfo ¾ no
poema de Borges, visa flagrar o homem em seu desejo de resolver o mistério e o
enigma do Universo e da criação a partir da escrita e do saber inscrito no
corpo. O rabino, por isso, tenta ensinar ao Golem as misteriosas configurações
das Letras, a concepção ilusória e convencional do que se pode chamar de Tempo e
a conformação do Espaço.
A transmissão desse saber se mostra infrutífera e
impossível. O Golem levantava as sonolentas pálpebras e nada entendia, perdido
em meio ao que para ele não passava de rumores. O espelhamento, tão peculiar aos
textos borgianos, dá-se, então, quando o Golem é encenado, tal como o homem,
aprisionado na rede sonora do Antes, do depois, do ontem, do agora, da direita,
da esquerda, do tu e do vós.
Esse rol complexo, que abarca quase todo o infinito de
especulações, pouco a pouco se reduz ao apelo, entre infantil e perverso, do
rabino que aponta para o pé e a corda, para os princípios primários do que é
próprio e do que é alheio. Como uma espécie de consciência do infinito saber e
da impossibilidade do homem que, em sua finitude, não pode abarcar tudo.
Borges, entre parênteses, chama a atenção do leitor para a
exata referência a Scholem e ao seu estudo sobre a Cabala junto à imprecisa
localização: em um douto lugar de seu volume. Essa tensão entre o exato e o que
se perde entre as páginas de um livro, considerado de referência, relativiza a
visão do leitor e o alerta para a dificuldade de se fixar qualquer saber, mesmo
que um corpo esteja sendo conclamado ao testemunho.
A tensão refletida na incapacidade do Golem (aqui em efeito
especular com o homem) para aprender o que há de mais simples encontra no texto
uma justificativa: talvez tenha havido um erro na grafia ou na articulação do
Nome Sagrado. Esse Nome perdido constitui-se como o mistério da criação do homem
e da escrita. Só se pode conceber esse tipo de arquivo da memória de forma
parcial, provisória, rasurada ou errada. A imperfeição determina falibilidade da
criação do rabino, mas, também, a possibilidade de multiplicação e de
resistência da narrativa ao repetir, infinitamente, o ato de recombinar,
reinscrever e recapitular a tradição.
A derradeira e irônica posição de Borges denuncia não só a
apropriação feita pelo escritor do arquivo judaico, mas também revela sua
prática de intervir e redimensionar as tradições. Um elemento estranho é assim
trançado à lenda dentro do poema: Algo anormal e tosco ocorreu ao Golem, já que
a seu passo o gato do rabino se escondia (esse gato não está em Scholem, mas,
através do tempo, eu o adivinho.).
O gato do rabino, inserido por Borges no texto, é um
elemento que compõe a cena enxuta da narrativa da lenda e agrega a ela esse
detalhe outro. A Borges não interessa somente repetir a lenda em forma poética,
mas entretecer nela novos e inusitados elementos que são dissimulados,
referenciais ou adulterados, como a referência a Scholem e a imprecisão das
citações, ou como o gato do rabino que, ao detectar algo que, subliminarmente
assombra o corpo do Golem, abre o texto poético para outras narrativas
possíveis. Cada um desses elementos interfere no texto da lenda (não há que se
dizer original, visto que ele próprio é volatilizado em um sem-número de versões
que filigranam o sentido de texto primeiro, original ou verdadeiro).
O rabino de Borges tem consciência que, embora falho, o seu
ato imperfeito de criação gerou mais um símbolo que, por sua vez, gera novos
efeitos e novas causas. A astúcia e a ironia de Borges brilham na pergunta final
do poema: Quem nos dirá as coisas que sentia Deus ao olhar para seu rabino em
Praga? Dessa forma, Borges também suplementa a lenda judaica na medida em que
oferece uma versão (seu gato), sua letra, sua inscrição.
Como uma caixa dentro da caixa, o Outro judaico em Praga,
nos tempos do Rabi Judá Leon, cria um Outro de si mesmo, o Golem, e sobre ele
inscreve a tradição, a língua hebraica, a fórmula cabalística. Arquivada no
corpo do Golem, essa palavra/verdade precisa ser controlada e, constantemente,
reavaliada. Num outro texto, o romance O centauro no jardim, de Moacyr Scliar, o
corpo – estranho e híbrido – também é suporte para a tradição que ali se
inscreve e se escreve, desta feita de forma incerta e amnésica.
A narrativa se inicia com uma falsa alegria e não sem um
certo alívio: somos, agora, iguais a todos. Já não chamamos a atenção de
ninguém. Passou a época em que éramos considerados esquisitos. Essa frase
inquietante de Guedali, um ex-centauro, assombra e, de uma certa forma, coloca o
leitor diante de um enigma: pode ser que, no fundo, todos, judeus e não-judeus,
sejam centauros, sacrificando peculiaridades, diferenças e características
individuais para serem aceitos por uma sociedade absolutamente hipócrita.
Guedali passara por uma série de cirurgias plásticas para perder sua aparência
de centauro. Seu corpo meio humano, meio cavalo é modelado de forma a exibir o
que se concebia como normal: a nova aparência normal esconde, no entanto, sob a
pele, a outra natureza. Para Regina Igel, “a incômoda situação é resolvida por
uma operação cirúrgica que vai eliminar as patas eqüinas, os cascos e o couro
cavalar dos dois. Sua condição fundamental é transformada em outra: em troca dos
galopes da liberdade, os passos miúdos da mediocridade” 3.
A história, no entanto, não começa ali naquele exótico
restaurante tunisiano, em Porto Alegre, onde ex-centauros se sentam para jantar,
mas numa pequena fazenda, no interior, no Distrito de Quatro Irmãos/RS. As
primeiras lembranças de Guedali são, como ele mesmo afirma, viscerais, arcaicas,
vagas e confusas:
Estou deitado sobre a mesa. Um bebê robusto, corado;
choramingando, agitando as mãozinhas – uma criança normal, da cintura para cima.
Da cintura para baixo, o pêlo de cavalo. As patas de cavalo. A cauda, ainda
ensopada de líquido amniótico, de cavalo. Da cintura para baixo, sou um cavalo.
Sou – meu pai nem sabe da existência deste substantivo – um centauro.
Os pais de Guedali eram judeus russos. Com pogroms ou não,
gostavam da aldeia onde viviam. Porém, uma invasão dos cossacos deixaram-na
cheia de cadáveres mutilados e as casas em ruínas fumegantes, diante disso,
resolvem aceitar a ajuda do Barão Hirsch que, em seu castelo, em Paris, acordava
no meio da noite, assustado, ouvindo o tropel das patas dos cavalos sob os
corpos dos judeus. A visão desses cavalos não o abandonava, então, arquiteta um
plano para salvá-los: com dois milhões de libras ele poderia trazer os judeus
para a América do Sul. Em seu sonho, afirma o narrador, via campos cultivados,
casas modestas, mas confortáveis, escolas agrícolas. Via crianças brincando nos
bosques... nunca, no entanto, o Barão poderia, em sua mais fantasiosa utopia,
imaginar que, nos bosques do Brasil, galoparia um menino centauro, um centauro
judeu.
O estranho menino cresce. É preciso crescer e se adaptar.
Também é preciso que o menino seja introduzido no judaísmo. O pai de Guedali é
homem de poucas luzes, porém descende de uma família de rabinos e ele sabe da
Lei. Ele confia no bom senso, no instinto; sabe interpretar as próprias reações
– o arrepio dos pêlos do braço, o bater do coração, o calor no rosto, tudo isto
lhe diz coisas. Às vezes, tem a impressão de que a voz de Deus lhe fala de
dentro, de um ponto situado entre o umbigo e a boca do estômago.
Por isso, é preciso circuncidar o menino. A família está
reunida na sala de jantar. O mohel cumprimenta a todos e pergunta pelo bebê. O
pai o tira do caixote e o coloca sobre a mesa:
Meu Deus, geme o mohel, deixando cair a bolsa e recuando.
Dá meia-volta, corre para a porta. Meu pai corre atrás dele, segura-o; não foge
mohel! Faz o que tem de ser feito! Mas é um cavalo, grita o mohel, tentando
soltar-se das mãos forte do meu pai. Não tenho obrigação de fazer a circuncisão
em cavalos. Não é cavalo, berra meu pai, é um menino defeituoso, um menino
judeu!
O mohel se aproxima, o pai afasta as patas traseiras do
menino e ali estão, frente a frente, o pênis e o mohel, o grande pênis e o
pequeno mohel, o pequeno e fascinado mohel. Cavalo ou não, há um prepúcio e ele
fará o que a Lei prescreve. Em poucos minutos, a coisa está feita e apesar de
tudo, a lei foi cumprida.
Algo da ordem do absolutamente fantástico jaz nessa
narrativa. O corpo monstruoso de Guedali, a sensação de diferença, de bizarria,
se incorpora ao seu modo de viver. Além de judeus, ele é um centauro. O estranho
e estrangeiro se justapõe dentro do estranho outro. Guedali é estranho para o
seus e para os outros, no entanto, a Lei precisa ser cumprida no corpo para que
a memória possa ser, mesmo que parcialmente, ativada. O Brit Milá (o pacto da
circuncisão) simboliza o sinal da Aliança de Deus com Abraão, com o povo judeu.
Essa Aliança implica o reconhecimento de D´us e de Sua palavra. Cada vez que um
recém-nascido é iniciado na Aliança, o povo de Israel é lembrado da
possibilidade de se alcançar a luminosidade espiritual perdida desde tempos
imemoriais.
O brit é uma marca de pertinência gravada e inscrita no
corpo e na alma judaica, um mandamento que vem sendo cumprido há cerca de 3700
anos com fidelidade quase absoluta. Apenas durante os 40 anos no deserto, após o
Êxodo, é preciso registrar, os judeus não observaram a circuncisão. O risco para
a vida dos hebreus, naquelas condições, teve primazia sobre a lei. Em muitos
outros momentos da história, apesar de perigos extremos, os judeus se mantiveram
fiéis ao Brit Milá. Durante o domínio grego na época de Chanuká, na Inquisição,
durante o Holocausto e nas prisões da Rússia stalinista, muitos arriscaram suas
vidas e as vidas de seus filhos por sua lealdade a essa Aliança. Mesmo as
famílias mais profundamente assimiladas, muitas vezes sem compreender porque,
mantêm o ritual como único elo com a tradição.
Dessa forma, a circuncisão, torna-se um arquivo inscrito no
corpo judaico. Perpetuado esse arquivo se desenha no corpo e o fere,
estabelecendo com a tradição uma marca permanente, uma cicatriz que sobrevive
para além do esquecimento. O corpo registra impassível sua condição de Outro,
testemunha, memória e arquivo da tradição.
Scliar, no entanto, exacerba esse contrato com a Divindade,
com a memória e os ritos de passagem onde o corpo é modificado e, apesar disso,
configura-se como um arquivo. A diferença essencial judaica é multimensionada no
corpo meio-homem, meio-cavalo de Guedali e em sua ânsia de ser um como os
outros. O centauro exibe, dentro da diferença, uma diferença crucial que é o
estranhamento de si mesmo. No espelho do mundo, o estranho precisa entrar na
norma para ser aceito. Desnorteando os sentidos, porém, a Lei é cumprida para
que a memória permaneça no corpo através de vestígios, marcas perdidas sobre a
pele.
NOTAS
1
- Cf. SELIGMAN-SILVA, Márcio. Do delicioso horror sublime ao abjeto e à
escritura do corpo. In: ANDRADE, Ana Luiza, ANTELO, Raul, CAMARGO, Maria Lúcia
de Barros. (Org.). Leituras do ciclo. Florianópolis: Grifos, 1999. p. 123-136.
2
- BORGES, Jorge Luis e GUERRERO, Margarita. O livro dos seres imaginários. Trad.
Carmem Vera Cirne Lima. Rio de Janeiro: Globo, 1985. p. 77.
3
- IGEL, Regina. Emigrantes judeus, escritores brasileiros. São Paulo:
Perspectiva, 1997. p.151. [topo da
página]
# Maria Antonieta Pereira - Entre-lugar e ex-tradição – as picadas do discurso
latino-americano
Em Tristes
trópicos, ao relatar suas impressões relativamente aos primeiros contatos com os
índios Nambiquara, Lévi-Strauss trabalha a partir de um título disseminador do
sentido. O título “Na linha” remete ao cabo telegráfico instalado pela expedição
Rondon ligando a capital federal, via Cuiabá, ao extremo norte do Brasil e,
simultaneamente, à picada aberta na floresta ao longo do trajeto dessa linha:
A pista sumariamente desmatada que acompanha [a linha
telegráfica] – a “picada” – fornece o único ponto de referência em setecentos
quilômetros (...) o desconhecido principia nas duas beiras da “picada”, supondo
que seu traçado seja ele próprio indistinguível da selva. É verdade que há o
fio; mas este, que perdeu a utilidade logo depois de instalado, está frouxo
entre os postes que não são substituídos quando desabam de podres, vítimas dos
cupins ou dos índios que confundem o zumbido característico de uma linha
telegráfica com o de uma colméia de abelhas selvagens trabalhando. Em certos
lugares, o fio se arrasta no chão; ou foi pendurado com displicência nos
arbustos próximos. Por mais espantoso que pareça, a linha aumenta, mais do que
desmente, a desolação do local. (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 256)
Na descrição de Lévi-Strauss, a picada na terra funciona
como uma réplica do fio suspenso no ar: intermitentes, inúteis e margeadas pelo
desconhecido, essas linhas se configuram mutuamente e seguem adiante, selva
adentro, evocando um desejo para sempre ali inscrito e o trabalho sobre-humano
de se tentar obter o tráfego das muitas vozes que então circulavam pelo
território nacional. Materializado também nos postes em ruínas, o duplo risco
desdobra-se num terceiro elemento, numa outra forma do mesmo fio que avança pelo
interior da floresta, passo a passo, poste a poste. Sendo madeira e ao mesmo
tempo distinguindo-se da floresta, os postes estão perfilados - como um exército
que se petrificou na fronteira entre civilização e barbárie - ou derrubados por
minúsculos cupins.
Contudo, o fato mais curioso dessa cena talvez seja a
leitura que dela fazem os índios, ao confundir seu zumbido com o som de abelhas
em febril atividade. Por evocar a possibilidade de obtenção de nutrientes, o
ruído do telégrafo provoca a ação destruidora da tribo que, ainda sendo coletora
de alimentos, já é forçada a conviver com as tecnologias da modernidade. Assim,
o que para a expedição Rondon foi um projeto de integração nacional, para os
índios significou uma possibilidade de nutrição frustrada, à medida que
constituiu uma simulação perfeita de colméia. Dessa forma, o sentido das vozes
registradas por Lévi-Strauss permanece “frouxo entre os postes” – pode ser
vítima de cupins, às vezes desaba de podre, ou se arrasta no chão e nos
arbustos, com displicência. Interpretado pelos Nambiquaras como algo que pode
ser comido, o som familiar é também o ruído de uma linguagem estrangeira, cuja
significação está suspensa entre selva, terra e céu.
Construído como um idioma sucinto e inteiramente destituído
de uma história natural, o código Morse foi feito para ser lido. Ao se
constituir como inscrição, ele reitera a ausência como um pressuposto de sua
própria fatura e, portanto, como elemento questionador do fonocentrismo.
Contudo, ao preservar certos vestígios da presença – operando com ruídos e
ritmos que recordam a phoné – o código Morse apresenta-se como uma linguagem tão
própria do Ocidente que chega a ser chamado de “alfabeto Morse”. E é justamente
nesse sentido que tem sua aparente universalidade ironizada pela audição
nambiquara. Perdido na mata virgem, o idioma tem seu sentido ocidental
corrompido e constitui-se como um jogo entre presença-ausência, no sentido
derridiano da expressão, tal como se encontra registrado em Gramatologia, quando
seu autor elabora, a partir de Lévi-Strauss, um sentido para “picada”:
(pista grosseira cujo “traçado” é quase “indiscernível do
mato”: seria preciso meditar conjuntamente a possibilidade da estrada e da
diferença como escritura, a história da escritura e a história da estrada, da
ruptura, da via rupta, da via rompida, varada, fracta, do espaço de
reversibilidade e de repetição traçado pela abertutra, pelo afastamento e
espaçamento violento da natureza, da floresta natural, selvagem, selvagem (...)
a via rupta escreve-se, discerne-se, inscreve-se violentamente como diferença,
como forma imposta na hylé, na floresta, na madeira como matéria; é difícil
imaginar que o acesso à possibilidade dos traçados viários não seja ao mesmo
tempo acesso à escritura). (DERRIDA, 1973. p. 133.Grifos do autor.)
Enquanto forma de ruptura da floresta, a picada funciona,
para Derrida, como uma evidência de escritura, como um risco que “põe em risco”
qualquer cultura: a ocidental, que a erigiu – fraturando o espaço contínuo da
selva – e a marginalizou - à medida que a transformou imediatamente em ruína -,
e a nambiquara, que a sonhou como um corredor por onde passava o zumbido do
alimento e, certamente, como uma diferença radical a violar a paisagem. Além
disso, a linha de Rondon mergulha ambas as culturas no paradoxo de criar, a
partir de rastros próprios - alimento ou telégrafo –, uma estranha referência,
sob a forma de uma inscrição cujo traçado é praticamente “indistinguível” da
selva. Enquanto pista, embora “grosseira”, a via rupta configura um guia e, ao
mesmo tempo, confunde-se com a natureza cuja selvageria cuida interromper. Nesse
caso, o traçado viário é um instrumento de orientação e perturbação: embora
configure a possibilidade de um marco seguro no labirinto verde, acaba por
comprometer tal distinção já que ele mesmo pouco se distingue desse espaço, que
é sempre igual para os não-índios. Portanto, a via fracta acaba por exercitar,
através do princípio de auto-semelhança, a inviabilidade de si mesma como marco
diferencial. Assim também, embora atue como índice de progresso, integração
nacional e modernidade, a picada já nasce como ruína, seja porque a selva volta
a ocupar o terreno de onde a expulsam, seja porque a tecnologia do telégrafo foi
considerada obsoleta, logo após ter sido instalada1. Portanto, enquanto “espaço de reversibilidade e de
repetição”, a estrada também pode ser lida como uma forma que permite ao
Ocidente repetir-se, mas revertendo-se. Por isso mesmo, pode-se perceber a
picada como o espaço em que a floresta começa a ser outra coisa, sem deixar de
ser floresta. Contudo, aquilo que constitui a diferença – a picada –
“inscreve-se violentamente” no continuum da selva. Cria-se, portanto, uma tensão
permanente entre pista e floresta, ambas em estado de agressão mútua. Enquanto
um indecidível, a escritura também configura a estrada por onde o sentido se
propõe como repetição e diferença, “como forma imposta na hylé” seja ela uma
selva-selva ou uma selva-civilização.
Segundo Evando Nascimento, a relação entre as duas linhas,
proposta por Derrida, configura
uma boa ilustração do devir-signo da natureza (abertura do
caminho como inscrição do rastro), e do devir-natureza do signo (uma vez
inscrito, torna-se a marca própria e essencial de uma cultura). Nem propriamente
selvagem, nem propriamente civilizado, o signo é a coisa que se inscreve, rastro
escrito de um aparelho nem finito, nem infinito, indecidível. (NASCIMENTO, 1999.
p. 186. Grifos do autor)
A natureza indecidível do signo está presente não apenas
nos resultados inegáveis de intervenções concretas da cultura – como um caminho
artificial - mas sempre que algo signifique algo para alguém, ou seja, em toda
circunstância em que circule um sujeito capaz de construir processos simbólicos.
Sendo assim, a própria natureza configura-se como signo que, sofrendo a
inscrição da picada, exacerba sua sujeição à potência do rastro. Noutras
palavras, enquanto devir do próprio signo, a natureza também funciona como um
rastro cuja virtualidade é desencadeada pela atuação de processos simbólicos e,
por isso mesmo, ela também se constitui como um indecidível, “nem propriamente
selvagem, nem propriamente civilizad[a]”. Como sombra uma da outra, natureza e
picada coexistem, estranham-se e mantêm-se na fronteira do sentido, sob um olhar
que lhes atribui significação.
Frouxa no ar e semi-apagada na terra, a inscrição realizada
pelo cabo telegráfico e pela picada constrói um sentido, ainda que ele permaneça
no campo do indecidível, apresentando-se, portanto, como rastro, razão pela qual
também se constitui como uma referência na vasta região selvagem. Contudo,
trata-se de uma referência precária à medida que, além de ser o único marco
possível para níveis não-índios de saber, também não garante a observância de
determinados elementos do ritual do conhecimento do mundo ocidental, tais como
universalidade, previsibilidade, logicidade. Condenada ao silêncio, à
inatividade, ao desaparecimento e incapaz de expandir para seu entorno suas
propriedades modernizadoras, a linha mostra-se incompatível com a selva e a
civilização, e “aumenta, mais do que desmente, a desolação do local”. Apesar
disso, ela constitui a única referência num raio de setecentos quilômetros, numa
região do tamanho da França, e que recorda a estranheza da Lua (quando a Lua
ainda não tinha sido pisado por astronautas).
Embora a picada constitua um ponto geográfico estável, em
termos culturais ela se move e, assim, torna-se um instrumento compósito, um
conceito-metáfora capaz de auxiliar na leitura do lugar e da função da crítica
latino-americana contemporânea2. Nesse caso,
seria interessante retomarmos uma produção sobre a qual já nos debruçamos
inúmeras vezes e que nos parece ainda merecedora de várias abordagens, à medida
que vem configurando, ao longo de anos, um pensamento crítico capaz de permitir
a leitura da América Latina não mais como espaço geográfico, mas como região
cultural. Sendo assim, consideramos que o trabalho ensaístico de Ricardo Piglia
e Silviano Santiago extrapola o campo específico da crítica literária e propõe
novas formas de localização desse texto, as quais, freqüentemente, constituem
justamente processos de des-localização da memória, com o intuito explícito de
promover novas formas de resistência cultural. Ambos os autores redimensionam,
portanto, o locus de enunciação latino-americano, seja quando o liberam do
grande peso da dívida em relação aos centros europeus, seja quando o situam num
contexto mundial, relativizando seu valor como espaço de uma identidade fixa.
Mais uma vez, remetemos aos conceitos de memória, tradição
e exílio, propostos por Ricardo Piglia, em 1990, quando ele já afirmava que o
escritor
é como o rastreador do Facundo, busca na terra o rastro
perdido, encontra o rumo nas pegadas confusas que ficaram na planura. (...) Um
escritor trabalha no presente com os rastros de uma tradição perdida.
Um escritor trabalha com a ex-tradição. Por um lado o que
foi, a história anterior, quase esquecida e por outro lado a obrigação
semijurídica (...) de ser levado à fronteira. Ou trazido a ela: sempre pela
força. A extradição supõe uma relação forçada com um país estrangeiro. (PIGLIA,
1990. p. 61)
Poucas vezes um autor demonstrou tanta clareza sobre a
situação da literatura na América Latina. Ao mesmo tempo em que ele pensa o
lugar do texto nacional - cujas especificidades estão ligadas à História do
país, à tradição que se desenvolveu dentro de certas fronteiras geográficas,
lingüísticas e culturais - também pensa seus atributos como formas de desterro
e, portanto, de criação de um espaço não-nacional. Ao trabalhar com uma memória
cujos rastros fragmentados potencializam uma nova produção, o escritor explora
as fronteiras da tradição nacional, em seus muitos sentidos – como algo que já
se concluiu, que muitas vezes se transformou em paradigma e, justamente por
isso, remete ao que lhe é exterior, serve como medida de avaliação do que o
excede. Nesse caso, o conceito de fronteira coloca em operação a simultaneidade
do dentro/fora: a fronteira propõe-se, então, não mais como um continente do
conteúdo fixo da identidade, mas como obstáculo a ser ultrapassado. Ela mesma se
encarrega de municiar o escritor com a dinâmica da memória seja ressaltando a
existência virtual do passado, seja operando por falhas e panes que instigam a
investigação ou mostrando as possibilidades de reconstrução das cenas, através
do rearranjo das ruínas. Confundido com a fronteira, o passado convoca aqueles
que o evocam, no sentido em que Borges já definiu os precursores de Kafka.
A dinâmica da ex-tradição não se desenvolve, segundo
Piglia, senão pela força, pela relação forçada com um país estrangeiro. No
entanto, nem sempre podemos pensar o país estrangeiro como um território fora da
geografia nacional. Especialmente em tempos de globalização, os limites entre os
países não se prendem apenas à superfície terrestre, mas às fronteiras culturais
e às relações entre regional, local e global. Megacidades como New York, São
Paulo, Buenos Aires e Tókio funcionam como centros urbanos cuja pulsação pode
ser sentida em espaços muitos distantes de suas fronteiras geográficas, em outro
hemisfério, do outro lado do mundo. Certas culturas, ao liderarem a revolução
tecnológica da atualidade, irradiam seu poder para além do próprio planeta e vão
riscando, no vasto espaço sideral, uma escritura orbital e incessante, que atua
como o relato de fundação de um tempo que não pode ser medido pelas convenções
da Terra, de uma consciência espacial não-geográfica (do grego “ge” = Terra).
Nesse contexto, a tradição literária sofre o impacto de novas linguagens e
tematiza seu próprio drama: entendida como um bem simbólico da nação, seu
discurso, todavia, não pode mais corresponder ao modelo de nação do século XIX,
em cuja base havia conceitos excludentes – origem, raça, língua, território – os
quais revigoraram velhas formas de escravidão sob a novidade do colonialismo. No
mundo contemporâneo, o estrangeiro está dentro da nação, através de telas,
linhas e antenas que garantem a comunicação em tempo real entre quaisquer partes
do planeta. No caso do Brasil, desde sempre, a forte mesclagem étnico-cultural
construiu a nação a partir de uma verdadeira guerra de linguagens, em que a
categoria estrangeiro alojou-se dentro do próprio conceito de nacional.
De qualquer forma, o rastro perdido no pampa argentino
equivale à picada na floresta brasileira. Em ambos os espaços, a nação encontra
obstáculos para se realizar enquanto projeto de modernidade e progresso. Na
vastidão desses desertos verdes, os interesses nacionais gaguejam e zumbem, à
procura de modelos próprios. Estrangeiras a si mesmas e tardiamente modernas, as
vozes exiladas da tradição correm o incessante risco de romperem as fronteiras
próprias e alheias, realizando-se como objetos compósitos, híbridos. Como um
rastreador, o escritor coleta os restos confusos de um passado onde sempre
ressoaram várias línguas, construindo sua recordação a partir de ausências,
falhas, traduções e citações. Essa “relação forçada com um país estrangeiro” –
que é seu próprio país – transforma o escritor naquele que preserva a tradição
do outro. A tradição européia que, hegemonicamente, conformou as literaturas da
América Latina sobrevive, entre nós, graças à releitura que dela faz a memória
cultural do continente. Sendo assim, ao rastreador latino-americano é atribuída
a função simbólica de criticar/transformar/conservar a memória do colonizador.
Ao desempenhar sua função, ele o faz em conflito permanente consigo mesmo e com
as culturas afro-ameríndias, cujas memórias também requisitam sua atenção de
forma eloqüente, com a força do que está obstruído e deseja escapar do recalque.
Erigindo-se como uma picada na mata, o pensamento crítico
de Silviano Santiago também se orienta por meio de referências móveis.
Comentando Keith Jarret no Blue Note, (SANTIAGO, 1996)3 o escritor mostra como seus contos não são apenas
uma homenagem ao pianista, mas principalmente uma apropriação do critério de
improvisação do jazz. Para Silviano, desde a paródia da modernidade até o
pastiche da pós-modernidade, os autores têm desenvolvido propositadamente um
texto de segunda mão, fato que os leva ao paradoxo de exercitar a criação
enquanto citação. Em seu caso particular, o autor opta por elaborar um texto sem
transparência e, ao invés de citar um trecho de outra obra, ele prefere citar o
próprio estilo de seu autor. Essa proposta estética, inaugurada no romance Em
liberdade (SANTIAGO, 1981) também pode ser pensada a partir da teoria do
hipertexto, especialmente no que diz respeito ao sexto princípio elaborado por
Pierre Lévy, o da mobilidade dos centros (LÉVY, 1993, p.26).
Na paródia, os textos estabelecem uma relação dual,
previsível e hierárquica, em que o texto parodiado permanece visível no texto
que o parodia e, assim, conserva seu lugar de texto primeiro. No pastiche, não
mais se encontram relações entre textos, mas entre estilos de se fazer textos.
Quando Silviano Santiago escreve seu romance, ele não está simplesmente
escolhendo um texto de Graciliano Ramos para como ele dialogar: Memórias do
cárcere funciona como o elemento deflagrador do processo de escritura e não como
seu centro. Na verdade, Santiago efetiva o mesmo modelo textual que está
presente em A cidade ausente (PIGLIA, 1993). Tanto o escritor brasileiro quanto
o argentino elaboram um projeto ficcional que libera seus precursores do
sofrimento causado pelas memórias do cárcere ou pelas recordações da mulher
amada e perdida. Os estilos de Graciliano Ramos e Macedonio Fernández, dessa
forma, permanecem em pauta à medida que interferem na fatura do texto
contemporâneo.
Numa relação mais arriscada e complexa, contudo em
liberdade, Silviano Santiago toma para si o estilo alheio e assume, ao mesmo
tempo, dois papéis autorais. Nesse sentido, ele precisa recuperar uma memória
cultural e nacional, que lhe vem por meio da memória de Ramos, por ele
apropriada. Contudo, ao pretender resgatar uma memória pessoal e escritural que,
rigorosamente, está sendo reinventada, Silviano Santiago constrói um labirinto
mnemônico – mescla seu próprio recordar ao recordar de Graciliano Ramos que, por
sua vez, em sua condição fantasmagórica de personagem, evoca o estilo de Cláudio
Manuel da Costa. À medida que essa cadeia narrativa também constitui um memento
à morte de Vladimir Herzog, uma curiosa memória do presente insinua-se no âmbito
das recordações e serve para atualizar situações narrativas de outros tempos.
Assim, ao leitor de Em liberdade não é dado acesso direto a
nenhum texto de quaisquer dos autores tematizados no romance. A proposta
escritural de que participa convoca-o a ler estilos de texto: junto com
escritores pertencentes ao cânone brasileiro, ele desenvolve uma reflexão sobre
esse mesmo cânone, dessa forma considerado assim não como uma forma engessada da
literatura, mas como a própria tradição nacional – a ex-tradição proposta por
Piglia. Essa forma de contar estórias desenvolve-se criando uma espécie de
vertigem narrativa: desloca o texto literário do centro das operações
lingüísticas, mas preserva-o como elemento relacional, que permite a costura
entre redes de significação disseminadas no tempo, no espaço, nos indivíduos,
nos estilos. Portanto, se nesse processo o literário não funciona mais como
referência privilegiada, por outro lado, ele permanece como o meio que permite a
interação entre as memórias evocadas – ele sai do centro, mas não sai da roda.
Pelo contrário, ele faz a roda rodar. Ao azeitar a junção de textos – da cultura
e da memória - até então desconexos, a literatura permite a emergência de outro
jeito de narrar, liberando o sentido para que se componham novas trajetórias
discursivas. Nesse rumo, a dinâmica da literatura, sempre des-centradora na
perspectiva derridiana, encontra na metáfora do hipertexto uma forma nova de se
realizar: seus diversos centros
são como pontas luminosas perpetuamente móveis, saltando de
um nó a outro, trazendo ao redor de si uma ramificação infinita de pequenas
raízes, de rizomas, finas linhas brancas esboçando por um instante um mapa
qualquer com detalhes delicados, e depois correndo para desenhar mais à frente
outras paisagens do sentido. (LÉVY, 1993. p. 26)
Pensar o texto literário como um hipertexto só é possível
porque essa metáfora se afirma num contexto pós-estruturalista, em que as
considerações de Lévi-Strauss já foram suficientemente debatidas, criticadas e
relidas pelo pensamento crítico ocidental. Nesse espaço, em que se percebeu que
o civilizado/moderno pode ser selvagem e vice-versa, a América Latina parece ter
iniciado um processo de liberação de sua memória, assumindo sua hibridez como
instância de alta produtividade crítica e literária. O trabalho
ensaístico-ficcional de Piglia e Santiago contribui, assim, para liberar a
memória latino-americana de sua tradição de penúria intelectual e dependência
cultural - para que ingresse em outro estado, em que o rastro perdido no pampa
ou a picada na selva signifiquem o enfrentamento produtivo de uma ex-tradição.
NOTAS
1
- Logo que Rondon terminou, por volta de 1922, a instalação da linha
telegráfica, esse sistema de comunicação foi superado pela radiotelegrafia. Cf.
LÉVI-STRAUSS, op. cit. p. 246.
2
- No Brasil, a produtividade crítica da picada vem desde o Romantismo. Na “Carta
ao Dr. Jaguaribe”, quando justifica alguns procedimentos usados na construção de
Iracema, José de Alencar refere-se a ela para explicar o conceito de piguara ou
“senhor do caminho”: “O caminho no estado selvagem não existe; não é coisa de
saber; faz-se na ocasião da marcha através da floresta ou do campo, e em certa
direção; aquele que o tem e o dá é realmente senhor do caminho.” (ALENCAR, 1988.
p. 90).
3
- Diálogo desenvolvido entre Silviano Santiago, professora e alunos da
disciplina “Seminário de literatura e outras artes”, em 10/02/2000
(PósLit/FALE/UFMG).
Bibliografia
DERRIDA, Jacques.
Gramatologia. Trad. M. Schnaiderman, R. J. Ribeiro. São Paulo: Perspectiva,
1973.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Trad. R.
F. D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência – o futuro do
pensamento na era da informática. Trad. C. I. Da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1993.
NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura –
“notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. Niterói: EdUFF,
1999.
PIGLIA, Ricardo. Memoria y tradición. Anais 2O.
Congresso ABRALIC. v.1. Belo Horizonte, ago. 1990.
PIGLIA, Ricardo. A Cidade Ausente. Trad. Sérgio Molina. São
Paulo: Iluminuras, 1993.
SANTIAGO, Silviano. Em
Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
SANTIAGO,
Silviano. Stella Manhattan. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
SANTIAGO, Silviano. Keith Jarret no Blue Note – improvisos
de jazz. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
SANTIAGO,
Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. [topo da
página]
# Maria Luiza Berwanger da Silva - Paisagens poéticas compartilhadas em tristes trópicos de
Claude Lévi-Strauss
Em Tristes
Trópicos, a constante alternância entre descrição do real e produção de
escritura sintetiza de modo exemplar o curso da pesquisa intitulada Paisagens
Poéticas Compartilhadas: o olhar do estrangeiro (no caso o do Prof. Claude
Lévi-Strauss que aportara no Brasil para cumprir missão na Universidade de São
Paulo), tanto grava o desenho de um território mesclado, figurando o horizonte
fugidio, quanto inscreve, na página, o sujeito como estrutura dissipativa, mas
diversa e múltipla.
Deslocamento, relocalização e ressignificação, eis, em
síntese, as modulações do trânsito que Claude Lévi-Strauss efetiva do etnógrafo
inconformado ao escritor confesso que busca captar, decifrando, o visto e o
sentido. "Interpretar horizontes"1, diz o autor
de Tristes Trópicos, conferindo legitimidade à sua prática de escritura que
percebe, superpõe e dissemina o produto, híbrido, de um olhar que confunde,
involuntariamente, Próximo e Longínquo, Mesmo e Outro, Uno e Diverso. Como se,
ao redesenhar a paisagem poética, fragmentado, o sujeito articulasse, ao mesmo
tempo, esse exercício do recartografar o "clavier des sensations" e
ressimbolização do próprio "eu". Dito de outro modo: como se tornado imemorial
pela filtragem de presenças estrangeiras, o sujeito se desdobrasse em agente de
sedução e em objeto seduzido, compondo e recompondo a singularidade da paisagem
poética que é, pois, pelo menos dupla: paisagem com figuras (a das comunidades
indígenas descritas ) e paisagem sem figuras, itinerário poético demarcado pela
surpresa de assistir à subversão da voz cujo vigor e certeza da magia
encantatória dissolvem-nas o enigma dos trópicos:
"Assim como o indivíduo não está sozinho no grupo e cada
sociedade não está sozinha entre as outras, o homem não está só no universo.
Quando o arco-íris das culturas humanas tiver terminado de se abismar no vazio
aberto por nossa fúria; enquanto estivermos aqui e existir um mundo, esse arco
tênue que nos liga ao inacessível permanecerá, mostrando o caminho contrário ao
de nossa escravidão, e cuja contemplação proporciona ao homem, ainda que este
não o percorra, o único favor que ele possa merecer: suspender a marcha, conter
o impulso que o obriga a tapar, uma após outra, as rachaduras abertas no muro da
necessidade e a concluir a sua obra ao mesmo tempo em que fecha a sua prisão;
esse favor que toda sociedade ambiciona, quaisquer que sejam as suas crenças, o
seu regime político e o seu nível de civilização; no qual ela coloca o seu
lazer, o seu prazer, o seu repouso e a sua liberdade; oportunidade, vital para a
vida, de se desprender, e que consiste – adeus, selvagens!, adeus, viagens! –,
durante os curtos intervalos em que nossa espécie tolera interromper seu labor
de colméia, em captar a essência do que ela foi e continua a ser, aquém do
pensamento e além da sociedade: na contemplação de um mineral mais bonito do que
todas as nossas obras; no perfume, mais precioso do que os nossos livros,
aspirados na corola de um lírio; ou no piscar de olhos cheio de paciência, de
serenidade e de perdão recíproco, que um entendimento involuntário permite por
vezes trocar com um gato"2.
Neste sentido, Tristes Trópicos estampam o percurso seguido
no projeto Paisagens Poéticas Compartilhadas, com base na reflexão do crítico
francês Michel Collot, voz que responde à indagação teórico-crítica de Gérard
Genette em Figures I, II, III e IV, vozes cuja intersecção converge na
visualização dos estudos da paisagem como imagem transtextual e
interdisciplinar. Modela esse olhar convergente o acréscimo da "pensée paysage"
de Collot (2001) *, no rastro dos pressupostos de Merleau-Ponty em,
principalmente, Phénoménologie de la Perception, aproximadas a perspectivas
colhidas da geografia e da psicanálise, a que se cruzam obras recentes de G.
Genette, focalizando o literário como artístico e cultural: L'Oeuvre d'Art
(Immanence et transcendance) (GENETTE, 1994) e La Relation Esthétique (GENETTE,
1997), sintetizadas exemplarmente em Figures IV (GENETTE, 1999), como noção
"barthésienne d'aventure sémiologique", uma aventura que, como ele próprio o
diz, "n'est pas terminée"3. Por sua vez, tal indagação teórico-crítica já se
encontra em Regarder, Écouter, Lire de Claude
Lévi-Strauss (1993), ensaio que revisa e reescreve, de
outro modo, o projeto poético de Tristes Trópicos. Se nessa obra, bem anterior,
mas não menos lúcida, o prazer da transgressão consiste em superar a pesquisa
etnográfica por uma certa reescritura do real, em Regarder, Écouter, Lire (1993)
o acento na poética das relações lega aos estudos da Paisagem essa postura que
revitaliza o simbolismo da distância e o da fábula do lugar pelo suave convívio
com a Alteridade:
"Ces correspondances baudelairiennes ne relèvent pas
d'abord de la sensibilité. Leus retentissement sur les sens dépend d'une
opération intellectuelle (méconnue par Diderot dans sa théorie des
hiéroglyphes): 'Ce n'est pas à l'oreille proprement que l'on peint en musique ce
qui frappe les yeux: c'est à l'esprit qui, placé entre ces deux sens, compare et
combine leurs sensations", et qui saisit des rapports invariants entre eux.
Ces rapports n'ont pas besoin qu'on leur cherche un
contenu: ce sont des formes: 'Un ordre diatonique des notes qui descendent, ne
peint pas plus la chute des frimats [sic], que la chute de tout autre chose'.
Un
musicien veut-il évoquer le lever du jour? il peint 'non pas le jour et la nuit,
mais un contraste seulement, et un contraste quelconque: le premier que l'on
voudra imaginer, sera tout aussi bien exprimé par la même musique, que celui de
la lumière et des ombres'. Les termes ne valent pas par eux-mêmes; seules
importent les relations"4.
Acrescente-se a essa intertextualidade crítica a produção
de George Steiner em cujo fundo da perspectiva crítica ocultam-se transparências
de Maurice Blanchot, definitivas para a articulação do eixo
Literatura/Espaço/Alteridade, intermediado pelo sentimento da paisagem. Desse
modo, a afirmação de Steiner em Réelles Présences,
"Toutes les représentations, jusqu'aux plus abstraites,
impliquent un rendez-vous d'intelligibilité, ou du moins, une atténuation de
l'étrangeté, par l'observation d'une forme délibérée. L'appréhension (a
rencontre avec l'autre) signifie à la fois peur et perception. Le continuum
entre ces deux éléments, la modulation de l'un à l'autre sont à la source de la
poésie et des arts"5.
corresponde à de Blanchot em Le Pas au-delà (1973), quando
diz:
"Évoquons l'obscur combat entre langage et présence,
toujours perdu par l'un et par l'autre, mais gagné sons faute par la présence,
même que ce ne voit que présence du langage"6.
Esse conjunto de vozes imbricadas demarcam o caminho a ser
seguido e que busca dar continuidade ao projeto Paisagens Poéticas
Compartilhadas, com base na dupla atividade do sujeito como aquele que tece e
que se deixa tecer pelas memórias da paisagem, na transparência das figuras do
Outro. Sob esse prisma, Tristes Trópicos concorrem para a construção de uma
paisagem singular: matriz de confluência poética, pictural e musical a oscilar
entre presença e ausência e vice-versa, cedendo espaço à reinvenção.
No fragmento final, o diálogo com o gato, lembrança
baudelairiana – "Amis de la science et de la volupté"7 –, favorece a passagem do poético ao espaço musical
centrado em Chopin:
"Por que Chopin, a quem minhas preferências não me
conduziam especialmente? Criado no cunho wagneriano, eu descobrira Debussy em
data bem recente, inclusive depois que as Núpcias, ouvidas na segunda ou
terceira apresentação, tinham me revelado em Stravinski um mundo que me parecia
mais real e mais sólido do que os cerrados do Brasil central, fazendo desmoronar
meu universo musical anterior. Mas no momento em que saí da França, era Peléias
que me fornecia o alimento espiritual de que eu necessitava; então, por que
Chopin e sua obra mais banal impunham-se a mim no sertão? Mais ocupado em
resolver esse problema do que em me dedicar às observações que me teriam
justificado, eu dizia a mim mesmo que o progresso que consiste em passar de
Chopin a Debussy talvez seja amplificado quando ocorre no sentido contrário. As
delícias que me faziam preferir Debussy, agora eu as saboreava em Chopin, mas de
um modo implícito, ainda incerto, e tão discreto que eu não as percebera no
início e fora direto para a sua manifestação mais ostensiva. Realizava um duplo
progresso: ao aprofundar a obra do compositor mais antigo, eu lhe reconhecia
belezas destinadas a permanecerem ocultas para quem não tivesse, primeiro,
conhecido Debussy. Eu gostava de Chopin por excesso, e não por escassez, como é
o caso de quem nele parou sua evolução musical. Por outro lado, para favorecer
dentro de mim o surgimento de certas emoções, já não precisava da excitação
completa: o sinal, a alusão, a premonição de certas formas bastavam"8.
Desse modo, a Alteridade aqui traduzida pela passagem
musical representa-se como agente ou elemento de intermediação que, ao
ressimbolizar o sujeito, dilui a frase inaugural ("Odeio as viagens e os
exploradores"), substituindo-a pela arqueologia da memória, resíduos da
lembrança que a fisionomia do eterno viajante sulca no etnógrafo inconformado:
"É assim que me identifico viajante, arqueólogo do espaço, procurando em vão
reconstituir o exotismo com o auxílio de fragmentos e de destroços"9. Justamente o escritor aflora no avesso da magia
negada e ocultada pela pontualidade etnográfica: completa-a a certeza de
registrar, na página, como o nomeia Claude Lévi-Strauss, a "alquimia do
impenetrável", a exemplo da produção textual intitulada Escrito no barco
subseqüente aos apontamentos de Pôr do Sol e que incidem na alusão a
Chateaubriand como figura exemplar do imaginário das viagens, em perfeita
intersecção com a lembrança recomposta: "Cada homem – escreve Chateaubriand –
traz em si um mundo composto de tudo o que viu e amou e onde ele entra em
permanência, ao mesmo tempo em que percorre e parece habitar um mundo
estrangeiro", ao que completa Lévi-Strauss: "Doravante a passagem é possível. De
forma inesperada entre mim e a vida o tempo alongou seu istmo"10, o que significa, do ponto de vista da escritura/
reescritura poética, liberar a palavra poética, elegendo-a expressão, a mais
genuína, da superação do etnográfico com base no jogo de Alteridades revisitadas
ou, como o menciona Collot:
"C'est en abdiquant toute signification et représentation
préalables, en acceptant d'être hors de soi dans l'abstraction lyrique du geste
d'écrire, en se projetant dans la matière des mots et des choses, que le poète
se révèle à lui-même et aux autres"11.
Assim, pois, a presença estrangeira relocaliza o sujeito da
percepção: decantada, a perplexidade da errância e do horizonte restitui à
paisagem o desejo de ressimbolizar (ad eternum) a subjetividade do Mesmo que,
diversa e transpessoal, aposta na reciclagem dos Tristes Trópicos:
"Supprimer au hasard dix ou vingt siècles d'histoire
n'affecterait pas de façon sensible notre connaissance de la nature humaine. La
seule perte irréparable serait celle des oeuvres d'art que ces siècles auraient
vu naître. Car les hommes ne diffèrent et même n'existent que par leurs
oeuvres"12.
* O estudo crítico intitulado La Pensée Paysage de Michel
Collot representa a conferência de encerramento do Colloque Le Paysage État des
Lieux realizado em Cerisy ( France ) de 30 de junho a 7 de julho de 1999 cujos
Anais estão publicados pela Éditions OUSIA, Bruxelles, 2001 e do qual participei
com a comunicação Passages et Paysages Poétiques Brésiliens ( op, cit. p.
214-228 )
NOTAS
1
- LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes tropiques. São Paulo: Companhia das Letras,
2000. p.46.
2
- Ibid., p.392.
3 - GENETTE, Gérard. Figures IV. Paris:
Seuil, 1999. p.45.
4
- LÉVI-STRAUSS, Claude. Regarder, écouter, lire. Paris: Plon, 1993. p.93-94.
5 - STEINER, George. Réelles présences. Paris: Gallimard,
1991. p.171.
6 - BLANCHOT, Maurice. Le Pas au-delà.
Paris: Gallimard, 1973. p.67.
7 - BAUDELAIRE, Charles.
Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1975. t. I, p.66.
8 - LÉVI-STRAUSS. Tristes tropiques. Op. cit., p.357.
9
- Ibid., p.39.
10 - Ibid., p.41.
11 - COLLOT, Michel. In: RABATÉ, Dominique (Org.). Figures du sujet lyrique.
Paris: PUF, 1996. p.124.
12 -
LÉVI-STRAUSS, Claude. Regarder, écouter, lire. Op. cit.,
p.128. [topo da
página]
# Miriam Volpe - O papel
mediador do intelectual latino-americano na formação de nossas nações,
identidades e tradições culturais
ABSTRACT:
Focusing on the critical works of relevant Latin American intellectuals from
Uruguay, Argentine and Brazil, this work intends to confront their positions to
the academical discourse on our nations, identities and cultural traditions
elaborated by the Latin American Studies in Europe and the United States.
KEY WORDS: intellectual, culture, tradition, archive, Latin
American studies
Negociar o espaço de enunciação e definir seu papel nas
relações de trocas e arranjos culturais que o ofício de escrever implica têm se
revelado como preocupações fundamentais do intelectual latino-americano. Sua
mediação como parte da elite letrada foi detectada por Ángel Rama após os
movimentos emancipatórios, quando foram feitos novos traçados sobre o continente
e criaram se fronteiras delimitadoras de nações, dentro das quais se inventaram
subjetividades diferenciadas e consciências nacionais. Nesse momento, essas
divisas passaram a ser tomadas como o alfa e o ômega da identidade, a diferença
com os "outros", que não existia previamente à sua criação, só se tornou
realidade no discurso elaborado pelos nosotros (nós-outros) criados dentro
dessas fronteiras. Junto aos mapas e às fronteiras, segundo Rama, se fez
necessário escrever as ordenanças dos governantes das novas nações para
determinar as estruturas econômicas e socioculturais sob as quais haveriam de se
organizar as sociedades compostas pelo emigrante europeu e o autóctone - exilado
em seu próprio território. Escreventes, escriturários e escritores foram
cooptados a mediar e a legitimar essa ordem imposta.
A participação do intelectual, tão relevante no rico
cenário do nascimento das nações do novo continente, que coincidiu com a origem
política dos estados, aparece marcada na maioria dos estudos referentes ao
próprio conceito de nação. As teorias de Benedict Anderson - que têm encontrado
importante repercussão nos estudos latino-americanos - a definem como comunidade
política imaginada, que adquire forma nas letras1. Segundo o crítico, a linguagem escrita teria
permitido o acesso a verdades ontológicas, possibilitando, assim, à elite
letrada, fazer interpretações e abstrações que transcendem o real e o cotidiano
do sentido concreto e fixar essas idéias nos textos. A linguagem, através do
discurso histórico e, principalmente, do literário, teria propiciado que se
imagine, se consolide e se dissemine a nação enquanto forma de comunidade pois,
através da linguagem, é possível o registro de uma história, de uma genealogia,
de uma vida nacional, de laços sociais, políticos e culturais que lhe dão
existência.
Um paralelo entre o conceito de origem antropológica da
nação como comunidade imaginada de Anderson e o de tradição inventada, de que
nos fala o historiador britânico Eric Hobsbawm2
- que analisa o papel representado pelas tradições na origem e no
desenvolvimento da nação - poderia ampliar a reflexão sobre o papel do
intelectual no contexto latino-americano. Para Hobsbawm, a nação seria um
fenômeno dual, pois embora seja construída de cima para baixo, pela elite
governante, ela só pode ser compreendida se analisada de baixo para cima,
considerando as idéias, sentimentos e mudanças que se desenvolvem no povo, e que
os intelectuais captam e transmitem em suas narrativas.
As tradições, segundo Hobsbawm, criam formas de vínculos
humanos que a história haveria de legitimar mais tarde. Muitas delas aparentam
ser antigas mas, na verdade, são de origem recente e, amiúde, inventadas.
Pertenceriam a três tipos superpostos: as que simbolizam união social ou
pertença a um grupo (hinos, bandeiras, escudos); as que legitimam estruturas
institucionais e relações de autoridade (leis, organismos administrativos,
educacionais e a religião); e aquelas cujo principal propósito seria o de
promover a socialização, inculcar sistemas de valores e acordos de conduta
(costumes, metas e ideais). As tradições culturais não só refletiriam as
diferentes formas de relacionamento entre os habitantes de um território
determinado, mas também, através de sua continuidade, com o tempo,
converter-se-iam nos traços abstratos necessários para definir a nação como
comunidade imaginada nas letras e narrada pelos intelectuais.
O caráter textual da nação, assim como o papel do
intelectual como narrador, é analisado também por Homi Bhabha3, que apresenta duas tessituras narrativas na
estrutura discursiva do texto nacional. Uma delas seria a pedagógica, ou
construção textual histórica com origem e objetivos definidos, que permite
direcionar o projeto nacional. O perpetuamento desse projeto nacional
necessitaria de uma espécie de afirmação e reconhecimento contínuo por parte dos
indivíduos que compõem a nação, através de um plebiscito, em que esses
indivíduos expressem seu desejo de nação e reconheçam sua própria identidade
articulada a esse projeto. A narrativa pedagógica operaria através de uma
escolha de fatos cronológicos, eliminando aqueles que não oferecem uma
continuidade discursiva ao projeto como um todo. A outra, a narrativa
performática, estaria constituída pelos retalhos descartados da narrativa
anterior que não desaparecem, mas, como sombras, se projetam sobre o texto
pedagógico e perturbam as estratégias ideológicas que conferem às comunidades
imaginadas uma identidade essencial. Essa idéia das sombras relaciona-se à noção
de literatura menor, desenvolvida por Gilles Deleuze e Felix Guattari4, segundo a qual é possível minar o
discursototalizador de uma tradição hegemônica através de uma tradição
considerada marginal dentro dela, dado que a consciência nacional, incerta ou
oprimida, passa pela literatura.
Para o caso da América Latina, as teorias explicativas
oriundas da metrópole, passíveis de serem aplicadas em alguns aspectos, não
parecem dar conta do peculiar fenômeno da criação de nossos estados-nações. No
estudo mencionado acima, Benedict Anderson, por exemplo, dedica o capítulo,
"Pioneiros crioulos", para tentar explicar o surgimento quase uníssono das
nações nos movimentos independentistas hispano-americanos. Expõe, como possíveis
motivos: a rebeldia das classes dirigentes diante da opressão excessiva da
metrópole; a melhoria nos meios de comunicação que, junto ao idioma comum,
permitiu que se disseminassem, entre os integrantes da elite; as idéias
revolucionárias vindas da independência dos Estados Unidos e da Revolução
Francesa e a divisão, já existente, das colônias ibéricas, em unidades
administrativas, que facilitavam sua governabilidade. Ao contrário do que
aconteceu na África, por exemplo, em que a partilha arbitrária do continente
entre seus colonizadores resultou em uma instabilidade de conflitos étnicos que
continua até hoje, a divisão, considerada por Anderson também fortuita e
arbitrária, passaria a se constituir, com o transcurso do tempo, em um conjunto
de firmes realidades unidas por fatores geográficos, políticos e econômicos, que
favoreceu, não só o fortalecimento da união interna das mesmas, bem como sua
divisão política em novos países.
A partir dessas leituras pode ser proposto que a tentativa
de ruptura da continuidade do passado em comum com o país colonizador (Espanha
ou Portugal) pode ter gerado, nessas novas entidades assim criadas, um vazio no
sistema administrativo, nas tradições culturais que o apoiavam, assim como na
consciência coletiva de pertença que deveria existir entre a comunidade. Para
substituir as tradições perdidas, teriam sido inventadas novas, baseadas nas de
outras nações européias, o que lhes outorgaria a antigüidade necessária para sua
legitimação. Ler, importar, imitar parece ter sido o método seguido pelos
primeiros intelectuais para preencher o vazio deixado pelo sistema colonial.
Como resultado, a tentativa de independência de um passado imposto resultaria em
sua substituição por outras tradições alheias, que foram transplantadas de
outros solos. Desse original processo de fundação das nações americanas surgiria
também uma situação inédita de "outridade" que tem marcado tão profundamente a
problemática da identidade latino-americana: ao não pertencer nem ao passado
indígena, nem à Península Ibérica, se era parte da nação, sem sê-lo totalmente;
estava-se dentro, mas, ao mesmo tempo, fora, em uma situação fronteiriça.
Não são muitos os ensaios teóricos sobre a nação escritos
por autores latino-americanos, que tenham chegado ao debate internacional em que
se discute a sobrevivência da mesma no mundo globalizado. No Brasil, Roberto
Schwarz, Darcy Ribeiro, Silviano Santiago, e alguns outros, trabalham com a
idéia de uma nação espoliada que é, de uma certa forma, possível de ser
reabilitada, não como o centro, mas como margem. Um possível motivo da carência
desse tipo de crítica seria o fato de que, como não existem motivos graves que
ameacem a integração, ou desintegração, de nossos países, não são, portanto,
muitos, os intelectuais dedicados a esta problemática. Poderia ser acrescentada,
também, a circunstância de que o estudo crítico do ensaio da América Latina, em
geral, tem sofrido um certo descaso, pelo desvio do interesse despertado para
com o exotismo da ficção (em especial durante o boom) das letras do continente:
se, por um lado, o caráter especializado e abstrato dos conceitos tratados
nesses ensaios - separados da realidade concreta - afasta os leitores, por
outro, a escassez de produção e a falta de traduções das obras desses teóricos,
os mantém afastados do diálogo acadêmico internacional. Todas essas
circunstâncias contribuiriam, de certa forma, para perpetuar a dependência
ideológica nas idéias dos pensadores da Europa e dos Estados Unidos que muitos
ensaístas latino-americanos têm se esforçado por combater.
Román de la Campa5 aponta
para as limitações, principalmente econômicas, que pesam sobre a intectualidade
latino-americana: para poder exercer a crítica literária e cultural são
obrigados a depender de bolsas, projetos internacionais ou empregos no exterior.
Comenta, também, a difícil problemática do surgimento de uma nova equipe de
cartógrafos pós-coloniais para desenhar as geografias culturais da América
Latina: o problema de definição de fronteiras legitimadoras para o discurso da
crítica cultural originada na América Latina e a do latino-americanismo
elaborado a partir da academia dos Estados Unidos.
Segundo o escritor e crítico uruguaio Hugo Achugar6, a maioria da comunidade de intelectuais
periféricos radicados na academia euro/norte-americana parece aplicar à América
Latina um discurso formulado originariamente por intelectuais diaspóricos, de
origem geralmente asiática, como Bhabha, Said, Appadurai, Spivak, que, embora
tenha um caráter original e inteligente, pode ser questionado no que se refere
aos aspectos que tangem a especificidade da nação e ao papel do intelectual no
continente7. O colonialismo que a América Latina
sofre, desde sua independência, por vias indiretas e disfarçadas, em muito
difere da forte presença de uma longa tradição imperial que predominou até muito
recentemente nesses países asiáticos.
Abril Trigo propõe que as fronteiras que causam assimetrias
de poder entre o que se fala desde e sobre América Latina8, em vez de serem consideradas linhas divisórias
entre coisas diferentes - limites, (borders) - fossem transformadas em
frontería, antigo sinônimo, em espanhol, para fronteira, que indicava criar
novas frontes, construir, abrir caminhos. Não mais uma linha, mas um espaço
fronteiriço (borderline) onde predominam a ação, a mobilidade, o avanço,
Porque la frontera define territorios, la frontería dibuja
paisajes; la frontera fija identidades, la frontería abre relaciones; la
frontera delimita espacios, la frontería articula lugares; la frontera hunde
raíces, la frontería esparce un rizoma; la frontera legisla la razón de Estado,
la frontería es indiferente a la Nación; la frontera es marca de la Historia, la
frontería habilita memorias fragmentadas9.
Nesse sentido, o posicionamento do escritor e crítico
uruguaio Mario Benedetti pode trazer uma contribuição muito pertinente:
El desarrollo no es en sí mismo una calidad moral, ni una
categoría ética [...] por lo tanto, el mundo del subdesarrollo no sólo debe
crear su ética en rebeldía, su moral de justicia, sino también proponer una
autointerpretación de su historia y también de su parcela de arte, sin
considerarse obligado a aceptar que siempre el diagnóstico que sobre tales
problemas elabora el mundo del desarrollo, así sea através de la porción más
espléndida de su intelligentsia [...] Por suerte ese tipo de crítica ya ha
empezado a hacerse. Algunos ensayos del colombiano Jaime Mejía Duque, del
brasileño Antonio Candido, del peruano Antonio Cornejo Polar, del cubano
Fernández Retamar, del chileno Nelson Osorio, del argentino García Canclini,
publicados en los últimos años, plantean una dimensión y un punto de vista
básicamente latinoamericanos, tanto en la crítica literaria como en la historia
de las ideas, dimensión y punto de vista que de ningún modo desdeñan el aporte
europeo o de los Estados Unidos (esa si sería una estupidez del subdesarrollo),
mas bien lo comparten o rechazan sin asomo de autocolonización, es decir de
igual a igual.
Ao recorrer ao discurso bíblico, En el principio era el
verbo - que intenta dar uma resposta à eterna preocupação de ser humano com o
momento e o lugar de suas origens -, Hugo Achugar também discute o papel
"fundacional" da palavra na origem da nação latino-americana no século XIX e a
posição central do letrado como sacerdote da ordem dos signos e executor do
poder. A idéia de Fundação por la palavra, escolhida para o título de seu
ensaio, parece implicar que esse momento "fundacional" foi produzido
(inventado?, imaginado?) pelo homem enquanto homo fabulator e não resultado de
uma vontade divina. Destaca-se, nesse texto, a reflexão do intelectual que fala
sobre o papel de outros instrumentos, que não só as letras, na fundação da nação
latino-americana, após a independência. Haveria também, segundo o crítico, um
importante lugar para as armas das cruzadas libertadoras, que tanto contribuíram
para a construção do imaginário nacional - como atestam, entre outras
manifestações, os rituais dos desfiles militares nas festas pátrias:
La centralidad de la letra y del letrado acompaña la
centralidad del poder, lo protege y lo perpetúa. Esta centralidad del poder era
también la de las armas, sin embargo los letrados, a la vez que celebraban el
poder militar - mediante la consagración de la épica independentista -
impidieron, aunque casi de seguro no deliberadamente, la posibilidad de una
perspectiva de nuestra historia exclusivamente militarista [...] Los militares y
letrados del siglo XIX construyeron los nuevos estados/naciones. En muchos casos
estos militares fueron también letrados y la fundación que realizaron no se
limitó a la de las armas11.
Esse seria o caso dos heróis da independência, como San
Martín, Bolívar, e, no Uruguai, José Artigas. Fez-se necessário uma manifestação
letrada desses chefes militares - assim como a de outros que foram chefes
políticos, legisladores, presidentes, ministros, como Sarmiento, Martí, José
Pedro Varela - dado que se requeria que fosse analisado e definido, com
linguagem clara e precisa, a problemática das novas circunstâncias, assim como
também que se formulassem as direções e os processos necessários à implantação
das idéias germinais das novas nações. O ensaio, gênero escolhido por esses
seres híbridos (líderes e letrados), parece definir-se como o mais apropriado
para estas formulações, por seu caráter também híbrido, entre o discurso
ficcional e o não ficcional, como forma de escrita sensível à ambigüidade
inerente ao discurso da nação12. Pode ser
acrescentado, que embora as pátrias de América não tenham nascido unicamente dos
fuzis, é importante ressaltar que nelas há mais monumentos e símbolos bélicos do
que homenagens a valores cívicos.
O caso uruguaio pode ser considerado exemplar dentro destas
considerações, dado que a gestação do imaginário nacional só se realizou
plenamente, pela força, na organização e consolidação do Estado moderno imposta,
manu militari, pelo exército profissional surgido a partir da Guerra da Tríplice
Aliança e liderado pelo coronel Francisco Latorre, em 1876. Com o apoio do
patriciado montevideano, que se sentia ameaçado pela "desordem" em que se
encontrava o território além dos muros da cidade de Montevidéu, em contínuos
alzamientos liderados pelos caudilhos, Latorre haverá de efetivar a "unificação"
do país. Ironicamente, essa unificação se deu através da fragmentação da
estancia cimarrona (as grandes extensões de terra sem fronteiras precisas) pelo
alambramiento, estabelecendo, com cercas de arame, os limites que definiriam e
protegeriam as propriedades privadas. Como resultado de uma rigorosa ação
militar, o caudilhismo local - que pode ser considerado como o verdadeiro
intérprete e orientador dos sentimentos populares contestadores da ordem imposta
pelas letras - foi fraturado e houve uma desapiedada repressão social da região
rural.
Parece importante assinalar, neste momento que o Uruguai
surgiu, como estado-nação independente, em 1825, por vontade do império
britânico, interessado em estabelecer uma fronteira, através de um "tampão",
entre duas potências que se perfilavam no continente: Brasil e Argentina. Como
região fronteiriça, borderline, e não simplesmente linha demarcadora, assumiu
seu destino de frontería. Sendo uma região pouco povoada, ficou aberta a uma
geocultura sedimentária, de caráter aluvional, que se constituiu através de uma
política que promoveu uma imigração massiva. A esses imigrantes foi proposta a
adoção de uma identidade, que se configurou como lugar de demarcação do outro
para a constituição do nosotros nacional.
A esse respeito, Abril Trigo, que elabora um interessante
estudo em que faz dialogar os mais variados textos da historiografia uruguaia -
considerados como estrategias ideológicas que componen la textualización de esta
obra plástica que somos - para buscar a legitimidade da nação, afirma:
Las profundas transformaciones operadas por el gobierno
Latorre, coincidentes con el ensimismamiento de Argentina y Brasil en su
respectiva labor de organización nacional - bendecido todo desde una redituable
pax britannica - conducen hacia la concentración y unificación del Estado. El
juego pendular que ordenara nuestra vida alternativamente regulada por la
conminatoria opción entre Buenos Aires y Río, insertos en la fina malla
diplomática de Londres y, por momentos, París, (Washington observaba), parece
haber concluído. La consolidación del estado (liberal en lo económico, prusiano
en lo político y romántico en su estilo) ha posibilitado la maduración de una
Intelligentsia que, marginada del quehacer político, se impone la tarea de
repensar el país, de inventar la nación sobre nuevas bases13.
No Brasil - como assinala Reinaldo Marques em seu estudo
sobre a mediação da atividade letrada com o aparelho estatal colonial no século
XVIII - também houve um momento em que a academia local celebrou as armas. Os
registros dos discursos da fundação da Academia Brasílica dos Esquecidos, na
cidade de São Salvador, na Bahia, em 1724, denunciam as estreitas conexões dos
letrados com o poder colonial, nos elogios ao Vice-rei, seu protetor, e na
decisão de que cabia às letras coroar as armas, em uma união fraterna de letras
e armas, visto que ambas "são filhas de um mesmo parto, ou parte de um mesmo
corpo, conselho, e forças, olhos e mãos"14.
Também se deu, nos países da América Latina, que durante o
exercício do poder das letras, ao mesmo tempo em que se estabeleciam as bases
dos futuros estados nacionais através da lei escrita nas Constituições -
imitadas das exemplares surgidas com as revoluções americana e francesa -
surgiam os Parnasos "fundacionais" ou primeiras antologias de caráter nacional.
Alguns letrados entenderam que, junto ao discurso jurídico, deveria ser
estabelecido outro discurso que desenharia o imaginário poético de suas
respectivas comunidades. À Constituição do Brasil, em 1821, seguiu o Parnaso
Brasileiro de Januário da Cunha Barbosa, em 1829; a Constituição da Argentina
coincidiu, em 1824, com a Lira Argentina, de Ramón Díaz; à Constituição do
Uruguai (1830), seguiu o primeiro volume do Parnaso Oriental, de Luciano Lira.
Em outros países, o Parnaso não existiu em forma de livro, mas em publicações em
jornais e principalmente performances artísticas. Nesse sentido, caberia
perguntar-se, junto a Achugar, se o caráter monumental desses textos chamados
"fundacionais", pois passaram a pertencer à tradição de leitura da nação, não
deveria ser revisado:
Me pregunto ¿si nuestros letrados de la Independencia no
llegaron a la letra y a la escritura sino después que nuestras sociedades habían
realizado otro tipo de actos poéticos o artísticos fundacionales de la nación?
[...] ¿Si el modo de construir emotiva, estética, teatralmente la nación no
necesitó antes que de la escritura, de la representación? ¿Y qué, si la
representación de la nación [...] no se materializó como representación, de otra
manera, con otros códigos?15
A análise, tanto dessas constituições, como das antologias
poéticas, revela que elas excluem mulheres, índios, escravos, e criollos
analfabetos, ao construir o referente de um país onde só os homens brancos
livres são cidadãos. Mas, na criação das nações latino-americanas, houve também
os hinos, as bandeiras, as esculturas, os poemas, as pinturas, as moedas e as
festas pátrias. Estas últimas, junto a outras manifestações festivas, podem ser
classificadas como atividades performativas do nacional que, pelo seu caráter
público e popular, permitiriam a participação dos grupos excluídos do âmbito das
armas e das letras, (embora os que eram donos da memória e da palavra fossem,
também, os régisseurs dos espetáculos). Segundo o escritor uruguaio:
El hombre y la mujer que contribuyeron a forjar estas
imágenes - poemas, banderas, escudos, billetes - realizaron un esfuerzo
sostenido para dar forma a esa nación que en muchos casos no existía más que en
el deseo [...] En esa tarea, la más de las veces contruyeron una nación ideal
que no correspondía a la realidad étnica, social y cultural de los países en que
vivían [...] lo que hicieron fué regirse por los ideologemas de la nación
deseada, que eran los propios de la ciudad letrada16.
A construção de um imaginário social ficcional, idealizado
com base em idéias e razões européias, que não correspondiam à realidade
latino-americana, reporta aoque Roberto Schwarz define como "idéias fora do
lugar"17. A confluência dos projetos da elite
com os anseios da classe subalterna aponta para o prevalecimento do "desejo", a
que se refere Ernest Renan,18 - mais do que a
raça, a língua, a cultura, o território - como elemento fundamental para que se
constitua e se perpetue a nação em um conjunto tão heterogêneo. Esse
posicionamento se aproximaria também dos conceitos de Jacques Derrida, para quem
o nacionalismo pode ser considerado um filosofema, fundação filosófica da nação,
uma construção teórica que sustenta a comunhão de interesses de um grupo de
indivíduos.19 O vínculo que os une não
decorreria de espaço, raça ou língua comum, mas da vontade e do acordo de
participar em uma construção teórica com uma origem e destino definidos.
Além do caso específico do Uruguai, deve ser considerado
também o poder da letra nas regiões latino-americanas de culturas andinas. Essa
situação foi analisada por Walter Mignolo, quanto aos decires latino-americanos
que, segundo o autor, foram exilados, desenraizados, desterritorializados, a
partir da descoberta do continente em 1492, quando começou o diálogo conflitivo
entre europeus e ameríndios, e o ocidente impôs (e ainda tenta impor) formas
universais de pensar. Esses dizeres, como sugere o título de seu ensaio Decires
fuera de lugar: sujetos dicentes (aquele que faz ao dizer), papeles sociales
(quem está em condições de dizer o quê) y formas de inscripción (qual é a
materialidade em que se inscrevem os atos "dizentes") são discutidos, tanto a
partir do colonizado quanto do colonizador. Assim, para o autor,
los sujetos dicentes en situaciones coloniales son sujetos
desterrados, sujetos que están fuera de lugar con respecto y subsuelo de sus
decires, pues la llegada del conquistador y religiosos creó descontinuidades con
las tradiciones pre-colombinas [...] Fuera de lugar estaban las poblaciones
andinas porque el ámbito de sus diceres se vió alterado por la violencia de las
instituciones hispánicas y fueron obligados a incorporar una escritura
alfabética y una mediación desconocida entre hablar y escribir.20
Nesse sentido, estar bem em um lugar, seria estar no hábito
e nos costumes e nas tradições, um conceito que remete a um domicílio no mundo,
a um domo, a uma casa onde se consegue amparo e onde se mora. Por tanto, decires
fuera del lugar também teriam sido os dos letrados e soldados hispânicos, porque
eram proferidos fora desse território em que o costume se faz hábito e a memória
acomoda as ações.
A alfabetização imposta por um aparato de poder da cidade
letrada colocou os dizeres das populações andinas fora do lugar, ao calar suas
vozes e exilá-las em uma condição subalterna. Mignolo sugere que, um remédio
efetivo para essa ação nociva, seria juntar as migalhas da cultura alfabética e
refuncionalizá-la para liberar o que ela teria suprimido a possibilidade de
dizeres arraigados que conduziriam à descolonização intelectual e à
regionalização daquilo que o ocidente impôs como formas universais de
pensamento.
Se ainda hoje, na América Latina, continua uma guerra entre
o dizer tecnológico da homogeneização global e o dizer desenraizado das margens,
haveria que se pensar na possibilidade de que o papel mediador do intelectual se
centrasse em uma oposição e resistência que libere suas forças criativas como
novos loci de enunciação, um pensamento que se construa nos interstícios, nos
entre-espaços engendrados pela expansão do pensamento hegemônico ocidental.
NOTAS
1
Cf. ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Londres: Verso, 1991.
2
Cf. HOBSBAWM, Eric; TERENCE, Ranger. The invention of tradition. Cambridge:
University of Cambridge Press, 1983.
3
Cf. BHABHA, Homi. Dissemination: time, narrative and the margins of the modern
world. In: _____. Nation and Narration. Londres: Routledge, 1990. p. 291-322.
4
Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka, por uma literatura menor. Trad. Julio C. Guimarães.
Rio de Janeiro: Imago, 1997.
5
Cf. CAMPA, Román de la. Latinoamérica y sus nuevos cartógrafos. Revista
Iberoamericana. Stanford, p. 697-718, jul.-dez. 1996.
6
Cf. ACHUGAR, Hugo. La biblioteca en ruinas: reflexiones culturales desde la
periferia. Montevidéu: Trilce, 1994.
7
Alberto Moreiras, espanhol, radicado nos Estados Unidos, em livro lançado
recentemente: A exaustão da diferença. Belo Horizonte: UFMG, 2001, discute o
estado atual da reflexão latino-americanista, faz uma reflexão diferente em
relação à propriedade do discurso elaborado apartir da academia norte-americana.
8
Como apresentado por: RICHARDS, Nelly. Intersectando latinoamérica con el
latinoamericanismo: saberes académicos, práctica teórica y crítica cultural.
Revista Iberoamericana, Pittsburg, n. 180, p. 345-361, jul.-set. 1997.
9
TRIGO, Abril. Fronteras de la epistemología: epistemologías de la frontera.
Papeles de Montevideo, Montevidéu, n.1, junho, 1997. p. 81.
10 BENEDETTI, Mario. El escritor y la crítica en el
contexto del subdesarrollo. In: _____. El ejercicio del criterio: obra crítica
1950-1974. Buenos Aires: Seix Barral, 1995. p. 43. PIGLIA, Ricardo. Memoria y
tradición. In: CONGRESSO ABRALIC, 2, 1991, Belo Horizonte.: p. 43.
11 ACHUGAR , Hugo. La fundación por la palabra. Montevidéu:
FHCE/Universidad de la República, 1998. p. 28.
12 Cf. SOUZA, Eneida M. Literatura comparada: o espaço
nômade do saber. Revista Brasileira de Literatura Comparada. São Paulo, n. 2, p.
19-24, maio 1994.
13 TRIGO, Abril. Caudillo, estado, nación: literatura,
historia e ideología en Uruguay. Gaithesburg: Hispamérica, 1990. p. 38.
14 MARQUES, Reinaldo. Arcádias, utopias, secularização,
dissidência. Pré-publicação para o "Projeto História Comparada das Formações
Culturais na Literatura Latino-Americana", Toronto, Canadá. (Xerox)
15 ACHUGAR, 1998, p. 67.
16 ACHUGAR, 1998, p. 27.
17 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1992, p. 17.
18 Cf. RENAN, Ernest. Que'est ce qu'une nation?
Paris: Calmann Levy, 1882.
19 Cf. DERRIDA, Jacques. Onto-theology of national humanism: prolegomena to a
hypothesis. The Oxford Literary Review, v. 14, p. 3-23, 1992.
20 MIGNOLO, Walter. Decires fuera de lugar: sujetos
dicentes, roles sociales y formas de inscripción. Revista de Crítica Literaria
Latinoamericana. Lima/Berkeley, n. 41, p. 9-31, 1995. [topo da
página]
# Patrícia Flores da Cunha & Sara Viola Rodrigues -
Literatura Comparada e Tradução: A Prática da
Diferença
RESUMO: Os trabalhos desenvolvidos no Núcleo de Estudos de
Tradução Olga Fedossejeva do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul inserem-se em linhas de pesquisa da área de Literatura Comparada
do PPG Letras –UFRGS, a saber Literatura Comparada e Relações Interliterárias,
Literatura Comparada e Teoria da Literatura e Literatura e
Interdisciplinaridade. Através dos Projetos de Pesquisa “O texto literário
estrangeiro: leitura, tradução e produção” e “A práxis tradutória, a teoria
comparatista e os estudos de tradução”, com base nos enfoques teóricos
contemporâneos que perpassam as relações entre literatura comparada e tradução,
busca-se redimensionar criticamente o papel da intermediação entre culturas
inerente a essas disciplinas, valorizando-se a tradução como prática da
diferença e o tradutor como transfingidor no processo de apropriação e
transcriação do texto literário.
Os projetos de pesquisa sob a responsabilidade das
Professoras Patrícia Lessa Flores da Cunha e Sara Viola Rodrigues desenvolvem-se
no NET- Núcleo de Estudos de Tradução Olga Fedossejeva do Instituto de Letras da
UFRGS.
O Net foi fundado em 26/04/1996; desde então mantém
diferentes projetos que objetivam refletir sobre as questões da tradução através
de uma perspectiva intertextual e interdisciplinar. O Núcleo está cadastrado no
Diretório dos Grupos de Pesquisa do Brasil no CNPq; as informações constantes
nessa base dizem respeito aos recursos humanos participantes nos grupos, às
linhas de pesquisa e projetos em andamento; às especificidades do conhecimento e
setores de atividades envolvidos, aos cursos de mestrado e doutorado com os
quais o grupo interage e à produção científica e tecnológica nos dois anos
imediatamente anteriores à época da coleta de dados.
Configura-se como órgão integrador, pela sua natureza
dialógica, e apresenta-se como um centro de investigação e de prestação de
serviços, cujas propostas básicas refletem a busca de excelência na pesquisa, na
formação do profissional e nos serviços prestados à comunidade no campo da
tradução, em língua inglesa, francesa, espanhola, alemã, italiana e japonesa
(correspondentes às ênfases do Curso Bacharelado em Letras). Surgiu da
solicitação dos alunos em nível de graduação e de pós- graduação das diversas
linhas de pesquisa constitutivas das áreas de concentração maiores,
representadas pelos Estudos de Linguagem e pelos Estudos Literários, e do
interesse pela pesquisa e pelo desenvolvimento de projetos relacionados aos
Estudos de Tradução, demonstrado por um número significativo de docentes dos
três departamentos do Instituto de Letras (Letras Vernáculas, Línguas Modernas e
Lingüística, Filologia e Teoria Literária).
Os projetos a seguir explicitados vinculam-se também `as
linhas de pesquisa desenvolvidas pela Área de Literatura Comparada do Programa
de Pós-graduação em Letras da UFRGS, a saber: Literatura Comparada e Relações
Interliterárias; Literatura Comparada e Teoria da Literatura, e Literatura e
Interdisciplinaridade.
O projeto de pesquisa “O texto literário estrangeiro:
leitura, tradução e produção” iniciou em 1996 e desde 1998 tem a coordenação da
Profa. Patrícia Lessa Flores da Cunha. Busca a articulação entre os Estudos de
Tradução e os Estudos Literários na discussão sobre o lugar da tradução na
Literatura Comparada, na questão do Outro no texto, nos pressupostos teóricos
comuns às duas áreas, na prática da tradução em sua relação leitura, tradução e
produção textual, na contribuição da tradução para a formação dos sistemas
literários, incindindo conseqüentemente na configuração de comunidades
interliterárias. No que concerne especificamente à relação entre os princípios
que norteiam a teoria da tradução e à teoria da literatura comparada,
evidenciam-se as questões de mediação e de apropriação, do cânone e da
originalidade, dos conceitos de autoria e de reescritura, da relativização das
fronteiras políticas, culturais e textuais, da relevância do contexto histórico
na análise textual.
Entre os objetivos imediatos do projeto, situam-se a
tradução e análise de textos literários em língua estrangeira, especialmente em
língua inglesa, considerados relevantes tanto para o sistema de origem quanto
para o sistema local, a partir da conceituação de Itamar Evan –Zohar (1976); a
tradução e análise de textos teórico- críticos considerados relevantes da
literatura em língua estrangeira (inglês); a correlação crítica entre a Teoria
da Literatura Comparada e a Teoria da Tradução, tendo em vista a recepção do
texto em tradução – abrangendo inclusive o texto paraliterário-, a prática
intertextual, a prática interdiscursiva, com ênfase na produção e na reescritura
criativa so mesmo, para determinar a função da tradução nos diferentes sistemas
literários e seus desenvolvimentos.
Dentre os trabalhos de pesquisa desenvolvidos em nível de
graduação, destacam-se os projetos dos bolsistas Amanda Francisco e Fabiano
Gonçalves, ambos trabalhos-destaque no Salão de Iniciação científica da UFRGS na
área de tradução e literatura comparada, em 1999 e 2001, intitulados
respectivamente “Tradução e Intertextualidade: Machado de Assis e Shakespeare” e
“As Traduções de Poe no Brasil”.
Em nível de pós-graduação, duas dissertações de mestrado já
defendidas refletem e discutem as questões teórico- práticas das áreas de
conhecimento citadas, a saber: “Dom Casmurro em tradução: uma abordagem
comparatista”, de Alba Olmi (2000) e “A recepção das traduções dos contos de
Oscar Wilde no Brasil”, de Samuel Frison (2000). Da mesma forma, as teses de
doutoramento de Lucia Sá Rebello, sobre estudos comparativos das traduções da
Ars Poetica de Horácio, recentemente defendida, e de Neusa Matte, tratando do
sentido da tradução na poesia de Elizabeth Bishop, ainda em fase de elaboração,
atestam a pertinência e produtividade do Núcleo.
O projeto de pesquisa “ A práxis tradutória, a teoria
comparatista e os estudos culturais” desenvolve-se no NET desde 1999, sob a
coordenação da Profa. Sara Viola Rodrigues. Trata-se de investigação
desenvolvida com o propósito de colaborar, através do oferecimento da tradução
de textos fundamentais do ponto de vista da literatura comparada, com os
estatutos mais atualizados da crítica literária. A relação entre crítica e
tradução propicia um espaço privilegiado de questionamento e produção textual,
capaz de corresponder às expectativas e necessidades dos investigadores e
estudiosos de literatura preocupados com a contemporaneidade de seus
referenciais teórico-críticos.
O projeto é definido, por um lado, pelo interesse dos
pesquisadores de de literatura comparada que buscam registrar criticamente o
desenvolvimento da área, reexaminando conceitos e redefinindo rumos e fronteiras
com o objetivo maior de esclarecer o próprio conceito da disciplina. Por outro
lado, os Estudos Culturais emergem como área relevante de investigação acadêmica
neste início de século com tal vigor que, contaminando as pesquisas realizadas
em outros campos do conhecimento estão a exigir dos especialistas maior
consideração de suas especificidades.
Visando à dimensão pragmática do projeto, há que considerar
sobretudo a carência de textos fundadores traduzidos para o vernáculo, cuja
consulta é relevante para o desenvolvimento e atualização do pensamento crítico
nos cursos de graduação e pós-graduação, levando-se em conta o caráter de
investigação em progresso que define os estudos científicos contemporâneos.
Dentre os textos já traduzidos, como parte das atividades
desenvolvidas pelo bolsista Augusto Buchweitz, destacam-se ensaios selecionados
a partir da leitura do livro Comparative Literature in the Age of
Multucuturalism, organizado por Charles Bernheimer ( Boston: The John Hopkins
University Press, 1995):
·
“Comparative Literature and Global Citizenship”, de Mary
Louise Pratt;
·
“On the Complementarity of Comparative Literature and
Cultural Studies”, de Michel Rifaterre;
·
“The Function of Criticism at the Present Time – The
Promise of Comparative Literature”, de Ed Ahearn e Arnold Weistein;
·
“Literature in the Expanded Field”, de Marjorie Perloff;
·
“Comparative Literature, at Last!” de Jonathan Culler.
A presente etapa do projeto prevê a tradução dos seguintes
textos:
·
“Defining the Postmodern”, de Jean- François Lyotard;
·
“Space, Power and Knowledge”, de Michel Foucalt;
·
“Questions of Multiculturalism” , de GayatriC. Spivak e
Sneja Gunew;
·
“The New Cultural Politics of Difference”, de Cornel West;
·
“From Culture to Hegemony”, de Dick Hebdige.
Ao final do projeto, previsto para 2003, pretende-se a
publicação dos textos traduzidos com introdução critica e respectivos
comentários das professoras envolvidas na sua realização. No intervalo, houve a
publicação de um fascículo dos Cadernos de Tradução do Instituto de Letras
(n.11, julho- setembro de 2000), com a apresentação de textos críticos e textos
traduzidos privilegiando os enfoques do projeto de pesquisa.
Finalmente, o projeto institucional “Memória ABRALIC”, a
ser desenvolvido em parceria do Instituto de Letras com a Biblioteca Central da
UFRGS, também terá interfaces produtivos com o Núcleo de Estudos de Tradução
Olga Fedossejeva, com a recente criação do Núcleo de Documentação e Pesquisa da
ABRALIC, a partir do acolhimento da proposta da UFRGS pela atual Direção da
associação, de manutenção e guarda do acervo, apresentada pela professora Tania
Franco Carvalhal no Colóquio de Literatura Comparada da UFMG em agosto de 2001.
Com uma dimensão interdisciplinar, o objetivo do Núcleo é o
de promover condições de armazenamento seguro à documentação existente e à que
será incorporada, garantindo sua estabilidade física e o competente tratamento
bibliográfico e arquivístico dos dados coligidos pelos técnicos da Biblioteca
Setorial de Ciências e Humanidades da UFRGS.
Sendo assim , o Núcleo abrigará toda a documentação
relativa à história da ABRALIC enquanto associação acadêmica de reconhecimento
nacional e internacional, constando de publicações, como Anais de Congressos,
revistas e Boletins especializados, estatutos, correspondência e documentos
administrativos em geral.
A disponibilização das informações aos estudiosos da área,
inclusive via internet, torna o acervo material valioso para a realização e
manutenção de pesquisas em Literatura Comparada, sobretudo pela possibilidade de
futuro acesso eletrônico às publicações.
Nesse sentido e já como parte das atividades regulares do
Núcleo, insere-se agora o desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado
“Literatura Comparada e Tradução nos Anais da ABRALIC”, orientado pela
professora Patrícia Lessa Flores da Cunha, com a participação da bolsista Jane
Reginato.
Trata-se de pesquisa bibliográfica que busca mapear o
desenvolvimento dos Estudos de Tradução e o conseqüente relacionamento com a
área da Literatura Comparada nos registros acadêmicos da produção intelectual da
ABRALIC – num primeiro momento, nos Anais de Congressos, e após, nas Revistas e
Boletins especializados – visando a uma reflexão consistente sobre os
pressupostos teórico-críticos utilizados nesse percurso.
A implementação do projeto Memória ABRALIC na UFRGS, sob a coordenação geral da Direção do Instituto de Letras na pessoa da Professora Sara Viola Rodrigues pode ser acompanhada através do acesso à página eletrônica do Instituto de Letras: www.ufrgs.br/iletras [topo da página]
# Paulo Sérgio Nolasco dos Santos - Margem de papel ou corpo despedaçado do texto
Reportando-nos
aos trabalhos que vimos discutindo no âmbito da profícua “limiares críticos”, do
GT de Literatura Comparada da ANPOLL, propomos desenvolver neste XVII Encontro
Nacional uma reflexão que toma como ponto de partida a figura emblemática da
“margem”, ou do “corpo despedaçado” como paradigma para o nosso objetivo que é o
de refletir sobre as representações de identidade em diferentes textos da
cultura sul-mato-grossense. Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa
que desenvolvemos em nossa Universidade, cujo título “Nomes e Faces: a
literatura Comparada no extremo oeste do Brasil”, objetivos e justificativa já
anunciavam o nosso interesse pela questão dos “mediadores” que vai se tornar o
tema geral do congresso da ABRALIC, em julho próximo.
Assim, iniciando com textos literários e/ou escritores já
alçados ao lugar de ícones culturais, passando por nomes não canonizados, ou
menos representativos, e considerando a existência de nomes e/ou mediadores
tacitamente vinculados à crítica cultural, à historiografia e às artes de um
modo geral, postula-se, aqui, o lugar de uma identidade cultural cujo tecido
reflete a imagem emblemática do corpo e do Texto despedaçados. Alguns
textos-fontes dessa crônica despedaçada, corpo-fantasma que revive o impasse do
sujeito frente ao espelho, foram referenciados em um trabalho anterior; dentre
esses textos-fontes retomo aqui as crônicas que se utilizaram da seriema _
conhecida ave da região e motivo da famosa canção folclórica intitulada “A
seriema de Mato Grosso”_ para se autointitularem “Pra quem fica a seriema?” e
“Estado do PT e a seriema”. Publicadas à época da divisão, essas crônicas
serviram de veículo à repercussão da pergunta “pra quem fica a seriema?” por
todo o estado, numa clara exposição não só de um certo maniqueísmo, mas,
sobretudo, pela razão que nos interessa, numa forma de exposição da fragmentação
e da divisão do corpo, da matriz identitária.
Nesta perspectiva, retomo, de saída, uma passagem pouco
explorada, porém rica em significação, presente no texto da professora e agente
cultural do Estado, Idara Duncan, por acreditar que justamente ali, onde a
“coisa” não é percebida, apesar de anunciar-se, é que podem brotar as mais
instigantes análises sobre a crítica cultural. A citação é a seguinte: “Com
referência a nossa identidade cultural, a separação criou-nos um inusitado
impasse quando impeliu-nos frente ao espelho a indagar: – E agora, quem somos?”
(Duncan Apud Couto).
A citação, assim formulada e aqui recolocada no contexto
desta análise, evoca uma outra citação, que, no macrotexto da divisão, toma a
forma de citação em exergo, uma vez que está inscrita na lápide da sepultura do
grande herói/mártir da emancipação do sul do Mato Grosso: o Coronel João
Ferreira Mascarenhas, ou, simplesmente caudilho Jango Mascarenhas. A lápide em
sua sepultura, no cemitério de Aquidauana, traz o seguinte epitáfio inscrito em
francês: “Passant ne pleure pas ma mort, can je suis vif même quand je suis
mort” - (Ao passares por aqui, não chores, porque mesmo morto, continuo vivo)
(Ibidem).
Assim escrito, o epitáfio torna-se o testemunho lapidar que
sintetiza o mal-estar do morto/fantasma que, ainda que morto, continua a viver.
Da época da inscrição/morte, 21/10/1901, até os dias de hoje, cruzando com a
citação de Idara Duncan, o sintoma pode ser assim transcrito na grande crônica
contemporânea que especula acerca do melhor gentílico para batizar o corpo morto
/ vivo que constituiria a identidade e representação cultural desta unidade da
federação: se morto continua a viver, ou, ainda que morto continua a viver passa
a constituir o lugar fantasmático do espelho que nos obriga à pergunta, ao mesmo
tempo que nos coloca no lugar de impasse, indecisão, frente a(s) alternativa(s)
da escolha de um gentílico. Ora, o ato de escolha, por si só, não seria
problemático e nem objeto de “pendengas”; só o é, na medida em que a própria
história da criação do novo estado se dá com sobressaltos e de açodado, acabando
por deslanchar vários atos pomposos e medidas rompantes à maneira de uma
cruzada, espécie de jornada ou maratona física que assim justificariam ou
refletiriam a hegemonia do tecido cultural, que, como se verá, em se tratando de
um “tecido” é também um “complexo”, portanto “complexo cultural”, cuja
representação resistiria àquelas demandas que parecem resultar muito mais na
eficácia de um ato político do que numa busca da construção realmente
identitária do novo estado de MS. Engrossando o lugar comum desta crônica da
construção identitária, constata-se o equívoco de articulistas e homens de
letras que lêem de maneira equívoca e/ou redutora os materiais, a vida cultural
e os produtos da cultura, cujo tecido cultural se mostra dinâmico, resistente e
volátil como toda matriz representativa, rotativa como a própria ciranda dos
“Nomes”, que originariamente foi MT, tornou-se Maracaju, passou a ser MS e quer
se tornar PT (Pantanal) ou Guaicuru.
A partir daquelas duas citações – do impasse frente ao
espelho, e da lápide no cemitério – ocorrem-me alguns vetores que configuram a
metáfora que passa a operar sobre o corpo despedaçado da representação e da
própria identidade cultural. Assim, alguns destes textos podem ser agora
referenciados. Penso, p.ex., na letra da música do douradense Almir Sater,
“Sonhos guaranis”, em que o próprio título pode condensar a metáfora do sujeito
que revela este lugar sintomático de quem vive à margem: “Ao revelar que eu vim/
Da fronteira onde o Brasil foi Paraguai”. Com efeito, o fato de sermos da
fronteira onde o Brasil foi Paraguai torna agudas as noções de extremo, de
transição e de limiar que balizam as nossas reflexões nesta linha de pesquisa em
Literatura Comparada, fazendo ressonância às reconfigurações sobre identidade e
literaturas de fronteira ou, também, sobre os questionamentos de limites
culturais num conceito de região que compreende, neste caso específico, o
entorno do pantanal mato-grossense; que compreenderia, atualmente, na discussão
dos limites geopolíticos, tanto do Paraguai como da Bolívia enquanto países
fronteiriços, como também dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no
território brasileiro. Há 25 anos, desde a divisão, MS ensaia um lugar de
pertencimento, muitas vezes crítico, ora porque o olhar do analista deixa-se
marcar, enviesadamente, pelo fenômeno da pertença, que não deixa ver além da
fronteira física, ora pela constatação simplista e comprometida com estereótipos
binários: se de fato MS foi parte do território de MT, o ato de emancipação não
pôde, por si só e a priori, deslindar um fato cultural, uma história que se
confunde nas bases mesmas em que se fundamenta todo um território.
Em tais circunstâncias, aqui essenciais, é que se poderia
compreender a complexidade de nossos “nomes de letras”, ou de pessoas que
tiveram suas vidas comprometidas com a arte e com o solo cultural em nosso
estado. Historicamente, a distância e o isolamento foram fatores que
dificultaram não só a conformação de nossa representação cultural, sempre
híbrida e propensa à outras ampliações, fruto mesmo da expansão econômica, das
sucessivas levas de imigrantes de dentro e de fora do país, como também fatores
que colocaram nossos “homens de letras” – agentes culturais; mediadores – eles
mesmos como signos de uma representação em pedaços, divididos no seu desejo e
recompondo uma espécie de gesta da ex-tradição. Lugar de despertencimento,
sentimento de não estar em casa, são formulações possíveis de serem constatadas
e comparadas tanto em nossa artista plástica maior, Lidia Bais, quanto no poeta
corumbaense, Lobivar Matos, cujo cognome “poeta desconhecido” bem sintetiza o
processo de marginalização sofrido por esses artistas no início do século.
Desde o nascimento de Lidia, em 1910, passando pelo seu
aprimoramento na pintura, no Rio, com Henrique Bernadelli, sua viagem de estudos
à Europa, o retorno ao Brasil e à cidade natal, Campo Grande, sua vida deixa-se
desenhar no bosquejo de uma gravura que a própria artista não compreendeu.
Deixando para os seus contemporâneos e geração futura a tarefa de resgatar de
dentro do “pequeno internato religioso”, para onde foi mandada na adolescência,
os significados perdidos e /ou esquecidos na vida e na obra que mistura o
experimentalismo das vanguardas do início do século e a procura inquieta de uma
explicação místico-religiosa de uma obra e de um Nome – Lidia Bais – que vai
representar genuinamente o drama da mulher artista, pintora, numa sociedade
patriarcal, vigente num lugar ermo e distante como o que a artista vivia. Tanto
Lidia quanto Lobivar Matos, na pintura e na literatura respectivamente,
elaboraram suas obras tendo caminhado além do tempo e do espaço em que viviam,
e, por várias razões, a condição de “poeta desconhecido” e a ausência de estudos
à altura desses dois Nomes inscreve-se de igual modo sob o signo do “corpo
morto”.
Mais recentemente, compondo o perfil de uma literatura
regional, o poeta-performer, douradense, Emmanuel Marinho, vem realizando
significativa produção artística que privilegia expressões da realidade e do
cotidiano da região. Num dos textos de Emmanuel, mais amplamente conhecido e
explorado, “Genocíndio”, propõe-se uma vigorosa denúncia da condição de
expropriação e espoliação a que tem sido submetido o índio e sua cultura em toda
a região sul do Estado; “Genocíndio”, poema-apólogo do quase extermínio da
população indígena local. Também o poema “Índia velha”, outro símbolo do clamor
indígena torna patente a metáfora do “corpo despedaçado” na medida em que a
representação do regional constrói-se sobre os signos do arcaico e do moderno:
de um lado, o universo indígena, sofredor do processo de aculturação (cheiro
verde; teus colares; lençóis de flores na aldeia; cheiro verde; água boa; fonte
limpa), de outro, o mundo urbano, criado pelo homem branco (vestido encardido;
sapatos; asfalto e areia; bares). (Cf. Parentel). A preocupação com o elemento
indígena, aspecto já patente na obra de Emmanuel, ganha exponencialidade na
concretude da escultura de Conceição dos Bugres. Conceição, principal escultora
de MS, é reverenciada nacionalmente pela singular caracterização de suas
esculturas; a artista esculpiu diversificadas fisionomias dos “bugrinhos”, de
tal forma que suas caracterizações, ao mesmo tempo que representam a
caracterização da nação guaicuru, também ganham relevo artístico e se aproximam,
numa visão universalizadora, do elemento aborígene, rústico, e do elemento
autóctone, remetendo para a cultura maia, inca e/ou asteca. Para Conceição, os
bugres de madeira parecem formar uma série de obras que se recomeçam em outras,
o que equivale a dizer que suas personagens iguais são profundamente diferentes,
diversas e de mil fisionomias. Apesar de ser lembrado, regionalmente, como o
autor dos versos de “Genocíndio”, o poeta Emmanuel Marinho mereceria antes ser
celebrado como o autor de Margem de papel e pelo mais recente trabalho
publicado, o disco “Teré”, em que o próprio Emmanuel lê e declama alguns de seus
poemas _ uns já conhecidos, outros novos e originais . No caso deste disco
merece destaque especial o redirecionamento que o autor passa a imprimir não só
ao processo de reelaboração de sua temática regional, mas sobretudo pelo
surgimento de um registro artístico que de modo objetivo torna-se a formulação e
a constituição de uma matriz poética resistente ao rótulo de literatura
regional, tout court. Neste nível, o poema “Genocíndio” compõe-se de um outro
texto cujos sentidos entranham-se na análise do próprio poema: “a poesia é suja
de som? De sonhos/ de sangue de signos./ (...) a poesia lê o mundo/ inventa
outros/ mofa nas gavetas / arranha paredes/ perturba a ordem pública/ e protesta
nas praças pela paz”. A partir daí, pode-se avaliar nitidamente a evolução da
obra de Emmanuel, que, vindo de um sistema regional inicialmente articulado com
uma realidade político-literária, encaminha-se para o polissistema nacional, não
anulando a tensão entre o regional e o nacional (Cf. Cosson: 1998.). Conforme se
percebe nestes outros versos, pelos quais o poeta é nacionalmente reconhecido :
“poesia não compra sapato mas como andar sem poesia?”. Entretanto, tal evolução
que aqui se constata não pressupõe, ainda, um distanciamento do poeta a uma
temática própria da literatura regional, uma vez que o conjunto de sua obra , e
o próprio título Margem de papel, deixa-se indexar ostensivamente sob os restos,
as margens e as multifaces do conturbado solo que constitui a representação
cultural: ou seja, o corpo despedaçado do texto, na sua matriz representativa,
atua sobre o emaranhamento da problemática identidade versus representação, e o
texto acaba atuando, ainda, como margem de papel, e da folha, indicando o
macrotexto sócio-político-cultural que compõe aquela região – o entorno do
pantanal mato-grossense. Aliás, o próprio processo de reduplicação de um único
tema, o genocíndio, evidencia deslocamentos reveladores de possibilidades
plásticas, na medida em que o os dois textos escritos sob um mesmo título
(Genocíndio) desdobram o eixo temporal em sua simultaneidade de passado e
presente. Com isso, não só o espaço e o tempo recuperam-se em seu nomadismo,
volatilidade plástica, mas sobredeterminam o próprio universo do discurso, ou da
representação. Quer dizer, a partir do paratexto-título “genocíndio”, Emmanuel
Marinho escreve dois poemas comprovadamente diferentes, quer seja no que se
refere ao espaço que cada um ocupa na ordenação e paginação das respectivas
obras, na série-conjunto das obras do autor, quer seja com relação ao objeto e
signos aí representados. No entanto, a análise comparativa dos dois textos
resulta extremamente produtiva na atualização dos sentidos que se encontram e se
cruzam, compartilhando seus respectivos espaços de significação. Da perspectiva
do poeta-artista-ator, o refrão “ tem pão velho?” ( ato perfomático de crianças
indígenas batendo palmas nos portões), que se repete ao longo das seis partes do
poema, dramatizando a dilaceração do elemento indígena, finda, no segundo texto
e segunda versão de “Genocíndio”, absorvido plenamente pela matriz poética,
lírica, do poema, que, agora encerra em si o espaço e o tempo da sua
representação, onde a temática da realidade, o elemento indígena potencializado
já pelo paratexto-título, permite-se ler na própria materialidade do ser
poético, uma vez que “a poesia é suja de sangue e de signos”.
Assim, executando o labor criativo na própria materialidade
da folha ou da página em branco, Emmanuel Marinho realiza em Margem de papel uma
espécie de ato performático, oriundo da dupla experiência do poeta que é também
ator; exigindo do leitor um olhar em movimento, ou seja, a leitura do poema
transborda o espaço do próprio olhar visual para lançar-se sobre os elementos
contextuais e regionais de que o livro como um todo sintetiza metonimicamente os
nomes e as faces de uma região particular. Nessa perspectiva, é interessante
observar o “Prefácio” que Sérgio L.R. Medeiros escreveu para o livro, já
intuindo esse aspecto plástico visual da poesia do autor: “ (...) - a sua
palavra é também pintura, forma desenhada na página. Ler Emmanuel Marinho é a
oportunidade de descobrir uma outra dimensão da sua arte, a da palavra-coisa,
que pode ser vista e admirada. Neste livro, o poema visual é a outra face do
poema oral, escrita oriental, ambas presentes no livro”.
Com efeito, Margem de papel traduz-se na provocação do
olhar e da sensibilidade do leitor, que deve recompor os sinais gráficos na
busca de imagens e figuras que a textualidade plástica espalha, numa forma
lúdica, por entre as páginas. Idéia e estrutura tornam-se inseparáveis, são o
significante único. Só acompanhando os retalhos que compõem a obra no seu todo é
que se pode apreender as interrogações que o texto de Emmanuel faz eclodir:
eclodir, p.ex., a questão da identidade, do autor, do leitor, de um mundo em
perplexidade. Desse significante brota a certidão, registro de nascimento, que
abre a própria obra: na folha, despedaçada, está a certidão de nascimento. Seria
a certidão do poeta? Registro e/ou certidão recortados, como a escrita
esfacelada e fragmentada da “cartilha” e de outros textos que também compõem a
obra; todos retalhos de um fio de navalha que vai cortando cada página até a
des/configuração plena das folhas em branco, sem escrita, assumindo de vez a
descoloração da escrita para ganhar, no final, o colorido do arco-íris. Não
transigindo com uma gramática, a obra é margem de papel, margem de palavras, que
resgatará a identidade extraviada dos seres e das coisas – “papel sem margem
como eu”, como diz o poeta. Ao lado de uma denúncia pelas margens e entrelinhas
do próprio texto, corre também uma citação constante, o retalho de outros textos
com os quais Emmanuel trava um diálogo poético-performático: Manoel de Barros,
Borges, Dali e Mallarmé. Nesse gesto de apropriação, Emmanuel brinca com o
papel, jogando com as estereotipias do estabelecido como se quisesse gritar, com
suas palavras, que nada existe, que é para além da margem da identidade oficial
e aparente que se deve olhar. Ou, não seriam as coisas feitas apenas de papel,
não seríamos nós todos apenas seres de papel? A questão da identidade cultural,
hoje, parece estar vicariamente ligada ao que Stuart Hall caracteriza como algo
que flutua livremente, decorrente de uma sociedade regida por imagens da midia e
pelos sistemas de comunicação globalmente interligados (Hall: 2001, p.71-75).
Para esse sistema de identidade cultural, o sujeito é o que se vê espelhado nos
fragmentos e nas fraturas e sua identidade resultaria num plano de “geografias
imaginárias”. Não seria mais apropriado, então, localizar a questão de nossa
identidade cultural para além das esculturas de bichos que abrigam as cabinas de
telefone, para além do embelezamento e do empalhamento que pré-moldaram a
questão da identidade e da representação? Adotando, assim, a perspectiva da
escritora sul-mato-grossense, Raquel Naveira, que no poema “Limites” explora os
“trópicos imaginários ”, questionando o frágil, a fronteira, o extremo, que
des/limitam essas geografias? Algo, “que escapa de meus dedos / Como um pássaro
sem pluma.” Não estaria entranhada nesses versos, na vigorosa metáfora do
movimento que eles engendram, a possibilidade de refletir acerca da construção
identidade do MS?
Referências
Bibliográficas
COUTO, Carlo Magno. O Guizzo é
que tinha razão. Jornal O Progresso. 11/06/99.
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Rildo. “Notas à margem de uma fronteira móvel”. In: Continente Sul/Sur, Porto
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MARINHO, Emmanuel.
Teré. Manaus: Compact disc, 2002. 1 CD (80 min): digital, stéreo.
MARINHO, Emmanuel. Margem de papel. Dourados: Manuscrito
Edições. 1994.
NAVEIRA, Raquel. Casa de Tecla. São
Paulo: Escrituras Editora, 1998.
NOLASCO-SANTOS, Paulo
S. “Notas à margem: fato e ficção na construção identitária de MS”. In Anais. I
Colóquio Sul de Literatura Comparada e Encontro do GT de Literatura Comparada da
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NOLASCO-SANTOS, Paulo
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CARVALHAL, T.F. (Org.). Culturas, Contextos e Discursos – Limiares críticos no
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NOLASCO-SANTOS, P.S. (Org.). Literatura Comparada: Interfaces e Transições.
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NOLASCO-SANTOS, Paulo. “Sobre um inédito de Lobivar Matos”.
In: GT de Literatura Comparada da ANPOLL, Seção Fórum da home-page, 1999.
www.letras.ufmg.br/gt/index.htm.
PERENTEL, Erenildes de
Rodrigues. O lirismo e a dramaticidade em Emmanuel Marinho. Dourados: UFMS,
1999. (Monografia, Especialização em Literatura Comparada).
REVISTA MS Cultura. Identidade Cultural: São os bugres de
Conceição a nossa mais completa tradução? FCMS: Campo Grande, n.9,
1996. [topo da
página]
# Rachel Esteves Lima – Memória
da crítica
Analisando as diferentes estratégias de resistência ao
controle exercido pelo sistema capitalista adotadas pelos movimentos modernistas
europeus e norte-americanos e pelos atuais defensores da sensibilidade
pós-moderna, Andréas Huyssen (1997, p. 222-255) destaca que estaríamos vivendo
um processo contrário ao que marcou a querelle des
anciens et des modernes. Se, naquele momento, as armas da guerrilha cultural
das vanguardas se voltavam contra o museu, enquanto instituição que
possibilitava a articulação entre a nação e a tradição, no cenário pós-moderno,
ocorre uma revivescência do processo museológico, que beira uma verdadeira
obsessão na esfera da cultura. A “museumania” contemporânea configuraria,
segundo o crítico, a ultrapassagem de um momento no qual essa instituição assume
uma concepção conservadora e elitista, cedendo lugar ao hibridismo que rege a
produção e a recepção dos bens simbólicos numa sociedade de massa.
Sem se prender a posições excludentes, que implicariam a
simplista defesa das propostas vanguardistas ou pós-modernistas, Huyssen
ressalta o caráter paradoxal que sempre cercou o museu - também ele um produto
da modernização -, insistindo na natureza dialética desse lugar que privilegia a
atividade do colecionador e na possibilidade de politização da arte e da cultura
(assim como dos discursos teórico-críticos sobre tais esferas), aberta pela
recente concepção do museu como um espaço de contestação e negociação cultural.
No ensaio “Escapando da amnésia”, afirma o crítico:
Os museus foram criados para serem instituições pragmáticas
que colecionam, salvam e preservam aquilo que foi lançado aos estragos da
modernização. Mas ao se fazer isso, o passado inevitavelmente seria construído à
luz do discurso do presente e a partir de interesses presentes. Fundamentalmente
dialético, o museu serve tanto como uma câmara mortuária do passado – com tudo
que acarreta em termos de decadência, erosão e esquecimento -, quanto como um
lugar de possíveis ressurreições, embora mediadas e contaminadas pelos olhos do
espectador. Não importa o quanto o museu, consciente ou inconscientemente,
produz e afirma a ordem simbólica, pois sempre haverá uma sobra de significados
que excedem o conjunto das fronteiras ideológicas, abrindo assim um espaço para
a reflexão e a memória contra-hegemônica. (HUYSSEN, 1997, p.225)
O mesmo empenho em fugir ao reducionismo crítico se pode
perceber num ensaio posterior de
Huyssen, intitulado “Passados presentes: mídia, política, amnésia”. Se, no
primeiro texto, lança-se a hipótese de que a revalorização do museu assume, na
pós-modernidade o sentido libertário de instauração de um espaço de convivência
entre “múltiplas narrativas de significado” (HUYSSEN, 1997, p.251) e de
desconstrução das hierarquias instauradas na arena cultural - ainda que, em
alguns momentos, isso se processe sob a forma espetacularizada da arte como
mercadoria – já no segundo, o autor procura analisar mais detidamente as
motivações que levaram à atual obsessão museológica e os riscos de, com ela, se
recair numa visão neo-conservadora dos discursos da memória enquanto estratégia
política. Lembrando que a emergência de uma “cultura da memória”, a partir dos
últimos anos da década de 1970, decorre de um quadro político-econômico de crise
da utopia socialista e da reconfiguração geo-política-cultural imposta pela
intensificação do processo de globalização, Huyssen, recorrendo a Hermann Lübbe,
para quem a “musealização” encontra-se, hoje, infiltrada em todas as esferas da
vida cotidiana”, afirma que tal estratégia constitui um artifício para domar a
ansiedade gerada pelo processo acima mencionado e pela velocidade com que se
tornam obsoletos os produtos tecnológicos, científicos e as tradições culturais.
A “cultura da memória” cumpriria, diante desse quadro, o papel de compensar a
“entropia das experiências de vida estáveis e duradouras” (HUYSSEN, 2000, p.27),
a perda da racionalidade e a compressão espaço-temporal, vivenciadas na
atualidade.
A mitificação dos discursos da memória, considerados por
Huyssen como substitutivos incapazes de, por si só, gestarem uma proposta
política que supere a ansiedade decorrente da instabilidade política e econômica
e da perda dos referenciais identitários nacionais e comunitários, na
atualidade, é apontada pelo autor como uma ideologia simplista, que não
considera a inserção também desses discursos nas redes midiáticas, responsáveis,
em última instância, pela desestabilização das tradições culturais, no capitalismo tardio. Tal
processo é exemplificado pelo autor tanto através do acirramento das políticas
de identidade, geradoras dos atuais conflitos étnicos, quanto pela paradoxal
necessidade de se formarem, hoje, os “arqueólogos dos dados”, responsáveis pela
decodificação dos primeiros programas de computadores, e pela ameaça da perda de
memória cibernética vivenciada, recentemente, pelo chamado “bug do milênio”, que
nos levou a perceber o quanto “a ameaça do esquecimento emerge da própria
tecnologia”. (HUYSSEN, 2000, p.33)
É também a uma certa despolitização que Ítalo Moriconi
associa o retorno ao passado, empreendido pela crítica universitária brasileira,
na atualidade. Contrapondo-a à crítica que se praticava nos anos 70, período
áureo do investimento dos cursos de pós-graduação na teoria literária, no qual
se gestou uma das últimas polêmicas no meio acadêmico, o crítico afirma:
Tantos anos são passados, mas as questões então levantadas
nunca chegaram a ser realmente aprofundadas por um debate coletivo específico.
Sabe-se o que não se deseja. Mas não se sabe muito bem o que se deseja. Na área
dos estudos literários, tornou-se hegemônica uma postura anti-teórica. O
ensaísmo criativo almejado hoje serve de capa para abordagens descritivas, para
catálogos e paráfrases que testemunham, é certo, uma enorme energia de pesquisa,
em geral histórica, freqüentemente voltada para resgatar textos menores,
esquecidos pelos cânones consagrados da tradição. O pesquisador em Literatura
tornou-se arquivista, arqueólogo de papéis perdidos. Isso não é melhor nem pior
que na época da teoria, em que os textos acadêmicos repetiam teorias
estruturalistas ou pós-estruturalistas com disposição de papagaio. Mas a
monotonia de hoje é causada pelo desinteresse por idéias, levando ao isolamento
e despolitização da crítica universitária.
(MORICONI, 1996, p.55-56)
É certo que se pode discordar do exagero e da generalização
da afirmação de Moriconi, mas talvez ela, assim como a exposição do pensamento
de Huyssen, possa nos auxiliar a nos questionarmos se realmente o trabalho
acadêmico que vimos empreendendo tem nos oferecido a oportunidade de promovermos
um diálogo com nossos pares ou se nós não estaríamos também participando da
formação de uma cultura da memória como forma de compensar, de forma
despolitizada, a perda do referencial identitário que conferia um lugar ao
intelectual, na sociedade, ao mesmo tempo em que cobrava dele definições e
tomadas de posição. Se nos ativermos ao nosso grupo de trabalho e passarmos os
olhos nos títulos dos ensaios a serem apresentados neste Encontro, incluindo o
que ora lhes está sendo lido, perceberemos que a obsessão museológica (sem
nenhum sentido pejorativo) aqui marca presença, muitas vezes através da metáfora
do arquivo. Ainda retomando Moriconi, isso, por si só, não é bom nem mau. Mas
impõe-nos a inadiável tarefa de refletirmos sobre as motivações que nos levaram,
também, a optar por essa compulsão memorialística e sobre a forma como nosso
trabalho vem se desenvolvendo.
Podemos começar pela constatação de que o objetivo de
transformarmos o GT de Literatura Comparada num verdadeiro grupo de trabalho
parece estar encontrando obstáculos para ser concretizado. Ainda que alguma
linha de pesquisa possa considerar que as tarefas que se propôs vêm sendo
realizadas a contento, o que temos verificado é que, de modo geral, os
resultados ainda parecem apontar para o trabalho dos pesquisadores no isolamento
de suas instituições. Vários fatores podem ser listados para justificar tal
situação. Dentre eles, destaca-se a dificuldade de se promover encontros
periódicos para sistematizar as discussões, seja em decorrência de falta de
financiamento, seja por falta de tempo dos membros das linhas para participarem
dos encontros do GT. Mas parece-nos que esse não é o elemento central a
dificultar o nosso trabalho. Isso porque muito se poderia avançar, caso se
manifestasse a disposição em utilizarmos os recursos informacionais que
propiciam a interatividade.
O fato é que parece haver, hoje, da parte dos professores e
pesquisadores universitários, uma acomodação às exigências impostas pelos órgãos
responsáveis, no Brasil, pelas políticas educacionais e pelas regras de
concessão de fomento à pesquisa. O padrão de excelência da universidade dos
tempos neoliberais rege, hoje, a atividade intelectual, praticamente reduzida
aos rituais acadêmicos que, em grande parte, não propiciam a prática do diálogo
e da negociação dos sentidos. Assim, mesmo em encontros como os nossos, que,
segundo o que foi decidido pelo grupo há aproximadamente quatro anos, deveriam
priorizar a discussão dos projetos de pesquisa, acaba-se sempre recaindo na
apresentação de papers, numa demonstração de que não
conseguimos fugir ao funcionamento autista do sistema intelectual brasileiro.
Nosso interesse pela memória cultural talvez decorra justamente da instabilidade
que sentimos, enquanto partícipes desse sistema. Uma instabilidade gerada, por
sua vez, pela mudança ocorrida na própria noção de cultura nacional, que nos
impede de seguir as mesmas estratégias de representação utilizadas pelo
intelectual moderno, mas que, ao mesmo tempo, não nos tem levado a perceber
realmente as aporias em que se enredaram o nosso discurso teórico e
crítico.
Em um livro polêmico, Bill Readings nos força a enxergar
que, paradoxalmente, a emergência dos estudos culturais é acompanhada pela perda
da função da universidade moderna, justamente organizada em torno da noção de
cultura nacional. A emergência da universidade de excelência teria como
pano-de-fundo o declínio do Estado-Nação e a inserção da educação e da pesquisa
nas redes globalizadas do capital. Nelas, a produção do pensamento se mostra
dispensável e, talvez mesmo, indesejável. Sigamos o raciocínio do autor:
Devemos ser claros a respeito de uma coisa: nada intrínseco
à natureza da instituição irá consagrar o pensamento ou protegê-lo dos
imperativos econômicos – e tal proteção seria, na verdade, altamente indesejável
e danosa ao próprio pensamento. Mas, ao mesmo tempo, se o pensar deve permanecer
aberto à possibilidade do pensamento, assumindo a si mesmo como indagação, ele
não deve procurar ser econômico – ele se insere melhor na economia do
desperdício do que na economia restrita do cálculo. O pensamento é trabalho
não-produtivo, e por isso ele não figura nas folhas de balanço senão como
desperdício. A questão colocada para a Universidade não é como transformá-la em
refúgio do pensamento, mas como pensar a instituição cujo desenvolvimento tende
a tornar o pensamento mais e mais difícil, menos e menos necessário.(READINGS,
1996, p.63)
Para Readings, a retomada do pensamento só pode ser
vislumbrada se forem abandonadas posturas nostálgicas que insistem em recompor o
espaço de atuação do intelectual moderno e que nos impedem de aceitar a
necessidade de, pragmaticamente, habitarmos as ruínas da universidade,
construindo nela uma comunidade de pensadores, desvinculada da tradição
organicista da corporação medieval. Ao invés de considerar a comunidade como um
microcosmo em que se reproduziria a organização do Estado-Nação, o crítico
defende a formação de uma comunidade de pesquisa que rompa com a idéia de
unidade, identidade e consenso, instaurando, antes, o dissenso, a
descontinuidade e a inconclusão do processo de aprendizagem. Tal proposição
parece ir ao encontro dos últimos escritos de Michel Foucault, que apelam para a
formação de comunidades organizadas em torno da amizade, entendida como um
processo agonístico de convivência e experimentação. Longe de conceber as
relações de amizade como destituídas de hierarquias e de conflitos, Foucault as
compreende como “incitação mútua e luta, tratando-se não tanto de uma oposição
frente a frente quanto de uma provocação contínua”. (ORTEGA, 1999, p.168)
As considerações do autor de As
palavras e as coisas e, em menor medida, de outros pensadores, sobre o tema
da amizade são objeto de análise de Francisco Ortega, que, em seu livro Amizade e estética da existência em Foucault, comenta a
importância da ética da amizade no desenvolvimento do conceito de
“auto-estilização” do filósofo. A noção de subjetividade desenvolvida por
Foucault em seus últimos trabalhos não desprezaria a imprescindível presença da
alteridade na constituição do si-mesmo. O cuidar de si implicaria, segundo ele,
a possibilidade de estabelecimento de trocas intersubjetivas. Nessa tarefa, a crítica compareceria com uma
função formativa, como se pode depreender de suas palavras:
É a própria função do trabalho crítico que foi esquecida
[hoje]. Nos anos 50, com Blanchot, com Barthes, a crítica era um trabalho. Ler
um livro, falar de um livro, era um exercício ao qual as pessoas se dedicavam,
de certo modo, para si mesmas, para seu próprio benefício, para se transformarem
a si mesmas. (ERIBON, 1996, p.129)
É essa função constitutiva do sujeito, compreendido como um
ser em devir, como um ser que, ao se desdobrar no cuidado do outro, acaba
cuidando de sua própria formação, que nos interessa resgatar no desenvolvimento
de nosso trabalho. Num dos primeiros encontros para discutirmos o funcionamento
da linha “Literatura e memória cultural” e a forma de encaminhamento de seu
projeto de pesquisa, ressaltou-se a necessidade de seus membros se colocarem em
diálogo, corajosamente, de modo a possibilitar a renúncia à autoria individual,
em nome de uma obra que se ofereceria como resultado de um trabalho coletivo.
Nessa proposta intervinha, ainda que não nominada à época, a concepção
“parrhesística” de produção da verdade, desenvolvida por Foucault. Por parrhesía, compreende-se a possibilidade de se
vivenciar uma relação com uma alteridade dotada do direito de tudo dizer, aberta
e livremente, como forma de promoção do crescimento, no caso intelectual, de
todos os participantes do projeto. Infelizmente, definido o objeto da pesquisa,
tal objetivo ainda não se concretizou. E só nos resta nos perguntarmos se ainda
teremos a coragem de investir numa experiência que recuse o isolamento em nome
da construção de um mundo compartilhado em uma comunidade que não desconhece o
fato de também se instituir numa relação de poder, mas que procura “jogar dentro
das relações de poder com um mínimo de dominação e criar um tipo de
relacionamento intenso e móvel, que não permita que as relações de poder se
transformem em estados de dominação.”(ORTEGA, 1999, p.168)
A proposta, aprovada pela linha, de se promover a análise
da rede de imagens e conceitos operatórios tecida como recurso para se
compreender o intercâmbio cultural entre o centro e as margens do capitalismo, em sua fase tardia,
oferece-nos a possibilidade de compreendermos a nossa prática e a nossa função
na sociedade que se está construindo através de um processo de globalização
autoritário e excludente. Longe de se prender ao passado, importa-nos construir
uma memória que considere não apenas o momento, a forma e o local em que foram
produzidos os conceitos que têm possibilitado à crítica latino-americana a
reflexão sobre as relações culturais processadas na região, mas, principalmente,
o valor residual de tais formulações para se entender os impasses que a atual
situação geo-política, econômica e cultural apresenta, atualmente, às narrativas
de identidade. Através desse
trabalho, procura-se investigar a participação do intelectual no processo de
modernização das sociedades periféricas, enfatizando as ambigüidades e
contradições inerentes à sua atuação enquanto mediador entre temporalidades e
espaços diversos e as narrativas legitimadas pela sua intervenção na esfera da
educação e da cultura.
A ênfase na memória e não, propriamente, na história
insiste justamente na atualidade dos processos que se deseja estudar, num
empreendimento melhor descrito pelas palavras de François Dosse:
A memória pluralizada, fragmentada, extravasa hoje por
todos os lados o território do historiador. Importante instrumento dos elos
sociais da identidade individual e coletiva, ela está no cerne de uma questão
essencial. Depois de ter sido instrumento de manipulação durante muito tempo,
ela pode ser reinvestida numa perspectiva interpretativa aberta para o futuro,
fonte de reapropriação coletiva, e não simplesmente museografia desvinculada do
presente. A memória, supondo a presença de um ausente, continuará sendo o ponto
de união entre passado e presente, no difícil diálogo entre o mundo dos mortos e
o dos vivos. (DOSSE, 2001, p.36-37)
Espera-se, portanto, que a memória da crítica que se
pretende construir não recaia numa visão passadista e imobilista, mas que se
mostre consciente dos riscos inerentes a essa empreitada. Talvez seja
necessário, ainda, recuperar a posição de Huyssen, que, reconhecendo a
complexidade das questões envolvidas no tema da memória, descritas nos ensaios
citados, parece construir em sua reflexão um espaço intervalar no qual são
consideradas tanto as estratégias modernistas quanto as pós-modernistas,
voltadas para a política da memória. Pois, para o autor não se trata de se
defender uma política da memória de base essencialmente localista nem tampouco
de se recusar o teor subversivo das práticas de memória nacional na luta contra
o processo de globalização. Longe de desprezar o trabalho da rememoração,
trata-se, antes, de buscar compreender as contradições incorporadas, hoje, por
essa prática, com o objetivo de construir memórias que consigam distinguir “os
passados usáveis dos passados dispensáveis” (HUYSSEN, 2000, p.37), posição que
corre o risco de comportar, ainda, uma visada teleológica. A noção de futuro, tão cara às vanguardas
modernistas, faria, dessa forma, sua rentrée,
podendo, entretanto, ser suplementada pela articulação promovida com as noções
de “passado escovado a contrapelo” e de “agoridade” benjaminianas. (BENJAMIN,
1985, p.222-232)
Propõe-se a construção de uma história da crítica literária
e cultural, num contexto que não quer se definir nem como nacional nem como
puramente transnacional ou universal e no qual o recorte apresentado assume o
risco de uma escolha, se não arbitrária, pelo menos ciente de suas limitações. A
participação na consolidação de uma “cultura da memória”, para usar a
terminologia de Huyssen, não deve assumir, portanto, a ingenuidade ou o
desconhecimento das aporias enfrentadas, na atualidade, por um exercício
intelectual, que não pode mais furtar-se a reconhecer o caráter parcial de suas
reflexões e a instabilidade de quaisquer paradigmas sobre os quais se baseie.
A remissão a Huyssen assume, sobretudo, a função de
defender o caráter híbrido apresentado por uma pesquisa que se pretende
interdisciplinar e interinstitucional, como instrumento de fuga aos binarismos e
ao regime de identidade da ciência moderna. Acredita-se que é justamente através
da criação de um lugar teórico para o qual convergem as diferenças e as
contradições inerentes à enunciação de intelectuais situados em sociedades
multiculturais, na periferia ou no centro do capitalismo tardio, que se torna
possível abrir espaço para a “reflexão e a memória contra-hegemônica”, objetivo
primeiro de uma pesquisa que, para ser realizada, demanda muito mais do que
suporte técnico e financeiro. Pois, como afirma o entusiasta adepto da
tecnologia, Pierre Lévy,
Os dispositivos materiais em si, separados da reserva local
de subjetividade que os secreta e reinterpreta permanentemente, não indicam
absolutamente nenhuma direção para a aventura coletiva. Para isto são
necessários os grandes conflitos e os projetos que os atores sociais animam.
Nada de bom será feito sem o envolvimento apaixonado de indivíduos. (LÉVY, 1993,
p.131)
Resta-nos responder se continuamos despreparados para enfrentar esse
desafio.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica,
arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985.
(Obras Escolhidas, 1)
DOSSE, François. A história à prova
do tempo. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Ed. Unesp,
2001.
ERIBON, Didier. Michel Foucault e
seus contemporâneos. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1996.
HUYSSEN, Andréas. Memórias do
Modernismo. Trad. Patrícia Farias. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela
memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da
inteligência. Trad. Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1993.
MORICONI, Ítalo. Ana Cristina
César; o sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Prefeitura,
1996. (Perfis do Rio, 14)
ORTEGA, Francisco. Amizade e
estética da existência em Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
READINGS, Bill. Universidade sem cultura? Trad. Ivo Barbieri. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. [topo da página]
# Rildo Cosson - Gênero e
Representação
Admito que em
tempos de crítica feminista e estudos dedicados à produção de minorias sexuais,
o título de meu ensaio pode conduzir a expectativas equivocadas. Por isso,
adianto-me em esclarecer que pretendo tratar aqui de gênero em um sentido que
remete à disposição de textos e discursos, estando, portanto, mais próximo da
antiga noção de gênero literário do que das questões de identidade genérica.
Apesar do risco, mantenho esse título porque me interessa justamente ressaltar
uma correlação entre os dois termos.
Ao colocar gênero e representação lado a lado quero chamar
a atenção para uma relação aparentemente esquecida na agenda atual dos estudos
literários. Embora gênero e representação estejam presentes nos mesmos textos de
Platão e Aristóteles com que costumamos marcar a origem de uma reflexão sobre a
literatura, o desenvolvimento contemporâneo dos dois conceitos os coloca em
trilhas diferenciadas. Falar de gênero diz respeito ao funcionamento interno da
literatura e dos discursos em geral em termos de organização de textos,
taxonomias e hierarquias que não têm mais lugar em um uma cultura mundializada.
A queda dos muros, a hibridização, a interdisciplinaridade, as diásporas, o
desafio das fronteiras canônicas e tudo o mais que se pensa como próprio do
pós-moderno demandam movimentos de cruzamento e intercruzamentos que os gêneros
nas suas concepções tradicionais não conseguem operar. Não obstante, o uso da
categoria de gênero persiste nos mais diversos contextos, ainda que se procure
dela escapar com novas denominações que não deixam de funcionar como tal1. Já a representação está ligada à relação mundo e
texto, envolvendo não apenas o dizer mimético, como também as definições de
ficção, literatura, papel da linguagem, entre outras questões. A sua definição
vai além da literatura e requer que se adote perspectivas de ordem diversas,
tais como filosófica, sociológica e política, até porque se tornou também um
conceito-chave nas ciências humanas como um todo, como o demonstrou
exemplarmente Foucault. Além disso, os novos aportes críticos, quer sejam vistos
como pós-modernos, pós-coloniais ou pós-estruturalistas, tomam a representação
literária como ponto de partida para tratar de tópicos como raça, nacionalismo,
gênero (gender), ética, classe social e diversidade cultural.
Essa presença obsedante da representação e o relativo
apagamento do gênero pode ser, entretanto, uma miragem causada pela altura dessa
quase torre de babel que é a atual crítica literária. De fato, quando
correlacionamos os dois termos, percebemos que o funcionamento de um está
condicionado pela existência do outro, ou seja, não há representação sem gênero
e são os gêneros que organizam as representações. Para desenvolver essa nossa
percepção, vamos, em um primeiro momento, analisar alguns aspectos de duas
definições literárias de representação. Depois, buscaremos ligar esses aspectos
com a teoria dos gêneros do discurso, de Michail Bakthin, e a frame analysis, de
Erving Goffman.
Duas definições
de representação literária: o paradoxo e a convenção
O ensaio Literatura e representação, de Jean Bessière, faz
parte de um levantamento do estado da arte da Teoria da Literatura, reunindo
estudiosos reconhecidos e questões fundamentais da disciplina. O livro onde está
inserido funciona, assim, a meio caminho entre o manual e a atualização do que é
estudar literatura contemporaneamente. Essa localização transfere-se para o
texto através de um percurso extensivo entre teorias diversas que procuram
explicar a obra literária como representação, auto-representação e
anti-representação. É dentro desse quadro que o autor passa por vários tópicos,
tais como mímesis, realismo, referente, signo puro, simbolismo social, simulação
e estatuto literário, tendo sempre como guia a divisão entre a representação e a
autonomia da obra. Ao final do ensaio, a proposta de Bessière é de que se
suspenda a divisão e se aceite que “a síntese que a obra constitui realiza-se
contra a dominação do logos e da mediação; não instaura nem o seu próprio logos
nem o seu próprio mito; dá-se por unidade provisória no interior dessas
mediações e desse logos e, assim, por capaz de manifestar um modo próprio de
objetividade” (Bessière, 1995:396).
Com as mesmas características de publicação do texto de
Bessière, o ensaio Representation, de W. J. T. Mitchell, tem uma estratégia um
tanto diferenciada de abordagem do tema. O autor parte de Platão e Aristóteles
para tentar definir como e porque a representação é um conceito fundamental não
apenas na literatura e nas artes, mas também no mundo da política. Ao aproximar
estética e política, o autor chama a atenção para os dois eixos básicos de
sustentação da representação: de um lado, temos um processo de substituição que
está na base de qualquer representação, ou seja, a representação é sempre uma
troca de A por B; de outro, temos o imperativo da comunicação, a substituição
que deve ser compreendida e aceita como legítima. É no cruzamento desses dois
eixos que a representação pode se tornar um problema e tem sido discutida ao
longo dos estudos literários, quer em questões centradas sobre o objeto, os
modos e os meios da representação, quer na recusa da representação pelo
modernismo e pelas teorias formalistas. Por fim, após
analisar a questão da representação no poema My Last Duchess, de Robert
Browning, Mitchell conclui que “Browning’s poem should make it clear why there
would a strong impulse in literature, and in literary criticism, to escape from
representation and why such an escape can never succeed. Representation is that
by which we make our will known and, simultaneously, that which alienates our
will from ourselves in both the aesthetic and political spheres” (Mitchell,
1995:21). Na política, essa transferência pode gerar a democracia ou
o totalitarismo; na arte ela nos oferece a literatura.
A despeito de suas diferenças de percurso e estratégias de
leitura, as duas definições terminam com o que pode ser lido como o paradoxo da
representação. No caso de Bessière, trata-se de aceitar que a obra é ao mesmo
tempo uma mediação do mundo e um mundo em si mesma. Para Mitchell, representar é
fazer presente o que está ausente em um processo complexo de interação e
transferência política e artística. Na explicitação desse paradoxo, os autores
recorrem a argumentos diversificados. Um deles, porém, é de grande importância
para a nossa correlação entre gênero e representação. Trata-se do uso mais ou
menos extensivo que a noção de convenção encontra nos dois ensaios.
Em Literatura e representação, por exemplo, Bessière diz
que a divisão da representação e da auto-representação supõe “as modalidades e
as convenções da elaboração da obra e do reconhecimento que a representação
veicula” (Bessière, 1995:381). Mais adiante, tratando da simbolização social,
entrelaça as convenções da linguagem às convenções sociais ao afirmar que “a
representação é sempre, por um lado, interpretativa da maneira como uma cultura
se representa e, por outro lado, sempre uma metaforização, através da
propriedade do escrito, dessa representação” (Bessière, 1995:390). De
modo semelhante, Mitchell entende que “when something stands for something to
somebody, it does so by virtue of a kind of social agreement” (Mitchell,
1995:13). Depois, o autor procura distinguir entre os códigos, que
são os meios da representação, e as convenções, que são as maneiras de
representar, incluindo aqui os gêneros e os estilos literários. Ambos são
produtos de concordâncias sociais, mas entre eles pesa o grau de especialização
que as convenções têm sobre os códigos, de modo que “we might think of language
as one medium of representation, ‘literature’ as the name of the aesthetic use
of that medium, and things like poetry, the novel, and drama as very large
genres within that medium” (Mitchell, 1995:14). A despeito do desdobramento dos
dois termos iniciais (código e convenção) em três (linguagem, literatura e
gêneros), essa distinção é importante porque nos mostra que, seja no objeto, nos
meios ou nas maneiras, para acompanhar a divisão de Aristóteles da mímesis
atualizada por Mitchell, toda representação precisa de convenções para ser
aceita como tal. Essas convenções podem ser percebidas tanto como determinações
para a elaboração e a leitura das obras, quanto as configurações culturais que
reafirmam simbolicalmente o que somos, conforme se depreende das citações de
Bessière. Podem do mesmo modo ser tomadas como os limites daquilo que uma
sociedade considera como possível no seu entendimento do mundo, ou, nas palavras
do autor, “the social agreement” que subjaz a toda representação.
O gênero como
moldura
As convenções que dão suporte às
representações no campo literário receberam o nome de gêneros. Por uma conhecida
tradição, que muitos fazem voltar a Aristóteles e a Platão, os gêneros foram
repartidos em três: épico, lírico e dramático e a eles foram acrescentados
espécies e formas variadas à medida que a literatura se diversificava através
dos séculos. Para alguns estudiosos, a tripartição clássica representa mais do
que uma taxonomia de classes de textos literários, pois são indicadores dos
aspectos essenciais da existência humana (Staiger, 1975). Para outros, o
conceito de gênero não pode ser restringido a uma tripartição, nem mesmo ao
campo literário. É isso que propõe Bakthin com os gêneros do discurso.
Já amplamente adotada também na área da lingüística e da
educação, a teoria dos gêneros do discurso toma os gêneros como “um tipo de
enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e
estilístico” (Bakthin, 1992:284). Essa definição apresenta pelo menos três
aspectos inovadores no tratamento dos gêneros. O primeiro deles é estender a
noção de gênero para os discursos, conforme já nos referimos. Quebra-se, assim,
os limites tradicionais dos gêneros literários e afirma-se a heterogeneidade dos
gêneros, um fenômeno sempre percebido, mas dificilmente explicável pela
tripartição clássica. O segundo é que mesmo diante dessa heterogeneidade e da
sua relativa estabilidade, os gêneros adquirem uma descritibilidade que não lhes
nega historicidade, quer seja em termos diacrônicos, quer seja em termos
sincrônicos. Nesse sentido, contam tanto as marcas de ordem temáticas,
composicionais e estilísticas, quanto os processos de formação dos gêneros que
vão de primários a secundários numa relação dinâmica de absorção e transmutação.
São os gêneros e suas passagens intergenéricas que, para usar a metáfora de
Bakthin, funcionam como correias de transmissão entre a história da sociedade e
a história da língua. O terceiro aspecto diz respeito à estabilidade dos
enunciados que inscrevem os gêneros dentro dos discursos. Ao realizar essa
estabilidade, os gêneros estão funcionando não apenas como uma seleção e uma
organização dos enunciados, conforme costumamos perceber a função dos gêneros,
mas também, e sobretudo, como categorias de mediação cultural. Dizendo de outra
maneira, concebidos por Bakthin entre a atividade e a comunicação humana, os
gêneros são linhas que recortam linguagem e sociedade para formar o tecido dos
discursos.
É por essa condição de categoria de mediação cultural que
os gêneros estão relacionados à noção de convenção conforme discutida no
conceito de representação. Para tornar mais clara a relação entre gênero,
convenção e representação, vamos tomar emprestado alguns dos pressupostos
básicos da frame analysis de Erving Goffman (1998). É certo que Goffman não
estava preocupado com definições de gênero e representação, mas acredito que seu
conceito de frame pode ser um elo iluminador da questão que estamos tratando.
Para Goffman, o sentido que damos a nossa experiência e o modo como interagimos
dentro da sociedade é organizado por princípios que ele denomina de frames.
Enquanto princípios de organização das maneiras como entendemos e participamos
do mundo, os frames são articulados segundo as convenções, as regras e as normas
de uma sociedade, sendo que convenções, regras e normas revelam graus diferentes
e progressivos de aceitação desses frames no processo de interação humana. O
desrespeito a uma norma não custa o mesmo que a recusa de uma convenção. O
desconhecimento de um frame ou sua transposição inadequada de uma situação a
outra pode levar a situações cômicas, mas também a sérios curtos-circuitos
comunicacionais.
Dispostos dessa maneira, não é difícil perceber que um
frame corresponde a um gênero do discurso. Ambos organizam os modos como dizemos
nossas experiências de mundo. Ambos são mediadores entre as várias maneiras de
dizer a experiência de mundo. Ambos determinam os limites e a ultrapassagem
deles na construção do sentido do que somos e do que vivemos. Igualmente, o
frame pode ser visto como uma explicitação mais adequada à noção um tanto vaga
de convenção enquanto concordância social. De fato, como os frames distinguem os
diferentes modos de convencionalizar a experiência, podemos compreender melhor
porque certas convenções são mais facilmente rompidas e porque outras parecem
resistir ao tempo.
Se o frame é o elo que faltava entre o gênero e a
convenção, agora nada mais nos impede de perceber que a representação nunca
acontece apenas no simples exercício do desejo ou na criatividade genial de um
artista, mas sim numa rede complexa de convenções que são frames que são os
gêneros dos discursos. Toda representação passa necessariamente pela mediação
dos gêneros, pois é através deles que tornamos legíveis e legítimas nossas
inscrições na cultura. De tal forma que, se é verdadeiro o conhecido aforismo de
que a representação cria o representado, também é verdadeiro que essa criação
depende da configuração dos gêneros para se efetivar como tal.
1
- Veja-se, nesse sentido, as considerações de Marjorie Perloff e Ralph Cohen
sobre a persistência dos gêneros na coletânea organizada pela primeira com o
título de Postmodern Genres (1989). [topo da
página]
# Rosani Ketzer Umbach - A
representação da experiência de autoritarismo. Considerações
Preliminares
O autoritarismo de Estado caracteriza-se essencialmente
pela supressão das liberdades individuais – de expressão, organização social e
política, etc. Nesse tipo de regime, o Estado postula o princípio da autoridade
para impor sua ideologia. Freqüentemente faz uso de um aparato repressor, que
inclui a censura aos meios de comunicação, a prisão por motivos políticos e a
tortura. Levando-se em conta essas características, observa-se que o
autoritarismo pode ocorrer tanto no sistema econômico capitalista como no
comunista, mesmo que ambos se denominem democráticos.
O autoritarismo de Estado é uma constante no processo
histórico brasileiro, como mostra José Antonio Segatto em seu texto “Cidadania
de ficção”1. Impondo-se sobre a sociedade civil
ao longo da história, o Estado, organizado pela classe dominante, sempre exerceu
seu domínio pela coerção. Com a instauração da República em 1889, inaugura-se,
de acordo com Segatto, “um traço que seria constitutivo e que marcaria
profundamente a história republicana: a intervenção dos militares na vida
política”, o que equivale a dizer, “nos rumos e na configuração do poder”2. Foi assim também em 1964, quando ocorreu a
interferência direta dos militares na constituição do governo brasileiro.
As ciências políticas estabeleceram a designação
‘democracia autoritária’ para sistemas de governo que, como no Brasil pós-64,
são anticomunistas, firmando-se na supremacia do poder executivo em relação aos
demais poderes. Durante o regime militar brasileiro, o Estado tentou implantar
uma ideologia nacionalista e ufanista – “Brasil: ame-o ou deixe-o” -, muitas
vezes pela coerção e violência. Houve censura institucionalizada, repressão a
manifestações e tortura. Em seu estudo sobre a censura à imprensa escrita
durante o regime militar no Brasil, Maria Aparecida de Aquino3 afirma que a censura política – aquela “exercida
pelo Estado que, para proteger seus interesses, interfere na divulgação de
informações, determinando o que pode ou não ser veiculado” – tinha um caráter
“multifacetado e não-aleatório”, ou seja, a censura agia de forma sistemática e
variada, “de acordo com o momento histórico e com o periódico sobre o qual
atua[va], e sempre de acordo com os objetivos do regime militar brasileiro”4. Entre 1968 e 1978, a censura política à imprensa
escrita no Brasil agiu de duas formas: através de telefonemas, anônimos ou não,
de ordens escritas, apócrifas ou não, encaminhados às redações dos jornais, e de
acordos fechados com os proprietários de grandes órgãos de divulgação, ou
através de censura prévia.5
Além da censura aos órgãos de comunicação, havia um serviço
secreto, que espionava os cidadãos considerados subversivos pelo regime,
prendendo-os e torturando-os, em muitos casos até a morte. Censura, perseguição
política e espionagem também caracterizaram o regime socialista da extinta
República Democrática Alemã (RDA), que vigorou entre 1949, ano de criação do
“primeiro Estado socialista em solo alemão”, conforme slogan da propaganda
oficial, e 1989, ano da queda do Muro de Berlim. As ciências políticas utilizam
a expressão ‘democracia popular’ para designar sistemas de governo como o da
RDA, que são monopartidários e dominantes nos países da área socialista.
O regime socialista implantado na RDA sob a influência da
então existente União Soviética não poupou seus cidadãos da dominação pelo medo
e opressão. Através de sua rede de espionagem e conspiração, o ‘serviço de
segurança do Estado’ – Staatssicherheitsdienst – tornou-se um aparelho de
absoluto controle da sociedade, que se infiltrou em todos os seus campos,
incluindo a igreja, a literatura, a juventude e os grupos críticos.6 Para a RDA, vale a descrição que Ralph Miliband
fornece sobre os regimes comunistas: eles “procuravam sufocar e suprimir todas
as manifestações de vida que não pudessem ser rigidamente controladas pelo
Partido e pelo Estado”, valendo-se de um “gigantesco corpo policial investido de
poderes amplos e arbitrários”.7
Experiências de perseguição e prisão, essencialmente
traumáticas para quem as vivencia, freqüentemente são representadas na
literatura. Considerando-se a representação literária como mediação, torna-se
necessário discutir questões relacionadas a conceitos como ficção,
referencialidade e mímesis.
Os estudos literários que tratam de questões relacionadas à
representação freqüentemente buscam em Aristóteles e seu conceito de mímesis as
origens para suas considerações. Quase sempre esses estudos também chamam a
atenção para o fato de que o mundo conhecido por Aristóteles era estruturado de
outra forma, sofrendo ao longo do tempo modificações enormes, constantes e cada
vez mais aceleradas, de modo que o conceito imaginado pelo autor já não dá conta
da fragmentação típica do mundo contemporâneo. Se o conceito aristotélico de
mímesis sugeria imitação ou representação do real na arte literária, essa
concepção já foi bastante questionada ao longo dos séculos, tornando-se evidente
que a recriação da realidade na literatura é impossível. Por outro lado, a
biografia do clássico escritor alemão Goethe, para citar apenas um exemplo,
mostra que ele realmente vivenciou alguns fatos descritos em seu Werther,
considerado o primeiro romance moderno. Assim, nota-se em Goethe um certo
compromisso com a ‘realidade’, uma tentativa não só de representar situações
reais, mas também de, conforme Beutler, “lavar a alma” das atribulações e
inquietações pelas quais havia passado8, mesmo
que depois disso tenha evitado seu romance.
A questão da referencialidade é abordada em um ensaio de
Octávio Ianni, que trata dos cruzamentos entre o discurso literário e o
sociológico.9 Segundo o autor, a construção de
tipos e tipologias, tanto na narrativa literária como na sociológica, seria um
indício importante de como ambas estariam fascinadas pela ‘realidade’. Mesmo
porque a realidade histórica ou virtual, dada ou imaginada, revela-se um vasto e
fecundo manancial de matéria de criação para cientistas, artistas e filósofos. E
os tipos e as tipologias revelam-se algo como que uma decantação do que se
imagina que possa ser a ‘realidade’; ou de como se gostaria que ela fosse ou
parecesse.10
Representar a ‘realidade’ seria, então, fornecer uma visão
particular do mundo, mediada pelo texto, com seus elementos sintáticos e
semânticos, figuras de linguagem, símbolos, com a ressalva de que “o todo
representado pela narrativa é antes de mais nada o do texto”.11 Em seu ensaio intitulado “Representation”,
Mitchell12 entende a representação como uma
espécie de convenção, como algo que tem sentido apenas mediante acordo recíproco
entre o autor e o leitor: “When something stands for something to somebody, it
does so by virtue of a kind of social agreement – ‘let us agree that this will
stand for that’ – which, once understood, need not be restated on every
occasion.”13 Nesse jogo de faz de conta,
entretanto, a representação tem um custo, ou seja, perde em “imediatismo,
presença, ou verdade, na forma de um fosso entre intenção e realização, original
e cópia”.14
Da mesma forma que Mitchell, também Bessière enfoca “a
ambivalência de toda a representação”.15 Para
ele, a representação “define-se por uma certa autonomia frente ao real e por um
certo encerramento em si própria, e relativamente à historicidade e à mediação
simbólica social”. Bessière entende a obra literária como um “sistema construído
de símbolos”, que se compreende “no conjunto social e cognitivo de uma cultura e
de uma História, das quais propõe um paradigma de leitura”.16
No entanto, se a ‘realidade’ do mundo moderno se torna cada
vez mais uma construção fictiva, uma irrealidade, se cresce a disposição para a
ilusão, não seria natural que a ficção se tornasse antificção? Com o argumento
de que “a realidade moderna recebe, de modo crescente, aquela tintura de
meia-irrealidade, na qual ficção e realidade se tornam indiferenciáveis”17, Odo Marquard levanta essa tese: “Quando a própria
realidade se transforma num conjunto de ficções, a arte, por sua vez, torna-se
antificção”.18
1
- In: Sociedade e Literatura no Brasil. Org. José Antonio Segatto e Ude Baldan.
São Paulo: UNESP, 1999, p. 201-221.
2 - Idem, p. 203.
3 - Maria Aparecida de Aquino. Censura, Imprensa,
Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da
resistência: O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, p. 222.
4 - Idem, p. 32.
5 - Idem, p. 222.
6 - Cfe. Joachim Gauck. Die Stasi-Akten. Das
unheimliche Erbe der DDR.Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1991, p. 62.
7 - Ralph Miliband. Socialismo & Ceticismo.Trad. Ivone
Castilho Benedetti. Bauru: EDUSC, 2000, p. 75.
8
- Ernst Beutler: Posfácio. In: Johann Wolfgang Goethe. Die Leiden des jungen
Werthers. Stuttgart: Reclam, 1977, p. 154: "Goethe hat seinen Roman, nachdem er
ihn sich von der Seele geschrieben, gemieden".
9
- "Sociologia e Literatura". In: Sociedade e Literatura no Brasil. Org. José
Antonio Segatto e Ude Baldan. São Paulo: UNESP, 1999, p. 9-42.
10 - Idem, p. 39.
11 - Idem, p.
40.
12 - In: Critical Terms for Literary Study. Org.
Frank Lentricchia and Thomas Mc Laughlin. 2.ed. Chicago: The University of
Chicago Press, 1995, p. 11-22.
13 - Idem, p. 13.
14 - Idem, p. 21: "Every representation exacts some cost,
in the form of lost immediacy, presence, or truth, in the form of a gap between
intention and realization, original and copy" (Tradução própria).
15 - Jean Bessière. "Literatura e representação". In:
Teoria Literária.Org. M. Angenot, J. Bessière, D. Fokkema, E. Kushner. Lisboa:
Europa América, 1995, p. 394.
16 - Idem, p. 390.
17 - Odo Marquard. "Kunst als Antifiktion". In: Funktionen des Fiktiven.Hrsg. Dieter Henrich und
Wolfgang Iser. München: Fink, 1983, p. 48.
18 - Idem,
p. 54: "... die Kunst wird – wo Wirklichkeit selber zum Ensemble des Fiktiven
sich wandelt – ihrerseits zur Antifiktion" (Tradução própria). [topo da
página]
V Encontro Intermediário do GT de Literatura Comparada
da Anpoll – Salvador 2006
Ângela
Maria Dias – Os Estudos Culturais e a
deriva dos conceitos
Apresentar e comentar o texto pródigo em referências teóricas, misturas e
conjugações filosóficas de Román de
Para começar, há a epígrafe[1],
impossível de descarte, menos pelo tamanho e pela importância emblemática do
autor – José Lezama Lima – que pelo protagonismo que a ela vai sendo atribuída,
como uma espécie de súmula da visão descortinada por De
Como
se pode constatar, ela se refere à fábula poética intertextual do escritor, que
figura a América como era imaginária, dentro da cultura ocidental, produzida
pela soma e transformação de fragmentos de outros imaginários. Nesta ficção
histórica, a estética barroca constitui um autêntico começo ao engendrar uma
síntese hispano-indígena e hispano-negróide, como eixo para um devir que
transcende as próprias culturas apropriadas pelo “fato americano”, numa direção
trans-geográfico-histórico-cultural.
Por
outro lado, os heróis do século XIX invocados (Frei Mier, Simon Rodriguez,
Francisco de Miranda e Bolivar), em suas trajetórias tomadas romanticamente,
encarnam, como os outros atores da fábula, a “poiesis demoníaca”, entendida por
Irlemar Chiampi “como uma rede de imagens que recortam a astúcia e a magia, a
curiosidade e o prazer, a apetência e a devoração, a rebeldia e a liberdade, a
malícia e o engenho” (LIMA, 1998, p.31). Em outros termos, todos eles podem
confluir, ainda nas palavras da crítica, na figura de Caliban, “irreverente,
corrosivo, rebelde e devorador”.
Como atesta o final da citação, o destino da América, “mais feito de
ausências possíveis que de presenças impossíveis”, está então ficcionalizado por
estes heróis “românticos desterrados”, capazes de unir “a mais remota
autoctonia” à “futuridade da expressão americana”, por seus projetos
totalizantes de fundação e de integração (LIMA, 1998,
p.129).
Começa
então o texto pelas perguntas cruciais de nossa época: “Como pensar a súbita
mutação de imaginários e modelos intelectuais?” – ou ainda, “Como cifrar a
passagem do (...) “Occidente y sus Otros” até a chamada “Nova Ordem Global?”. Em
seguida, propõe-se a pensar a situação atual a partir da noção de “imanência”,
desdobrada numa espécie de lamento sobre a endogenia “de mercados que suprem sua
própria hermenêutica, de um telos capaz de auscultar-se e renovar-se a si mesmo,
anulando os modelos conceptuais que separavam a economia da arte e da cultura”.
Adiante, com indisfarçável nostalgia, o autor constata a dificuldade de entrever
na “interioridade hermética do capitalismo (...) o futuro sem as saídas utópicas
da arte ou da política, sem a transcendência habitual que sustém a função do
intelectual”. Saudades do intelectual público, investido de um poder pedagógico
e missionário, como porta-voz da coletividade e como detentor de uma razão
universalista? Assim é se lhe parece.
O próximo segmento desta primeira parte, aliás denominada “Sujetos a la
deriva”, é crucial para o desenvolvimento do argumento do texto, já que o
ensaísta se põe a caracterizar o “pensamento imanente” a partir de uma
alternativa binária, disposta com alguma ambigüidade, entre o que denomina de a
“filosofia espectral” de Jacques Derrida, em Spectres de Marx, e “a recente obra de
Antonio Negri e Michael Hardt”, os volumes Empire e Multitudes.
Ora, do meu ponto de vista, a abordagem de Derrida, e do “messianismo
desencantado” a ele atribuído, se processa francamente da perspectiva de Negri /
Hardt, além de revelar-se decididamente simplificada, tanto em nível da
reflexão, quanto do espaço a ela dedicado, de apenas um parágrafo – num texto
tão longo e tão pleno de referências. As expressões utilizadas, tais como “um
dos registros mais agônicos”, ou ainda “esta espécie de messianismo
desencantado”, bem como o comentário quase irônico a respeito dos “encantamentos
fantasmagóricos que oscilaram indefinidamente entre a memória, o afeto e o
desejo” revelam a adoção da perspectiva de Negri.
A seguir, o ensaísta, então, dedica-se a resenhar, em duas páginas, a
proposta da dupla Negri&Hardt. De saída, declara, o que, de fato o
interessa: “Depois de uma abordagem do império capital, examinam o enorme aporte
do legado desconstrutor e crêem vislumbrar um momento mais imanente (radical?)
ainda, de sujeitos sociais possíveis, de certo modo herdeiros, porém posteriores
ao conceito de povo”. Mais abaixo, torna novamente à questão do sujeito: “Resta
ver se o conceito de multidão restitui o sujeito revolucionário procurado por
Hardty&Negri, (...) porém não há dúvida que os pressupostos de Empire mobilizam um diálogo oportuno com
a filosofia espectral, que tem tido um impacto considerável na produção teórica
dos últimos anos”.
Ora, a busca de um novo sujeito da história não constitui propriamente o
objetivo do trabalho de Derrida, em nenhum momento da sua respeitável obra, que,
muito ao contrário, dedicou-se radicalmente a desconstruir uma ontologia da
presença. Evitando a redundância de repisar o consabido, limito-me apenas a
citar uma breve passagem do artigo do próprio Derrida, na coletânea citada em
torno da sua obra, tentando responder aos seus
debatedores:
Acima
de tudo, a reontologização que Negri propõe é bem pouco propícia a trazer de
volta a alegria que ele imagina que eu tenha roubado. Nem a sua nova ontologia -
emancipatória ou emancipadora - irá persuadir-me a reconsiderar, pelo menos por
agora, tendo em vista os argumentos avançados, a inteira desconstrução do motivo
ontológico em si, em sua raiz. (...)
Mas Negri talvez me permita dizer que é o seu empenho em reabilitar
ontologia, mesmo que a ontologia em questão seja pós-desconstrutiva, como ele o
afirma, que me parece guardar as marcas do luto, da nostalgia e, inclusive, da
melancolia. Ontologia envolve, aliás é, do meu ponto de vista, trabalho de luto
(às vezes condenado ao fracasso e à melancolia - o bem conhecido tema da
melancolia de Aristóteles e Heidegger - que incidentalmente, fala da melancolia
peculiar aos filósofos) - levado a efeito com vistas a reconstituir, salvar,
redimir uma plena presença de um ser-presente, onde aquele ser-presente, de
acordo com o que não é meramente uma falta ou fenda, mas também uma
oportunidade, apresenta-se como ausência: differance. (SPRINKER, 1999,
p.260-261)
Como se constata, fica difícil aproximar Negri do trabalho derridiano da
desconstrução, sem, pelo menos uma discussão a respeito das posições do próprio
Derrida sobre o assunto. Finalmente, ao encerrar esta 1ª parte do texto, De
Na 2ª parte, intitulada “Bordas / Margens Confinadas”, o ensaísta repisa
a sua perplexidade diante do que pondera como “uma crise que se pode resumir
simplesmente dizendo que ‘o estado se transmuta no mercado’”, para dispor-se
então a traçar o que define como “uma aproximação oblíqua às matrizes do tempo e
do espaço”, a partir da década de 60, na América Latina, “não tanto porque marca
o começo do boom, nem pelo esquerdismo cultural (...) mas porque é um momento chave para a
apropriação de tendências textualistas”. Depois de fazer uma série de
considerações sobre a “revolução textual” e “a idéia do texto-mundo”, “a
textualidade indiferenciada dos estudos culturais”, reconhece a resistência
atual a este paradigma e se volta para as repercussões do boom, no que tange à
expansão dos “estudos latino-americanos que ocorre nos Estados Unidos (...) e à
formação dos Area Studies na academia
norte-americana”.
A 3ªparte do ensaio, nomeada como “Política sem telos” se inicia pelo
reconhecimento de que “a função do intelectual (...) hoje perde relevância ou se
presta ao silêncio, para logo adiante constatar uma “correspondência imanente”
entre o “objeto de estudo” e o “sujeito pensante”, relacionada, em seguida, à
“primazia do gênero autobiográfico em nossos dias”, sobretudo creditada ao
“mercado”.
Mas, a par de muitas menções sem desenvolvimento, do tipo acima, sobre os
anos 70 e 80 como “um momento em que a narrativa latino-americana adquire um
valor ideal para a pós-modernidade literária”, ou ainda sobre o “desmonte
dramático da ordem discursiva, da história literária ou da história em geral”
processado pelos “grandes textos-modelos exemplares do excesso”, De
A
narrativa latino-americana cifrava um arquivo “inusual” para a vanguarda
crítico-literária de finais dos oitenta: não só se apropriava do regime
desconstrutivo da academia euro-norte-americana, o fazia rastreando a
modernidade truncada (...) Vista assim, a importância do boom não radicava
(necessária ou somente) em uma estética compensatória da utopia culturalista das
elites crioulas, mas na exemplaridade negativa desse corpus, em sua capacidade
de dar forma literária a uma cultura política que oscilava – recordando os
confins de Lezama – entre a ausência possível e a presença impossível (...)
Diminuíam assim – a partir da teoria da negação e do excesso literário – as
distâncias e diferenças entre o centro metropolitano e suas margens, ou talvez
se intuía que a hibridez, a heterogeneidade e a outridade restavam já subsumidas
no enredo da significação literária.
Considero esta aproximação entre a literatura do boom e a desconstrução
bastante inusitada, já que, do meu ponto de vista, ela pode desembocar em duas
ilações de pouco rendimento. A primeira é meio óbvia, caso se tome o “regime
desconstrutivo” mencionado como metonímia do pós-estruturalismo e da
textualização por ele promovida, para encetar a possível afinidade com o romance
do boom, que, nessa hipótese, seria tomado então como “escrita antropológica” ou
ainda como “etno-ficção”.
A segunda é, em minha opinião, menos aceitável, já que qualquer acepção
em que se tome o realismo mágico vai encará-lo como uma textualização voltada
para algo, um tipo de interesse ideológico ou político, fora do seu próprio
âmbito, além do seu próprio alcance e, por isso mesmo, estranha ao regime
textual do pós-estruturalismo. Assim, se tomo o realismo mágico, por exemplo, na
acepção de Jean Franco, como “um processo irreprimível de apropriação e desafio”
no qual se pode pressentir “uma Utopia entrevista do outro lado do pesadelo de
uma modernidade ainda inacabada” (MOREIRAS, 2001, p.229), ou ainda segundo a
sugestão de Moreiras, como “representação transculturadora”, no sentido de Rama
– isto é, como “integração das influências externas em um trabalho de
preservação e renovação cultural” (MOREIRAS, 2001, p.224) – , em qualquer das
hipóteses, o objetivo extra-literário se esclarece.
Por sua vez, se escolho a leitura de Moretti, que, a partir de Cem anos de solidão, considera o
realismo mágico como a “fusão da retórica da inocência (...) e da ideologia do
progresso e da modernização” (MOREIRAS, 2001, p.232), até mesmo a crítica à
racionalidade moderna e ao seu universalismo autoritário, inerente ao
pós-estruturalismo, se esvaece. Além disso, o caráter de negação não me parece
uma das características do realismo mágico, nem interpretado como
“não-disjunção”, nem como “disjunção”, na medida em que, em qualquer dos casos,
a afirmação do sistema literário latino-americano como campo de mediação entre
culturas está assegurada. Penso que só se poderia falar verdadeiramente em
negação, no romance Los Zorros, de
Arguedas, segundo a interpretação de Moreiras, como ocorrência-limite: ou, em
suas palavras, como “ruptura e esfacelamento epistemológico do realismo mágico
entendido numa chave de subordinação das culturas indígenas a uma máquina de
transculturação sempre já sob a hegemonia do Ocidente – a própria modernização”
(MOREIRAS, 2001, p.242).
Por fim, acho que a utilização fluida e imprecisa de conceitos como os
enumerados ao final da passagem – hibridez, heterogeneidade, outridade – não
acrescenta à reflexão teórica, já que indicia uma espécie de ecletismo, a meu
ver, parente de um jargão planetário, em que toda diferença pode ser vista como
exótica e passível de transformar-se em modismo intelectual e novidade para
consumo.
Na 4ª parte do texto, designada como “Embaixadas da fuga”, De
Nesse
sentido, “os departamentos de estudos literários das universidades
norte-americanas, dado o seu peso e magnitude institucional”, constituem as
“embaixadas da fuga” do título. O ensaísta relaciona, então, o “‘giro
culturalista” (que) brotava da própria vanguarda textual” com “as exigências de
produção simbólica do capitalismo global, que se fizeram sentir com grande
afinco no aparato universitário dos anos
Finalmente, na 5ª e última parte do texto, denominada de “Imaginação
planetária” - certamente numa alusão às eras imaginárias da fábula de Lezama
Lima, citado na epígrafe - De
Por outro lado, para comprovar o que percebe como “uma certa nostalgia
pela função formativa que ocupava a literatura”, cita uma declaração de Nelly
Richard, do ano 2000, na qual a crítica se posiciona contra determinados
sintomas do momento, constando:
Tem-se
consagrado uma indústria de papers
que deixa obviamente fora de seus trâmites competentes, tudo que se relacione
àquelas problemáticas formais e discursivas de uma prática de texto que, antes,
caracterizavam a formação humanística. Ao exclusivamente perseguir a
manipulabilidade do sentido com vocabulários desapaixonados, os estudos
culturais deixaram de prestar atenção aos deslizamentos de sentido e aos jogos
na escritura que convocavam a palavra “teoria”.
A partir daí, o ensaísta constata:
O
acervo desconstrutor quis difundir-se mais além da alta cultura, suscitando a
possibilidade de um tipo de intelectual acadêmico armado para desmontar o poder
discursivo em todos os terrenos da cultura, incluindo a política. Porém algo se
perdeu no caminho O que primeiro parecia uma libertação teórica, agora confirma
uma ameaça para a teoria.
Em seguida, ao arrolar os motivos para a percepção “dos estudos culturais
como um risco”, enfatiza a “sua proximidade com a cultura tecno-midiática” e, ao
avaliar a extensão do que considera a tarefa do “legado textual (...) desde os
Do meu ponto de vista, não se pode atribuir ao conjunto do pensamento
pós-estruturalista a ambição de “uma teoria contra-hegemônica”, já que tal
totalização contraria radicalmente todo o seu trabalho de sabotagem do
universalismo humanista, através de subversões teóricas pontuais e múltiplas da
tradição filosófica ocidental.
Na conclusão de seu extenso ensaio, De
O penúltimo parágrafo do seu texto resenha de maneira bastante
superficial e ambivalente o artigo “Literatura e cultura no contexto global”, do
primeiro ensaísta, publicado em coletânea da UFMG, coordenada por Reinaldo
Marques e Lucia Helena Vilela.
Assim, inicialmente dispõe que Huyssen “sugere a necessidade de abandonar
a divisão entre alta e baixa cultura que divide a arte séria e a cultura de
massas”, como se até hoje alguém precisasse tomar tal providência. Ora, na
verdade, o teórico pretende tomar “a problemática erudito-popular”, numa chave
bem mais complexa: libertando-a “de suas conotações pós-modernistas um tanto
quanto limitadoras” (MARQUES & VILELA, 2002, p.22) e, simultaneamente,
recuperando, em suas palavras, “de um modo pouco mais que arquival”, “a divisão
que separava o modernismo da cultura de massa”. E, entre inúmeras razões que
enumera para legitimar o tópico, enfatiza a importância
de:
revisitar
a problemática num contexto transnacional (...) para reinscrevermos a questão do
valor estético e da forma no debate contemporâneo e para repensarmos a relação,
historicamente alterada, entre o estético e o político para a nossa época, em
formatos que devem certamente ir além dos debates dos anos de 1930, mas também
além dos debates de pós-modernismo e pós-colonialismo das décadas de 1980 e
1990. (MARQUES & VILELA, 2002, p.23)
Entretanto, no desenvolvimento desta tarefa, ao contrário de propor, como
afirma De
a
volta à disciplinaridade poderia desempenhar um papel salutar (...) se ela
significa contrapor-se à antidisciplinaridade prematura de muitos estudos
culturais e fundir a teoria recente com as práticas críticas tradicionais das
disciplinas. (MARQUES & VILELA, 2002, p.19)
Por
fim, no último parágrafo, a invocação de Masao Miyoshi, fala do “desmonte do
humanismo, do nacionalismo, mas também do pensamento étnico e outras
totalizações parcializadas”, em nome da “construção de novos imaginários, dos
quais o mais urgente poderia ser uma cidadania planetária”. Ora, embora não
tenha tido oportunidade de ler o articulista citado, posso constatar que a nova
“era imaginária”, proposta por De
Notas:
[1] Todas as referências ao texto de Román De
[2] Todas as passagens citadas da presente coletânea foram traduzidas pela autora deste artigo.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
DE
LIMA, Lezama. A expressão americana. Trad., introdução e notas Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988.
MARQUES, Reinaldo; VILELA, Lúcia Helena (org.). Valores Arte Mercado Política. Belo Horizonte: Ed. UFMG / ABRALIC, 2002.
MOREIRAS,
Alberto. A exaustão da diferença: a
política dos estudos culturais latino-americanos. Trad. Eliana Lourenço de
Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.
SPRINKER, Michael (edited by). Ghostly Demarcations.
Eduardo
F. Coutinho – Leituras sobre a
transculturação: a proposta de Abril Trigo
Em um texto rico e denso do ponto de vista teórico, Abril Trigo procede a
uma revisão do conceito de “transculturação”, criado por Fernando Ortiz na área
da Antropologia, e apropriado por Angel Rama para o estudo da produção literária
latino-americana, examinando as críticas por que aquele teria passado ao longo
das décadas que se sucederam a sua formulação, e termina propondo a sua
releitura no plano do “transnacional”, o que resgataria a sua validade ao
levá-lo a superar as noções de “autoctonismo” e “nacionalismo” sobre as quais se
havia erigido e que constituíram o alvo principal dessas críticas. O conceito, segundo Trigo, devidamente
atualizado como “transculturação no transnacional”, ou ainda “transculturas
híbridas” ou “heterogeneidade transcultural”, termos criados com base em
alterações feitas a propostas alternativas da crítica, serviria para expressar
com vantagem o caráter processual dos fenômenos culturais do presente, mas seria
preciso levar em conta algumas questões que ele discute no final, como a
substituição da noção de “mestiçagem” pela de “migrância”, ou a de “fronteira”
pelo que designa de “frontería”, ou ainda por uma atenção especial para com os
novos modos de hegemonia e de produção cultural. Antes, contudo, de examinarmos a
proposta ou propostas de Trigo, lançaremos uma mirada ao conceito na visão de
Rama e procuraremos acompanhar a reflexão que o primeiro desencadeou a respeito
de suas diversas implicações e das críticas que lhe foram tecidas pelos
estudiosos que o antecederam.
Surgido em contraposição à noção de “aculturação”, em que, no embate de
culturas, uma suplanta a outra, resultando na assimilação da menos poderosa pela
mais forte, o conceito de “transculturação” foi criado pela Antropologia
latino-americana para designar um processo mais complexo que implica, nas
palavras de Fernando Ortiz, “também necessariamente a perda ou o desligamento de
uma cultura precedente -- uma parcial ‘desculturação’ – e . . . a conseqüente
criação de novos fenômenos culturais que poderiam ser denominados de
‘neoculturação’” (Cit. Rama, p. 33).
É um processo em que ambas as partes da equação são modificadas, e do
qual emerge uma nova realidade, composta e complexa, que não é nem a mera
aglomeração mecânica de caracteres, nem simplesmente um mosaico, mas um fenômeno
novo, original e independente. O
conceito foi elaborado, segundo a visão de Angel Rama, sobre uma dupla
comprovação: de um lado, implica que a cultura presente na comunidade
latino-americana está composta de valores idiossincráticos, que atuam desde
épocas remotas, e, de outro, reitera a energia criadora que a move, tornando-a
muito distinta de um simples conjunto de normas, comportamentos, crenças e
objetos culturais, pois se trata de uma força que atua com desenvoltura tanto
sobre sua herança particular, conforme as situações próprias de seu
desenvolvimento, quanto sobre os aportes provenientes de fora. E é justamente essa capacidade de
recriação que demonstra que a transculturação é própria de uma sociedade viva e
criadora.
Tomando de empréstimo o conceito da Antropologia e aplicando-o à produção
literária do continente, para referir-se às obras que buscaram romper com a
velha dicotomia entre a importação indiscriminada de modelos europeus, ou
euro-norte-americanos, e um autoctonismo voltado de modo exacerbado para as
condições locais – como se pode observar em movimentos como o criollismo, o regionalismo, o
indigenismo e a negritude, este último no Caribe francês –, Angel Rama afirma
que é preciso estabelecer algumas peculiaridades, dentre as quais uma espécie de
“seleção” ou de “filtro crítico”, que diz respeito não só à cultura estrangeira,
mas também à própria, onde se verificam as alterações mais significativas. O processo de transculturação literária
se verifica geralmente em três níveis – o da língua, onde se registra, por
exemplo, um fenômeno de unificação estilística, que neutraliza a dicotomia entre
a fala dos personagens e a do narrador; o da estruturação literária, onde se
verifica uma recuperação de estruturas da narração oral e popular; e finalmente
o da cosmovisão, onde se observa um retorno regionalista às fontes locais,
extraindo-se da herança cultural contribuições valiosas, como o extrato mítico
da cultura latino-americana. E em
qualquer dos três casos se verá que o produto resultante do contacto entre a
cultura da modernização e as fontes tradicionais próprias constitui um discurso
literário novo, que não se rende à modernização nem se prende ao autoctonismo,
mas, ao contrário, se utiliza de ambos para o próprio benefício.
Essa tentativa, presente na noção de “transculturação”, de resolução de
conflitos, através da configuração de algo novo, original, resultante da mescla,
ou até mesmo fusão, de elementos antagônicos, foi um dos aspectos que mais
contribuíram para as críticas que o processo recebeu posteriormente. Para Cornejo Polar, por exemplo, a
“transculturação” de Ortiz foi projetada por Rama como o dispositivo teórico que
oferecia uma base epistemológica mais sofisticada para as variadas ideologias da
mestiçagem; daí Rama ter recorrido à categoria de “plasticidade cultural”,
proposta por Vittorio Lanternari como resposta ao impacto da modernização. Mas
esta noção, muito próxima do sincretismo e da mestiçagem, não impede a resolução
essencialista da espiral ocasionada pelos binarismos
Buscando formular outro dispositivo teórico que pudesse dar conta de
situações socioculturais e de discursos em que as dinâmicas dos entrecruzamentos
múltiplos não operasse em função sincrética, mas, ao contrário, enfatizasse
conflitos e alteridades, Cornejo Polar propõe o conceito de “heterogeneidade
cultural”. Seu objetivo era
formular um conceito que, em vez de representar uma totalização hegemônica,
expressasse uma pluralidade antagônica, a tensa coexistência de culturas
diversas, cuja heterogeneidade se realiza através da participação segmentada em
sistemas dissímiles de produção. O
crítico parte da premissa de que existem entidades culturais discretas
portadoras de uma discursividade alternativa, porque em uma sociedade dividida
em classes e grupos étnicos nem todas as culturas terão o mesmo valor a respeito
do conceito de “nação”, e nesse sentido ele se aproxima da concepção de
Rama. No entanto, enquanto o último
busca apreender na literatura a “heterogeneidade cultural” de espaços, tempos,
movimentos, que reproduz as descontinuidades dos processos de modernização
cultural, Cornejo se volta para um plano mais amplo, descrevendo os efeitos
histórico-sociais da modernização na periferia.
Outro conceito que também funcionou, dentro do aparato crítico cultural
latino-americano, como alternativa para o de “transculturação” foi o de
“culturas híbridas”, proposto por García Canclini. Segundo o crítico, a “hibridez”
consistiria em uma espécie de complexificação – propiciada pela manutenção dos
conflitos e das diferenças sob o impacto do transnacional – da heterogeneidade
anterior, complexa articulação de tradições e modernidades diversas, desiguais,
onde coexistem múltiplas lógicas de desenvolvimento. Não há dúvida de que o conceito registra
melhor que os anteriores a ruptura epistemológica sob o impacto do transnacional
– trata-se de uma articulação complexa de tradições e modernidades sob a
hegemonia da macrocultura transnacional – e nesse sentido se aproxima bastante
da noção de “hibridez” desenvolvida por Homi Bhabha, mas, para Abril Trigo, “a
densidade fenomenológica da ‘hibridez’ reduz claramente sua precisão analítica,
a ponto de que, ao abarcar tudo, não qualifica nada.” (Trigo, p. 157). Segundo ele, García Canclini confere
estatuto de cultura ao que descreve como uma “heteróclita associação de
elementos estratificados que regem praticamente a conduta e as crenças das
classes subalternas” (Trigo, p. 158), e chega a conclusões empiricamente
evidentes, como a de que “o mercado substitui o Estado, pelo menos parcialmente,
enquanto espaço de disputa hegemônica e de negociação de identidades” (Trigo, p.
160). Finalmente, termina por
legitimar o paradigma clássico liberal, com sua redefinição da “nação” como uma
“comunidade interpretativa de consumidores” (Trigo, p. 160).
Um terceiro conceito, discutido por Abril Trigo, é o de “heterogeneidade
cultural heterônoma”, cunhado por José Joaquín Brunner. Para este, a heterogeneidade cultural
latino-americana, que se reflete na colagem, no pastiche, nos enxertos e nas
alegorias pós-modernistas da nossa modernidade é, assim como esta última, um
produto do mercado internacional. A
heterogeneidade registra, segundo ele, um duplo fenômeno: o de “participação
segmentada no mercado mundial de mensagens e símbolos” e o de “participação
diferencial segundo códigos locais de recepção” (Trigo, p. 161). A “heterogeneidade” para Brunner seria
um subproduto das sucessivas modernizações por que passaram as sociedades
periféricas; portanto, o efeito de uma diferença e não a sedimentação da
diversidade cultural. A crítica de
Brunner aos essencialismos (autoctonismos, indigenismos, mestiçagens,
canibalismos) e às soluções ideológicas correspondentes (mascaramento,
esquizofrenia, neocolonialismo, dependência e utopias diversas) se resume no que
denomina de “macondismos”:
“Macondo” seria a metáfora do misterioso, ou mágico-real da América
Latina, “sua essência inomeável pelas categorias da razão e pela cartografia
política, comercial e científica dos modernos” (Trigo, p. 161).
Tomando como base de sua crítica o par nacional x transnacional, Trigo se
pergunta então, a partir dos posicionamentos de Brunner, onde estaria o
diferencial latino-americano. Fica
claro, na proposta deste último, que a coexistência de sociedades, tempos
históricos distintos e modos de produção dissímiles não constitui de modo algum
um traço específico da América Latina, mas uma constante das modernidades
periféricas. A “heterogeneidade
cultural” latino-americana, assim entendida, fica então limitada a uma relação
transnacional/ nacional, sem dar conta da multiplicidade de conflitos nem das
matrizes culturais historicamente constituídas (produto de diferenciações e não
ontologicamente diversas) no interior das sociedades nacionais, regionais ou
locais. E Trigo conclui que talvez
a resposta pudesse residir no rastreio das respostas/ propostas locais à
transnacionalização, como propõe George Yúdice, pois a heterogeneidade seria,
assim, não o simples resultado de uma inserção diferencial no nível estrutural,
mas a conseqüência de operações nos níveis macro e micro.
Levando em conta que as principais e mais procedentes críticas à
“transculturação” de Rama residiram sobre a tentativa de síntese dialética que
esta propunha e sobre o seu viés de autoctonia ou nacionalismo, o que, segundo
Trigo, devidamente atualizado no plano do transnacional, voltaria a conferir
utilidade ao instrumental hermenêutico presente no conceito, ele procede a
algumas retificações, chamando atenção para a necessidade de substituição dos
conceitos de “mestiçagem” pelo de “migrância”, de “fronteira” pelo de
“frontería”, termo corrente, por exemplo, na crítica chicana, e de “identidade
mestiça” pelo de uma “id/ entidade agonística”, situada sobre um fio. A noção de “migrância”, extraída de
Cornejo Polar, na verdade, não substitui a de “mestiçagem”, mas a acolhe, pois
amalgama no presente da memória as instâncias e estâncias diferidas, invertendo
assim o seu “afã sincrético”. Nas
palavras do próprio Trigo, “enquanto o mestiço trataria de articular sua dupla
ancestralidade em uma coerência instável e precária, o migrante, ao contrário,
se instalaria em dois mundos de certa maneira antagônicos pelas suas valias: o
ontem e o lá, de um lado, e o hoje e o aqui, de outro” (Trigo, p. 164). Dessa maneira, a “migrância” não conduz
a sínteses, fusões e identidades estáveis, mas a um prolongamento de culturas em
conflito, o que promove uma identidade dual (a double consciousness), uma vez que o
migrante fala de dois ou mais lugares e – o que ainda é mais comprometedor –
duplica (ou multiplica) a índole mesma de sua condição de sujeito. A diferença do imigrante, sedentário e
moderno, cujo fim, dentro do espaço internacional em que se move, é
aclimatar-se, assimilar-se, identificar-se, com a sociedade receptora, o
migrante transnacional sempre se está indo (em mudança), mesmo quando permanece
para sempre no lugar. É alguém que
deixa um grupo social ou cultural sem ajustar-se satisfatoriamente a outro e se
encontra sempre à margem de cada um, mas nunca um membro de nenhum deles.
Do mesmo modo que o conceito de “migrância”, os conceitos de “fronteira”
e de “identidade homogênea” também cedem, na visão de Trigo, seu lugar a outros,
que ele escolheu chamar de “fronteria” e de “id/ entidade agonística”. A “migrância”, no sentido acima
discutido, adquire uma dimensão cultural que excede a mera trasladação
geográfica (campo-cidade, interior-exterior, periferia-centro), e configura um
locus enunciativo instável, portátil,
a partir do qual geram-se usos particulares da cultura ou culturas à mão, e nos
quais se constituem sujeitos desagregados, difusos e heterogêneos, ou ainda
trânsfugas e transculturados. São
sujeitos pluralizados, cuja práxis
cultural não se formula em termos metafóricos (mestiçagem, transculturação), mas
metonímicos (migrância, fronteria), que transgridem a problemática da integração
nacional ou da “nação” como corpo social uniformemente homogêneo, para
instalar-se em um espaço pós-nacional.
E a “fronteira”, convertida, segundo Trigo, em habitat migrante, torna-se “fronteria”,
isto é, mais espaço do que linha, mais âmbito do que marco, mais liminalidade do
que limite, em suma, a inscrição de caminhos, múltiplos e borrados, sobre um
lugar desterritorializado pelo contrabando e pela transmigração”. A fronteira, por sua vez, não fomenta
uma identidade mestiça, síntese acabada de entidades discretas, mas uma “id/
entidade agonística” e agônica, excêntrica mais do que descentrada, sempre sobre
o fio; é uma identidade circunstancial, portátil, articuladora, mais
produtividade do que ethos. Este é o sentido que adquire hoje, por
exemplo, a observação de Rama sobre a intersticialidade fronteiriça dos
personagens de Arguedas.
Finalmente, quanto aos novos modos de hegemonia e de produção cultural a
que se referira Trigo, ele afirma que se a “transculturação modernizadora” de
Rama constituíra, como quiseram alguns críticos (vide Larsen), “um substituto
para a hegemonia ao invés de uma cultura hegemônica” (Trigo, p. 167), a
“transculturação (no) transnacional” deveria então ser reconsiderada como a
produção cultural de articulações hegemônicas, processos nos quais agentes
sociais antagônicos negociam novas formações político-culturais inerentemente
instáveis, relacionais, de sutura impossível. E conclui que “esta concepção de
hegemonia como um movimento totalizador incessantemente destotalizado,
devidamente corrigida para dar ênfase adequada ao conflito sócio-cultural, nos
permitiria superar o telos dialético
e a aporia fundacionalista que amarrava Rama, e munir-nos de um instrumental
idôneo diante da transnacionalização” (Trigo, p. 167). A teorização da “transculturação (no)
nacional”, a proposta que apresenta, já visível no título de seu texto, pela
ótica da “produção consumidora” evitaria a um só tempo a fetichização invertida
da mercadoria e a reificação do consumo como instância autônoma nos processos de
produção.
A proposta de Trigo de deslocamento da questão para a instância do
transnacional é sem dúvida um avanço com relação à teoria de Rama, criada nos
anos de 1970, num momento em que a questão do nacional ainda se impunha de modo
contundente. Além disso, ela tem a
vantagem de dialogar com o conceito anterior, demonstrando a sua utilidade ainda
hoje, contanto que devidamente atualizado, de modo a poder considerar as
diferenças contextuais de uma época para a outra. Para isso, foi indispensável a revisão a
que procedeu Trigo das diversas posições da crítica, que já havia discutido e
reformulado o conceito, propondo muitas vezes a sua substituição por outros que
ela considerou mais idôneos. Suas
leituras da crítica, ou melhor, crítica da crítica, não só contribuíram para
elucidar melhor o conceito de Rama, como também trouxeram à tona contradições
resultantes do próprio afã de querer refinar a proposta inicial e prestaram
nesse sentido importante apoio para o desenvolvimento de uma reflexão mais ampla
sobre a questão. A proposta de
Cornejo Polar da “heterogeneidade cultural” é bastante enriquecedora, sobretudo
no que se afasta da síntese presente no conceito de Rama, mas ainda encerra,
mesmo que de modo mais suave, referências à questão do nacional; a de García
Canclini das “culturas híbridas”, por mais que busque articular-se com a questão
da transnacionalidade, refugia-se com freqüência nas metáforas que embasaram a
mestiçagem; e a proposta de Brunner, com sua crítica virulenta ao “macondismo”,
incide numa generalização, que faz ver a modernidade latino-americana como
réplica, e pior, encolhida e opaca, da modernidade ocidental. A proposta da “transculturação”, como
Trigo bem percebeu, tem o trunfo de frisar o diálogo intercultural, e, superando
a referência do sentido de nacionalidade que o embasou, poderá ainda vir a dar
frutos não só na esfera da criação literária, como dos discursos sobre a
literatura e sobre a cultura na América Latina.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
RAMA,
Angel. Transculturación narrativa en América
Latina. México: Siglo XXI,
1982.
TRIGO,
Abril. De la transculturación
(a/en) lo transnacional. In:
MORAÑA, Mabel (Ed.). Ángel Rama y los
estudios latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura
Iberoamericana/Universidad de Pittsburgh, 1997, p.147-171.
Eneida
Leal Cunha – O intelectual
astucioso
Em
ensaio breve escrito há mais de uma década, Silviano Santiago faz ao professor
universitário e ao “escritor literário” um enfático convite para “participarem
de maneira sistemática – em benefício da literatura, da universidade, da
imprensa, do público e até em benefício próprio – das páginas dos grandes
jornais e revistas de circulação nacional e internacional”. Como bom intelectual
cosmopolita, adverte que o relacionamento entre produtor/produção literária e
imprensa escrita não especializada “é moeda comum nos países hegemônicos”.
Como bom intelectual periférico, acrescenta: “Na América Latina, faz-se urgente
a discussão dos problemas que envolvem essa reaproximação no momento em que o
escritor se profissionaliza enquanto tal e o professor universitário começa a
ter questionada, pelo processo de democratização por que passa o país, as quatro
paredes do campus, onde encontrou salvaguarda durante o regime militar.”[1]
Para justificar o convite, Santiago traz uma sucessão de argumentos que expõem
os impasses vários da contemporaneidade e poderiam ser arrolados na rubrica das
“políticas da cultura”, desde que entendamos por isto muito mais do que a ação
(ou, às vezes, a inércia) do Estado na gerência dessa esfera da vida
pública.
A aproximação entre a crítica universitária e a grande imprensa, para
Santiago, pode promover o enfrentamento, e talvez a superação, de duplo impasse:
“o beco sem saída em que se encontram, por um lado, o gênero ensaio”, “por
excesso de pedantismo e notas de pé de página”, e, por outro, a “crítica
literária participante”, “imersa em indagações de caráter teórico-metodológico
especializadíssimas”. Após historiar brevemente a intensa intimidade entre a
literatura e a imprensa, desde a publicação dos folhetins até o atual contexto
de proeminência da indústria cultural e dos meios massivos audio-visuais, elenca
as forças que progressivamente produziram a separação e até o litígio, provocado
pelos professores universitários, a partir da entrada da Teoria da Literatura e
das prestigiosas vertentes críticas da segunda metade do século XX (o new
criticism, o formalismo russo, o estruturalismo, a fenomenologia heideggeriana)
na cena acadêmica brasileira.
O
artigo, embora tenha sido publicado em livro do autor apenas em 2004, pela
Editora da UFMG (O cosmopolitismo do
pobre), teve boa circulação ao longo dos últimos anos, entre os estudiosos
das letras que compartilham as inquietações de Silviano Santiago. Recomenda-se a
leitura aos que não o conhecem, pois trouxemos aqui apenas as suas linhas
preliminares, das quais se desdobra uma acuradíssima análise tanto do processo
de “desliteraturalização” da mídia impressa quanto das alternativas que se
impõem aos críticos literários na contemporaneidade latino-americana.
“A
crítica literária no jornal” serve aqui como introdução ao “depoimento” que nos
pedem nesta homenagem. Poucas semanas atrás, chegou às minhas mãos o mais
recente livro publicado por Silviano Santiago, com um título inesperado (Ora (direis) puxar conversa), mesmo para
quem conhecia o ensaio sobre Mário de Andrade escrito em 1993, que está na
coletânea, e com subtítulo mais insperado ainda – Ensaios Literários – se
lembramos que desde Uma literatura nos
Trópicos; ensaios sobre dependência cultural, de 1978, o autor vêm marcando,
nos subtítulos, a sua diferença ou a sua divergência em relação ao que,
disciplinadamente, é considerado da competência de um professor de literatura.
Assim ocorre com Vale quanto pesa;
ensaios sobre questões político-culturais, e, em 2005, já com alguma atenuação,
Confesso
que a novidade pode surpreender, mas não me desagradou. E pelas mãos desse
chamariz, iniciei a leitura do livro na contra-mão do sumário. Provavelmente
porque a sequência dos ensaios publicados em jornais brasileiros de grande
circulação (Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e o Estado de São Paulo), no final do
volume, tenha evocado o artigo de 1994. Ou seja, estavam disponíveis textos
conhecidos, mas perdidos de vista na perecebilidade teimosa dos recortes de
jornais e, principalmente, o ensaio “Manuel Puig: a atualidade do precursor”,
que o sistema de defesa das versões on line da grande imprensa não me permitiu
acessar, à época da publicação, na condição de não-assinante do Estado de São
Paulo.
A
minha leitura de trás para a frente, entretanto, ganhou fôlego de reflexão
avaliativa já nas primeiras páginas, com a proximidade deste encontro e a
obrigação (prazerosa) do depoimento aos colegas do GT de Literatura Comparada da
ANPOLL.
Desde
1990 e em especial no biênio 1994/1996, quando coordenei o GT, tenho me visto
empenhada na “causa” da Literatura Comparada. Trata-se, a meu ver,
indubitavelmente, de uma “causa”: em algunas circunstâncias, uma causa como no
plano jurídico – com acusadores, defensores e alguns crimes ostentados nos
debates, o principal deles, quase imperdoável, o de não se ter sabido dizer, a
tempo e hora, exata e estritamente, o que é (ou o que era) a nossa Literatura
Comparada; acusações sobre o uso de um nome, de uma designação disciplinar
tradicional e respeitável, para algo que se apresentava indisciplinadamente
outra coisa, há quase duas décadas atrás, na cena universitária brasileira.
Em
outras circunstâncias a “causa” se instalou no plano político-institucional e os
embates diziam respeito às expectativas de cidadania acadêmica para a minoria
oprimida pelas vertentes de abordagem do literário instituídas nos currículos –
a Teoria da Literatura, a Literatura Brasileira, as Literaturas Estrangeiras. Em
muitas instituições de ensino brasileiras, como o nosso Instituto de Letras da
UFBA, a Literatura Comparada não chegou a alcançar sequer o status de disciplina
optativa nos cursos de Graduação. A causa se tornou mais grave, beirando o plano
moral, quando foi flagrado um episódio de travestimento ou de contaminação,
quando sob o nome – já então legitimado – da Literatura Comparada,
insidiosamente, alguns professores de Letras praticavam os espúreos e anglófonos
Estudos Culturais.
(Tenho
que pedir desculpas, aos colegas, por esta forma pouco acadêmica de trazer aqui
o enredo disciplinar, mas outra não me ocorre, sem o tédio do déjà vu. E registrar que continuo
creditando as dificuldades maiores de funcionamento do nosso GT a esse enredo,
que nunca enfrentamos com rigor.)
Se
os embates entre comparatistas, culturalistas e literatos não arrefeceram, pelo
menos se deslocaram da cena principal para os bastidores, onde, como bem
registra Fredric Jameson (em “Sobre os estudos da cultura”[2]),
estão os jovens pesquisadores, os estudantes pós-graduandos, que precisam de
cobertura disciplinar. O saldo positivo da disseminação do debate existe, pode
ser constatado por quem se der ao trabalho de analisar as definições de àreas de
concentração, linhas e projetos de pesquisa que estão disponíveis nos registros
da CAPES sobre a área de Letras e Linguística. Mas existem formas menos áridas
de flagrá-lo, como, por exemplo, na leitura de boas teses que vêm sendo
produzidas nos Programas de Pós-graduação por todo o país pela geração
intelectualmente formada da década de 80 para cá, nas quais o investimento
intelectual e analítico é claramente insubordinado em relação às prescrições de
limites – de objeto, de metodologias, de leitura –, e invasivo de domínios
disciplinares. E existem oportunidades instigantes de leitura dos saldos desse
embate, em livros como o Crítica
Cult, de Eneida Maria de Souza, por exemplo.
O
que elegi para este depoimento, entretanto, não é exatamente a amplitude do
leque de interesses que vem se impondo nos investimentos críticos contra o
privilégio do texto literário, no campo das Letras. O que mais me apraz na
leitura dos livros recentes de Santiago, que reúnem trabalhos escritos entre
1990 (ano da publicação de Nas malhas da
Letra, e julho de 2005 (data da publicação de “Manuel Puig; a atualidade do
precursor”), especialmente no último livro, é o retorno – o “eterno retorno” em
diferença – à grande literatura e à visada comparatista, na aventura
jornalística do crítico.
Ou
seja, o reencontro com uma crítica literária e uma visada comparatista
perpassadas, por um lado, pelos compromissos ético-políticos e analíticos que
constam das agendas mais dignas dos estudos culturais aclimatados ao hemisfério
sul; por outro lado, impregnados pelas estratégias solidárias de comunicação com
o leitor não especializado que marcaram a nossa melhor tradição da crítica
literária não-acadêmica ou anterior à crítica universitária, que pode ser
resumida aqui pelos nomes próprios sintomaticamente evocados mais de uma vez no
conjunto de ensaios que compõem a coletânea de Silviano Santiago: Machado de
Assis, Sergio Milliet, Mário e Oswald de Andrade.
Para
ler os três romances de Puig traduzidos no Brasil – Boquinhas pintadas, Buenos Aires affair
e O beijo da mulher aranha – Silviano Santiago reativa o seu
repertório de antigo crítico de cinema e, principalmente, o repertório que
compartilha com o escritor argentino e é comum a “toda criança que cresceu e se
educou em qualquer cidade da América Latina durante a II Grande Guerra, [que]
desde cedo [foi] um consumidor da cultura de massa, que então começava a nos
chegar de maneira avassaladora dos
Estados Unidos.” Estas palavras, com feição de testemunho pessoal, abrem o
ensaio “Literatura e cultura de massa” (Palestra na SBPC em 1993)[3],
no qual avalia, como diz a epígrafe tomada às Seis propostas para o próximo milênio,
de Calvino, “o destino da
literatura e do livro na era tecnológica, pós industrial”.
Para
Santiago, “Manuel Puig é o primeiro grande autor latino-americano que trabalha
com a forma do escombro derivado do excesso de excesso da indústria cultural
estadunidense e argentina, ou seja, com o quase lixo – filmes
ultra-sentimentais, radionovelas, tangos e boleros”. A garimpagem dos escombros, aliás, é
apontada pelo crítico como uma quase compulsão do escritor periférico e não se
resume ao entulho das linguagens massivas; Borges, por exemplo, seria uma
contrapartida da mesma experiência de fascínio pelos escombros, embora tenha
eleito como manacial para a sua aventura literária o “entulho da erudição de
fundo europeu”. É se emaranhando e,
ao mesmo tempo, desvencilhando-se desconstrutoramente dos constrangimentos, dos
restos, dos excessos, da reiteração ou reapresentação incessante dos produtos
culturais do “chamado Primeiro Mundo” – seja a cultivada erudição livresca (que
“tem pouco contato com os problemas imediatos da nação, apresentando-se como uma
espécie de excesso inútil”, como observa); seja o consumo compulsivo da cultura de massa
– é do “entre-lugar”, agora redefinido, alocado no âmbito da criação literária,
que o escritor latino-americano pode encontrar uma alternativa de
originalidade.
Toda
a apreciação crítica dos romances de Puig se desdobra neste eixo: uma
especulação acerca da originalidade possível. Na paisagem hoje mais visível da
crítica universitária e, com destaque, no âmbito dos nossos exercícios
comparatistas, a reivindicação da originalidade tornou-se praticamente
interditada, pela sua dupla imbricação, com os rescaldos da valoração
etnocêntrica e com a santíssima trindade da modernidade estética: autonomia,
transgressão, originalidade.
Neste
sentido, a leitura da obra de Puig por Silviano Santiago pode trazer aos debates
programados para este Encontro – que “visa à
construção de uma memória da crítica cultural latino-americana, através do
estudo dos conceitos, temas e autores que constituem a base da prática
comparativista na região” –, um destaque ou uma questão suplementar: como a
crítica latino-americana se vê compelida a redefinir, e vem redefinindo,
conceitos e valores exauridos pelo uso (adversário) da tradição comparatista do
grande Ocidente que recusamos, como o conceito e o valor de originalidade. Para isto, talvez seja necessário,
preliminarmente, admitir que existe um “Ocidente menor”, embora ele não esteja
necessariamente confinado deste lado de cá do mundo, como evidencia o ensaio “O
cosmopolitismo do pobre”, que é, em princípio, a leitura de um filme de Manoel
de Oliveira[4]
ou dos saldos da experiência de emigração portuguesa. Esse outro Ocidente é bem
provido de potência criativa, a enorme potência da literatura menor, de Franz
Kafka, de Graciliano Ramos, de William Faulkner e outros “bichos do
subterrâneo”, que os ensaios publicados em primeira mão na imprensa e agora
reunidos por Silviano Santiago
em
Ora (direis) puxar conversa, com pedagogia
generosa, sensibilidade de bom mediador e inteligência crítica, apresentam,
machadianamente, ao “jovem leitor”, cujo horizonte de expectativas literárias é
provavelmente curto.
Na
leitura do crítico, a originalidade (e o sucesso) de Puig estão plantados numa
forma astuta de repetição, a repetição deslocada. Ao introduzir “com êxito
surpreendente a trama sentimental (por definição: barata e melodramática) no
sofisticado romance moderno [em 1969], sua atitude artística original foi logo
elogiada e apropriada por muitos em virtude da maré montante da indústria
cultural norte-americana”. A originalidade literária de Puig também se deve
também ao estilo “chapado”[5]
de sua escrita, “sem cintilações,
ou rasgos de ironia ou de cinismo”, sem interferências espertas do narrador.
Este seria o estilo aprendido com e apreendido dos escombros da indústria
cultural, próprio da dicção cinematográfica hollywoodiana, reforçado,
Mas
a originalidade de Manuel Puig, segundo Silviano Santiago, sofre por sua
excessiva “responsabilidade”. Esta
é a afirmação mais instigante e, a meu ver, a sua contribuição ‘mais
original’ ao resgate do conceito de originalidade ou da atualização do valor da
originalidade (desculpem a redundância). Desde a tradição vanguardista ou
modernista da primeira metade do século XX, os criadores estão compelidos à
“irresponsabilidade” com suas próprias invenções. Irresponsabilidade, explica o
crítico, significa o abandono da solução formal que foi em dado momento
inventiva e, imediatamente a seguir, é absorvida, paralisada, como clichê
cultural. Os exemplos que dá são
expressivos: Marcel Duchamp, Pablo Picasso, Graciliano Ramos.
Esses
três grandes artistas, entretanto, não conviveram, como Puig, com a vertiginosa
capacidade de absorsão e repetição conquistada pelos sofisticados meios da
reprodutibilidade técnica de nossos dias; também não conheceram a voracidade
competente da indústria cultural e da mercantilização do produto estético. A
inovação de Puig, como já visto, foi rapidamente assimilada. Escreve Santiago:
“seu ovo de Colombo foi imitado, copiado ou reinventado, com e sem talento, [a
tal ponto] que, no último quartel do século 20 ele se tornou praticamente um
lugar-comum na produção de filmes, telenovelas, romances, peças de teatro e
obras de arte.” A responsabilidade pela qual é criticado o romancista argentino
é paradoxal: para assegurar a condição de best seller, repete a forma, segue o
curso geral que a transmutou em fórmula de sucesso na indústria cultural. A
conclusão é cabal: “Se Manuel Puig fosse um artista irresponsável não teria escrito O beijo da mulher aranha e teria sido,
certamente, o melhor escritor latino-americano da segunda metade do século 20.
Foi responsável. Quis escrever e
escreveu um best-seller”. (Grifos dele.)
Só
como lembrete, nota de pé de página para os estudantes da ficção de Silviano
Santiago: se o crítico-escritor em pauta fosse responsável não teria descartado
a forma – que também fez fortuna nas nossas letras – de Em Liberdade.
O
ensaio sobre “Literatura e cultura de massa” pode retornar aqui para nos ajudar
a dar conta do que, para Silviano Santiago, está em pauta no resgate e na
revisão atualizadora do conceito de originalidade. Para expor a diferença entre
cinema e literatura, o crítico pretere os habituais confrontos entre a linguagem
verbal e visual e, com o aval de Benjamin, dedica-se a caracterizar seus
diferenciados modos de produção e circulação – entendida a produção no seu
estrito sentido econômico, como os investimentos financeiros necessários à
fatura de ambos. De um lado, os altos investimentos indispensáveis à produção do
filme, que exigem retorno imediato, e repercutem na necessidade de sua difusão
larga e rápida. Por isto o cinema rapidamente se transforma em uma indústria e a
indústria cinematográfica também rapidamente se internacionaliza. Por isto
também a fórmula, que assegura o consumo fácil e imediato, é a tônica do cinema,
salvo as conhecidas exceções inspiradas nas prerrogativas da autoria e do baixo
custo da fatura literária. Até
aqui, nada de muito novo se considerado o âmbito acadêmico bem informado, embora
se deva registrar a simultânea clareza e sofisticação do exposto, para o público
amplo dos jornais, menos familiarizado com a temática.
A
argumentação construída por Santiago em prol da originalidade e da literatura, a
partir da pergunta que a introduz, é contrastante
no contexto dos debates eruditos sobre a arte na atualidade – se
recordamos, por exemplo, o vaticínio sobre o esgotamento da capacidade de
invenção nos produtos culturais pós-modernos[6]
:
Por
que alguém ainda decide ser escritor? Por que solitária e artesanalmente decide
a trabalhar com palavras com vistas a um livro, livro que se torna mais e mais
um objeto obsoleto na época da cultura de massa? (...) Em outras e finais
palavras: existe ainda função social para a literatura neste final de
milênio?
A
defesa da literatura soa alusiva ao famoso binômio cunhado por Stuart Hall
quando define os Estudos Culturais britânicos como expressão simultânea de um
pessimismo da razão e do otimismo da vontade[7].
Para Santiago é possível “ter uma atitude cética” com a recepção da obra
literária na contemporaneidade que em tudo lhe é adversa e, “paradoxalmente”,
otimista – “bastante otimista”, como diz –, “quanto ao futuro da literatura e
seu papel social”. Exatamente porque em atrito com a hegemonia da produção
cultural massiva do presente, porque “intempestiva” – no duplo sentido de sofrer
menos a pressão da difusão e consumo imediato (do retorno financeiro) e, por
isto mesmo, poder trabalhar criticamente, conflituosamente, com a atualidade, a
literatura se beneficia (e se justifica) pelo fato de poder oferecer
na
futura leitura da obra uma visão presente do passado e uma visão passada do
presente. Todo texto literário, por mais alheio aos valores do passado,
movimenta direta ou indiretamente formas de tradição que são o palco onde se
desenrolam os acontecimentos presentes que real e virtualmente se representam no
tempo anacrônico e no espaço atópico da escrita.
Num
dos seus desvios ou montagens habituais, que desconsertam o leitor acostumado
com os rigores da cronologia (sempre alvejados pelo crítico Silviano Santiago),
traz de Machado de Assis, da abertura do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, que por
sua vez estava retomando Stendhal, o testemunho dessa intempestividade fecunda,
duradoura: se para o romancista francês a previsão de 100 leitores é um alento,
para o escritor brasileiro do século XIX é lícito contar com “Talvez
cinco”.
A
originalidade demandada ao escritor latino-americano contemporâneo, constituída
pela intempestividade, não significa, portanto, resguardar-se, ficar alheio ao
fluxo da indústria cultural, às linguagens que falam mais alto (e mais claro) no
seu tempo. Ou seja, não pressupõe criar imunidade em relação ao presente.
Pressupõe, sim, a deliberação para a simultaneidade do atrito e da troca que
pode alimentar a invenção possível e até, aquela que, no seu surgimento,
apresenta-se como impossível à decodificação imediata.
A
tarefa nobre do crítico literário latino-americano contemporâneo corre em
paralelo ao requerido do criador. Reaproximando-se da grande mídia impressa (ou
expondo-se nos meios de recepção ainda mais ampla e indiferenciada, como as
entrevistas televisivas), fica instado a revisar e esclarecer o estoque de
instrumentos e estratégias da leitura crítica pelo mesmo processo de atrito e
troca, para oferecer ao “leitor comum” a ponte, a mediação entre dois universos
culturais que apenas nas elocubrações universitárias tradicionalistas ou
conservadoras agem por repulsa mútua, pois, de fato, estão interconectados,
asperamente interconectados, nos melhores casos.
Exemplo
disto é a leitura de Lolita (1955),
de Vladimir Nabokov (“Lolita & outras ninfetas”) que também está no último
livro de Santiago, mas foi publicada pela primeira vez na Folha de São Paulo, quando lançada a
reimpressão do romance pela Companhia das Letras, em 1999. Antes de qualquer
menção ao romance de Nabokov, Silviano Santiago retoma com detalhes a matéria
“Uma união polêmica em Macaé”, da edição do jornal O Globo de 20 de março do mesmo ano, que
relata a convivência marital entre um aposentado de 58 anos e uma menina de dez
anos de idade. Mas não o faz para
explorar a afinidade do escândalo, seu alvo principal é expor a estratégia
narrativa do romancista e circunstancializar o seu abundante e hiper-erudito
processo de citação. Ao fazê-lo cumpre o seu compromisso de intelectual engajado
na democratização da alta cultura literária. Em paralelo, prepara futuros
leitores para seus próprios “livros literários”, plenos de intertextualidades e
transgressões acintosas. Coisas de intelectual sagaz, astucioso.
Notas
[1] SANTIAGO. A crítica literária no jornal. In Cosmopolitismo do Pobre. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. p.157-67.
[2] JAMESON, Frederic. Sobre os estudos da cultura. In Novos Estudos CEBRAP, n.39, p.11-48, julho 1994.
[3] In O Cosmopolitismo do pobre, p. 106.
[4] Viagem ao fim do mundo, de 1997.
[5] O autor esclarece que o termo vem do jargão das artes plásticas.
[6] Ver, a propósito, JAMESON, Fredric. Pós-modernismo e sociedade de consumo. In Novos Estudos CEBRAP, n.12, p. 16-25, jun. 1985.
[7] Cf. HALL, Stuart. Estudos culturais e seu legado teórico. In: Da diáspora:identidade e mediações culturais. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003.
Eneida
Maria de Souza – A crítica literária e o
neolatino-americanismo
Discorrer
sobre a crítica literária e sua relação com o latino-americanismo terá que
passar, obrigatoriamente, pelo lugar ocupado por Silviano Santiago nesse quadro.
A sua posição como crítico e escritor revela a preocupação com a definição de
uma literatura que ultrapassa o âmbito local, fechado, e se abre para uma
reflexão americana e latino-americana. Como ensaísta, a sua posição no debate
literário e cultural se manifesta de forma desconstrutora e distanciada frente
aos objetos de análise, reiterando opiniões já registradas na ficção. O ensaio
se desvincula do estudo acadêmico, por adquirir liberdade criativa e optar por
uma dicção mais dramatizada e em diálogo com o leitor. Distingue-se da ficção,
por ainda respeitar protocolos e pactos da escrita ensaística, embora se perceba
de que se trata de um discurso intervalar, híbrido e em simetria com o universo
fabular do escritor. A reflexão sobre manifestações culturais do presente ou do
passado requer a escolha de uma estratégia comparativa capaz de problematizar
certezas e apontar contradições. Leituras bem-comportadas tendem a repetir o que
o conceito de tradição guarda de mais conservador e intocável, como muito bem
assinala Mário de Andrade. Leituras desconstrutoras têm o mérito de deslocar
saberes consolidados, de se entregar à prática do jogo ambivalente dos conceitos
e de optar pelo excesso produzido pelo olhar suplementar do ficcionista ou do
ensaísta.
Essa
leitura exercitada por Silviano ao longo de sua trajetória intelectual é
tributária da teoria da desconstrução de Jacques Derrida, que consiste no duplo
gesto de denunciar, em determinado texto, tanto o que ele diz, assim como o que,
sob o olhar do presente, foi dissimulado e recalcado. Transgredir é o gesto
herdado por excelência, invenção, o esforço do leitor na criação do texto que
desconfia das origens e acredita na repetição como sinal de diferença e
resistência. Cabe ao leitor de cada época reinventar tradições, romper com a
cômoda atitude do senso comum, reprodutora fiel do discurso alheio.
Privilegia-se
a descrição da obra em perspectiva, no lugar da análise do quadro, do
texto isolado, considerando que toda obra se inscreve a partir de determinados
modelos que ampliam os espaços particulares em que foi gerada. Nenhum texto se
impõe como produto singular e autônomo, por manter compromissos com outros que
lhe serviram de suporte e com os futuros leitores. Desses lugares de enunciação,
canônicos ou não, é de onde parte Silviano no seu trabalho de desconstrução, por
meio da utilização do conceito de entre-lugar,[1]
segundo o qual “o lugar de observação, de análise, de interpretação não é
nem cá nem lá, é um determinado “entre” que tem que ser inventado pelo leitor”.
[2]
A criação desse espaço teórico relacional se aproxima da dobra leibniziana,
desprovida de avesso e direito, de interior e de exterior, tendo o deslocamento
como movimento instaurador da categoria nômade da escrita. A definição do
conceito de entre-lugar se alimenta ainda da lição de Borges, legítimo
representante de um escritor das margens. Ao adotar esse espaço intermediário de
reflexão, Silviano descarta “o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o
“lugar-fetiche do aristocrata saber europeu”. Desconsidera ainda o rancor
próprio da teoria marxista da dependência, por meio da qual se evidencia o
descompasso temporal e a consciência trágica do atraso dos países periféricos em
relação à cultura metropolitana. [3]
A
desconstrução dos princípios universalistas erigidos pela civilização européia,
com forte impacto nos estudos contemporâneos, é vista por Silviano como herança
do modernismo, pois, embora se pensasse na consolidação de uma nacionalidade
artística, Mário e Oswald de Andrade lutaram pelo reconhecimento da civilização
indígena e pela abertura a outras civilizações. Na percepção da América Latina
como cultura híbrida, isenta de radicalismos relativos aos sentidos de pureza e
unidade, e por essa razão, capaz de transgredir modelos e inventar respostas
próprias, o ensaísta remete à lição de Oswald sobre o tema, introduzindo-o como
um dos seus precursores teóricos no artigo “O entre-lugar do discurso
latino-americano”. O argumento encontrado é a mistura de raças, a “mulatização”,
que, comparado às novas formas do multiculturalismo, não se vincularia à posição
defendida por Gilberto Freyre: “A Alemanha racista, purista e recordista precisa
ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru e
do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para
sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa
mulatizar-se.”[4]
Mário
de Andrade fornece também ingredientes para o sustento do pensamento
multicultural contemporâneo, ao ser citado em ensaio dedicado à tolerância
racial em Oswald de Andrade. Neste texto, salienta a lucidez do escritor
paulista que, em 1924, ainda que defendesse o nacionalismo como primeira
preocupação, se abre para a compreensão da existência de várias etnias. O
emprego do plural para o termo civilização serve como abertura para a
multiplicidade cultural e funciona como previsão para o debate atual do tema:
‘Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo
Horizonte e S. Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há
civilizações”.[5]
O
multiculturalismo dos dias atuais recebe do crítico (“O cosmopolitismo do
pobre”) tratamento diferenciado daquele anunciado na obra de Gilberto Freyre,
por este se associar à fórmula do Estado-nação. Não resta dúvida de que se apóia
na lição legada pelos modernistas para “ir mais além”, com o cuidado de não
reproduzir noções criadas em tempo diferente e segundo intenções que se
distanciam das atuais. Nesse sentido, torna-se evidente o comportamento
analítico de Silviano diante do texto dos modernistas, ao acatar e ao mesmo
tempo avançar na reformulação do nosso repertório teórico e cultural. No ensaio
“Atração do mundo”, essa contribuição é ressaltada: “Com olhos livres, o
modernista rechaça a idealização e o recalque do passado nacional, acima
referidos, para adotar como estratégia estética e economia
política a inversão dos valores hierárquicos estabelecidos pelo cânone
eurocêntrico. Essa estratégia e economia de pensamento, necessariamente
periféricas, ambivalentes e precárias, tanto aponta para o resgate da
multiplicidade étnica e cultural da formação nacional quanto para o vínculo que
esta mantém com o pensamento universal não eurocêntrico.” [6]
A convivência sistemática do escritor com
o modernismo, além de ser distinta da vertente canonizadora de grande parte da
crítica, contribui também para o aproveitamento de conceitos operatórios
fornecidos pela obra de Mário e de Oswald de Andrade quanto para o exercício da
escrita ficcional. Sem se entregar a critérios binários de exclusão de um autor
por outro, vale-se da posição de Mário sobre a questão da dependência cultural,
a “traição da memória”, assim como do conceito de antropofagia de Oswald. Em
artigo de 1981, “Apesar de dependente, universal”, amplia o conceito de
“entre-lugar” com a apropriação das teorias modernistas, uma vez que estas
iniciaram o diálogo transcultural, ao transformarem o atraso e o
subdesenvolvimento das nações periféricas em resposta eufórica e positiva às
questões da dependência. Considera ainda o concretismo como o terceiro antídoto
proposto para se repensar a cultura nacional segundo critérios que reforçam o
conceito de defasagem temporal entre o produto da cultura dominante e a da
dominada, resultado do descompasso entre modernidade e modernização. [7]
Dos textos de Mário de Andrade, Silviano irá se valer na sua totalidade, mas de
forma mais rentável no que se refere à quebra de barreiras entre a cultura
erudita e popular, aos temas referentes à criação literária, à relação entre
arte e vida, à linhagem fraterna como substituição da paterna e ao papel do
intelectual moderno.
Em
texto de 2004, intitulado “O público, é preciso em primeiro lugar que a
literatura seja”, Silviano reitera a preocupação de se pensar num espaço
literário que rompa com a noção estreita de território e prenuncie a tendência
contemporânea de muitos escritores brasileiros, que ao escolherem o estrangeiro
como espaço ficcional, acenam para a ineficácia das retóricas identitárias. A
encenação realizada pelos livros Em liberdade, Stella Manhattan,
Viagem ao México e Keith Jarret no Blue Note, apenas a ficar
nesses exemplos, protagonizada por personagens que assumem papel duplo na
narrativa, personagens-dobradiça, concebidos segundo o molde de personagens-
anfíbios. Essa intenção possibilita ainda a contextualização de sua obra no
espaço igualmente ambíguo e intervalar. A citação é longa, mas necessária:
Não
há como não concordar com o fato de que, na década de 1980, era necessário
retirar a literatura daqueles limites estreitos e jogá-la para a arena das novas
discussões e conquistas, em pauta no mundo desde os anos 60. Alcançada a
liberdade, ainda que precária, chegado era o momento de liberar o ser humano das
micro-estruturas de poder e de repressão. (...) Afastávamos do contexto por
demais estreito da nacionalidade, para entrar no quadro dos movimentos de
liberação que, oriundos das campanhas de universitários contra a guerra do
Vietnã, se estenderam de Berkeley a de Woodstock até a Paris de maio de 68.
Afastávamos também do contexto por demais machista do partidarismo político
latino-americano, para acreditar numa política do corpo, em que este não aspire
ao eterno, mas esgote o campo do possível. (...)
Os
personagens do romance não poderiam ser só brasileiros. A graça estaria em jogar
compatriotas na cena cosmopolita de Nova Iorque e ver como reagiam. Retratar não
apenas o velho cosmopolitismo, dos guerrilheiros exilados ou mutilados pela
repressão, dos pobres do terceiro mundo e dos rejeitados pela intolerância
comportamental. O cosmopolitismo dos diplomatas e adidos militares. E também o
dos desempregados no seu país, aqueles que foram atirados nos torvelinhos do
dólar pela insensibilidade dos capatazes neocolonialistas. E ainda o dos
perseguidos pelos militares, que tentavam aliciar amigos e aliados em terras
estranhas, e finalmente o cosmopolitismo dos homossexuais latino-americanos,
que, pela intolerância da família e do meio machista e patriarcal, eram jogados
no estrangeiro pelas aventuras do avião e do acaso.
Nos
caminhos trilhados no romance por brasileiros, cubanos e portoriquenhos
exilados, por norte-americanos infelizes com o estado de coisas naquele país,
surgia uma espécie de novo homo americanus, autêntico e erotizado, que
impedia as leituras capciosas de cada país levantadas pela ideologia
nacionalista em vigor nos diversos regimes militares. Ao impedi-las, o novo
homo americanus alavancava a possibilidade de uma reflexão que
neutralizasse as forças retrógradas do passado que ainda nos perseguiam, como o
escravismo negro e indígena, as forças das repressões minúsculas, que
guillhotinavam desejo, sentimentos e emoções dos que transgrediam as normas
comportamentais ditadas pela burguesia religiosa. Poderíamos ser, sim, cidadãos
do mundo, mas nunca na condição de párias do capitalismo. [8]
Essa
tomada de posição do escritor latino-americano se constrói ao lado do crítico
literário, que se transforma, em vários momentos em sua ficção, em personagem e
coadjuvante dos protagonistas de seus romances. A teoria crítica está o tempo
todo em diálogo com a ficção, à medida que o crítico e o escritor se mesclam e
procedem à leitura do espírito latino-americano que perpassa sua obra. O
deslocamento passa a ser a estratégia utilizada pelo escritor: ao construir as
personagens latinas
Dois
exemplos ilustram a proposta hedonística e marginal como formas de inserir o
Terceiro Mundo num nível de reflexão política e participante. A primeira,
refere-se ao narrador de Stella Manhattan, ao estabelecer com a cena dos
músicos no metrô parisiense o elo entre a performance da negra no “Carnaval
carioca”, de Mário de Andrade, assumindo a dívida teórica para com Bataille e
retomando o conceito de “fazer milhor” de Mário. O melhor dos músicos, um mulato
“retraído e gordo” no meio de brancos esfuziantes, “era todo equilíbrio” e
“explodia nele um acúmulo de energia que fugia da norma que satisfaz a
necessidade”. Percebe-se, na passagem, a metáfora do desperdício, retirada da
cena doméstica de encher o leite numa xícara e deixá-lo transbordar até ensopar
toda a toalha, assim como a interpretação musical do mulato no metrô. Introduz,
com a ajuda de fragmentos de Bataille, a definição sobre a criação artística, ao
considerar que “arte não é e não pode ser norma, é energia desperdiçada mesmo”.
[9]
A recriação do cenário musical no metrô parisiense, tendo como destaque a
interpretação do mulato, redimensiona o significado da cena original, ao
ressaltar a presença diferenciada da cultura periférica na metrópole. O excesso
que a distingue diz respeito tanto à sua exclusão social como imigrante na
comunidade, quanto à criatividade e energia existencial que extrapolam a ordem e
o bem estar público. Imigrantes em Paris cantam no metrô como saída para a
sobrevivência e como manifestação de uma arte que se distingue da européia, pelo
grau de diferença e de investimento corporal e vital na interpretação. A
resistência das minorias nas metrópoles colonizadoras constitui, sem dúvida, a
imagem que traduz o lugar sempre deslocado e excluído do grupo imigrante. A cena
é inserida com vistas a apontar a diferença como força revolucionária do
Terceiro Mundo.
Viagem
ao México
narra, no capítulo VII sobre Cuba, situação oposta à cena original e à de
Stella Manhattan, ao ser contemplado um grupo musical, apático e sem
energia, comportando-se como se estivesse realizando um rito operário. A falta
de engajamento dos intérpretes os coloca na situação de espectador e não de ator
do espetáculo promovido e dirigido pelo governo autoritário. A recorrência da
cena funciona como ilustração do cenário do regime socialista, de um espetáculo
que nada motiva para quem o observa.
Destituído de vitalidade e de entusiasmo, a execução musical obedece ao
ritual de trabalho e se apaga enquanto manifestação artística coletiva. O povo
se contenta em ser o espectador de uma festa que não lhe reserva mais o direito
de exercer o papel de ator na sociedade: “A maioria dos cubanos tira a graça e a
alegria da vida sendo espectador. Não consegue mais participar como ator dos
eventos públicos e dos espetáculos, das coisas do dia-a-dia. Foi um direito que
lhes foi pouco a pouco dado e pouco a pouco roubado, talvez pela excessiva
especialização profissional, talvez pela rotina do trabalho setorizado,
talvez...”[10]
A grande esperança revolucionária trazida por Cuba nos anos 60 se esgarça na
representação de um sentimento latino-americano em ruínas, visto pelo narrador
no final dos anos 90 e que reproduzo aqui:
Por
algumas décadas, em Cuba, extraordinário e cotidiano se confundiam aos olhos da
minha geração. Entrelaçados desenhavam o grande sonho latino-americano da
liberação política e econômica do Terceiro Mundo. Um sonho que, em determinada
época, tornou-se realidade na ilha e indicava que poderia ser também realidade
nos demais países latino-americanos. Foi por isso que esse sonho se revestiu de
contornos precisos e palpáveis para a minha geração. A alquimia revolucionária
exportada por Che Guevara fez que muitos atores políticos das mais diferentes
nações do continente ascendessem à condição de heróis sofridos e torturados da
nuestra América. Muitos contemporâneos nossos falaram da liderança continental
de Cuba, dessa fase heróica altaneira em que o impossível, como numa utopia, ia
se banalizando dia após dia. [11]
O
vínculo de adesão à causa latino-americana e ao lugar ocupado pelo intelectual e
escritor Silviano Santiago no espaço literário e político do continente se
processa ainda pela construção de coincidências temporais existentes entre os
acontecimentos ligados a escritores ou a épocas literárias, como o modernismo,
ou a datas marcantes da política mundial, como a Segunda Guerra. A inserção se
dá através de um gesto duplo de pertencimento e de experiência pessoal adquirida
e construída pelo viés da voz do outro. O deslocamento de Artaud para o México
serve de mediação para o narrador discorrer e contrapontear-se com a cultura
européia e as leituras conservadoras e preconceituosas produzidas pelo
etnocentrismo. A data de nascimento do autor – 1936 – reveste-se de teor
simbólico, à medida que se processa a leitura enviesada e culturalmente engajada
do escritor diante da literatura e da história, ao criar pontos de intercessão
entre os seus projetos literários e intelectuais. Sem se prender a
justificativas de ordem narcísica, esse sujeito que se constrói à sombra e à luz
do outro adquire, contraditoriamente, o sentimento de perda, embora nesse gesto
se explique todo o processo de desperdício e entrega desmesurada ao ofício – e à
vida.
Se no artigo “Fechado para balanço”,
Silviano registra o ano de 1936 como a proclamação da morte do modernismo de 22
corporificada na crítica feita pelos colaboradores da revista Verde, a
data remete tanto para o nascimento do escritor quanto para a prisão de
Graciliano Ramos pela repressão do governo Vargas. A utilização do artifício
autobiográfico cumpre função metafórica, ao serem aproximadas referências
documentais que respondem, tanto pela ambigüidade e transfiguração do ficcional
quanto pela contextualização da escrita de Silviano como intelectual. Procede-se
à dupla releitura do modernismo, seja através da figura de Graciliano, seja
através de Em liberdade, uma das primeiras manifestações da literatura
pós-moderna entre nós. Diferentes procedimentos narrativos se constroem nesta
obra - a estilização e o pastiche, gestos paradoxais de celebração e
distanciamento quanto ao modelo - por meio dos quais se afasta do artifício
parodístico exercido pelos modernistas. Embora se atualize textualmente o
diálogo transgressor com a tradição literária brasileira, o livro rompe com o
projeto radical de ruptura dos modelos fundadores.
No
âmbito político-existencial, Em liberdade nasce simbolicamente do útero
cerebral de Graciliano/Silviano, criação especular que evoca o processo de
simbiose e afastamento do narrador, na escolha da difícil tarefa de falar de si
através do outro, com vistas a refletir sobre um dos perfis do intelectual
brasileiro. Ao invés de se valer da experiência carcerária do passado, produtora
de discursos do ressentimento, o intelectual deveria se concentrar no
compromisso livre e positivo com o presente. Nas palavras de Wander Melo
Miranda, em Corpos escritos, ensaio pioneiro sobre a escrita memorialista
de Silviano, a obra é a tradução de Memórias do cárcere, pastiche e
reverência ao texto de Graciliano, traço de uma leitura que atualiza o conceito
de suplemento derridiano: “a ficção de Silviano, ao propor-se como ‘acréscimo’
ou suplemento às memórias de Graciliano, - no sentido de multiplicar seus
significantes e não de reduplicá-los -, não visa, à semelhança do texto
primeiro, a atingir um significado último ou definitivo”.[12]
Em
entrevista concedida à revista Imagem, Silviano declara, de forma
eloqüente, que o século XX terminou “desastrosamente nos anos
Notas
[1] SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1973.
[2] SANTIAGO, Silviano. Literatura é paradoxo. Entrevista concedida a Carlos Eduardo Ortolan Miranda. Trópico. P. 4. Site UOL.
[3] “Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal quando estava preparado (ou estavam me preparando) para os caminhos da racionalidade francesa numa terra onde os lugares-comuns nos impelem para o irracional. Nunca fui vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim Nabuco, nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas cores do carnaval nos trópicos. Fiquei com os dois e com a condição de viver e pensar os dois. Paradoxalmente. Nem o lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata saber europeu. Lugar-comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade latino-americana. Inventei o entre-lugar do discurso latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores escritores”. SANTIAGO, Silviano. Borges. In: SCHWARTZ, Jorge. (Coord.). Borges no Brasil. São Paulo: UNESP/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001. p. 434.
[4]ANDRADE, Oswald de. Sol da meia noite. In: Ponta de
lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 63. Apud SANTIAGO,
Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos
trópicos. Op.cit., p. 18.
[5] SANTIAGO, Silviano. Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância étnica. Anais do 2o. Congresso Abralic. Vol. 1. Belo Horizonte: Faculdade de Letras, 1991. p. 77.
[6] SANTIAGO, Silviano. Atração do mundo. Art. Cit., p. 27.
[7] SANTIAGO, Silviano. Apesar de dependente, universal. In: Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1982. Cf. ainda meus artigos: “Estéticas da ruptura” e “O discurso crítico brasileiro”, contidos em SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
[8] SANTIAGO, Silviano. O público, é preciso em primeiro lugar que a literatura seja. In: FILHO, Deneval Siqueira de Azevedo; MAIA, Maria de Abreu. Livros e idéias. Ensaios sem fronteira. São Paulo: Arte & Ciência Editora. 2004. p. 19-21.
[9] SANTIAGO, Silviano. Stella Manhatan. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. p. 68-71.
[10] SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de
Janeiro: Rocco, 1995. p. 212.
[11] Idem, p. 196.
[12] MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992. p.118.
[13] SANTIAGO, Silviano. Hello Dolly. In: Histórias mal contadas.
Op. cit., p.
156.
Evelina
Hoisel – Migrações: as estratégias de
atuação de um intelectual periférico
Na
produção de Silviano Santiago, o tema das migrações inscreve-se através de
diversos signos – migrações geográficas, migrações culturais, migrações
discursivas, migrações metafóricas – e está associado ao tema da viagem, da
mudança na localização geográfica, no comportamento, no interesse pelo outro. A
condição de professor, de teórico, de crítico e de ficcionista faz proliferarem
os fluxos dessas migrações, uma vez que cada uma dessas funções é exercida a
partir de um determinado local e de uma instância discursiva que tem a sua
própria ordem, mas que insistentemente tem as suas fronteiras e os seus limites
deslocados e rasurados. As migrações fazem parte da história civil e literária
desse intelectual. No “Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas d´angola”, ao se
apropriar narcisicamente da estória de Zé-Zim, do Grande sertão: veredas,
que é trazida para “testemunhar a vivência dos navegantes, metafóricos ou não,
no grande sertão”, já que o sertanejo que transmigra é personificado no romance
pelo meeiro Zé-Zim, Silviano exemplarmente declara que “semelhante desejo de
mudar existe desde a mais tenra infância no menino da provinciana
Formiga.”[1]
Por isso, na cena do Epílogo,
ele acopla à sua própria história as estórias exemplares que sustentam a
travessia romanesca de Riobaldo no Grande sertão, suplementadas pela
“Terceira margem do rio”, narrativa de um filho abandonado pelo pai que, em uma
canoa, atravessa rio-abaixo,
rio-acima.
O
projeto de um saber nômade, em sucessivos processos de territorialização e
desterritorialização, foi alentado desde a adolescência ainda em Belo Horizonte.
Silviano Santiago faz parte de uma geração de intelectuais mineiros que, do
ponto de vista político, ele define como anarquista. Ao contrário da
geração precedente, cujos intelectuais estiveram compromissados com o serviço
público e com o Estado, a sua rejeitava qualquer cargo público: “nenhum de nós
entrou para uma secretaria ou foi assessor de político importante. Havia
sempre uma preocupação de não fazer as coisas segundo o credo oficial”, afirma
Silviano em entrevista a Helena Bomeny e Lúcia Lippi Oliveira.[2]
Além
dessa postura, desde a sua formação, elegeu os contatos e os diálogos entre os
aspectos díspares da vida intelectual: a disciplina do saber institucional e a
maleabilidade do diálogo com os confrades mais experientes nas mesas de bares,
na boemia da noite mineira, que gerava um saber nômade e transgressor, motivo
que aparece em vários dos seus ensaios e serve de instigante pretexto para a
apresentação das cartas de Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, no
livro intitulado Carlos & Mário, e da coletânea A República das
Letras, ofertados ao público leitor como um entre-lugar da afetividade e do
saber.
É
assim que, do ponto de vista da autobiografia da personalidade civil desse
intelectual, a viagem é vivenciada desde cedo, quando sai de Formiga e vai para
Belo Horizonte, onde estuda e inicia uma carreira de crítico de cinema. Em
seguida, transfere-se para o Rio de Janeiro e depois para Paris, em 1961. Passa
um ano em Paris e segue para os Estados Unidos, onde, durante dez anos, transita
por diversas universidades, ensinando literatura brasileira e literatura
francesa. Inicialmente na Universidade do Novo México, em seguida na Rutgers
University, em Nova Jersey, depois em Toronto, no Canadá. Em 1969, desloca-se
para Buffalo, onde permanece durante três anos, exercendo também uma atividade
administrativa: a de Chefe do Departamento de Francês.
A
atividade de docente, de teórico e de crítico nos Estados Unidos é ampliada pela
de mediador cultural, o que gera uma outra vertente das migrações: a das trocas
culturais. Como Chefe de Departamento de Francês na Universidade de Buffalo,
Silviano Santiago leva do Brasil para os Estados Unidos figuras da vida
intelectual brasileira que, naquele período, realizam uma produção cultural
transgressora em relação aos padrões vigentes, abalando uma tradição em vigor no
campo das artes plásticas, do cinema e do teatro: Hélio Oiticica, Gláuber Rocha,
o espetáculo Arena conta Zumbi. Por outro lado, intensificando estes
diálogos culturais, envia constantemente para revistas brasileiras, como a Revista Barroco, artigos de
professores e intelectuais americanos, divulgando suas idéias no cenário
brasileiro.
Longe
do Brasil, o desejo de mudar é alimentado pela descoberta de que “a
maneira de fazer carreira nos Estados Unidos é mudando, não ficando no mesmo
galho. Eu ficava dois anos, ganhava certo nome, publicava e apostava.”[3]
Essas
migrações geográficas, vivenciadas durante o percurso de uma atividade docente
exercida no exterior, conferem uma maior agilidade ao olhar crítico desse
intelectual que se posiciona em um entre-lugar, categoria das mais fecundas do
pensamento teórico de Silviano Santiago, para problematizar e compreender o
lugar do intelectual latino-americano, de um país periférico e colonizado.
Categoria disseminada a partir de um ensaio já antológico, “O entre-lugar do
discurso latino-americano”, datado de 1971, e publicado na coletânea de ensaios
Uma literatura nos trópicos, cuja repercussão pode ser atestada a partir
de suas múltiplas reapropriações contemporâneas, principalmente no espaço da
Literatura Comparada e dos Estudos Culturais, nos Programas de Pós-Graduação nas
áreas de Letras e Ciências Humanas de instituições brasileiras e estrangeiras.
Na entrevista concedida a Lucia Lippi de Oliveira e Helena Bomeny, Silviano
assinala a importância desses trânsitos acadêmicos no estrangeiro: “estou sempre
desconstruindo os Estados Unidos pela França, ou desconstruindo a França pelos
Estados Unidos, ou desconstruindo o Brasil pela França e pelos Estados Unidos. E
fazendo esses jogos, de tal forma que qualquer escrito meu é inseparável da
minha formação.”[4]
Este gesto desconstrutor, que Silviano inaugura no cenário teórico-crítico
brasileiro a partir do pensamento de Jacques Derrida e do pós-estruturalismo
francês, a partir dos cursos ministrados na Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, na década de 70, é um dos elementos mais férteis da sua atuação
intelectual, com repercussão nos vários campos do saber. É a partir desses jogos
que Silviano abala as noções tradicionais através das quais a literatura
comparada operava, modificando radicalmente o panorama dos estudos comparatistas
no Brasil e na América Latina.
As
migrações institucionais permanecem no Brasil como estratégias intelectuais de
um saber transgressor, cuja prática docente abala também a concepção tradicional
de cátedra, conforme modelo instalado nos centros hegemônicos do saber, como na
Universidade de São Paulo e na Universidade Federal do Rio de Janeiro das
décadas de 60 e 70. Em 1972, Silviano inicia suas atividades na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, como professor convidado e, em 1974,
como professor contratado. Mas, em 1988, pede demissão da PUC/RJ e é contratado
pela Universidade Federal Fluminense, onde já tinha atuado como professor
convidado no período compreendido entre 1976-1980. Em seguida, vai para a
Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde monta, com Heloisa Buarque de
Holanda e outros pesquisadores, o Programa Avançado de Cultura Contemporânea -
PACC. Coordena também o Centro de Pesquisa da Fundação Casa de Ruy Barbosa.
Estando no Brasil, volta a desenvolver atividades no estrangeiro: Professor
Visitante da Universidade do Texas, da Universidade de Indiana e da Universidade
de Yale, e Professor Associado na Universidade de Paris III, Sorbonne
Nouvelle.
Após
se retirar da atividade docente regularmente exercida nas instituições
brasileiras, Silviano Santiago, como Editor da Revista Margens/Márgenes,
mobiliza uma outra possibilidade desses trânsitos e migrações
interinstitucionais. O projeto da revista envolve cinco diferentes instituições
– duas no Brasil: Universidade Federal de Minas Gerais e Universidade Federal da
Bahia, duas na América Latina: Universidade Nacional de Mar del Plata e a
Universidade de Buenos Aires, e a Universidade de Roma -, tendo como objetivo
discutir as perspectivas contemporâneas transnacionais nas artes, na cultura, na
sociedade e na política, do ponto de vista da margem.[5]
No
Brasil, é a partir de uma intensa atuação docente na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro que se registram as rupturas mais radicais,
promovidas no contexto do ensino da Literatura Comparada, da Teoria da
Literatura e da Literatura Brasileira. Ao ingressar na PUC/RJ, além do enfoque
interdisciplinar, Silviano incorpora na atividade interpretativa outras
linguagens: cinema, teatro, MPB, manifestações vanguardistas, demonstrando
também uma aguda preocupação com os processos de democratização da cultura e da
arte, tema que se torna recorrente nos seus ensaios. Por sua vez, as reflexões
sobre a Literatura Brasileira são desenvolvidas a partir de um repertório de
textos do período colonial que inclui desde a carta de Pero Vaz de Caminha. Esta
eleição o diferencia dos demais estudiosos da história da literatura brasileira
do período, cuja abordagem partia dos textos do século 17 ou do
romantismo.
Outro
viés bastante fecundo da prática acadêmica de Silviano Santiago na PUC/RJ que passa a ter uma repercussão teórica
e crítica para os estudos desenvolvidos atualmente em diversas instituições de
ensino superior no Brasil, como a PUC/RJ, UFF, UFBA, UFMG, diz respeito à
problemática da leitura, que perde seu caráter universalizante e passa a
integrar as produções culturais ao seu contexto. Esta prática rompe com os
estudos literários tradicionais, bem como com aqueles em voga a partir do método
estruturalista, trazendo para o campo das letras e da literatura comparada a
crítica cultural. Através de uma perspectiva multidisciplinar e transgressora
para os parâmetros vigentes na época, privilegiam-se os diálogos e os trânsitos
discursivos entre Letras e Ciências Humanas, mobilizados principalmente a partir
da conjunção da história com a antropologia[6].
Esta postura gera uma aguda crise no campo dos estudos literários – na
Literatura Comparada e na Teoria da Literatura – cuja fecundidade pode ser
atestada a partir das vigorosas discussões travadas sobre os limites
disciplinares nos programas de pós-graduação e, de maneira mais polêmica e
ruidosa, no âmbito dos congressos da Associação Brasileira de Literatura
Comparada - ABRALIC, da qual Silviano Santiago foi Presidente, no período
1992-1994.
É
pelo viés da antropologia que se pode então compreender o desejo de dialogar com
o outro na produção de Silviano Santiago. As migrações geográficas, até mesmo as
migrações institucionais, fazem parte de uma estratégia intelectual de
acercar-se do outro, deslocando-se por essa via os processos de centralização do
poder, através de uma contundente “descentralização da fala do saber”.
Nesse sentido, vale ressaltar a maneira como Silviano Santiago, em texto de
1984, “Prosa literária atual no Brasil” define o intelectual, tal como se
encontra nos melhores romances e memórias da época: “é aquele que, depois de
saber o que sabe, deve saber o que seu saber recalca. A escrita é muitas vezes a
ocasião para se articular uma lacuna no saber com o próprio saber, é a
atenção dada à palavra do Outro.”[7]
A partir dessa perspectiva, Silviano Santiago desloca a figura do
intelectual que se afirmara como uma consciência universal, assumindo a voz dos
oprimidos e das minorias desprivilegiadas. O intelectual que dizia a verdade
àqueles que ainda não a viam e em nome daqueles que não podiam dizê-la. O
intelectual que luta contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo
tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da
“consciência”, do discurso.[8]
Com
estas considerações, passamos a focalizar uma outra estratégia de atuação desse
intelectual que faz proliferar o fluxo das migrações, agora delineadas a partir
das formações discursivas que podem ser identificadas sob a assinatura de
Silviano Santiago. Neste contexto, migrar confunde-se com transmigrar, palavra
que aparece configurada na cena do “Epílogo em 1ª. Pessoa: eu e as galinhas d’
angola”. No contexto desta cena, dentre outras tantas acepções, transmigrar deve
ser entendida como uma espécie de categoria transgressora que configura
determinados movimentos da escrita, impondo-se como um traço importante do
processo de construção textual de Silviano Santiago. Transmigrar dramatiza e
teatraliza as possibilidades de reelaboração das subjetividades e de
constituição de alteridades na cena ficcional, em que um eu encorpa-se em
um outro, uma primeira pessoa reconstrói-se narcisicamente em uma
terceira, em um incessante jogo de máscaras, de trocas e de reinvenções de
identidades e subjetividades. Transmigrar implica em assumir uma outra condição
de fala: ser e não ser um eu e um outro, e faz parte da operação tradutória da
contemporaneidade que se baseia na crítica da identidade autoral, desintegrando
a noção de propriedade literária. Estratégia de atuação encontrada nos diversos
textos ficcionais de Santiago, de maneira mais evidente em Viagem ao
México e Em liberdade, textos que se apropriam “despudoradamente” –
palavra do próprio Silviano – do eu, da vida, do estilo, dos amigos, das idéias,
de Antonin Artaud e de Graciliano Ramos.
Iniciaremos
as nossas indagações evocando o romance Viagem ao México, onde a
problemática da viagem, das migrações e transmigrações, da mobilidade aparece
como uma marca muito evidente, estampada desde o início da narrativa, através da
fala do narrador:
Para
escrever este livro, invento-me monstro, da maneira como só os navegantes sabem
inventá-lo durante o transcorrer da viagem da descoberta (...). Venho de um
antigo povo de marinheiros (...). Sou filho de lobos do mar e deles herdei a
infindável tarefa de viajar e inventar monstros (...). Aprendi com um pensador
latino, numa carta que não era dirigida a mim mas de que me tornei destinatário
por obra e graça da leitura, que tudo se movimenta na natureza (...). Por que os
seres não iriam se movimentar pela terra, enriquecendo antigas e novas cidades
com o esforço individual, reconstruindo países em ruínas por causa das guerras
ou reerguendo regiões decadentes em virtude de governos devassos, por que não
iriam levantar diferentes casas de traçados arquitetônicos inesperados e
construir laços familiares originais em distantes e inóspitos climas? Inaugurar
novos antepassados em uma nova cidade (...). Alguns desses homens – me ensinou
ainda a carta de Sêneca – são movidos pela ambição; outros são obrigados a
migrar pelo dever de uma função pública; a uns poucos é a luxúria ansiosa de um
lugar propício e rico de vícios que seduz e atrai ... muitos tiveram de migrar
para melhor mostrar e vender inteligência e talento. [9]
Estão
aqui colocadas algumas das idéias que compõem a prática escritural e intelectual
de Silviano Santiago. Inicialmente, a concepção de que o romance se constitui
como um texto em viagem, em sucessivas migrações. Forma nômade que, ao
atravessar distintos territórios políticos e geográficos – pois a viagem é
portuguesa, européia, brasileira, latino-americana – realiza-se em palimpsesto
ou em hipertexto, congregando formas e gêneros
es, e a Universidade de Roma
-________________________________________________________________________________________________-
como o diário íntimo, a epopéia, o discurso crítico-ensaístico, a pesquisa
histórica, a reflexão teórica e filosófica – problematizando-os, expondo a
fragilidade dos seus limites. Ficção_______________________________________________________________________________________________________________________________-limite
é o termo utilizado pelo próprio Silviano ao se referir ao seu romance, Em
liberdade, em entrevista concedida ao Estado de Minas Gerais, em 03
de outubro de 1981, que pode definir também o texto de Viagem ao México.
Esta terminologia pode ser aplicada ainda à sua vasta produção ficcional,
através da qual desloca os limites que têm contornado o conceito de ficção, vez
que discute as fronteiras entre uma literatura auto-referencial, intransitiva,
resultante do trabalho da linguagem, conforme o modelo estabelecido pelos
realistas.
Silviano
realiza uma modalidade de ficção histórica que articula o passado e o presente,
espaço de reflexão acerca da sua própria constituição, bem como de discussão
sobre questões contemporâneas. Em um mundo multiplicado e fragmentado em imagens
e impressões, onde o declínio da arte e a ascensão da cultura representam também
um certo desprestígio da palavra enquanto detentora de universalidade ou
promissora de virtualidade, essa dispersão de escritas repete e fragmenta vozes,
mas repete e confirma em constantes jogos de diferença uma postura que pode ser
apreendida na confrontação problematizadora dos diversos textos.
A
crítica de Silviano Santiago tem freqüentemente assinalado esses diálogos
intertextuais, estes trânsitos, onde a economia das trocas simbólicas se faz
pelo excesso, pelo transbordamento de códigos discursivos, pelas referências que
transitam por cadeias temporais distintas, pelas citações que revertem seu
contexto de origem. Fazem parte desse projeto escritural esse jogo de dispersão
de falas e papéis, essas migrações e transmigrações, a dramatizarem trocas
identitárias que entrecruzam distintos territórios subjetivos, geográficos e
lingüísticos. “Ao dar forma de livro aos embates da vida cotidiana nômade, do
corpo, idéias e sentimentos que transitam, que se deslocam como flecha de uma
cidade para outra, de uma região para outra, de um país para outro, de um
continente para outro,”[10] constrói-se um forte aparato teórico e
interpretativo que delimita seu próprio domínio discursivo (o discurso da
crítica, do teórico, do historiador, do ensaísta, os quais atravessam também
domínios disciplinares contemporâneos – o da antropologia, sociologia, história,
psicanálise). Os estudiosos da vasta produção de Silviano, de maneira perspicaz
e instigante, têm percorrido e mapeado estes sucessivos entrecruzamentos, no
sentido de demonstrar como os textos literários e ensaísticos se
intertextualizam e promovem uma recorrência de referências, que se reengendram
de texto a texto.
É
sob essa perspectiva que Lúcia Helena, em “Olhares em palimpsesto”[11],
estabelece as interfaces entre o trabalho crítico, divulgado principalmente
através de Uma literatura nos trópicos (1978) e Vale quanto pesa
(1982), e os romances Em liberdade e Viagem ao México. A
abordagem se desenvolve no sentido de mostrar como o ponto nevrálgico do
trabalho de Silviano “consiste em dinamizar algo que se engendra na confluência,
no lugar-entre, na cena do paradoxo,”[12] esclarecendo que, nas reflexões de
Silviano, o entre- lugar é um conceito que compreende a ambigüidade a que estão
sujeitos os escritores e intelectuais situados em uma cultura marcada pela
imposição dos códigos civilizatórios dos dominantes, possibilitando aos
dominados um trabalho antropofágico que subverte os padrões ocidentais.
Ivete
Lara Camargos Walty, em “O eu migrante: crítica e ficção em Viagem ao
México,”[13]
considera como, nesse romance/ensaio, Silviano desdobra-se em outros, como
já o fizera em Stella Manhattan e Em liberdade, e, em busca da
alteridade, exercita-se naquilo que teoriza na crítica da cultura
latino-americana. Evidencia como a releitura que Silviano Santiago empreende da
história do Brasil marca-se pela migração do eu ao outro, onde o motivo da
viagem, mediatizada pela viagem dos portugueses, sobretudo a de Vasco da Gama em
Os Lusíadas, constrói uma epopéia-pastiche, que se monta retomando o
ensaio “Por que e para que viaja o europeu”, publicado em Nas malhas da
letra, mas recorrendo ainda a outro texto de Silviano, “Relatos de viagem”,
publicado no Jornal do Brasil. A título de acréscimo, lembramos que, na sessão
de abertura do VII Congresso da Abralic, no ano 2000, em Salvador, o tema da
viagem é retomado em conferência, a partir da viagem de Lévi-Strauss aos
trópicos, fragmento de um longo ensaio publicado posteriormente no caderno
Mais!, da Folha de S. Paulo, de 10 de setembro de 2000, e que
integra a mais recente coletânea de ensaios Ora (direis) puxar conversa!
. A direção assumida pela escrita de “o eu migrante: crítica e ficção em
Viagem ao México” é mostrar como preocupações teóricas e culturais são
postas em prática pela escrita ficcional. Ler e escrever, teorizar e
ficcionalizar, historicizar e desficcionalizar tornam-se atividades
interligadas, e é desse movimento contínuo que se tecem os papéis dos narradores
dos romances bem como os do ensaísta, do pesquisador, do professor de Teoria da
Literatura e Literatura Brasileira, em instituições de ensino superior no Brasil
e como professor visitante em instituições estrangeiras.
É
recortando estas interfaces que Ítalo Moriconi, em abordagem comparativa de
Em liberdade e de Respiração artificial, do argentino Ricardo
Piglia, considera estes textos que problematizam a relação entre escrita
literária e escrita histórica, “borrando suas fronteiras” Moriconi direciona sua
leitura percorrendo os territórios freqüentados por Silviano Santiago na sua
“ficção pensante”, que, segundo ele, representa “uma síntese de suas discussões
sobre o intelectual modernista brasileiro, realizadas ao longo de anos de
pesquisa e memoráveis cursos ministrados na PUC do Rio. Um jogo de xadrez
desconstrutivo em que Graciliano Ramos compôs quatrilho com três Andrades:
Oswald, Mário e Carlos Drummond.”[14]
No desenrolar de suas reflexões, Moriconi vai gradativamente estabelecendo as
correlações entre o crítico/pesquisador e o ficcionista/poeta. Destaca, por
exemplo, a “encenação ficcionada” das leituras que Silviano fez de Oswald de
Andrade em Crescendo Durante a Guerra Numa Província Ultramarina, livro
de poesia publicado na década de 70. Assinala ainda que Silviano Santiago e
Ricardo Piglia, no quadro latino-americano, “operam a partir do lugar
pós-moderno de uma vanguarda de escritores doublés de professores,
doublés de críticos universitários.”[15]
Se
continuarmos percorrendo os diversos ensaios que constituem a coletânea
Navegar é preciso, viver:
escritos para Silviano Santiago, organizada por Eneida Maria de Souza e
Wander Melo Miranda, verificamos que a temática dos trânsitos, das migrações e
das inter-relações entre as diversas atividades, sob perspectivas distintas,
proliferam nos seus ensaios. Como estratégia de construção de nossas reflexões,
ainda recorremos a alguns deles, como ao de Ana Maria Bulhões de Carvalho, “Ich
Bin Der Und Der,”[16]
que estuda as múltiplas personas em que se disfarçam o ficcionista e o poeta
como suplemento de uma meia- máscara, a constituir o seu espaço autobiográfico.
Através desse processo, a figura do autor vai sendo criada na mente do leitor, a
partir do que ele mesmo diz de sua própria obra, somando traços públicos à sua
biografia intelectual e literária.
Rachel
Esteves Lima, no ensaio “A crítica cultural na universidade,”[17]
trata da atividade acadêmica de Silviano, correlacionando-a com as demais, e
salientando, principalmente, como seu enfoque culturalista ou multiculturalista
e interdisciplinar seria reforçado, na tarefa interpretativa, através da
incorporação de outros sistemas discursivos – portanto, de outras migrações –
como a música popular brasileira, o cinema, o teatro e as manifestações de
vanguarda. Por outro lado, o trabalho de Silviano, como pontua Rachel,
representa uma mudança nos rumos teóricos vigentes na Universidade Católica do
Rio de Janeiro e em outras universidades brasileiras, nas décadas de 70 e 80,
uma vez que dissemina uma perspectiva de leitura e de avaliação das
manifestações artísticas, integrando-as ao seu contexto.
Marília
Rothier Cardoso mapeia um outro lugar discursivo ao estudar os ensaios de
Silviano publicados no Jornal do Brasil, considerando o papel de sua
inserção na mídia. Através da atividade jornalística, Silviano Santiago
estabelece uma comunicação com um público mais amplo e diversificado. Em “Lições
de leitura,”[18]
a questão da pluralidade de lugares é referida por Marília Rothier Cardoso, que
recorre à dupla experiência de Silviano de escritor e de professor universitário
para situar um dos temas recorrentes dos seus ensaios no Jornal do Brasil, que
constitui uma das linhas de força de sua prática acadêmica e teórica: a
necessidade de transformar a leitura do discurso poético em instrumento de
democratização social.
No
movimento traçado para verificar as trocas estabelecidas nesta pluralidade de
perspectivas interpretativas aqui esboçadas, todas dramatizando percursos de
migrações operados pela atuação do intelectual Silviano Santiago e apreendida
através de suas práticas discursivas, chegamos à leitura que Wander Melo Miranda
empreende em seu livro Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano
Santiago,[19]
na qual discute as relações entre memória e ficção, observando como ambas
encenam a história. Tratando da ficção autobiográfica de Graciliano Ramos e da
autobiografia ficcional de Silviano Santiago, Wander Melo Miranda recorta como
núcleo motivador para a sua abordagem as relações entre o intelectual e o poder,
apreendido pelo olhar que o intelectual Silviano Santiago lança sobre o
intelectual Graciliano Ramos, após sua saída do cárcere. Portanto, em liberdade.
Em uma minuciosa abordagem, traça as correlações entre o crítico, o teórico, o
intelectual e o ficcionista, inaugurando a vertente crítica que considera os
jogos intertextuais da produção de Silviano Santiago.
Em
Corpos escritos, Wander focaliza estes jogos, definindo-os como uma
“operação tradutora”. Sob esta perspectiva, compreende a atividade crítica e
criadora pelo prisma borgeano do escritor como leitor, isto é, como tradutor. A
leitura é uma operação transgressora que desintegra a noção de propriedade
autoral, fazendo desaparecer o pai da escrita e a autoridade paterna,
configuração chave para se destruir a noção pejorativa de plágio. Localizamos
nessa operação transgressora os processos de transmigração acionados
constantemente pela escrita de
Silviano.
Inicia-se
assim uma tradição que encontra no simulacro a possibilidade de construção de
uma literatura que não se determina pela expressão de um eu exclusivo, e que
persegue a aventura do texto de se ler e reler. O aparato conceitual utilizado
por Wander Melo Miranda está afinado com o campo do conhecimento em que se situa
o pensamento do teórico e do professor Silviano Santiago – o pós-estruturalismo
de Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze – o que propicia uma
compreensão verticalizada das rupturas e reversões empreendidas pelo texto Em
liberdade, desconstruindo gêneros e tipologias estabelecidas.
A
recorrência desses diversos críticos a essas migrações traduz alguns aspectos
que devem ser considerados. Em primeiro lugar, os trânsitos são estabelecidos
pela própria produção de Silviano, sob perspectivas distintas. É ele, portanto,
que embaralha e lança as cartas do jogo de remissões, e o faz de maneira
vigorosa, em excesso, pois o movimento dos fluxos migratórios transborda em
todas as direções – do teórico para o crítico, do crítico para o historiador, do
historiador para o professor, do professor para o pesquisador do CNPq, destes
para o ficcionista, para o poeta, para o dramaturgo, destes, por sua vez, para o
teórico-crítico-historiador-professor-ensaísta, recorrendo, nesse movimento, a
outras migrações que mobilizam trocas transculturais (a viagem ao México é
portuguesa, européia, brasileira, latino-americana e africana), transdiscursivas
(literatura e mpb e cinema e teatro e artes plásticas e política e cultura),
transdisciplinar (antropologia e história e sociologia e filosofia e
psicanálise), transmigratórios (ser e escrever com Graciliano Ramos, Antonin
Artaud, Mário de Andrade, Carlos
Drummond de Andrade, Oswaldo de Andrade, Guimarães Rosa, Jacques Derrida, Michel
Foucault, Jacques Lacan, S. Freud, F. Nietzsche....) Compreendemos todos estes
fluxos como estratégias de atuação de um intelectual periférico que se dão em
diferentes instâncias, através das quais são revertidos valores literários e
culturais, através de incessantes diálogos.
O
descentramento que se constitui como um dos pressupostos das teorias
contemporâneas é, para Silviano Santiago, uma obsessiva questão política e
ética, como já frisou Ítalo Moriconi. A transdiscursividade operada em seus
textos de maneira tão rigorosa e exuberante sustenta a possibilidade desses
descentramentos, que se monta apelando para desterritorializações e
reterritorializações textuais, existenciais e institucionais, conseqüentemente, exigindo uma leitura
que se faz acompanhando o seu nomadismo, no sentido de apreender as cenas de
atuação desse sujeito que, para escrever, inventa-se monstro. Ou seja,
inventa-se outro. Mas é por se constituir como outro, é por encorpar as marcas
da diferença – aquelas que bordejam as margens da literatura e da cultura e que
deixam vir a tona os temas ligados às microestruturas de repressão moderna ,
como as questões dos povos colonizados, dos loucos, dos homossexuais, e é também
por habitar um entre-lugar enquanto possibilidade de diálogo transgressor
com uma tradição, que a voz d desse intelectual das margens pode se deslocar e
reverter valores.
Notas
[1] SANTIAGO, Silviano. Epílogo em 1ª.pessoa: eu & as galinhas d”angola. In: SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre; crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p.242-252.
[2] Entrevista de Silviano Santiago, concedida à Helena Bomeny e Lúcia Lippi Oliveira. In: Estudos Históricos, Arte e História. n.30.2002/2, p. 9. (www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/336pdf , em 13/02/2005).
[3] Idem. p. 16.
[4] Idem. p. 26.
[5] Margens/Márgenes, Revista de Cultura. Belo Horizonte:Buenos Aires: Mar del Plata: Salvador: Roma: n.1, julho de 2002; n.6/7, jan./dez.2005
[6] Sobre esta problemática, ver a tese de Rachel Esteves Lima, A crítica literária na universidade brasileira. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 1997.
[7] SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra; ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 36.
[8] FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 16ª.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[9] SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro:Rocco, 1995. p.11-18.
[10] SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p. 18.
[11] Lucia Helena.
Olhares em palimpsesto. SOUZA, Eneida Maria de; MIRANDA, Wander Melo. Navegar
é preciso, viver: escritos para Silviano Santiago.Belo Horizonte:Editora da
UFMG; Salvador:EDUFBA; Niterói:EDUFF, 1997. p.76-88.
[12] Idem, p. 80.
[13] Ivete Lara Camargos Walty .O eu migrante:crítica e ficção
em Viagem ao México. Op.Cit. nota 13, p.157-169
[14]
.Ítalo Moriconi.
Improviso em abismo para homenagem. Cf. Op.cit. nota 13, ( p.53-60),
p.55.
[15] Idem, p. 55.
[16] Ana Maria Bulhões de Cravalho. Ich Bin Der Und Der. idem, p.197-216.
[17] Rachel Esteves Lima. A
crítica cultural na universidade. Idem. p..170-186.
[18]
Marília Rothier Cardoso. Lições de leitura. Idem.
p.143-156.
[19] MIRANDA, Wander
Melo.Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago. São Paulo: Edusp;
Belo Horizonte: UFMG. 1992.
Gustavo
Bernardo – Breve leitura do conceito de
mestiçagem
O
ensaio que me coube comentar no presente encontro, intitulado “Mestizaje and the Inversion of Social
Darwinism in Spanish American Fiction”, é assinado por Julie Taylor e George
Yúdice e foi publicado em: VALDÉS, Mario J., KADIR, Djelal (eds.).
Literary
cultures of
Pretendo
inicialmente resumi-lo em suas principais linhas argumentativas, evitando
detalhar seus exemplos, que o leitor deve procurar no texto propriamente dito.
Em seguida a essa breve síntese, pretendo tirar algumas conseqüências para o
campo de estudo do nosso Grupo de Trabalho, a saber, a Literatura Comparada. Em
um terceiro momento, pretendo levantar uma outra possibilidade de abordagem
teórica, comparando o texto com outros dois pensadores brasileiros que trataram
do mesmo tema de maneira radicalmente diferente.
Antes
de dar esses três passos, porém, cumpre alertar os ouvintes e, mais tarde, os
leitores, quanto a minhas próprias limitações neste comentário. Primeiro,
advirto que a visada do texto, de cunho eminentemente sociológico, é bem diversa
daquela pela qual estudo e “enxergo”, se posso dizer assim, há tempos, a saber,
uma abordagem bem mais filosófica. Segundo, advirto para o que pode ser
observado a olho nu, a saber, que este que vos fala pode ser considerado mestiço
de, no máximo, alemão com português, ambos “excessivamente” brancos. Logo,
parece sensato que ouvintes e leitores mantenham um pé atrás quanto às
considerações seguintes.
Dito
isso, podemos começar.
Síntese
do texto
Mesmo
recentemente, o discurso da transculturação é caracterizado por muitos críticos,
principalmente por muitos críticos literários, como um reconhecimento válido
para a contribuição do oprimido (digamos como nos anos sessenta) e, em
conseqüência, para a formação da nacionalidade na América Latina. Os autores do
ensaio, entretanto, criticam essa concepção porque vêem nela uma concepção
darwinista, inadequadamente importada da Biologia para a Sociologia. Eles
observam que no imaginário dos discursos tanto de direita quanto de esquerda o
elemento “oprimido e colorido”, ora condenado ora valorizado, acaba sendo de
algum modo condenado, por instável, a algum tipo de extinção ou de incorporação
pelo elemento branco, pelo elemento white.
Depois
dessa introdução, no primeiro segmento do texto, intitulado “Modernity and Mestizaje”, os autores
lembram que, no século XIX, via-se a mestiçagem como um obstáculo à
modernização. Por volta de 1930 é que os intelectuais de muitos países começaram
a inverter o valor da mestiçagem, incorporando-a a seus projetos de nação. O
Darwinismo Social, entretanto, foi incorporado à nova teoria, só que com os
sinais trocados. Ainda permanecia implícito, todavia, o valor negativo da raça
supostamente inferior.
Pensadores
latino-americanos do XIX, como o brasileiro Raimundo Nina Rodrigues, o boliviano
Alcides Arguedas e os argentinos Carlos Bunge e José Ingenieros (autor de um
ensaio muito importante do pensamento de direita no continente, chamado El hombre mediocre), previram que as
raças inferiores desapareceriam graças à sua inaptidão para se adaptarem à
modernidade. Particularmente desacreditados seriam, antes dos negros, os
mestiços, considerados degenerados e inapropriados para a vida
moderna.
As
supostas implicações patológicas da miscigenação podem ser melhor vistas nos
primeiros trabalhos do cubano Fernando Ortiz, que mais tarde mudaria
radicalmente de posição e se tornaria um campeão da transculturação. Nos seus
primeiros trabalhos, ele dizia que a hibridização cultural não elevaria os
negros e provocaria a regressão dos brancos: “in other words, whites turn
black”.
Por
volta de 1930, passa-se a se fazer um retrato afirmativo do mestiço, como nos
escritos do mexicano José Vasconcelos, que cunhou a expressão “raça cósmica”, do
brasileiro Gilberto Freyre, que cunhou a expressão “democracia racial”, e do
cubano Fernando Ortiz, que em seus últimos trabalhos desenvolveu exatamente a
“teoria da transculturação”, reconhecendo a contribuição fundamental dos negros
à cultura cubana. Acompanhando esses pensadores, alguns movimentos
latino-americanos passaram a celebrar aspectos da transculturação, como o
Indigenismo no México, o Modernismo no Brasil, o Negrismo em Cuba e o Gauchismo
na Argentina.
Esses
retratos otimistas da mestiçagem estavam, é claro, diretamente ligados ao
contexto político e econômico daqueles anos. O estímulo à imigração de
trabalhadores europeus se dava também para compensar as massas “inferiores” de
negros, índios e mestiços, vistos como inadequados para trabalhar nas indústrias
e nas novas cidades. Para compensar, por sua vez, este discurso negativo, ainda
que implícito, políticos e intelectuais propunham uma recriação da identidade
nacional através da mestiçagem, de modo a legitimar, pela via populista de
governos como os de Getúlio Vargas e Lázaro Cardenas, a continuidade da
hegemonia das elites de sempre. A mestiçagem apresentava-se então como a máscara
de um contraditório senso comum nacionalista que se quebraria apenas a partir
dos anos cinqüenta, quando se evidenciou a necessidade de um projeto
sócio-econômico diferente.
Na
Venezuela, Rómulo Gallegos, dublê de romancista e político, endossava
entusiasticamente a mestiçagem, que considerava parte central do processo
civilizatório. Nele como em outros, no entanto, os retratos positivos da
mestiçagem não escapavam dos preconceitos do Darwinismo Social. Teóricos como
Gilberto Freyre acreditavam na mestiçagem, sim, mas ao mesmo tempo traíam forte
esperança de que os traços brancos e da cultura branca predominassem ao final.
No
segundo segmento do texto, intitulado “Mestizage and Literature”, os autores
comentam que, de
O
Darwinismo Social se mostrava com mais força na abundância obsessiva de exemplos
de degeneração dos personagens, em contradição franca com o retrato positivo da
miscigenação. Nos romances, alguns mestiços eram bem sucedidos, mas em
circunstâncias bem específicas que quase sempre envolviam fatores genealógicos,
isto é, berço. Muitos personagens brancos tomavam para si a tarefa, como agentes
esclarecidos, de tutelarem e ensinarem mestiços e mestiças para conduzi-los
generosamente à civilização, o que reafirmava, mesmo que inconscientemente, a
supremacia branca que se queria contestar.
No
terceiro segmento do texto, intitulado “Music, Mestizaje and Melancholia”, os
autores observam que a música e a língua tornavam-se os dois campos
privilegiados da transculturação. Mas, à medida que se chega a meio do século
XX, as esperanças de construção da identidade nacional a partir da
transculturação diminuem, levando a finais, nos romances, cada vez mais
melancólicos e pessimistas. Mulatos e mestiços, convocados a construir um
projeto nacional progressista e para tanto induzidos a deixarem para trás
antigas relações e modos de vida, decepcionam-se com o que encontram, assim como
seus narradores parecem se decepcionar um pouco com eles. As soluções
melancólicas apontam para um fracasso desse projeto nacionalista, mas também
para a dificuldade de exorcizar o demônio do Darwinismo
Social.
Esse
último segmento do texto pareceu-me o mais fraco, quer porque a crítica deixaria
o leitor numa espécie de impasse, quer porque os autores convocam, para
ajudá-los a destrinchar e usar o conceito de melancolia, o psicanalista Sigmund
Freud. Não tenho qualquer preconceito com o trabalho comparativo também de
campos discursivos bem diferentes, se o faço com certa freqüência, mas creio
que, no caso, os autores precisavam de mais espaço para fazer render o recurso e
o psicanalista.
Em
contrapartida, a hipótese central do texto, identificando traços de uma teoria
de base darwinista inadequadamente importada da Biologia para a Sociologia,
tanto na crítica racista à mestiçagem quanto na sua tentativa de recuperação
para os projetos nacionalistas e populistas do século XX, me pareceu bastante
forte e fecunda. O que me leva ao segundo momento do meu próprio comentário, em
que pretendo esboçar algumas conseqüências para o campo de estudo do nosso Grupo
de Trabalho, a saber, a Literatura Comparada. Essas conseqüências referem-se,
basicamente, a impasses que ainda hoje afetam o ensino da nossa
disciplina.
Problemas
do Ensino
Digamos,
bem grosso modo, que a disciplina
Literatura Comparada venha construindo, com o tempo, três objetivos diversos mas
complementares: primeiro, comparar literaturas de línguas diferentes; segundo,
teorias da literatura de línguas diferentes; terceiro, comparar campos
diferentes de saberes.
A
minha prática pessoal tem me encaminhado para o terceiro objetivo, possivelmente
o menos “puro”, ao comparar a Teoria da Literatura com a Filosofia, mais
especificamente, no presente momento, com o ceticismo filosófico. Esse trabalho,
salvo melhor juízo, vem se articulando bem com o segundo objetivo, que ora vem
sendo objeto de estudo e discussão do Grupo de Trabalho de Literatura Comparada.
No
entanto, não seria adequado esquecer, em nenhum momento, o primeiro objetivo da
disciplina, que se pode dizer fundador e original. À comparação entre
literaturas de línguas diferentes podemos realizar um exercício de transferência
do paradigma crítico do texto ora estudado, entendendo que esta comparação
enfatiza ao mesmo tempo dois caminhos teóricos que ora se complementam ora se
opõem: se o estudo de literaturas de línguas diferentes, por um lado, valoriza a
superação das diferenças regionais em nome de um cosmopolitismo intelectual mais
do que necessário, por outro reforça as literaturas nacionais, em conseqüência,
os discursos que sustentam as identidades nacionais.
De
maneira equivalente, o ensino de Literatura Brasileira, da forma como se
apresenta em especial nos níveis fundamental e médio, supõe antes o elogio ou a
imposição da identidade “Brasil” do que a fruição ou o estudo da literatura
propriamente dita, isto é, da ficção e da poesia de que nacionalidade for. Ora,
como vimos no texto de Julie Taylor e George Yúdice, a construção da identidade
nacional pela direita ou pela esquerda, pelo colonialismo branco ou pelo elogio,
igualmente branco, da mestiçagem, recai em um apagamento das contradições
semelhante ao que vimos no ensino de literatura.
Essa
questão, que pode ser avaliada como “menor” pela academia universitária, não me
parece de forma alguma irrelevante, apontando um nó teórico e pedagógico que, ao
invés de ser desatado, vem se apertando cada vez mais. Os cursos de Letras vêm
estudando a literatura de acordo com os mais recentes movimentos filosóficos,
sempre preocupados em superar o seu ensino ora como “belas-letras”, ora como
“aprendizado do amor pela língua-pátria” e, em decorrência, como “aprendizado do
amor pela pátria ela mesma”. Num caso ou no outro o ensino é obviamente
acrítico. Entretanto, os alunos desses mesmos cursos de Letras, quando voltam
para trabalhar nas escolas de ensino fundamental e médio, como que desaprendem
tudo para melhor se renderem aos livros didáticos, livros estes que não chegaram
ainda sequer aos estruturalismos dos anos cinqüenta.
O
quadro que se pinta é caricatural, por generalizar um tanto apressadamente, mas
creio não estar muito longe da verdade caso a caso. Contento-me, no entanto, em
apenas levantar o problema, que voltará logo adiante no terceiro momento do meu
comentário, no qual tento esboçar uma outra possibilidade de abordagem teórica a
partir da comparação do texto ora estudado com a obra de outros dois pensadores
brasileiros que trataram do mesmo tema, mas de maneira bem diversa.
De
Vicente a Flusser
No
meu entender, o texto de Taylor e Yúdice sugere, através da crítica aos impasses
do Darwinismo Social no elogio da mestiçagem, essa outra abordagem teórica, mas
não a delineia nem a percorre. O discurso encobridor é relativamente bem
descoberto pela reflexão dos dois autores, mas fica apenas sem roupa, sem saber
direito o que fazer. No entanto, a filosofia, e em particular a filosofia
brasileira, tem uma alternativa a esse discurso encobridor e à sua crítica, uma
alternativa que podemos dizer dionisíaca e nietzschiana.
Esta
alternativa, apesar de já contar com praticamente meio século de idade, não
encontra muito eco nem na academia nem nos media, até porque se trata de uma
alternativa difícil, provocativa, irônica e, é claro, nada linear. Ela tem dois
nomes fortes, em termos do seu discurso incisivo e prolífico, mas fracos, se
considerarmos o seu desconhecimento nacional.
O
primeiro desses nomes é o do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva,
morto precocemente em 1963 (lembre-se, entre parênteses, que Vicente foi marido
de uma das maiores poetisas brasileiras, Dora Ferreira da Silva, que faleceu
recentemente, em 2006). Per Johns chama Vicente de “o Dioniso Brasileiro”, ou “o
Dioniso Sacrificado”, apontando para o recalque do seu pensamento entre nós.
Vicente
tinha uma visão do brasileiro, portanto do mestiço e da mestiçagem, que passava
pela festa mas não passava nem de longe pelo exótico para turistas que Gilberto
Freire tangenciou. A festa ferreiriana implicava um teatro trágico e cotidiano
que assumia a dor sempre na sombra do prazer, bem como o contrário, o prazer
sempre na sombra da dor. Ele desejava ver o brasileiro menos como homo sapiens do que como homo ludens, do que como homem-do-jogo e
homem-do-gozo.
O
segundo dos nomes a que estou me referindo é o de um discípulo e, ao mesmo
tempo, adversário de Vicente Ferreira da Silva. Trata-se do filósofo tcheco
Vilém Flusser, que viveu no Brasil mais de trinta anos e se naturalizou
brasileiro. Abraham Moles o considerava o maior filósofo brasileiro. Renato
Janine Ribeiro, em diferentes palestras, como no Encontro da Anpoll em Gramado,
recentemente, tem lembrado que Vilém Flusser é o único pensador brasileiro lido
e citado freqüentemente no exterior.
Partiu
de Flusser, o eterno migrante, a crítica mais contundente ao patriotismo e suas
manifestações inevitavelmente kitsch.
Para ele, o patriotismo é sintoma claro de enfermidade estética, porque
fetichiza abstrações convenientes tão-somente a dominadores de direita e
candidatos (de esquerda) a dominadores. Ora, aceitar o patriotismo como sintoma
de enfermidade estética implica desconfiarmos fortemente do que ensinamos sob o
rótulo de “Literatura Brasileira”. Implica desconfiarmos também, e com a mesma
intensidade, do rótulo em si, da disciplina “Literatura Brasileira”, porque
deixa suposto como algo já dado que exista coisa tal.
Este
comentário não o impediu de se deter, como objeto privilegiado da sua
investigação filosófica, não sobre o Brasil, propriamente, mas sim sobre o
brasileiro, esse ser eminentemente mestiço. Ele o fez num livro meio perturbador
e meio delirante, mas fundamental, chamado A fenomenologia do brasileiro. Vilém o
escreveu primeiro em alemão, no Brasil, e depois ele mesmo o traduziu para o
português, provavelmente quando já voltara para a Europa, em 1973. Ele foi
publicado também nessa ordem lingüística: primeiro em alemão, em 1994 (post mortem), sob o título Brasilien oder die Suche nach dem neuen
Menschen: Für eine Phänomenologie
der Unterentwicklung, e depois em português, pela Editora da UERJ, em 1999, sob
o título Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo
homem.
É
do lugar-entre que Flusser desenha a sua fenomenologia do brasileiro.
Reconhecendo no homem ente essencialmente perdido, toma por bússola,
paradoxalmente, a sensação de desorientação, a angústia do beco sem saída. Este
momento, fugaz mas crucial, o obrigava a dar o passo para trás de si mesmo:
retroceder, para imaginar, depois compreender e, por fim, agir decididamente.
Ora, estas seriam as fases do encontro consigo mesmo: distância, imaginação, conceito e ato — as fases que configuram identidade
e, por via de conseqüência, caráter. Configurar o caráter lhe permite configurar
um novo mapa do Brasil e deste ser compósito chamado brasileiro, sabendo, muito
claramente, que “mapas verdadeiros não podem existir e, portanto, não existem” —
até porque seriam desnecessários, se existissem.
Para
entender o brasileiro e entender-se brasileiro, Flusser precisava tomar
distância e assumir sua estrangeiridade, como o mostra em trecho do ensaio Natural:mente (publicado em português
pela Livraria Duas Cidades): “Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio
ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o
domina. Mas o domina tragicamente: não se integra. O cedro é
estrangeiro no meu parque. Eu sou estrangeiro na França. O homem é
estrangeiro no mundo.”
Esta
condição — estrangeiro no mundo — lhe permitiu duvidar do sentido de termos como
Primeiro Mundo, Terceiro Mundo, História, Fim da História, duvidando de todos
sem, necessariamente, desesperar por nenhum. Para fazê-lo, foi preciso dar
aquele passo para trás de si mesmo que outro passo não é do que o movimento de
suspensão da crença, do que o movimento fenomenológico por excelência: a sua epoché brasileira. Assim, pôde iluminar
vários setores da cena brasileira: “imigração”, “natureza”, “defasagem”,
“alienação”, “miséria”, “cultura”, “língua”. No ensaio, realizou a sua descrição
fenomenológica de um Brasil vivido, “para servir de mapa, por analogia e
contraste, a uma humanidade tão perdida quanto o é o próprio
ensaio”.
Para
fazer o contraponto direto com o ensaio de Julie Taylor e George Yúdice que aqui
comento, gostaria de trazer um pequeno trecho do capítulo de Fenomenologia do
brasileiro chamado, justamente,
“Miséria”. Com esse texto, tento deixar ouvintes e leitores eventuais em
situação equivalente à minha, quando recebi um texto rigorosamente novo para
comentar no Encontro do GT de Literatura Comparada.
Fecho
meu ensaio, portanto, com o pensamento de Vilém Flusser sobre a
miséria:
O
termo “miséria” tem, em muitas línguas, inclusive em português, uma conotação
que aponta avareza. Em alemão, no entanto, significa, em uso antigo, “viver
alienado”— im Elend leben. Línguas são, entre outras coisas, tesouros de
sabedoria das gerações, e não é o pior dos pontos de partida para resolver um
problema consultar línguas a respeito.
Mas,
no presente caso, como interpretar “miséria” enquanto alienação e avareza? Por
exemplo assim: avareza é resultado da auto-entrega alienada a coisas (Selbstentaeusserung), que passam a serem
acumuladas para reencontrar-se nelas, e isto é miséria humana. Mas tal miséria
não é o que o termo pretende, via de regra. De modo que a sugestão lingüística
deve ser arquivada para uso posterior, embora notada.
O
termo significa, via de regra, em contexto econômico, carência acentuada. O
aparente contrário seria excesso. Mas desde já a sugestão lingüística adverte:
há miséria do excesso. A misère noir da riqueza excessiva, a couleur grise de
l’argent que marca os rostos dos capitalistas, visível até na face, queimada
pelo sol, dos playboys. De forma que excesso não é o contrário da miséria, mas
sua outra forma. É importante notá-lo. O excesso é miséria, porque tem a ver com
dependência de coisas. Tem a ver com reversão da relação “homem-coisa”, na qual
a coisa deixa de funcionar em função do homem e o homem passa a funcionar em
função da coisa. De forma que o homem deixa de possuir coisas e passa a ser
possuído e possesso por elas. Este tipo de miséria é alienação por excesso.
Portanto a miséria por carência, por ser miséria também, deve ter estrutura
semelhante. A saber: também deve estar relacionada com dependência de coisas,
com falta de liberdade. A estrutura pode ser assim formulada: na carência o
homem é miserável, porque coisificado e apertado por coisas que lhe faltam, e
neste sentido radicalmente escravo. No excesso o homem é miserável, porque
coisificado e apertado por coisas em excesso, e neste sentido (embora
secundário), tão escravo quanto.
(...)
Viver comodamente no Brasil a rigor é possível apenas porque a imaginação humana
é limitada. Não se imagina sempre a miséria simultânea dos milhões, e vive-se
comodamente. Aliás, tal miséria é realmente inimaginável.
Mas
quem procura imaginá-la descobre imediatamente que se trata de várias formas de
miséria, incomparáveis entre si, e causadas por fatores incomparáveis. Serão
dados quatro exemplos. A miséria do caboclo que vegeta no deserto à beira do rio
São Francisco é o primeiro. Come feijão preto podre em lata de gasolina, bebe
água verde-escura do rio, e sua mulher foge ao aproximar-se um jeep, por medo de
jagunço. A miséria da família nordestina
Com
Flusser e sua reflexão, quero, obviamente, chamar a atenção para o óbvio: o
conceito e a questão da mestiçagem estão intrinsecamente atrelados ao conceito e
à questão da miséria, e como tal devem estudados e
pensados.
Luiz
Roberto Cairo – Eneida Maria de Souza e o
discurso crítico brasileiro
Poucos
são os textos que apresentam um panorama analítico sobre a crítica literária
brasileira da segunda metade do século XX. Dentre a escassa bibliografia sobre o
assunto, vale lembrar os ensaios “A paixão crítica”, de João Alexandre Barbosa e
“Rodapés, tratados e ensaios”, de Flora Süssekind, ambos publicados no final dos
anos 80, inicialmente, no Folhetim, Suplemento cultural da Folha de São Paulo, e, mais tarde
incluídos, o primeiro, na coletânea, A
leitura do Intervalo, e o segundo, em Papéis colados. No entanto, Barbosa
apresenta um panorama da crítica brasileira de
Neste
sentido, é que o texto de Eneida Maria de Sousa, publicado inicialmente na
revista Interventions, com o título
“The debate on cultural dependence in Brazil”, em 2000, constitui um ensaio
único, inscrevendo-se mesmo como um clássico da ensaística brasileira na
linhagem de “Literatura e subdesenvolvimento”, de Antonio Candido, ponto de
partida da reflexão da autora.
“O
discurso crítico brasileiro” está estruturado em três partes: uma parte
introdutória, outra, com o subtítulo “O mal estar da dependência e a alegria
antropofágica” e uma terceira, com o subtítulo “Vanguarda e
subdesenvolvimento”.
Na
Introdução, Souza trata da metodologia, dos conceitos a serem operacionalizados
no texto, deixando claro que
Quanto
ao seu aspecto teórico, essa reflexão é ainda tributária da contribuição da
crítica cultural, que entende ser a leitura dos conceitos um procedimento
contextualizado, variando conforme as circunstâncias do momento em que foram
elaborados.
Observando
também que:
A
operação analítica realiza-se através do gesto de ressemantização conceitual,
direcionada não só quanto aos empréstimos, como em relação às diferentes
reciclagens operadas na cultura nacional. Pretende-se analisar o discurso
crítico a partir de parâmetros que o coloquem em situação de mobilidade frente
ao olhar analítico do presente.
Partindo
do princípio de que:
O
estreito laço entre modernização e transculturação – uma das articulações
teóricas a serem operadas neste texto – conduz a diferentes pontos de vista
quanto ao tema da dependência, levando-se em conta ora o descompasso entre as
idéias importadas e a sua atualização nos países periféricos, ora a aceitação do
atraso como ardil para a aquisição dos empréstimos culturais. (SOUZA, 2002, p.
47)
O
conceito de transculturação conduz o pensamento da crítica mineira ao uruguaio
Ángel Rama, que, ao propor o estudo da “transferência” ou da “transitividade
cultural”, enfoca “as relações entre universalidade e identidade nacional,
modernização e projeto político de homogeneização social” e “a constituição de
discursos contraculturais em sociedades neocoloniais, marginalizadas e
dependentes”. (2002, p. 47)
As
definições de Rama são ampliadas para a abordagem das “relações culturais de
modo mais abrangente” (2002, p. 47-48), conforme revisão feita pela crítica
latino-americana Mabel Moraña, uma vez que Rama se voltara mais para a série
literária.
Considerando
que “a substituição da hegemonia do mercado promove, nos dias atuais,
modificações de ordem epistemológica, ocasionando a troca de paradigmas vigentes
no período compreendido entre a década de 1920 e a de
- metáfora temporal, em que se articulam
a memória colonial e o esquecimento dos modelos, a recepção tardia da
modernidade metropolitana, nos países periféricos e a ideologia do
desenvolvimento e da dependência;
-
metáfora econômica, construída pelo
sistema de trocas entre culturas, dos ganhos e prejuízos trazidos pela
colonização e interpretados pelo signo da riqueza, do lucro, da dívida e do
empréstimo;
-
metáfora orgânica, traduzida pelo
sistema composto por elementos e processos naturais, transportados para a
cultura, como raiz, árvore, frutos, rizomas, transplante, enxerto;
-
metáfora comercial, compreendendo os
desdobramentos da operação transcultural relativos ao tráfico e ao roubo de
idéias, ao contrabando e ao plágio como estratégias de resistência à literatura
dos países colonizados;
- metáfora alimentar/ritualística, que
incorpora práticas indígenas para a construção de estratégias de forças
nacionais na luta contra o outro da metrópole, como a antropofagia oswaldiana e
a “estética da fome”, de Glauber Rocha. (2002, p. 48)
Na
segunda parte, “O mal estar da dependência e a alegria antropofágica”, Souza irá
revisitar e, conseqüentemente, analisar textos de intelectuais brasileiros, que,
a partir dos anos 50, trabalharam de alguma maneira aquelas metáforas nomeadas.
São textos emblemáticos da interpretação da cultura
brasileira.
O
primeiro deles, conforme já foi dito, é “Literatura e subdesenvolvimento”, de
Antonio Candido, publicado pela primeira vez, em tradução francesa de Claude
Fell, nos anos 70, na revista Cahiers
d’Histoire Mondiale, e, em seguida, incluído na coletânea de ensaios
intitulada América Latina en su
literatura, coordenada por César Fernández Moreno e editada no México, em
1972, pela Siglo Veintiuno. Ambas, publicações sob a chancela da UNESCO.[2]
Candido
aborda a questão da dependência, operando com uma divisão em duas etapas,
emprestada de Mário Vieira de Melo: país novo, consciência amena do atraso, para
o período de 1920 até a década de 1940, e país subdesenvolvido para a década de
50
O
texto do crítico carioca, radicado
Esta
observação faz emergir a persistência da discussão sobre a identidade nacional,
condenada a oscilar entre o local e o universal, o mesmo e o outro, a
civilização e o primitivismo, o moderno e o arcaico” (2002, p. 51) que, por sua
vez, conduz a autora ao texto Sentimento
da dialética (1992), de Paulo Eduardo Arantes, em que ele analisa as
posições distintas quanto à valorização das vanguardas no processo de
descolonização colonial do Candido (“desrecalque localista”) e de Roberto
Schwarz (“poesia pau-brasil
oswaldiana como representação literária centrada no mito progressista
conservador”) frente ao
(...)
dilema dos efeitos da transculturação que se manifesta ora através da dialética positiva – Oswald de Andrade e
a poética pau-brasil, o tropicalismo
dos anos 1960 – ora pela dialética negativa – Machado de Assis e a lição do
descompasso entre a modernização capitalista e a experiência brasileira. (2002, p.
51)
Isto
leva Souza a nos trazer a formulação de Paulo Emílio Sales Gomes sobre “o
mal-estar da sociedade brasileira diante do processo de modernização”, nas
décadas de 1960 e 1970:
Não
somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original,
nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se
desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. (2002, p.
52)
O
texto de Sales Gomes a conduz à resposta de Roberto Schwarz, em “As idéias fora
do lugar” (1977). Para Souza,
Expressões
como “descompasso”, “mal-estar”, “torcicolo cultural”, traduzem a preocupação de
Schwarz em apontar a defasagem entre as idéias importadas e a sua recepção num
contexto social diferenciado do europeu. Enquanto a modernização européia se
baseava na autonomia do indivíduo, na universalização da lei e na ética do
trabalho, no Brasil, a cultura do favor, antimoderna como a escravidão, prega a
dependência pessoal, a exceção à regra e a remuneração de serviços pessoais.
(2002, p. 52)
Cinco
anos antes do ensaio de Schwarz, porém, Silviano Santiago havia escrito “O
entre-lugar do discurso latino-americano” e, nele, Souza observa que o crítico
mineiro
subverte
as antigas antinomias e hierarquias próprias do discurso do colonizado e
ocidental, propondo a reflexão sobre a dependência cultural com base no
pensamento crítico da filosofia francesa e na grande lição americana de Borges,
desconstrutor de origens e de modelos da literatura mundial. (2002, p.
52)
A
lição relevante de Santiago, nas palavras de Souza está no fato de o entre-lugar não se tratar de “uma
abstração filosófica fora do lugar,
mas de uma posição que visa representar a cultura brasileira entre outras, retirando novos objetos
teóricos das obras ensaísticas e ficcionais”. (2002, p.
52-53)
Em
seguida, Souza registra a publicação de “Apesar de dependente universal”, ensaio
de 1980, onde Santiago reforça sua posição frente à visão de Schwarz, que, em
1987, vem a publicar “Nacional por subtração”, reacendendo a polêmica também com
Haroldo de Campos.
Antes
disso, porém, Souza observa que, em 1981, Luiz Costa Lima publica “Da existência
precária: o sistema intelectual no Brasil”, no qual “repudia a tradição do
discurso ensaístico brasileiro, pautado por um certo tipo de cultura auditiva, inimiga da exposição
argumentativa e sistemática do pensamento”. (2002, p. 54)
Após
as considerações sobre Costa Lima, o texto “Oswald de Andrade: ou o elogio da
tolerância racial” (1990), de Roberto Corrêa dos Santos, ao ressaltar a leitura
original da contribuição modernista de Santiago, acaba fornecendo um novo olhar
sobre o projeto modernista, abrindo espaço para a interpretação centrada na
metáfora alimentar ritualística que irá embasar e revitalizar a visão de Souza
da antropofagia.
Prosseguindo,
detém-se na discussão sobre o projeto modernista e os impasses de Mário de
Andrade, encerrando “O mal-estar da dependência e a alegria da antropofagia” com
o fragmento de Santiago, no qual ele diz
Oscilando
entre o pioneiro e o que é etnocêntrico, aflora o nacionalismo pragmático de
Mário de Andrade, que não é uma ‘resposta definitiva”, mas uma ‘solução
provisória’, como alerta Gilda de Mello e Souza em “Vanguarda e nacionalismo na
década de vinte”. Pelo sim e pelo não, é no nacionalismo pragmático que fica a
lição de atualidade de Mário. Uma estratégia desconstrutora do processo infernal
de ocidentalização do Brasil. (2002, p. 60-61)
A
última parte do ensaio “Vanguarda e subdesenvolvimento” é centrada na leitura do
momento desenvolvimentista dos anos 50/60, conseqüência da defasagem entre a
transculturação e a modernização ocorrida nas décadas
anteriores.
A
retomada da consciência do subdesenvolvimento, já em germe no projeto
antropofágico de Oswald de Andrade, pelo Concretismo na literatura, pelo
Abstracionismo nas artes plásticas, pela Bossa-nova na música, pelo Cinema Novo
e, no final dos anos 60 e início dos anos 70, pelo Tropicalismo, revisa a
antropofagia, refuncionalizando a interpretação calcada na metáfora
alimentar/ritualística, opção da autora.
Souza
encerra o ensaio, dizendo:
Se
a resposta se detiver no programa cultural modernizante do Estado, instaurado na
década de 1930 no Brasil, com a ajuda dos mais importantes intelectuais
modernistas, o outro lado da moeda transculturadora reflete não só o descompasso
entre ideais literários e nacionalização estatal, como também a abertura dos
países periféricos para a universalização cultural, marcada pela modernização
indiferenciada e homogeneizadora. A consciência da complexidade conceitual que
estrutura todo este raciocínio permite, portanto, o desdobramento infinito de
posições pós-modernistas, responsáveis pelo encaminhamento da discussão em torno
da transculturação. (2002, p. 64)
Antes
de concluir este texto, gostaria de fazer duas observações a respeito do
eventual diálogo do Modernismo e Pós-modernismo com a tradição crítica do século
XIX.
A
primeira diz respeito à origem da metáfora alimentar/ritualística que pode ser
encontrada na tradição crítica brasileira do século XIX, na lei da obnubilação
brasílica, inventada por Araripe Júnior (1848-1911), na tentativa de explicar a
transformação por que passavam os europeus ao atravessarem o oceano Atlântico e
a sua conseqüente adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo, por eles
encontrado na América, principalmente, nas terras
brasílicas.
Conforme
se depreende da leitura do texto de Araripe Júnior, a lei da obnubilação
brasílica se aplica não apenas ao modus
vivendi dos europeus que fizeram a travessia do Atlântico para a América,
mas também ao nível das idéias que, ao serem transplantadas, adaptaram-se ao
meio ambiente, adquirindo uma certa originalidade, que se traduziu no que ele
veio a chamar de estilo tropical,
marca da brasilidade, da americanidade, que distingue as obras literárias
produzidas no Brasil, na América, daquelas produzidas na
Europa.
(...) os poetas da nova geração
brasileira, os novos romancistas que surgem, rebolcando-se no azul e na luz
tropical, em um estilo doido de cores, de tintas gritadoras, ungindo-se, na sua
proverbial indolência, nuns tons orgíásticos de imaginação inominada. (Araripe
Júnior, 1960, II, p. 69)
Desta
forma, a incorreção do estilo, falha
reiteradamente apontada nos textos dos brasileiros pelos europeus,
particularmente pelos portugueses, quando ligada à contextura do espírito da terra
deixa de ser defeito e passa a ser qualidade, uma vez que constitui a marca da
diferença, ou seja, o sinal que define o estilo tropical, característico dos
textos produzidos no Brasil, e que os distingue do estilo dos textos
europeus.
Para
Araripe Júnior:
O
tropical não pode ser correto. A correção é o fruto da paciência e dos países
frios; nos países quentes, a atenção é intermitente. (...) O estilo, nesta
terra, é como o sumo da pinha, que,
quando viça, lasca, deforma-se, e, pelas fendas irregulares, poreja o mel
dulcíssimo, que as aves vêm beijar; ou como o ácido do ananás do Amazonas, que
desespera de sabor deixando a língua a verter sangue, picada e dolorida. É esse
estilo desprezado pelos rigoristas que justamente me apraz encontrar na mocidade
que agora surge no Brasil; (...). (1960, II, p. 70-71)
Partindo
do pressuposto de que os europeus, quando aqui chegavam, perdiam a sua
identidade, adquirindo uma outra, por força do fenômeno da obnubilação, os
textos por eles produzidos no Brasil já apresentariam, conseqüentemente, marcas
de um novo estilo, o estilo tropical, característica definidora do
gênero brasílico. Seriam, portanto, textos de
literatura brasileira.
Desta
forma, entende-se porque Araripe Júnior considerava importante a inclusão dos
textos dos cronistas da época colonial na história da literatura brasileira.
Assim vistos, constituíam, sem sombra de dúvida, textos de autores
brasileiros:
Portugueses,
franceses, espanhóis, apenas saltavam no Brasil e internavam-se, perdendo de
vista as suas pinaças e caravelas, esqueciam as origens respetivas. Dominados
pela rudez do meio, entontecidos pela natureza tropical, abraçados com a terra,
todos eles se transformavam quase em selvagens; e se um núcleo forte de colonos,
renovado para contínuas viagens, não os sustinha na luta, raro era que não
acabassem pintando o corpo de jenipapo e urucu e adotando idéias, costumes e até
as brutalidades dos indígenas. (Araripe Júnior, 1960, II, p.
407)
Sob
a ótica da obnubilação brasílica, vale ressaltar a leitura por ele realizada de
José de Anchieta, em que observou a diluição do misticismo do jesuíta em um curioso naturalismo e a
transformação da teologia em fetichismo:
(...)
a sua vida entre os selvagens e o seu prestígio contra os sacerdotes índios
atestam que este padre, se não por imposição do meio ao menos por arte refinada,
se fez um legítimo pajé. A missão do taumaturgo brasileiro, como o chamavam, nas
florestas do Sul, não se pode explicar senão pelas feitiçarias, aceitas ou
habilmente copiadas, dos piagas, e com que ele catequizou os seus caboclos.
(Araripe Júnior, 1960, II, p. 407-408)
Ainda
sob este mesmo ponto de vista, convém chamar a atenção para a leitura que fez da
transformação por que passou o modelo naturalista europeu na literatura
brasileira:
Zola,
neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos
para adaptar-se ao sentimento do real, aqui. O fato é intuitivo, e eu direi por
quê. A concepção do mestre, os seus métodos de expectação, os seus processos
experimentalistas, tiveram em vista uma sociedade decadente, de natural
tristonha, que decresce, míngua dentro das próprias riquezas, perante sua
antigüidade, cansada, exausta, senão condenada a perecer. No Brasil, o
espetáculo seria muito outro, - o de uma sociedade que nasce, que cresce, que se
aparelha, como a criança, para a luta. Ora, nada mais natural do que uma
inversão nos instrumentos. Um cadáver não se observa do mesmo modo que um ser
que ofega de vigor. (Araripe Júnior, 1960, II, p. 71)
Ora,
aí está a diferença que constitui a afirmação da originalidade e, portanto, a
marca da nacionalidade da literatura que, no Brasil, os escritores produziam.
Consciente de que o escritor brasileiro para afirmar a sua identidade precisava
não só copiar o modelo estrangeiro, mas também recriá-lo e/ou até mesmo
superá-lo, Araripe Júnior realmente antecipou o Manifesto Antropófago, de Oswald
de Andrade, constituindo-se assim numa das eventuais tradições na qual se insere
o pensamento deste polêmico escritor da vanguarda brasileira de
1922.
A
segunda observação refere-se ao impasse apontado por Eneida Maria de Souza num
crítico como Mário de Andrade, que já se encontrava também em críticos do XIX,
como José Veríssimo (1857-1916) que oscilou com freqüência “na posição do
intelectual, acuado entre a profissão de escritor e o apelo em participar da
política restauradora do Estado nacional.” (2002, p. 57)
Concluindo,
gostaria de enfatizar o prazer da leitura do ensaio de Souza, um importante
panorama da crítica brasileira da segunda metade do século XX, que proporciona
ao leitor uma revisão da tradição crítica brasileira, ao dialogar com o passado,
permitindo uma ruptura com a visão oficial homogeneizante e abrindo perspectiva
para a leitura da diversidade cultural que enforma nossa tradição
crítica.
Notas
[1] Convém registrar a
publicação do livro Sobre a crítica
literária brasileira no último meio século, de Leda Tenório da Mota,
publicado em 2002, pela Imago, bem como a existência da tese de Doutorado A crítica literária na universidade
brasileira, de Rachel Esteves Lima, defendida em 1997, no Programa de
Pós-graduação em Letras da UFMG. Ambos, textos que apresentam uma leitura menos
panorâmica e, portanto, mais verticalizada da crítica de parte da segunda metade
do século 20.
[2] Em português foi publicado pela primeira vez, no Brasil, em 1973, no n° 1, da revista Argumento, e, em 1979, pela Perspectiva, na edição brasileira da coletânea mexicana. Em 1987, o texto foi incluído no livro de Antonio Candido, A educação pela noite e outros ensaios, editado pela Ática.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARARIPE
JÚNIOR, Tristão de Alencar. Obra
crítica (Dir. Afrânio Coutinho). V. II. Rio de Janeiro-RJ: Fundação Casa de
Rui Barbosa/MEC, 1960.
BARBOSA,
João Alexandre. A paixão crítica. In: A
leitura do intervalo. São Paulo: Iluminuras; Secretaria de Estado da
Cultura, 1990, p. 37-62.
SOUZA,
Eneida Maria de. O discurso crítico brasileiro. In: Crítica cult. Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2002, p. 47-66.
SÜSSEKIND,
Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna.
In: Papéis colados. Rio de Janeiro:
Ed.da UFRJ, 1993, p. 13-33.
Maria
Cândida Ferreira de Almeida – Astúcias e
dilemas da mestiçagem: a “raça infeliz” como
incômodo
Ao
Tamoio
A
mestiçagem é uma de nossas idéias fundacionais, fruto do processo colonial
europeu exercido sobre grupos muito diferentes, com direito a permanência nos
discursos sociológicos, espaços epistemológico de sua elaboração, e com
ressonâncias estáveis nos discursos estético-culturais. Uma teoria da mestiçagem
pós-industrial será também um discurso da ambigüidade que traz implícita uma
apologia à diferença e ao modelo de civilização eurocêntrica que tem como
requisito a pasteurização da diversidade. A origem dos discursos sobre
mestiçagem pode ser estabelecida nas relações coloniais, quando, por um lado,
fomos vítimas do rigor contra a origem mestiça, proveniente dos conceitos de
“pureza de sangue” da cultura ibérica, e por outro, da necessidade de reversão
deste preconceito, já que somos, na maioria, mestiços ou não-brancos e a
ocupação dos territórios colonizados dependia da mestiçagem para sua efetivação
como forma de aliança das várias etnias implicadas no processo. Assim como, na
atualidade, a exigência da promoção de relações cordiais entre os grupos étnicos
que formam as nações modernas americanas é necessária para a estabilidade
política. Estas questões formaram dois modos de condução do problema na América
Latina, como distinguiu Silvina Carrizo: houve uma contínua afirmação da
“inferioridade das populações indígenas e todo o seu passado cultural em virtude
do progresso e do ingresso no concerto das nações ocidentais”; os intelectuais
se debruçaram “sobre o problemas da assimilação dessas culturas e da
problemática da mestiçagem cultural”[1],
em uma perspectiva por vezes apologética, em outras, apenas resignada.
A
permanente oposição entre civilizado e bárbaro, que na cultura pós-industrial e
a partir da divulgação da antropologia ganha contornos de oposição entre
avançado e primitivo, ou sociedade complexas e sociedades primitivas que
subsidia a discussão sobre mestiçagem ganha maior visibilidade em momentos como
o das efemérides dos Descobrimentos, quando a louvação da expansão
ultra-marítima e, por conseguinte, dos valores ocidentais dá a tônica dos
discursos. Mas não é só nestes momentos que eles são produzidos. Julie Taylor e
George Yúdice, em um estudo sobre a mestiçagem e o darwinismo social na
literatura da América Latina chegam a afirmar que: “Uma leitura atenta destes
discursos revela que o diagnóstico degenerativo do darwinismo social do século
XIX nunca foi plenamente exorcizado das construções celebratórias das
identidades nacionais híbridas”.
[2]
O
desprestigio das etnias envolvidas no processo de mestiçagem tem uma expressão
recorrente, toda vez que queremos dizer que algo não partilha da
“universalidade” européia, dizemos que é “tupiniquim”: Tupi or not Tupi permanece como questão
estruturadora, e, por conseguinte, hierarquizadora dos discursos culturais
brasileiros.
Luis
Duno Gottberg[3],
lembra que “no Tesoro de
A
distribuição da classificação sobre o espaço também hierarquiza as relações
envolvidas, os brancos ou mais próximos de uma origem “pura” como um negro que
aparece na quarta cena da primeira fileira estão acima, representados da
esquerda para a direita de cima a baixo. Os indígenas, objetos de maior
interesse do público europeu naqueles anos de iluminismo do século XVIII, são
representados em uma grande cena idílica, na qual um casal aparece caçando,
outro cuidando dos quatro filhos, e ainda, um homem deitado no chão descansando
em meio a natureza; a cena está destacada na parte inferior da tela acompanhados
da legenda explicando que os “mecas e mecas cujas castas ainda não misturarão,
são todos semelhantes”.
O
modelo de miscigenação hierarquizada que dominou no pensamento brasileiro
conformou um topos contra o qual o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro
reclama em sua última obra impressa: “O tema das três raças na formação
da nacionalidade brasileira tende a atribuir a cada uma delas o predomínio de
uma faculdade: aos índios a percepção, aos africanos o sentimento, aos europeus
a razão”.[5]
Este tipo de representação fundamentou, segundo Matthew Restall, um dos mitos recorrentes da colonização,
o “mito da superioridade das raças”, montado sobre a tautologia: “os espanhóis
conquistaram os nativos porque eram superiores, e a prova da superioridade foi o
fato de terem conquistado os nativos”[6],
mas é sua permanência na contemporaneidade que chama a atenção. Este mito é o
fundamento do dilema do conceito de mestiçagem; a mistura étnica, imprescindível
na ação colonial e na construção da nacionalidade harmonizada tem como
partícipes protagonistas raças ditas inferiores; o que está em jogo são a
aproximação e o afastamento dos valores ocidentais e o controle dos conflitos
étnicos sob o mito da identidade mestiça.
Durante
a fase mais rígida da colonização espanhola, os mestiços eram proibidos de
portar armas, de ser caciques ou protetores de índios, de trabalharem como
escrivão, corregedor e alcaide, sentar praça de soldado, obter graus
universitários e aceder às ordens religiosas, a menos que demonstrassem ser
filhos legítimos. As restrições aos mestiços afro-descendentes eram mais severas
ainda, eles não podiam andar pelas ruas das cidades durante a noite, montar a
cavalo ou ter índios ao seu serviço. As mulatas e negras livres eram proibidas
de usar adornos de ouro ou pérolas e de vestir se com tecidos de seda.
Para
contornar estas restrições, os atestados de “limpeza de sangue” eram produzidos
nas mais diversas formas, não só como documento civil fornecido para que se
tivesse acesso aos cargos públicos, aos títulos nobiliárquicos e aos próprios
meios de produção, mas também, de forma estritamente discursiva, como a
auto-declaração de não mestiço, publicada por Antônio Vieira em um texto
introdutório aos volumes da primeira coleção de Sermões[7]. Por outro lado, na trajetória de Inca
Garcilaso de
Varão
insigne digno de perpetua memória: ilustre em sangue: perito em letras: valente
em armas: filho de Garcilaso de
Para
lograr o respeito que alcançou ainda em vida apesar de sua origem, note-se que o
nome da mãe aparece disfarçado sob um nome cristão - Elizabeth Palla -, Inca
Garcilaso tinha que submeter-se, e conciliou a pluma com a espada, de modo que
servindo militarmente aos seus protetores na Espanha pode amealhar alguns
benefícios e desenvolver a carreira intelectual. Também, na carreira das letras
se revelou como um perfeito renascentista, e os Comentários reais terminam por
funcionar, além da história de seus antepassados incas, como uma genealogia
nobiliárquica da sua ascendência indígena.
Caso
não se empenhasse, Inca Garcilaso de
Esta
desqualificação sistemática conviveu sempre com a negociação necessária para o
processo de colonização, o que torna mais exemplar o caso de Inca Garcilaso.
Índias foram declaradas princesas, tornaram-se matriarcas de famílias mestiças,
como foram Catarina Paraguassu e a própria Malinche, “mãe do primeiro mestiço”,
mulheres fundadoras e poderosas, que sobrevivem na circularidade do mito
produzido dentro da lógica da dominação. Quero dizer com toda esta introdução
que a mestiçagem não é uma estratégia ideológica do século XIX, ela tem seus
princípios nos princípios mesmo da ocupação das Américas, por isto o título
deste trabalho apela para a noção de astúcia, que invoca a afirmação
identitária, mas também o ardil necessário para a sobrevivência. No século
XVIII, uma política da metrópole portuguesa, sob o comando do Marques de Pombal,
em prol das uniões interétnicas tão necessárias a estabilidade no território
ocupado, foi registrada em um alvará de 1755; o decreto real de 4 de abril
declarava :
que
os meus vassalos deste reino e da América que casarem com as índias dela não
ficam com infâmia alguma, antes se farão dignos de minha real atenção e que nas
terras em que se estabelecerem serão preferidos para aqueles lugares e
ocupações, que couberem na graduação de suas pessoas, e que seus filhos e
descendentes serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra ou dignidade, sem
que necessitem de dispensa alguma.[11]
O
mesmo alvará previa “empregos e honras” para os descendentes desta união e ainda
proibia que eles fossem chamados de “caboclos” ou qualquer outro nome
“injurioso”. No México, a proibição do uso da terminologia presente nas pinturas
das castas, só aconteceu no marcos dos movimentos independentistas do século
XIX, quando os campesinos foram convocados a apoiar a nova forma de governo.
Vivemos
um contínuo embate entre as posições que se referem à nossa formação
étnico-racial, ora louvando, ora camuflando, ora atacando. As posições são
muitas e as metáforas outras tantas, a Literatura Comparada não podia deixar de
participar forjando seu próprio aproveitamento dos conceitos elaborados nas
relações interétnicas. A mestiçagem como ardil traz embutido o dilema de um
contínuo embate entre as posições que se referem a nossa formação étnico-racial,
ora louvando a mestiçagem, e contando com ela para o apaziguamento dos conflitos
internos, ora camuflando estes conflitos e esperando o branqueamento, sob
eufemismo como “progresso” e “desenvolvimento”.
Mestiçagem
e Literatura Comparada
Em
1856, José de Alencar publicou oito cartas criticando a epopéia Confederação dos Tamoios de Gonçalves de
Magalhães que tinham como objetivo provocar uma polêmica que rompesse com a
unanimidade em torno da obra, mas não só. As cartas foram escritas com acuidade,
procurando produzir “juízos críticos” que debaixo de uma falsa modéstia, Alencar
as classifica como sendo apenas “impressões de minha leitura” [12].
Mas na primeira nota à edição em livro, o autor mesmo afirma que são “censuras”
que “em geral se referiam à gramática, ao estilo e à metrificação”. Estas
cartas-críticas trazem dois aspectos da nossa questão: Alencar propõe um modelo
de criação literária para o processo de mestiçagem brasileiro, que ele
desenvolverá depois em dois de seus romances indianistas e recorre à metodologia
comparada para exemplificar seus argumentos na demolição da epopéia de Gonçalves
de Magalhães. No que se refere a esta discussão, a proposta de criação mestiça
de Alencar se pauta pelo apreço às referências histórico-geográficas; pela
valorização da cultura indígena; e pela apropriação de modelos estéticos
europeus, mas orientados para uma busca da originalidade brasileira.
Em
diferentes momentos do texto, Alencar cobra um estudo mais sério dos cronistas
por parte de Gonçalves de Magalhães e, sempre que cabia, demonstrava seus
próprios conhecimentos, não só de cronistas que andaram por aqui, mas também na
Guyana, Antilhas ou Canadá. Na “Carta Segunda”, Alencar corrige “uma inexatidão
histórica sobre o território habitado pelos tamoios”, cometida pelo poeta do rei:
“Se bem me lembro, rezam as crônicas que a nação tamoia era um ramo da raça tapuia, que em tempos remotos possuíra
toda a extensão do Brasil... ”
O
apreço ao discurso histórico não solucionava os dilemas colocados pela criação
literária mestiça. Como representar as civilizações indígenas sem incorrer em
esteriótipos desqualificadores ou extremamente redutores? E ainda, escrever uma
poesia indianista é simplesmente empregar algum vocabulário autóctone? Alencar
discorre longamente sobre estas questões, que também foram tema constante na
avaliação da sua obra:
De
há algum tempo se tem manifestado uma certa tendência de reação contra essa
poesia içada de termos indígenas, essa escola que pensa que a nacionalidade da
literatura está em algumas palavras: a reação é justa, eu também a partilho,
porque entendo que essa escola faz
grande mal ao desenvolvimento do nosso gosto literário e artístico.
Mas
o que não partilho, e o que acho fatal, é que essa reação se exceda; que em vez
de condenar o abuso, combata a coisa em si, que em lugar de estigmatizar alguns
poetastros que perdem o seu tempo a estudar o dicionário indígena, procure
lançar o ridículo e a zombaria sobre a verdadeira política nacional.
Esses
que assim procedem tem uma idéia que não posso admitir; dizem que as nossas
raças primitivas eram raças decaídas, que não tinham poesia nem tradições; que
as línguas que falavam eram bárbaras e faltas de imagem, que os termos indígenas
são mal sonantes e pouco poéticos; e concluem d’aqui que devemos ver a natureza
do Brasil com olhos europeus, exprimi-la com a frase do homem civilizado, e
senti-la como o indivíduo que vive no doce confortable. (p.
27)
Qual
o limite na criação mestiça? Quando seria apenas o recurso superficial de
emprego de algumas palavras ou quando seria já uma poesia mestiça. José Miguel
Wisnik (1976), no entanto, aponta como antropofágica a presença, na poesia de
Gregório de Matos, de toponímios tupis que, segundo ele, vão suplementar a
paródia de um discurso encomiástico no soneto “Aos principais da Bahia chamados
os Caramurus”, um soneto que contém o topos da origem, que ridiculariza a
ascendência indígena de um “fidalgo da terra”, indica que a única fidalguia
seria a antropofagia de seus antepassados. Para Miguel Wisnik, além do simples
uso dos topônimos, o poeta realizaria uma “antropofagia lingüística” ao tender
para os monossílabos e as oxítonas, ressoando um falar
nativo:
Como
se vê, Gregório usa o vocabulário tupi e a referência ao Caramuru para –
trazendo à cena o processo de miscigenação, iniciado desde o momento em que o
primeiro europeu pisou aquela que seria a futura Terra do Brasil – ridicularizar
pretensões da nobreza baiana. O que o poeta desanca (de uma perspectiva racista
e etnocentrista), num texto lingüisticamente miscigenado, é a mistura racial e o
fato de a genealogia da aristocracia local recuar em direção a um povo
não-cristão – aqui retratando numa moldura de irracionalidade, fereza, feiúra,
irreligiosidade e canibalismo.[13]
A
leitura de Wisnik quer superar a ligeireza da identificação do léxico para
tentar revelar na estrutura poética uma miscigenação mais profunda, recorrendo a
aproximações sintáticas. Revelar a miscigenação lingüística, estilística ou
lexical, medir o seu grau, tem sido um problema para a crítica literária.
Algumas são as respostas, por exemplo, a leitura de Macunaíma a partir da sintaxe dos pemons
(taurepang e arekuná), trabalho que Lúcia Sá apresentou na Abralic 1998[14].
A
Literatura Comparada, em seus primórdios brasileiros, colocou estas questões em
seu horizonte investigativo. Não só nestas cartas de Alencar, cujos propósitos
não eram propriamente estabelecer um modelo crítico, mas em estudiosos como
Silvio Romero e José Veríssimo, cuja obra tinha a preocupação de fundar uma
historiografia e uma crítica literária brasileira focada nos problemas de nosso
contexto. Os fundamentos que orientavam Silvio Romero eram de base etnográfica e
sociológica e ele sempre trazia à superfície de sua crítica e historiografia os
aspectos étnico-raciais que julgava encontrar nos textos estudados. Contudo, a
apologia, oscilante e contraditória, em favor da mestiçagem do crítico
revelou-se como estratégia de branqueamento e foram gradativamente sendo
dispensadas pelas correntes teóricas, críticas e historiográficas posteriores.
Contudo, o apelo à mestiçagem subsiste como estratégia viável para tratar de
textos ecléticos produzidos em sociedades multi-referenciadas, ou seja, mantendo
sua face estilística e sua face sociológica.
Como
estratégia teórica para a literatura e para todo o pensamento brasileiro, a
mestiçagem possuía um papel conciliatório, cunhada para amenizar uma sociedade
divida entre escravos, índios e alguns poucos brancos que detinham a maior fatia
do poder. Quando Von Martius escreveu sua receita sob o título “Como se deve
escrever a história do Brasil”, ressaltava duas questões consideradas
importantes para tal empreendimento: a união em torno do poder monárquico; ou
seja, colocando o foco nas relações políticas, e na presença da “mescla de
raças” nas classes ditas baixas; ambos os pontos são tecidos sobre o apelo à
tolerância, à confraternização, e à união do país. Ciência e arte são também
estratégias políticas desde sua formulação como discursos autônomos; no contexto
latino-americano não seria diferente. Assim, os estudos literários transitavam
entre a política, a sociedade e as artes, acionando discursos que englobavam
todos estes aspectos da cultura humana.
Silvio
Romero, Ferdinand Denis ou José Veríssimo, qualquer destes estudiosos da
literatura tinham em mente a mestiçagem como conciliação e além, disso, como
branqueamento. Dentro deste marco teórico, Silvina Carrizo[15]
destaca “o matiz apologético” e o “desmanche da diferença”. Como vertentes de
descrição da mestiçagem no período. A partir da primeira configuração, se
imprime uma luta, que ainda que ligada ao passado, lança promessas para o
futuro. E a segunda perspectiva aponta que na mestiçagem estaria implícita no
seu apelo à alteridade e a mesmidade simultaneamente. Silvio Romero oscila entre
estes dois pólos: A obra fundadora de uma historiografia literária racializada,
a Historia da Literatura Brasileira
de Silvio Romero, estava apoiada nas reflexões positivistas de Spencer e nas
teorias do historiador inglês Henry Thomas Buckle, “as quais explicavam a
personalidade dos povos em função das relações estabelecidas com a natureza e
com os fatores físicos, a exemplo do clima, da alimentação e do solo” [16]
e chegou a conclusões racistas como resumiu Roberto Ventura:
Sua
teoria da mestiçagem e do branqueamento parte de uma combinação de pressupostos
racistas (existência de diferenças étnicas inatas) e evolucionistas (lei da
concorrência vital e do predomínio do mais apto). Previa que o elemento branco
seria vitorioso na “luta entre raças”, devido à superioridade evolutiva, que
garante seu predomínio no cruzamento. Prevê o total branqueamento da população
brasileira em três ou quatro séculos.[17]
No
contexto hispano-americano, encontramos a mesma percepção de que as raças
consideradas “biologicamente inferiores”, segundo as leis do “racismo
científico” baseado no pensamento positivista e no darwinismo social de Spencer,
poderiam justamente ser submetidas ou exterminadas. Após elencar alguns intelectuais de
diferentes países latino-americanos, entre eles Nina Rodrigues, do Brasil,
Alcides Arguedas, da Bolívia, Yúdice e Taylor resumem uma posição recorrente
entre estes estudiosos: “Prediziam que raças “inferiores” desapareceriam devido
a sua inabilidade para se adaptar à modernidade. Particularmente,
desqualificavam os mestiços, considerados como degenerados e incapazes para a
vida moderna.”[18].
Obras como de Domingo Faustino Sarmiento em Conflicto y armonía de las razas (1883)
viam a mestiçagem como “uma ameaça para o desenvolvimento das nações
latino-americanas a menos que se introduzissem elementos civilizados na torrente
da nacionalidade”[19].
Pautados
pelo positivismo e pelas teorias evolucionistas, nossa história literária teve
um começo que já indica o complicado e indiscernível entre a crítica e da
historiografia que foi o seu percurso. “A
crítica e a historiografia literária brasileiras foram marcadas, até 1910, pelas
noções de raça e natureza. As origens do estilo literário eram atribuídas à ação
diferenciadora do meio ambiente ou da mistura étnica.
” (VENTURA, 2000, 18) Foi daí que os primeiros críticos e historiadores
retiraram sua tese da originalidade literária. O
fato de todo o pensamento brasileiro estar influenciado pelos pressupostos
positivistas, não quer dizer que tivemos um só resultado. Já temos delineadas as
duas vertentes que refletem as oposições interno/externo, história/texto,
sociedade/indivíduo que marcam a teoria literária, e que no Brasil podemos
distinguir em uma linhagem esteticista e uma linhagem historicista, claro que
esta divisão é em si um problema, porque ambas as linhas têm fundamento na
perspectiva sociológica.
Silvio
Romero e José Veríssimo são modelares para uma discussão sobre mestiçagem dentro
dos estudos de Literatura Comparada, pois ambos são autores de historiografias
resultadas de princípios semelhantes, mas com objetivos muito distintos e
resultados intrigantes. Romero estava apoiado em teorias de cunho sociológico,
entendendo a concepção de literatura como sinônima a de cultura; enquanto
Veríssimo, apoiado nos mesmos pressupostos positivista, queria produzir, nem
sempre conseguindo, um estudo literário esteticista, relacionando literatura
estritamente como arte, sob esta perspectiva tentava abordar as obras literárias
através de uma metodologia específica para este estudo. As dicotomias,
binarismos, e maniqueísmos que assombram os estudos literários já estão ali
colocados. Temos, na proposta de Romero, a abordagem do tipo “externo”
de
cunho biográfico, psicológico, sociológico, filosófico ou de relacionamento com
outras artes; e, na de Veríssimo, a abordagem do tipo interno: na qual se
consideram os procedimentos formais para a realização do literário.
O
que quero mostrar com isto é como uma teoria da mestiçagem, voltada para
explicar e prever as relações sociais em uma acepção étnico-biológica, orientava
também a teoria literária, e eis o resultado, na análise que Silvio Romero faz
de uma peça - Cobé - de Joaquim
Manuel de Macedo, na qual o índio cujo nome intitula a peça - apaixonado por sua
senhora, e segundo o texto, sofrendo de “um amor sem esperanças”, ouve o mesmo
dela. Em uma teatral troca de confidências, na qual os atores falam com a
platéia como se falassem para si mesmos, Branca, senhora de nome reiterativo,
confessa ao índio enamorado que ama um pobre rapaz e seu pai a obriga casar-se
com um rico senhor, justamente o que capturou Cobé e sua mãe. Romero
comenta:
A
linguagem de Cobé, índio selvagem dos primeiros anos do século XVI, é
evidentemente imprópria. O tamoio fala como se por ele já tivesse passado a
longa evolução cultural do amor. Sim, por que é preciso não esquecer os
elementos sociais do amor. Filho da natureza, este sentimento, como muitos
outros cresce, avoluma-se, transforma-se no seio da sociedade, de cuja seiva se
alimenta. (1422)
E
mais a diante, Romero completa:
O
amor, atormentado, descrido, doentio, alucinado e louco, é um produto da cultura
e não da natureza; o oriundo deste é apenas uma tendência instintiva, normal e
plácida, como todo impulso meramente animal. (1422, vol.
5)
A
ênfase dada na leitura aos aspectos naturalistas e evolucionista como
interpretação do texto literário leva Romero a ignorar que desde os primeiros
momentos da catequese, as sociedades americanas elaboraram obras estéticas “já
nasceram adultas” e “falam um código universal extremamente elaborado”(CAMPOS,
239), compartilhar o código estando dentro, imerso na cultura que o subjuga,
propicia ao protagonista de Macedo o uso código lingüístico e emocional que
demonstra. A fé inabalável na evolução impede Romero de ver as possibilidades de
se queimar etapa, como aconteceu em todas as Américas, como acontece sempre, no
processo de transformação das culturas postas
Herança
dos séculos anteriores, a representação do índio bestial e demoníaco está
impregnada no imaginário através de obras como os poemas atribuídos a Gregório
de Matos, mas já nas crônicas do século XVI a aproximação de gentio à gente por
semelhança, como aparece nos poemas, é acompanhada de atributos de
irracionalidade - “alarve sem razão” -, de desconhecimento da religião - “bruto
sem fé” -, e de bestialidade como “gente bestial” e como “comiam seus avós”;
segundo Hansen, integrava-se ao índio “o topos da constituição física, pelo qual a feiúra
corporal, efetuada como simulacro de padrões ibéricos, é o correlato pictórico
da feiúra moral dos netos da Paraguaçu”. (HANSEN, p. 317) Desclassificado na
tópica da nação aparece o nome “Cobé”: “Cobé pá, Aricobé, Cobé pai”. “Cobé”
significa “indígena, descendente de indígena, língua indígena” segundo nota de
James Amado (p. 169). Cobé aparece nas obras literárias genericamente tanto como
o sujeito quanto como seu código lingüístico. Como nome próprio marcou outras
presenças, além da peça de Macedo, também no Uraguay, de Basílio da Gama. Nos poemas
atribuídos a Gregório de Matos apareceu mais de uma vez como referência à língua
geral, como o Barroco é um estilo no qual cada coisa é sempre outra coisa, a
referência à língua abarco o sujeito, sua parentela, sua cultura e como não, sua
genealogia “impura”, ou seja, mestiça. Em uma “Genealogia que o poeta faz do
Governador Antonio Luiz desabafando em queixas do muito que aguardava na
esperança de ser dele favorecido na mercê ordinária” encontramos o substantivo
cobé indicando este leque de acepções:
Veio
ao Espírito Santo
da
Ilha da Madeira Alz,
um
Escudeiro Gonçalves
mais
pobretão, que outro tanto:
e
topando a cada canto
as
Tapuias do lugar
havendo
uma de tomar
apara
a bainha da espada,
tomou
Vitória agradada,
que
então lhe soube agradar.
A
tal era uma Tapuia
grossa
como jibóia,
que
roncava de tipóia,
e
manducava de cuia:
tocando
ela a Aleluia,
tirava
ele a culumbrina
com
tal estrago, e ruína,
que
chegando a conjunção
lhe
encaixou a opilação
por
entre as vias da urina.
Pariu
a seu tempo um cuco,
um
monstro (digo) inumano,
que
no bico era tucano
e
no sangue mameluco:
mas
não tendo bazaraco,
com
que faça o batizado
lhe
assistiu sem ser rogado
um
torço de fidalguia
pedestre
cavalaria
toda
de beiço furado.
O
cura, que não curou
de
buscar no Calendário
nome
de Santo ordinário,
por
Antônio o batizou:
tanto
o colomim mamou,
e
tais forças tomou,
que
antes de se por de pé,
e
antes de estar já de vez,
não
falava português,
mas
sim o seu cobé[21].
Nestes
versos fica claro o uso da origem mestiça como desprestígio e o uso da língua
geral - Cobé - como ícone de barbárie. O bárbaro não é simplesmente quem não
fala o português, como o poeta termina por concluir nesta pequena parte do
poema: é também monstruoso e inumano, animalizado, como descreve a mãe indígena
no verso “grossa como jibóia” e em outro momento, já se referindo ao filho - “no
bico era tucano”. É também deformado, descrevendo a tradição de perfurar os
lábios e que reforça a imagem de índia “toda de beiço furado”, e por fim,
mestiço, “no sangue mameluco”. Todo este detalhamento no poema compõe um quadro pejorativo dos mestiços no
período Barroco. Em Basílio da Gama a palavra ‘cobé” batiza um índio com as
mesmas marcas de bestialidade, tanto física - “chata frente”, quanto moral,
“comem os mortos”, em uma alusão à necrofilia antropofágica:
Côa
chata frente de urutu tingida,/
Vinha o índio Cobé disforme e
feio,
que
sustenta nas mãos pesada maça
Com
que abate no campo os inimigos
Como
abate a seara o rijo vento.
Traz
consigo os salvages da montanha,
Que
comem os seus mortos; nem consentem
Que
jamais lhe esconda a dura terra
No
seu avaro seio o frio corpo
Do
doce pai, ou suspirado amigo. (Canto Quarto)
A
representação do índio associada à prática canibal, tal como no poema atribuído
a Gregório de Matos, mantém a concepção dos ameríndios, parte fundamental neste
conceito de mestiçagem, no campo da barbárie, que queria dizer inferioridade,
até incapacidade para o progresso.
Machado de Assis compartilha desta visão, e no poema “Potira”, publicado
dentro do livro Americanas, repete a
tópica da barbárie e define os ameríndios como “raça triste”, adjetivação
constante desde o debate em torno da Confederação dos
Tamoios:
...
Rudes eram
Aqueles
homens e ásperos costumes
Que
ante o sangue de irmãos
Folgavam
livres,
E
nós, soberbos filhos de outra idade,
Que
a vós falamos da razão severa
E
na luz nos banhamos do Calvário,
Que
somos nós, mais que eles? Raça triste
De
Cains, raça eterna ...
A
versão mais amena do romantismo, na voz de Gonçalves Dias, deixa o dilema da
mestiçagem mais explícito: primeiro apresenta um não-lugar que a perda de
identidade tradicional pelos mestiços implica. Em um poema em que a índia
mestiça embraquecida reclama de seus olhos verdes, cabelos loiros e pela clara,
pois os homens da sua aldeia a repelem dizendo: “És Marabá”, o poeta reforça a
idéia de rejeição daqueles que perderam a identidade fenotípica e não encontra
lugar entre os seus. O tema, como está indicado em nota do próprio Gonçalves
Dias, foi retirado das crônicas da Companhia de Diogo Vasconcelos: “Tinha certa
velha enterrado vivo um menino, filho de sua nora, no mesmo ponto em que parira,
por ser filho a que chamam ‘marabá’, que quer dizer mistura” (Crônica da
Companhia, L.3 nº. 27). Se relevarmos o tópico da “velha índia” representada
como “bruxa”, ou seja, que quem atua sob as ordens do demônio, como era
recorrente na crônica colonial, ficamos com a rejeição à “mistura”, na
representação dos índios por Vasconcelos, e na sua retomada por Gonçalves Dias.
Marabá
Eu
vivo sozinha; ninguém me procura!
Acaso
feitura
Não
sou de Tupã?
Se
algum dentre os homens de mim não se esconde,
“Tu
és”, me responde,
“Tu
és Marabá !”
Meus
olhos são garços, são cor das safiras,
Têm
luz das estrelas, têm meigo brilhar;
Imitam
as nuvens de um céu anilado,
As
cores imitam das vagas do mar!
Se
algum dos guerreiros não foge a meus passos:
“Teus
olhos são garços”,
Responde
anojado; “mas és Marabá!”
Quero
antes uns olhos bem pretos, luzentes,
Uns
olhos fulgentes,
“Bem
pretos, retintos, não cor d’anajá!”
O
desconsolo e a solidão romântica na jovem índia revelam a dor do entre-lugar que
implica o não pertencimento dos mestiços. E ainda, Gonçalves Dias, tal como
Macedo na peça citada, e o próprio Alencar em Iracema e O Guarani encenam a sedução pela cultura
européia como uma submissão por vontade, representação das relações interétnicas
que podemos descrever usando as palavras de Aloísio de Azevedo criadas para a
Bertoleza de O Cortiço: são
personagens que procuravam instintivamente o parceiro “numa raça superior a
sua”[22].
Reforçando esta idéia, tantas vezes repetida, Gonçalves Dias conclui o poema “O
Canto do Guerreiro”:
Aqui
dos meus irmãos, qual sou deles!
Escuta,
ó Virgem dos Cristãos formosa.
Odeio
tanto os teus, como te adoro;
Mas
queiras tu ser minha, que eu prometo
Vencer
por teu amor meu ódio antigo,
Trocar
a maça do poder por ferros
E
ser, por te gozar, escravo deles.
A
estrutura da teoria da mestiçagem é constituída pela representação dos indígenas
como “raça infeliz”, pois assim são chamados sucessivamente por nossos
intelectuais de diversas expressões; se delineia na perda de uma identidade
fundada em uma origem, por parte do mestiço e por fim, pelo permanente lugar de
subalterno “por vontade” reservado aos não-brancos.
Olavo
Bilac compartilha da versão amena e mais otimista do romantismo, contudo, não
menos pejorativa na representação dos partícipes da mestiçagem brasileira. Em um
soneto que anuncia a música, expressão estética que, ao lado do futebol, melhor
tem representado a brasilidade, como produto de uma conjunção de esforços dos
subalternizados, a boa metáfora de mestiçagem e por extensão da cultura
brasileira é ofuscada pela concepção das três raças como “infeliz” e marcadas
por conceitos depreciadores.
Música Brasileira
Tens,
às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em
requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.
Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do
oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova
portuguesa.
És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e
orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
E em nostalgias e paixões
consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças
tristes.
Bilac
perfila uma série de adjetivações desclassificatórias em tom encomiástico e
triste para falar da origem mestiça da música brasileira, assim temos: impureza,
pecado, tristeza, orfandade e lascívia que qualificam a produção estética de
selvagens, cativos e marujos, usados para definir a composição da população
brasileira. Na poesia atribuída a Gregório de Matos encontramos o branco
“pobretão” partícipe da mestiçagem que foi também, em outro soneto, definido
como “maráu”, ou seja, homem de baixa extração social, malandro, etc., em Bilac,
ele é o marujo, definição que o qualifica ao mesmo tempo como trabalhador braçal
mal remunerado e como nômade, sem raízes. No soneto, outra vez o léxico é
convocado para dar o tom de mestiçagem estilística: “pocaré”, “banzo”, “trova”,
“samba”, “jongo”, “xiba” e “fado”. À maneira dos neoclássicos, os dois primeiros
indicam sua origem etimológica ao serem acompanhados por “bárbaro” e “africano”;
explícita as origens, os demais aparecem expressando a simultaneidade de
pertencimentos dos seres mestiços, para por fim definir sua “procedência” como
“orfandade” e declarar que a nossa música é “flor amorosa de três raças
tristes”. Fica evidente que a “tristeza” é decorrência do lugar marginal e
popular dos que compõem a brasilidade.
Romero
chegou a concluir que “a fantasia romântica de acreditar no resultado
maravilhoso da mistura de raças inteiramente diversas” é uma “obnubilação
afetiva e imaginativa”. O crítico estabelece suas elucubrações sobre a
mestiçagem necessária à adaptação ao meio afirmando:
Destarte,
podemos, à luz dos fatos e da ciência, concluir: o incorporamento direto do
índio e do negro entre nós foi conveniente para garantir o trabalho
indispensável à produção da vida econômica do povo novo que se ia formar; e o
mestiçamento deles com o europeu foi vantajoso: a) para a formação de uma
população aclimada ao novo meio; b) para favorecer a civilização das duas raças
menos avançadas; c) para preparar a possível unidade da geração futura, que
jamais se daria, se os três povos permanecessem isolados em face um do outro sem
se cruzarem; d) para desenvolver as faculdades estéticas da imaginativa e do
sentimento, fato real no próprio antigo continente.[23]
A
opção de José Veríssimo por produzir uma crítica literária baseada nas
elaborações intrínsecas da obra de arte também esbarrava na sua concepção
negativa da mestiçagem, suas observações sobre a figura pública de Gregório de
Matos são bem esclarecedoras sobre este ponto: “Ao último remate da sua
caracterização, só lhe faltou ser mestiço, se com efeito não era,
o que quase custa a crer.” E o crítico completa sua definição de “mestiço”: “Mas
se a indolência, o desleixo, a incúria, certas qualidades brilhantes mas
superficiais de espírito, a debilidade de caráter, a lascívia exuberante, são os
sinais mais comuns e aparentes do mestiço, ele
moralmente o era, apesar de sua presunção de ser branco puro, da sua
vaidade de douto, dos seus muitos anos de Portugal e da educação portuguesa.” [24]
Assim,
a tentativa de fazer uma crítica pautada pelos valores intrínsecos da obra
fracassa ante os estereótipos que compõem as taxionomias evolucionistas do
pesquisador que reconhece o valor estético que caracterizaria o poeta, mas não
se furta a indicar características morais que ele atribui ao “mestiço”, e aí,
mestiçagem implica mais uma vez em desabono.
Saídas
contemporâneas
Nas
décadas de
No
Brasil, a partir de 1922, outros protagonistas assumem o palco da reflexão
cultural encenando uma contraposição ao pensamento estético e filosófico
determinista que havia predominado no século anterior, a partir de 28 estes
mesmos protagonistas fazem uma partenogênese e se dividem ainda mais. As
vertentes são múltiplas ficarei na oposição mais tradicional Mário de Andrade
versus Oswald de Andrade.
Se
na poesia Mário clamou seu “grito imperioso de brancura”, na crítica ele também
empurrou a discussão para o “social” e ficou ali, se debatendo com uma questão
que sabia perfeitamente ser étnico-racial, conforme ele mesmo sussurrou nas
entrelinhas de seu “Prefácio para Macunaíma”: “O que me interessou por Macunaíma
foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais
que possa a entidade nacional dos brasileiros”, transformando “identidade” em
“entidade”, ou seja, trocando a perspectiva coletiva pela individual, Mário
deixa entrever a questão que orienta sua rapsódia: a busca de uma fundamentação
desterritorializada do que seria ser brasileiro. Neste texto, Mário desenvolve
sua teoria da falta de caráter do brasileiro e termina por ultimar: “(Um de meus
interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e a flora
geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que
conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea
um conceito étnico nacional e geográfico.” [26]
Esta
tentativa outra vez fundada nas lendas indígenas e no folclore ligado a elas,
opta por um viés de mestiçagem índio-descendente, mas não explícito, tornado
invisível em outros dilemas sócio-estéticos. O mais importante seria criar uma
obra na qual a interferência do autor fosse diminuída e seus personagens
estivessem livres de ter que enunciar suas posições políticas: “esta forma
social de criação, até mesmo de combate não se deformaria na sua arte, porque
esta é que seria o propósito e estaria na consciência, na vontade do criador, e
não o combate”.[27]
Para Mário de Andrade, o “negrismo”, tomado como exemplo, “expressa essa
situação de absorção mecânica, de “repisação” dos elementos folclóricos”[28]. Contudo, acredito que o ataque de Mário
a este movimento se deve ao seu recorte étnico-racial, que propriamente a sua
atitude discursiva. Eurídice Figueiredo ao mapear “os momentos nodais” da
construção dos “movimentos identitários, literários e culturais dos
afro-descendentes na América e no Caribe” demonstra o quanto são combativos e
diversificados em seu conteúdo os conceitos de “negritude” e “negrismo” [29]
e que eles anunciam uma problematização da presença afro-descendente de através
de um posicionamento étnico frequentemente antagônico às concepções de
mestiçagem herdadas do século XIX.
Na
geração de intelectuais seguinte, a divisão dos Andrade adquire novos contornos
epistemológicos; de um lado estão os estudiosos vinculados a um pensamento
sócio-históricos, como os noviços da Revista Clima, que elegeriam como patrono a
Mario de Andrade e de outro, os esteticistas, como os da Revista Noisgandre, que
escolheram Oswald de Andrade.
A
corrente apadrinhada por Mario de Andrade, tornou-se, a herdeira mais visível do
avô antigo Silvio Romero, aproximando-se do crítico-historiador na concepção
evolutiva dos processos culturais, mesmo que de cunho marxista, além de seguir a
tendência do crítico, mantendo a discussão sobre literatura dentro de um
ambiente culturalista e multidisciplinar. Com Mário de Andrade, os criadores de
Clima compartilham a perspectiva de que a arte está na base da vida dos homens
em sociedade.
Para
Mário a arte deriva da humana necessidade de expressão um conteúdo ideal,
manifestadamente, o ideal de elaboração de uma arte nacional; além de pensar que
“(a)obra de arte só se dá quando chegou ao seu destino a que foi destinada” [30],
como afirmou em Carta a Manuel Bandeira. Estas concepções de arte encontram
continuidade
O
outro grupo, reunido em torno da revista Noisgandres, buscava produzir uma
crítica sincrônica, assim, se posiciona por inserir o Brasil diretamente nas
produções estéticas de cada época em condição de eqüidade, uma vez que havíamos
dominado desde o princípio o sofisticado código europeu, e com esta argumentação
firmaram posição a favor de uma originalidade que caracteriza a cultura
brasileira. Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari elegeram a Oswald de
Andrade como patrono, por estarem mais dispostos a nos ver como descendentes de
canibais do que dos bons selvagens, com a preocupação em correlacionar a
produção nacional e estrangeira, em pé de igualdade, proporcionada pelo manejo
de novas linguagens e de novas concepções de linguagem poética, preocupando se
em rastrear na cultura brasileira e em produzir uma estética voltada para a
invenção, sempre.
Como
Veríssimo e Romero, estes dois grupos não manifestaram uma fundamentação teórica
completamente antagônica, as transposições do pensamento marxista via sociologia
do grupo Clima, também era recorrente no grupo Noisgandre. Por exemplo, no texto
“A Razão antropofágica”[32],
Haroldo de Campos apresenta seu problema - a possibilidade de vanguarda
artística em países de economia periférica - franqueado por Engels. Contudo, a
opção pela antropofagia oswaldiana e não pela mestiçagem como resposta a
composição da originalidade nacional afasta este grupo do modo conciliador e de
uma conformação bio-social como a discussão vinha sendo processada.
Neste
contexto de maior complexidade, quando movimentos de afro-descendentes e de
indígenas reivindicam para si o lugar de fala, visibilizando a questão
étnico-racial na discussão se contrapõem ao formato sociológico dos intelectuais
hegemônicos, o aproveitamento pela Literatura Comparada de um conceito de
mestiçagem requer uma ressignificação em termos de valorização das raças
partícipes do processo de mestiçagem, o que demanda também uma ruptura com o
emprego que foi dado no século XIX, da qual ficaremos apenas com seu vínculo com
a noção de “identidade e nação”.
Notas
www.biblio.com.br/Templates/
CapistranodeAbreu/capitulos/IX.htm - 211k.
[1] CARRIZO, Silvina. Indigenismo.In: FIGUEIREDO, Eurídice (org). Conceitos da Literatura e da Cultura. Niterói/Juiz de Fora: EdUFF/UFJF, 2005, 207-224.
[2] TAYLOR,
Julie, YÚDICE, George. Mestizage and
the inversion of social darwinism in Spanish American fiction. In: VALDÉS, Mario
J., KADIR, Djelal (Ed.). Literary
cultures of Latin America. New York: Oxford University Press, 2004. V.III:
Latin American Literary Cultures: Subject to History,
p.310-319.
[3] DUNO GOTTBERG, L. Solventando la diferencia: la ideología del mestizaje en Cuba. Madrid: Iberoamericana, 2003, p. 22. [Tradução minha]
[4] HERKENHOFF, Paulo e PEDOROSA, Adriano. XXIV Bienal de São Paulo: núcleo histórico: antropofagia e historias de canibalismo, vol. 1. São Paulo: A Fundação, 1998, 112.
[5] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O mármore e a murta. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cossac&Naify, 2002, 181-164.
[6] RESTALL, Matthew. Sete mitos da conquista espanhola. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 233-243.
[7] VIEIRA, Antônio. Sermões. São Paulo: Anchieta, 1943-1945. (Edição Facsimilada. da editio princeps 1679-1748, 15 volumes).
[8] C.f. LIENHARD, Martín. La voz y su
huella: Escritura y conflicto étnico-social en América Latina 1492-1988. New
Hampshire: Ediciones Del Norte, 1991.
[9] SERNA, Mercedes. (ed., selec., int. e notas) In:
[10] HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do Século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, 312.
[11]
www.biblio.com.br/Templates/
CapistranodeAbreu/capitulos/IX.htm - 211k
[12] ALENCAR, José. Carta Primeira In: CASTELLO, J.A. A polêmica sobre “A confederação dos Tamoios”. São Paulo: FFCL/USP, 1953, p4. [Ao contrário de Castello, atualizei a ortografia em todas as citações retiradas desta edição]
[13]WISNIK, J.M. Folha de S.Paulo. Caderno MAIS!, 20/10/1996.
[14] SÁ, Lúcia. Tricster indígenas pervertem a literatura nacional: o caso Macunaíma. Congresso da Abralic, Florianópolis: UFSC, 1998.
[15] CARRIZO, Silvina. Mestigagem.In: FIGUIEREDO, Eurídice (org). Conceitos da Literatura e da Cultura. Niterói/Juiz de Fora: EdUFF/UFJF, 2005, 261-288.
[16] DUTRAS, Eliana de Freitas. O Não Ser e o Ser Outro.
Paulo Prado e seu Retrato do Brasil.
In: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, FGV, vol. 14, n. 26, 2000, p.233-252.
[17]VENTURA, Roberto. Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, 51.
[18] TAYLOR E YÚDICE, 2004, 311.
[19] DUNO, 2003, p. 23
[20] Cf. SILVEIRA, Renato. Revitalização das imagens do século XIX. (projeto de pesquisa UFBA)
[21] Tipóia (rede); culumbrina (cobra:pênis); bazaraco antiga moeda da Índia, segundo notas de James Amado.
[22] AZEVEDO, A. O Cortiço. São Paulo: Ática, 1979, 14.
[23] ROMERO, S. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília, 1980.
[24] Grifos nossos. VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira (1906) Brasília: UNB, 1998.
[25] CARRIZO, Silvina. Indigenismo, 2005, p. 216.
[26] SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas Latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Edusp/Iluminuras, 1995, 550-552.
[27] ANDRADE, Mário. O Banquete. Apud: MORAES, 1999, 103.
[28] MORAES, Eduardo Jardim. Limites do Moderno: o pensamento estético de Mário de Andrade; Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. 119
[29] FIGUEIREDO, et.alii. Negritude, Negrismo, Literaturas de Afro-descendentes. In: FIGUIEREDO, Eurídice (org). Conceitos da Literatura e da Cultura. Niterói/Juiz de Fora: EdUFF/UFJF, 2005, 313-.340.
[30] MORAES, “Arte social”, 1999, 101-124.
[31] MOTTA, Leda Tenório. Sobre a crítica literária brasileira no último meio século. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
[32] CAMPOS, Haroldo. Metalinguagem e
outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
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1976.
Rachel
Esteves Lima – Narrativas da crítica
latino-americana: Esboço de genealogia dos conceitos
Refletir
sobre o papel do intelectual, hoje, na periferia do capitalismo constitui um ato
de coragem, uma vez que tal tarefa se propõe como um investimento
contra-narcisista, que não apenas abala a imagem do homem de letras, construída
durante quase dois séculos, mas também promove um deslocamento de sua posição
privilegiada na ordem do saber e uma relativa deslegitimação do espaço
institucional em que o conhecimento por ele produzido é apropriado. Conscientes
dos riscos envolvidos nessa empreitada, os pesquisadores reunidos em torno do GT
de Literatura Comparada da ANPOLL aceitaram esse desafio, ao resolverem se
dedicar à produção de uma “memória” da crítica literária latino-americana,
projeto que, na qualidade de atual Coordenadora do GT, cabe-me aqui,
introduzir.
Começo
partindo de um tema que talvez já possa ser considerado lugar-comum no universo
acadêmico brasileiro, principalmente se recuperarmos as reflexões que vêm sendo
desenvolvidas nos congressos da ABRALIC: a inter-relação dos estudos
comparatistas com os estudos culturais. E o faço por acreditar que é mesmo
impossível pensar, hoje, a prática da literatura comparada no país sem levar em
conta as interpelações que lhe têm sido colocadas por um campo de saber que, não
bastasse haver promovido o deslocamento da noção de literatura, acabou por
colocar em discussão o próprio conceito sobre o qual se sustentava e que
promovia sua legitimidade, a partir do momento em que ousou apontar os
fundamentos modernos de toda e qualquer política da identidade.
O
deslizamento dos sentidos da literatura e da cultura se insere em (ou é
produzido por) uma quadro de reorganização geográfica, política e econômica no
qual se torna discutível a pertinência dos projetos nacionais. Projetos que
foram, em grande parte, sustentados por um trabalho intelectual comprometido com
a descrição das diferenças dos países ditos periféricos, em relação ao "centro
desenvolvido". A crise dos paradigmas que forneciam o álibi para o exercício do
pensamento da identidade instaura, talvez para todos nós, uma situação de
desorientação que ultrapassa em muito a definição dos artefatos simbólicos de
que devemos nos ocupar enquanto praticantes da literatura comparada, colocando
em discussão as próprias condições de possibilidade de superação das aporias que
seguem sendo experimentadas pelo discurso crítico de uma área que, como lembra
Alberto Moreiras, perdeu "sua função hegemônica na produção ideológica do valor
social". (MOREIRAS, 2001, p.230)
Diante
de um quadro de instabilidade e incertezas, inevitavelmente gerador de angústias
(que, esperamos, continuem sendo produtivas para o campo da Literatura
Comparada), os participantes do GT decidiram investir em um trabalho de cunho
metateórico, no qual fossem retomados como objeto privilegiado de análise os
conceitos operatórios, os temas e autores que forjaram o pensamento
latino-americanista sobre as trocas culturais processadas na região, procurando
desenvolver uma reflexão capaz de orientar a sua atuação, no presente. Segundo o
meu entender, dois objetivos devem ser contemplados por esse empreendimento: a
construção de uma memória “contra-hegemônica” da crítica latino-americana ? uma
memória “pluralizada”, assumindo-se a postura historiográfica pós-moderna ? e a
produção de uma reflexão pontual sobre a possibilidade de rompermos os limites
que a atual configuração epistemológica impõe ao nosso trabalho.
No
que se refere ao primeiro objetivo, convém lembrar a necessidade de promovermos
uma contextualização dos conceitos escolhidos pelo grupo, elaborando-se uma
revisão que considere não apenas o momento, a forma e o local em que eles foram
produzidos, mas que desenvolva também uma reflexão sobre o valor residual de
tais formulações para a compreensão dos impasses que a globalização, em suas
esferas política, econômica e cultural, apresenta às narrativas da identidade,
na contemporaneidade. A princípio, o corpus da pesquisa é formado pelos
seguintes conceitos: antropofagia, canibanismo,
cosmopolitismo do pobre, criolização, dialética da malandragem, entre-lugar,
estética da fome, estômago eclético, ex-tradição, frontería, heterogeneidade
cultural não-dialética, hibridismo, idéias fora do lugar, literatura de
fundação, mestiçagem, mirada estrábica, migrancia, modernidade tardia,
neobarroco, pós-ocidentalismo, razão antropofágica, realismo mágico,
subalternidade, super-regionalismo, trasculturação e tropicalismo.
Pode-se
dizer que o gesto de associar os termos “crítica literária” e “identidade
cultural” na América Latina praticamente significa lançar mão de um pleonasmo.
Afinal, até a década de 50 deste século, o caráter empenhado da literatura que
aqui se produziu também se manifesta na crítica. Nutrido pelo ideal ilustrado
que pressupunha um projeto pedagógico imprescindível à construção da nação, o
intelectual latino-americano se colocou perante a sociedade tanto como um agente
de descoberta e valorização da “cultura popular”, que embasaria a consciência
nacional, quanto como um “herói civilizador”, apropriando-se de um discurso
liberal “relativo”, uma vez que, para o atendimento de sua demanda pela
constituição de um mercado cultural interno, teve que recorrer ao
Estado.
Gestada
a nação no século XIX, tratar-se-ia, no século XX, de assegurar-lhe, via
ideologia do legado, a “unidade espiritual”, traduzida por um repertório de
símbolos discursivamente criados pela intelectualidade, comprometida com os
projetos de modernização implementados pelo Estado. Caberia aos homens de letras
minimizar a “sensação de desenraizamento” que acompanhava os nativos americanos,
inventando uma tradição que constitui uma narrativa desistoricizada pela
evocação de um retorno às origens arcaicas, pré-modernas, seja através do elogio
da herança cultural latina, da valorização do mundo indígena pré-colombiano ou
pela mitificação da harmonia racial produzida pela prática da
mestiçagem.
A
noção de “lugar” pode ser vislumbrada em tais narrativas de identidade, que, em
maior ou menor grau, apresentam em comum, segundo Santiago Castro-Gómez, os
seguintes elementos: a crítica às soluções universalistas; a idéia de que o
“mal” se encontra “fora” da nação; a postulação de uma especificidade cultural;
o recurso ao popular como instância legitimadora da verdade; a invocação do
sentimento religioso e do messianismo político; a exaltação do paternalismo
intelectual e da liderança carismática; o culto aos heróis; a oposição radical
entre o autêntico e o estrangeiro; a tentativa de reconciliar todas as oposições
sociais; a romantização da mestiçagem e a definição ex negativo do “próprio”. (CASTRO-GÓMEZ,
p.70)
Como
se pode perceber, tais concepções se adaptam melhor a uma sociedade em que a
modernização ainda se mostre incipiente, situação vivenciada até meados deste
século, na América Latina, e que não persistiria após a Segunda Guerra Mundial.
A reorganização político-econômica ocorrida a partir de 1945 embalou o sonho dos
desenvolvimentistas, mas as conseqüências da aceleração do processo de
industrialização logo se tornaram perceptíveis aos teóricos cepalinos e, como
lembra Antonio Candido, nesse período é deixada para trás a fase de “consciência
amena do atraso” (CANDIDO, 1987, p.140-162). O abandono dos binarismos que
embasavam as abordagens dos desenvolvimentistas é, pois, produto de um novo
ajuste teórico, em que o subdesenvolvimento passa a ser considerado não como uma
fase a ser cumprida, mas como uma síndrome gerada pela relação de simbiose
estrutural estabelecida entre a burguesia nacional e internacional, no quadro do
capitalismo tardio.
A
“consciência do subdesenvolvimento” acaba implicando um reconhecimento de que,
no terreno cultural, “a dependência se encaminha para uma interdependência”
(CANDIDO, 1987, p.155), noção que veicula um questionamento da distinção
estabelecida entre centro e periferia. Ocorre nesse momento, portanto, um
deslocamento da noção de autenticidade e identidade nacional, uma vez que o
capitalismo periférico pressupõe a coexistência de múltiplas temporalidades, a
convivência de formas culturais tradicionais e modernas em um mesmo espaço.
Frente a esse quadro, alguns conceitos, como por exemplo, os de transculturação,
super-regionalismo, dialética da malandragem, razão antropofágica, idéias fora
do lugar e entre-lugar, promovem uma reinterpretação do papel do intelectual
moderno na América Latina.
A
intensificação do processo de globalização, traduzido pelo trânsito de pessoas,
moedas, tecnologias, imagens e modelos ideológicos, vem complicar ainda mais a
análise cultural, levando ao limite a capacidade de produção dos discursos sobre
a representação, uma vez que, como afirma José Joaquín Brunner, a realidade
multicultural da América Latina constitui a expressão dos “processos
heterogêneos de conformação de uma modernidade tardia construída em condições de
acelerada internacionalização dos mercados simbólicos em um nível mundial”
(BRUNNER, 1992, p.38). Como temia
Ángel Rama, a modernização operada a partir do mercado transnacionalizado acaba
desacreditando as estratégias da transculturação regionalista (Cf. TRIGO, 1997,
p.150), demandando novas formulações críticas que possam oferecer vias
interpretativas capazes de proceder à análise do universo da cultura na época de
sua subsunção ao capital. Os conceitos de hibridismo, heterogeneidade
não-dialética, subalternismo, essencialismo estratégico ou tático, que apontam
para o “não-lugar da cena pós-moderna” têm se oferecido, na contemporaneidade
como uma resposta a essa demanda, que também interpela a todos
nós.
Tal
preocupação orienta o trabalho do GT de Literatura Comparada, que se pauta pela
necessidade de se compreender a crítica literária da América Latina a partir de
suas articulações com o contexto histórico e com as demais esferas de produção
de conhecimento que procuram analisar a cena cultural da região. O eixo temático
proposto procura colocar em interação categorias tanto temporais quanto
espaciais, devendo-se ressaltar que, aqui, a recuperação das noções de lugar,
entre-lugar e, atém mesmo, não-lugar, tal como ocorre com as de moderno/
pós-moderno e outras mais, longe de se prender a um encadeamento linear e
progressista que pressuponha a superação de um conceito por outro, pretende
tecer uma rede em que a dispersão e a errância constituam estratégia de fuga a
um historicismo baseado em modelos de explicação causalistas e dicotômicos.
É
procurando contribuir para a implementação dessa estratégia e também buscando
atender ao segundo objetivo traçado anteriormente ? qual seja, o de refletir
sobre os limites epistemológicos da produção intelectual, na atualidade ? que se
propõe que a investigação empreendida pelo GT e a exposição de seus resultados
assuma a auto-reflexividade como princípio. Espera-se que a pesquisa mantenha
uma tensão entre o inventário e a invenção, que adote uma sistemática,
indispensável à organização dos sentidos já estabelecidos, mas que recuse o
enclausuramento desses sentidos em um sistema totalizante. E que chegue mesmo a
se colocar contra a literatura, no que ela pode representar de
compromisso com o beletrismo e a manutenção da ordem hierárquica em uma
sociedade letrada, uma sociedade em que a escritura fez calar as vozes capazes
de questionar o discurso homogêneo que sustentou o projeto nacionalista. Para
tanto, cabe ao intelectual reconhecer, a partir do questionamento dos critérios
definidores da cientificidade de seu discurso, a perda da autoridade que sempre
conferiu às suas narrativas uma posição privilegiada na ordem dos saberes. Desse
deslocamento decorreria, no discurso teórico da atualidade, o uso reiterado das
metáforas do labirinto, da rede, do mapa ou do rizoma, em substituição à imagem
da árvore do saber. Com elas, recusa-se a verticalidade hierarquizante que
garantiu durante séculos a força da voz autoral. Entretanto, ainda resta ao
intelectual de hoje a alternativa do diálogo.
A
proposta do GT de Literatura Comparada caminha nessa direção. Assumindo o
rompimento com uma perspectiva individualista de produção de conhecimento,
busca-se desenvolver coletivamente o projeto exposto, buscando-se – não sem
dificuldades – conseguir que seus participantes atuem realmente como um grupo de
trabalho. Longe da tentativa de recuperação do espaço de ação do intelectual
moderno, o que deve importar-nos é a tentativa de construir na universidade uma
comunidade de pensadores capaz de romper com as idéias de unidade, identidade e
consenso, instaurando, em seu lugar, o dissenso, a descontinuidade e a
inconclusão do processo de aprendizagem. Tal proposição parece ir ao encontro
dos últimos escritos de Michel Foucault, que apelam para a formação de
comunidades organizadas em torno da amizade, por ele entendida como um processo
agonístico de convivência e experimentação. Longe de conceber as relações de
amizade como destituídas de hierarquia e de conflitos, o filósofo francês as
compreende como “incitação mútua e luta, tratando-se não tanto de uma oposição
frente a frente quanto de uma provocação contínua” (ORTEGA, 1999, p.168). Para
pensar a formação de tais comunidades baseadas nas relações de amizade, Foucault
propõe um processo de produção das verdades, a partir da noção de parrhesía.
Por parrhesía, compreende-se a relação com uma alteridade dotada do
direito do “franco-falar”, de tudo dizer, aberta e livremente, como forma de
promoção do crescimento dos sujeitos nela envolvidos. E é pensando em construir
um espaço em que uma vivência da parrhesía se faça possível, que nós
organizamos esse evento. Esperamos mesmo que se trate de um Encontro, de um bom encontro de pessoas que
recusam o isolamento em nome da edificação de um mundo compartilhado em
comunidade, uma comunidade que não desconhece o fato de também se instituir
sobre relações de poder, mas que procura “jogar dentro das relações de poder com
um mínimo de dominação e criar um tipo de relacionamento intenso e móvel, que
não permita que as relações de poder se transformem em estados de dominação”
(ORTEGA, 1999, p.168). Daí a opção pela forma do seminário, com
a apresentação de reflexões desenvolvidas pelos professores convidados a partir
de textos teóricos escolhidos em função de um eixo temático e colocados à
disposição de todos os alunos e professores que desejarem participar da
discussão.
Para
terminar, gostaríamos de registrar que ficamos muito felizes em tê-los aqui,
professores e alunos, numa noite em que se deseja, antes de tudo, prestar uma
homenagem a um crítico e escritor que ousou chamar a atenção para a necessidade
de se refletir sobre o que fica recalcado no discurso do intelectual. Que o
exemplo de coragem do mestre Silviano Santiago, um dos pensadores fundamentais
para o desenvolvimento dos estudos latino-americanistas no Brasil, nos inspire
em nossa jornada. Obrigada!
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Reinaldo
Marques – O pensamento crítico
latino-americano e seus impasses
Coube-me aqui a tarefa árdua, e ao mesmo tempo estimulante, de discutir
um texto de Alberto Moreiras, professor de literatura latino-americana na Duke
University (EUA), intitulado “Condições da crítica latino-americanista”.
Trata-se da introdução de seu livro A
exaustão da diferença: a política
dos estudos culturais latino-americanos (Belo Horizonte: Editora UFMG,
2001), cujos ensaios procuram pensar, a bordo de uma operação metacrítica, as
condições de possibilidade da reflexão latino-americanista no interior da
globalização.
Preocupado em delinear caminhos para uma reflexão contínua sob as
difíceis condições do presente, o pensamento de Moreiras revela-se ousado,
polêmico e áspero. Ousado por formular propostas que se situam no limiar do
tramável pela imaginação histórica, tentando vislumbrar um horizonte de
possibilidades para os impasses teóricos que nos acossam. Polêmico, por não se
furtar à crítica, falando do viável e do inviável. E áspero, pela contundência
de um excesso (louvável) de negatividade crítica, que o leva a se confrontar com
diferentes posições teóricas e críticas do pensamento latino-americanista de
passado e do presente (José Martí, Rubén Darío, José Enrique Rodó, José
Vasconcelos, Fernando Ortiz, Angel Rama, Jorge Luis Borges, Octavio Paz, Néstor
G. Canclini, Jorge Castañeda, Silviano Santiago), examinando-as detalhadamente,
em suas possibilidades e limites. Áspero ainda pelo cerrado cabedal de
categorias teóricas que mobiliza, pela intrincada rede de citações e remissões
que alavanca o seu pensamento. Mas uma aspereza que desafia o seu leitor,
interpelando-o com freqüência pelas questões que propõe, dissolvendo as ilusões
de uma solução redentora para os conflitos do nosso presente. Tudo isso aliado a
uma linguagem que acolhe as construções paradoxais, traindo uma contaminação
nietzschiana, sem procurar dissolvê-las nas análises que empreende. É o paradoxo
mesmo que espicaça e desdobra a sua reflexão.
O próprio Moreiras explicita bem as linhas teóricas e históricas de seu
trabalho, ancorado no pensamento pós-marxista, na filosofia desconstrutora, nos
estudos subalternos. Mas percebo em sua reflexão também uma forte ancoragem em
categorias nietzschianas e foucaultianas, como as noções de força, poder,
discurso. A organização de seu livro a partir de uma pequena constelação de
temas ou propostas teóricas, enfocando-os de forma segmentada, seletiva, revela
o abandono de uma perspectiva generalista ou totalizante, mesmo tendo defino o
latino-americanismo como “a soma total de representações que dizem respeito à
América Latina enquanto objeto do saber” (p.36).
A fim de cumprir a tarefa que me foi estabelecida, a de apresentar e
discutir o referido texto, adotarei a seguinte metodologia: num primeiro
momento, exporei sucintamente o que diz o texto de Alberto Moreiras; num
segundo, dialogarei com o seu texto, colocando algumas perguntas para a nossa
reflexão e vendo o que ele nos permite dizer sobre o nosso que-fazer com os
estudos literários e culturais, enquanto latino-americanistas brasileiros.
O
que diz o texto
Moreiras parte da constatação de que a reflexão latino-americanista,
entendida como “o conjunto do discurso acadêmico sobre a América Latina”,
praticado na própria AL, nos EUA ou na Europa, constitui um campo marcado pela
separação entre trabalho intelectual e seus meios de produção, traduzida como um
sintoma de expropriação na distância irredutível entre o objeto (o
latino-americano) e a intenção apropriadora (o discurso teórico). Como parte
desse quadro, encontram-se os debates em torno da “relativa substituição do
aparato tradicional dos estudos literários pelos estudos culturais na reflexão
transnacional sobre a cultura latino-americana” (p.11), em que pesa o fluxo
unilateral do discurso universitário norte-americano para as academias
latino-americanas. Na raiz desse quadro estão mudanças ocorridas nas condições
de possibilidade do próprio discurso latino-americanista, nos anos 90, com o fim
da polarização decorrente da Guerra Fria, com a implosão dos estudos de área.
Uma mudança geocultural em função da expansão do capitalismo global, cujos
desdobramentos afetaram as relações entre o particular e o universal, o local
(pulsões latino-americanistas) e o global (universalismo científico, por
exemplo).
Moreiras observa então como a filologia, instrumento para a universidade
moderna refletir sobre o social a partir do legado cultural da comunidade
nacional, no contexto do séc. XVIII (Romantismo), foi hegemonizada pelo aparato
literário, que excluiu ou subordinou a atenção dada a outros elementos
simbólicos, capazes de explicar o processo cultural. Agora (anos 1990), é a
literatura (promessa de autonomia estética e transformação espiritual da
existência) que se vê ameaçada, negada, pelos estudos culturais
latino-americanos, acusados de politizar tudo sem considerar os valores
propriamente estéticos (base da reprodução do intelectual humanista desde o
Romantismo). Por isso, Moreiras advoga a necessidade de uma investigação hoje do
estatuto do estético, se a estética pode funcionar ainda como abertura para um
“fora” do social ou da história. Mas o que está em questão nesse confronto dos
estudos literários com os estudos culturais, para ele, é a especificidade da
função crítica nas ciências humanas, que não pode ser monopolizada por nenhuma
das partes.
Importa destacar desde já que, para Moreiras, o que está em questão não é
nem a literatura nem a cultura, mas os aparatos discursivos, acadêmicos, que
pretendem estudar uma e outra. Assim, deixa claro que “a crítica literária é
hoje insatisfatória em suas formas e objetos tradicionais, e não pode mais
alegar o status que possuiu no passado enquanto árbitro da cultura nacional”
(p.13). Deu sinal disso, num primeiro momento, a irrupção da reflexão teórica
nos departamentos de literatura e, em seguida, a emergência dos estudos
culturais enquanto novo instrumento de articulação hegemônica, frente à
impotência da crítica literária para formular estratégias contra-hegemônicas
viáveis. De sorte que todos somos, hoje, interpelados por essa substituição do
antigo pelo novo.
A fim de poder avançar na reflexão sobre o quadro presente, Moreiras
recorre a uma diferenciação entre teorias “culturais” e “aculturais” da
modernidade, proposta por Charles Taylor, permitindo distinguir a modernidade
como “modernização” (teleologia para uma racionalização instrumental do mundo)
do uso histórico do conceito de modernidade em termos do impacto diversificado
do capitalismo em outras sociedades. Para Taylor, importam as noções “culturais”
de modernidade, reveladoras de que não há uma só modernidade mas modernidades
alternativas múltiplas, cabendo à reflexão das ciências humanas compreendê-las
em sua especificidade histórica. A existência dessas modernidades alternativas
demonstra que a história do capital e a história do poder social (estado
constitutivo da esfera simbólica em qualquer formação social) não coincidem, não
são idênticas. Investigar essa não-identidade constitui, segundo Moreiras, a
investigação mesma dessas múltiplas modernidades.
A reflexão latino-americanista sobre a especificidade da modernidade
alternativa latino-americana transcorreu predominantemente na perspectiva das
teorias culturais da modernidade, a partir dos conceitos de identidade e
diferença. Grandes figuras da tradição latino-americana foram culturalistas, no
sentido de Taylor: Bello, Sarmiento, Martí, Rama, Cornejo Polar, A. Reyes,
Henríquez Ureña, Antonio Candido, Rodríguez Monegal, Fernández Retamar. Com os
estudos culturais, continuou em vigor a lógica dos conceitos já gastos de
identidade e diferença, que os estudos culturais latino-americanos
transplantaram para novos textos, elaborando as mesmas categorias
historiográficas.
Pensar uma alternativa para além do jogo entre identidade e diferença, um
novo caminho para a razão crítica interpelada pelo presente, vislumbrando
possibilidades de renovação, é a tarefa que se impõe então Moreiras. Parte da
constatação de que, se os estudos culturais, ao incluírem outras textualidades
(o texto cinematográfico, o texto dos movimentos sociais, por exemplo), procurou
ler a especificidade cultural a partir de repertório maior de discursos, não
logrou todavia criar novos instrumentos de leitura para lidar com a perda da
capacidade técnica dos leitores que, treinados para a apreensão do literário,
não conseguiam transferir sua atenção para o não-literário. E mais, os estudos
culturais não conseguiram criar um novo paradigma dentro da reflexão
latino-americanista, não passando de replicação de uma mesma coisa. Assim, os
estudos literários – o antigo – e os estudos culturais – o novo – sofrem de um
anacronismo semelhante.
A pergunta que se coloca então diz respeito ao motivo real da disputa
entre estudos culturais e estudos literários, dado que compartilham do mesmo
conceito de razão crítica que, na avaliação e defesa do propriamente
latino-americano dentro da modernidade alternativa da América Latina, afirma um
espaço identitário de resistência (em âmbito continental, nacional e
intranacional). Cabe ver que conceito real de crítica está em jogo e quais as
possibilidades de renovação.
Moreiras descortina então o conflito entre os latino-americanistas que
não são latino-americanos – pensam a AL a partir de sua localização na
universidade cosmopolita, apoiados nos modismos metodológicos do discurso
universitário hegemônico-mundial, e os latino-americanistas latino-americanos,
cuja novidade nunca é suficientemente nova e que busca sua legitimação na
postulação da localização como redenção final. Localização dúbia, ao funcionar
ao mesmo tempo como fonte de legitimação de uns e de deslegitimação de outros.
Trata-se de buscar a localização “adequada”, legitimadora, mas tal discurso de
adequação nunca é seguro, pois baseado na expropriação da inadequação do
outro.
No Congresso da Abralic de 1996, no Rio de Janeiro, esse conflito
eclodiu, com a manifestação dos sentimentos por parte dos acadêmicos
latino-americanistas tanto dos estudos literários quanto dos estudos culturais.
Moreiras procede a uma leitura provocativa do fenômeno, ao observar que, no
referido Congresso, tratou-se de resguardar o espaço de se pensar literário
contra a intromissão do campo emergente dos estudos culturais. A literatura
enquanto disciplina literária, ocupando o lugar da verdade a partir de uma
perspectiva institucional, procurou proteger-se de uma estrutura grafemática que
ameaçava tomar seu lugar de sujeito, convertendo-a numa mentira. Nesse
confronto, em que a diferença entre duas forças exigia a divisão do território,
caracterizaram-se duas formas de violência: a violência divisória e fundadora
dos estudos culturais (força) e a violência dividida e conservadora dos estudos
literários (poder); o poder referente à posição hegemônica do literário e a
força, à posição irruptiva dos estudos literários. Trata-se de distinções
precárias, para Moreiras, uma vez que a irrupção do novo se tornou conservadora
e a preservação do antigo apresentou formas de irrupção novas ou
possíveis.
Dependente de uma estrutura transnacional, a relação entre poder e força
no Congresso Abralic invertia a relação anterior dada historicamente: “O que era
poder emergente no contexto transnacional [estudos culturais] se converteu em
força irruptiva no Brasil, e o que era força residual na esfera transnacional
[estudos literários] ocupou o espaço do poder ameaçado no Brasil. (...) força e
poder no Brasil respectivamente traduziam o poder e força no espaço
transnacional.” (p.18) Moreiras presume então duas posições dentro do Congresso:
de um lado, a defesa do aparato literário como defesa de uma ordem nacional ou
regional contra uma intromissão de caráter neocolonial, vindo de um espaço
transnacional hegemonizado pela metrópole norte-americana, vendo-se o
cosmopolitismo transnacionalizante dos irruptores como instrumento imperial; de
outro, ponto de vista dos irruptores, a defesa do aparato literário, como defesa
do espaço nacional estabelecido, mostrava-se comprometida com a defesa
ideológica da dominação social existente dentro da nação contra novas
interpelações que a questionavam. Para o crítico, ambas as posições revelam-se
simultaneamente verdadeiras (descrevem fenômenos concretos) e falsas (não os
descrevem de modo suficiente).
A polêmica desdobra-se no contexto do latino-americanismo hispânico, na
querela de alguns representantes dos estudos culturais da América Latina contra
o poder constituído da academia especialmente norte-americana, com os
latino-americanistas dos EUA sendo acusados de engajamento num colonialismo
cultural “a partir de uma apropriação e reprodução impróprias do objeto cultural
latino-americano” (p.19). Essa polêmica, na opinião de Moreiras, não constitui
algo alternativo ou suplementar, mas produz impactos sobre a formação e
desenvolvimento do campo – debates, conversas, teses –, tornando-se necessária a
sua compreensão. Nisso tudo, a questão fundamental em jogo são as condições
mínimas para uma crítica efetiva do saber no mundo contemporâneo.
Essas polêmicas conectam-se com a crise dos estudos de área pós-1989
(queda do Muro de Berlim, fim da polarização da Guerra Fria) na academia
norte-americana. Com o fim da contenção produtiva do pensamento segundo os
parâmetros da Guerra Fria, o discurso universitário norte-americano se expandiu
por diferentes territórios fronteiriços difusos, num processo de desorientação e
des-ocidentalização dos estudos pós-área, tornando os discursos e objetos
confusos. Processo que comporta alguns riscos: o risco de a desamericanização do
saber parecer com seu oposto; o risco de o abandono do referente nacional, o
apelo por diversidade e criatividade cultural e o interesse teórico pelo
subalterno se tornarem em instrumentos tradicionais para a dominação
norte-americana. Assim, os estudos de pós-área, em vez de serem espaço de
experimentação na liberdade do saber, se tornariam em mais um “ardil da razão
imperialista”, nas palavras de Pierre Bourdieu.
Para Moreiras, a polêmica entre os estudos culturais e os estudos
literários tornou-se repetitiva, chegando a um impasse. E permaneceu a questão
fundamental: “será que é possível reafirmar o destino não-imperial da razão
crítica, ou será que tal pretensão nada mais é que o movimento último de um
Iluminismo exaurido que mal pode sobreviver, apoiando-se na ilusão de que o
pensamento e o poder não são a mesma coisa, contra todos os tipos de evidência
histórica?” (p.21) Para sair disso, cabe ter em conta que tais debates são
sintomas de uma mudança geocultural, que tornou inadequados para sua compreensão
os antigos critérios de imperialismo cultural. Moreiras propõe então três
hipóteses para se entender essa mudança geocultural. Exponho-as a seguir, de
forma bem sucinta.
1a hipótese – Moreiras entende a polêmica entre estudos
culturais e estudos literários como uma propaganda enganosa, de base ideológica,
e que não deve nos iludir. Não está em jogo a literatura e seu estudo, nem o
texto e a leitura, nem a estética. O que temos de lidar é com um deslocamento
geocultural, “motivado ou fomentado por uma mudança substancial na estrutura do
capital em escala global” (p.22). Sem incorrer numa perspectiva que vê uma
causalidade simples entre modo de produção e superestrutura cultural, o que
importa é pensar as mediações acionadas nas últimas décadas na expansão e
globalização do capitalismo (estrutura financeira do capital, formas de estado,
regimes político-sociais de controle, fim da divisão em blocos de poder, novos
movimentos intra-sistêmicos) e seus efeitos no campo da produção, distribuição e
circulação do saber.
Essa hipótese é desdobrada pelo crítico em alguns argumentos. Um primeiro
argumento diz respeito à nova função subalterna dos estudos literários. Se os
estudos literários não constituem mais a instância hegemônica hoje de produção
do valor social, porquanto o modo de produção capitalista desenvolve outros
tipos de identificações afetivas no mundo globalizado, para cuja compreensão os
estudos literários mostram-se insuficientes, isso não inviabiliza o estudo da
literatura a partir de um pensamento da irrupção, da força. Ao assumir uma
condição subalterna, o que implicou a reestruturação do poder acadêmico, uma
nova distribuição do capital cultural do discurso universitário, os estudos
literários ganharam possibilidades de desempenhar novo papel no contexto de uma
articulação contra-hegemênica “ultra-pós-moderna” (Perry Anderson). Moreiras
tira, pois, um corolário dessa primeira hipótese: “é a nova função subalterna
dos estudos literários que lhe confere forçosamente potencial irruptivo. Estamos
longe de ter acabado com o literário, mas as próprias armas da reflexão
literária têm que se reconfigurar hoje de acordo com as configurações emergentes
do saber.” (p.23-24)
Um outro argumento considera o predomínio, dentro da tradição crítica
latino-americana das ciências humanas, do paradigma estético-historicista como
forma de apreender as especificidades das modernidades alternativas do
continente. Tal tradição diverge da perspectiva endossada por Moreiras, que
associa o estudo das modernidades alternativas com a falta de coincidência entre
história do capital e história do poder social, e atribui ao exercício da razão
crítica a busca da compreensão da totalidade das relações sociais que nos
determinam por meio da imaginação histórica. Ora, o projeto
estético-historicista levava a um reforço da especificidade do poder social
latino-americano exatamente contra um exterior ameaçador, o capitalismo
monopolista. Formuladas as nossas especificidades em termos de resistência
contra um fora invasor, a razão crítica desse período tendia a se fechar nas
singularidades, sem dar conta da compreensão da tal totalidade das relações
sociais. Isso é que vai constituir os valores de um modernismo historicista
(“Nuestra América” de Martí, “A Roosevelt” de Rubén Darío, Ariel, de José
Enrique Rodó). Segundo a avaliação de Moreiras, a estética não passa então de
uma via para o historicismo, visto este, enquanto historicismo culturalista,
como meio de satisfação estética. E o próprio estado nacional-popular, que
controla a produção simbólica ao longo de quase todo o século XX, não deixa de
ser uma forma de estetização da política.
Os estudos culturais haverão de contribuir para a destruição desse
paradigma estético-historicista ao intuir como preconceito ideológico o
entendimento da cultura de determinada formação social enquanto círculo
hermenêutico (a idéia de que entender a cultura própria ou alheia significa
entrar no círculo hermenêutico constituído por essa cultura). Tal círculo se
desenha em função da constituição da esfera pública, do espaço de poder social,
e nunca se fecha. Assim, em relação à historicidade latino-americana, Moreiras
postula a radicalização dos estudos culturais; trata-se de buscar o que restou
para além da transculturação, o exterior da circularidade hermenêutica, o que
foi subalternizado como o exterior constitutivo da relação hegemônica. Tal
radicalização demanda uma revisão do caráter fundamental do objetivo da razão
crítica que, nos estudos culturais, já não é mais estético-historicista; ao
contrário, se faz na desconstrução do binarismo dentro/fora em que se apóia
qualquer historicismo e a teoria cultural da modernidade.
O desafio é o de pensar possibilidades irruptivas de uma linguagem
pós-estética e pós-historicista, que Moreiras acredita retidas ainda pela
promessa literária. O que levaria o ato de pensar para dentro de um pensamento
em ruínas, situação capaz de definir o trabalho intelectual no nosso presente. E
aqui cabe uma crítica ao pensamento localizado, que se lança na busca de uma
“linguagem pura” através do trabalho literário da tradução, vendo-se como algo
diverso de um pensamento nas ou sobre as ruínas. Como observa Moreiras,
tomando-se a história como história do poder e da resistência, o pensamento
localizado procurou resgatar a historicidade da resistência como sendo ela
própria uma forma de poder, constituindo-se já como uma forma de expropriação da
história e do pensador. De modo que não tem ele o direito de assumir a negação
subalterna por pensar também a partir do discurso
colonial.
2a hipótese – A segunda hipótese de Moreiras constata o
fato de que os estudos culturais estão perdendo sua força irruptiva e divisória
em decorrência de seu processo de expansão transnacional. Presa a uma lógica da
reiterabilidade, boa parte deles se transformaram em poder social a serviço da
reprodução ideológica do capitalismo. Suas estratégias irruptivas (dotadas de
violência fundadora) acabaram domadas em prol de novas codificações do valor
social. Contudo, cabe ainda a defesa, não incondicional, dos estudos culturais
contra formas reacionárias do trabalho intelectual, ativando sua marca
grafemática contra o lugar da verdade. Em oposição à divisão redutora do campo
intelectual humanista entre crítica literária e crítica cultural, carece de
preservar o exercício da imaginação histórica, ponto de partida de uma
rearticulação emergente da razão crítica. Mais que isso, deve-se procurar
articular a literatura e a cultura, pelo exercício da imaginação histórica, a
fim de romper com os binarismos.
Nessa hipótese, há também alguns argumentos que a desdobram. Um deles tem
a ver com a localização crítica de Moreiras, perceptível em sua apropriação de
dois livros: The Cultural Turn, de Fredric Jameson, e The Origins of
Postmodernity, de Perry Anderson. Reavaliando a teoria jamesoniana da
pós-modernidade, Anderson observa nela, no contraponto estabelecido nela entre
um “plano de substância” – a economia política – e um plano da forma – o
estético –, tanto a redução do político a um papel menor ou subsidiário dentro
do sistema, quanto a ausência de Gramsci, o grande pensador do círculo
hegemônico e de sua contraparte, o poder subalterno. Moreiras relaciona essa
omissão de Gramsci com “a determinação da pós-modernidade como o momento de
desenvolvimento capitalista no qual ‘a cultura se tornou efetivamente
co-extensiva do econômico’” (p.31). Ou seja, e seguindo aqui as pegadas de
Jameson, na linguagem pós-moderna há uma nova dimensão cultural independente do
mundo real, não em razão de uma autonomia da arte, mas porque o mundo real já
estava saturado e colonizado pela cultura enquanto co-extensão do
capitalismo.
Dessa maneira, a história do capital e a história do poder social se
tornam uma só história na pós-modernidade plena, anulando a noção de um lado de
fora, articulador do círculo hermenêutico. Fator que coloca em xeque seja o
projeto da razão crítica da modernidade baseado na falta de coincidência entre
forma e conteúdo social, seja o projeto estético, assentado também na idéia de
um lado de fora inalcançável. Uma vez que, com a expansão do sistema já não
existe a noção produtiva do lado de fora, a questão consiste agora, para
Moreiras, em saber onde ativar uma força irruptiva intra-sistêmica, um tipo de
imaginação histórica capaz de levar a uma reformulação do projeto de razão
crítica em termos político-epistemológicos.
Um segundo argumento está diretamente relacionado a uma possibilidade de
articulação política enquanto movimento intra-sistêmico dentro da
pós-modernidade. Possibilidade que Moreiras detecta numa outra observação de
Perry Anderson, relativa ao fato de a amizade e a inimizade serem frutos da
eterna redivisão do campo social. Aponta então a amizade como instância capaz de
oferecer a possibilidade crítica intra-sistêmica, ou, nas palavras de Derrida,
como “um pensamento de ruptura e interrupção sem precedentes”. E esclarece:
o
que Derrida imagina como abertura radical para o inimigo procede também da
absoluta subsunção do outro em um mesmo, que é parte intrínseca do
pós-modernismo jamesoniano. Quando já não há um lado de fora imaginável,
tampouco há, pela mesma razão, um lado de dentro que permita a simples divisão
do terreno do político entre amigos e inimigos. O colapso da distinção clássica,
o fim do amigo e o fim do inimigo, marca a nova possibilidade aporética do
amigo, e também do inimigo. (p.33)
Importa, pois, assumir o risco do novo amigo a partir do pensamento
nietzschiano do “talvez”. Trata-se da possibilidade de uma razão política e
crítica do saber fortemente vinculada à comunidade literária, agora num sentido
pós-estético e não apenas moderno, conforme coloca Derrida. Uma forma de se
contrapor à “mercadorização da localização no pensamento localizado” (ou seja, a
conversão da expropriação em adequação e em propriedade) como produto indesejado
mas estrutural do trabalho literário da tradução, e de resistir à subsunção do
trabalho intelectual pelo capital.
3a hipótese – Consiste na percepção de que “a tarefa em
nosso presente se faz mais clara e urgente que nunca, precisamente em virtude de
sua opacidade aporética” (p.34). Em outras palavras, exatamente no momento em
que uma força emergente é reificada é que se abre instaura a promessa de uma
verdadeira tarefa do pensamento. Entendendo a prática teórica como “a
resistência a qualquer processo de mercadorização ou reificação de formas, sejam
elas estéticas, de valoração ou conceituais” (p.34), Moreiras espera que a
crítica dos estudos culturais favoreça projetos de reformulações teóricas
capazes de promover uma ruptura sem precedentes.
Nessa direção, a reflexão latino-americanista apresenta uma situação
privilegiada para promover tais reformulações, tendo em vista os cruzamentos
civilizacionais ocorridos na América Latina, sua posição intermediária em
relação aos processos de globalização. Mas é preciso assumir a necessidade de
pensar tal encruzilhada e correr o risco do fracasso. Nessa empreitada, como
crítica ao pensamento translacional, que promove a integração adequada aos
circuitos da conformidade, Moreiras recomenda
[u]m
excesso não-translativo deve marcar a reflexão latino-americanista como sua
primeira e última condição para a existência crítica: como possibilidade de sua
existência enquanto prática teórica e comunidade de amigos. Pela mesma razão o
pensamento localizado deve ceder lugar a uma atopia suja, um suplemento da
localização, sem o qual a localização chega ao seu próprio fim e se torna uma
ruína do pensamento. A atopia suja aqui é um nome para um programa
não-programável de pensamento que se recusa a buscar a satisfação na
expropriação, ao mesmo tempo que se recusa a ceder a pulsões expropriadoras. É
suja porque sua desincorporação não gera pensamento; é atópica porque nenhum
pensamento se esgota em suas condições de enunciação. Isso não nos livra da
crítica; pelo contrário, torna possível a crítica. (p.35-36)
O
que o texto nos possibilita dizer, questionar
Uma primeira consideração que o texto me suscita diz respeito à
sobrevivência da literatura em tempos de crise, mudança de paradigmas,
deslocamentos geoculturais. Ao promover uma clara distinção entre a literatura e
os estudos literários, isto é, o discurso crítico sobre a literatura produzido
no interior da universidade, o texto pode propiciar um certo alívio da ansiedade
e do desconforto naqueles que vêem, com os estudos culturais, a pós-modernidade,
o fim iminente e inevitável da forma literária em suas diversas manifestações. A
literatura continua viva, agora certamente entrecruzada com outras linguagens e
formas artísticas, discursivas, operando novas mediações. Não mais aquela que
operava no mundo moderno, como mediadora da relação entre a sociedade, a razão,
o saber, e o Estado-nação, na sua condição de centro da cultura (veja a
propósito o cap. III do livro de Moreiras, “Ficções teóricas e conceitos
fatais”, em que oferece uma exposição clarividente do deslocamento operado em
relação à literatura e aos estudos literários). Livre da obrigação de ser o
centro da cultura, a literatura se deslocou para outras bandas e possibilidades
de seu ser, assumindo o livre vôo de uma liberdade inaudita, selvagem. O que
está em questionamento mesmo, e pra valer, é o nosso saber sobre a literatura, o
campo disciplinar dos estudos literários que conforma os nossos currículos dos
cursos de Letras. Campo de saberes disciplinados e normalizados pela
racionalidade da universidade moderna, com seu estoque de categorias,
procedimentos e perguntas regulados pela força controladora do método, que
recusa outras possibilidades de indagações e caminhos. Então, o que temos de
lidar é com a falência do nosso campo disciplinar, reinventando outras
possibilidades de abordagem da literatura e da cultura. De toda sorte, o nosso
objeto de investigação parece escapar airosamente das crises e transformações; e
o nosso emprego garantido, pelo menos por enquanto.
No amplo quadro descrito por Moreiras, como se viu, há uma substituição
tendencial do aparato dos estudos literários, tornado insuficiente para lidar
com o deslocamento geocultural operado no mundo pós-moderno, pelo aparato dos
estudos culturais, replicando o literário. No entanto, como se viu, as posições
de cada um, enquanto elemento residual e força irruptiva ou enquanto poder
hegemônico, não deixa de depender de seu lugar de inscrição, conforme demonstra
o ocorrido no Congresso da Abralic. Aqui, os estudos literários constituíam um
poder, uma instância hegemônica, com os estudos culturais apresentando-se como
dotados de caráter irruptivo, contestador, ao passo que, nas academias
norte-americanas, os estudos culturais já seriam o poder, e os estudos
literários o elemento residual e transgressor. Em termos da academia brasileira,
importa saber em que medida esse quadro dos anos 90 já teria se alterado
significativamente, com os estudos culturais tornando-se hegemônicos entre nós.
Na minha percepção, as análises culturais por aqui ainda não se consolidaram
efetivamente nas nossas universidades, processo em que correm o risco de sua
institucionalização e a perda de sua força irruptiva. Embora já profundamente
questionado, prevalece entre nós o paradigma estético-historicista modernista de
afirmação da singularidade da nossa modernidade alternativa, conforme formulado
especialmente pelo modelo uspiano. Obviamente que já estamos num quadro mais
diferenciado, nuançado, de forças em relação.
Um outro ponto que gostaria de ressaltar, para uma discussão do texto de
Moreiras, tem a ver com um certo desconforto meu quanto ao seu enquadramento
excessivamente acadêmico, perceptível nas manobras retóricas, no modelo
argumentativo de seu texto. Isso apesar de toda a crítica que dirige à
universidade moderna, evidenciando, na esteira de Willy Thayer, sua falência
“como centro nacional estatal hegemônico, de controle e liderança da pesquisa e
da docência”[i].
Com efeito, a universidade moderna se constitui num sistema totalitário ao
pretender, em sua “avidez totalitária”, a reunião de todos os saberes,
normalizados, regulados e hierarquizados por ela, em um só, seguindo a divisa
moral do saber ocidental: “bom é o que reúne; mal o que dissolve”. De sorte que
dela ficaram excluídos os saberes selvagens, ou não-saberes, que não se
submetiam aos ditames da instrumentalização metodológica, acossando os seus
muros.
Diante disso, dado que a reflexão latino-americanista não se reduz ao
discurso acadêmico, caberia a indagação a respeito de que outros discursos, de
que outras subjetividades tomam a América Latina, ou dimensões dela, como objeto
de reflexão e dela também se apropriam, evidenciando outras facetas e operações
do trabalho intelectual. Pensar uma produtiva articulação entre os estudos
culturais e os estudos literários, como possibilidade de salvaguardar uma razão
crítica latino-americana, de liberação de forças irruptivas intra-sistêmicas,
significa uma discussão efetiva tanto do modelo de universidade que estamos
endossando, ou que queremos, quanto dos currículos e metodologias dos cursos de
Letras, para ficar aqui na nossa área. Não seria o caso de se fazer desses
outros discursos e subjetividades, daqueles saberes selvagens (penso nos saberes
populares produzidos nas dinâmicas dos movimentos sociais por diferentes atores,
nos diferentes saberes artísticos, por exemplo), subalternizados enquanto
não-saberes, o núcleo dinamizador de uma profunda reconstrução da práxis
universitária? Isso não implicaria demolir os muros que separam um saber
instituído, legitimado pela academia, dos saberes subalternizados,
estigmatizados como não-saberes?
Embora
se situando no campo do pensamento pós-marxista, a reflexão de Moreiras recorre
a categorias do aparato crítico marxista, como o fetiche da mercadoria, a noção
de expropriação, a importância da totalidade. Se há uma sobredeterminação da
superestrutura pelo modo de produção, entretanto, não se trata de uma relação
mecânica, de simples causalidade, como ele reconhece. Subjaz ao modus
operandi de seu raciocínio a idéia de que, na medida em que se modificam as
condições materiais de produção de um discurso, isso acarreta uma mudança na
forma de percepção de seu objeto, alterando o seu estatuto. Trata-se de um
princípio que norteou a reflexão de Benjamin, de um Benjamin mais impregnado
pelas formulações marxistas, a respeito da obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica. No caso da reflexão latino-americanista, de acordo
com Moreiras, salientam-se as mudanças nas condições de possibilidade do
discurso latino-americanista nos anos 90, fruto daquele deslocamento geocultural
apontado acima, com a separação entre trabalho intelectual e seus meios de
produção, um sintoma de expropriação.
O
que lhe interessa mais, entretanto, são as mediações existentes na relação entre
condições materiais de produção e a superestrutura, que passam pela cultura,
pelo político, pelo discursivo. Nessa direção, importa considerar a categoria da
totalidade e suas conexões com as particularidades, tendo em vista que,
hegelianamente, o todo é mediado pelas partes e as particularidades só se tornam
inteligíveis no movimento da totalidade, no caso: a totalidade da vida social.
Daí a reivindicação de Moreiras no sentido de se buscar a compreensão da
totalidade social, em que se sobressai o papel relevante do deslocamento do
capital financeiro dentro do capitalismo tardio, como forma de se entender mais
adequadamente as questões atinentes à reflexão latino-americanista, a exemplo
daquelas relacionadas à briga entre estudos literários e estudos culturais
latino-americanos. Ocorre que essa totalidade não é um dado a priori da
análise, mas constitui-se sobretudo no processo analítico, a partir de uma
complexa rede discursiva e de suas operações retóricas. Como não há mais um
fora, como cultura e capital se fundiram, em que medida então a apreensão dessa
totalidade não se deixa marcar pela lógica do sistema, não se articula como
sombra e derivação da razão imperial? Mais ainda, se estamos todos dentro da
razão imperial, em que tudo vira mercadoria (o saber, inclusive), tudo é
incorporado pelo sistema – as diferenças, o heterogêneo, o seu outro, o outro do
outro, etc. –, acabamos em certa medida num mundo sem saída, ou em que as saídas
são utópicas, e com isso o nosso horizonte é sempre um para além de, conduzindo
a uma atmosfera que não deixa de ser agônica e melancólica. Pela contundência de
sua negatividade crítica, da reflexão de Moreiras parece não sobrar nada,
conquanto busque vislumbrar possibilidades irruptivas. Além do que, mergulhados
no mundo do consumo, em que tudo é remercadorizado, a mercadoria com seu fetiche
despontam como algo intrinsecamente mau, contra o que se deve lutar
permanentemente. A mercadorização da diferença, do heterogêneo, constitui a
razão de uma “exaustão da diferença”, indicando que a própria diferença não
passa de uma demanda e construção do sistema, da razão imperial. Dentro desse
enquadramento é que se pode entender a noção de contraconsumo, como “instância
negativa contraconsumptiva dentro do próprio consumo cultural” (ver o ensaio “A
globalidade negativa e o regionalismo crítico” com suas noções de “fissura
narrativa” e “globalidade negativa”) A meu ver, essa noção de contraconsumo, do
consumo como possibilidade de exercício da cidadania, tomada a partir de
Canclini, constitui uma forma de relativizar o caráter negativo da mercadoria.
Finalizo essa discussão com mais duas breves observações. A primeira
refere-se à postulação da amizade, das políticas da amizade, como uma
possibilidade irruptiva intra-sistêmica. Ela promove um deslocamento do campo
racional para o campo dos afetos, fundindo o político, o racional, e os afetos,
cujas mediações e conseqüências precisam ser pensadas. Assinala a também um
deslocamento de uma perspectiva da fratria para a da filia, marcada esta pela
livre escolha, pela gratuidade, sem hierarquizações. Mas como pensar isso no
âmbito de uma universidade cada vez mais transnacional e competitiva, de uma
competição em nível global? Que gestos de construção do novo amigo são possíveis
num contexto de exigências de produtividade e consumo dos saberes?
A segunda observação refere-se ao pensamento localizado. Quanto a isso,
Moreiras parece estar se contrapondo a posições como as de Hugo Achugar, que
defendem a relevância epistêmica do lugar de onde se fala e de onde se lê. O
objetivo do professor da Duke University é o de desconstruir o privilégio
epistêmico do pensamento localizado, especialmente em função da dissolução do
binarismo dentro/fora. Todavia, o seu lugar de enunciação não imantaria essa sua
desconstrução da localização legitimadora, necessária ao novo posicionamento do
intelectual no mundo globalizado, pós-moderno, não mais referenciado em termos
das lutas de classes, como no mundo moderno? Desconstruir o pensamento
localizado não poderia servir também ao sistema, como estratégia de construção
de um novo intelectual, desreferenciado e
desterritorializado?
São questões que deixo como convite ao prolongamento de nossa
conversação, aqui ou em outros lugares.
[i] THAYER, Willy. A crise não moderna da universidade moderna. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. p.17.
Renato
Cordeiro Gomes – Os cosmopolitismos
O
cosmopolitismo é um tema recorrente
Por esse viés, perpassa a questão do cosmopolitismo, contextualizada num
tempo (o nosso) em que se experimenta o processo de aceleração da história
marcado pela superabundância de fatos e informações e pela emergência de
interdependências em escala inédita no sistema-mundo; quando se experimenta uma
nova relação com o espaço, cuja superabundância se expressa através de mudança
de escala decorrente do desenvolvimento tecnológico, que permite cada vez mais
deslocamentos rápidos e intensos, e da multiplicação de referências energéticas
e imaginárias; quando tais mudanças produzem significativas alterações na
configuração espacial, quando se intensificam os processos de migração, crescem
assustadoramente as concentrações urbanas e se multiplicam os não-lugares
(também na acepção de Marc Augé), ou seja, espaços voltados à não-permanência, à
circulação acelerada de pessoas e bens; quando, paradoxalmente, se dá a
afirmação das particularidades, quando indivíduos submetidos às imposições
globais da sociedade, têm a possibilidade de desviar-se delas, através de
estratégias de singularização, que podem funcionar como contraponto ao acelerar
do tempo, à experiência da desterritorialização e aos efeitos da homogeneização.
Ou, em outros termos, dá-se a intensificação da interdependência transnacional e
das interações globais e, paradoxalmente, o desabrochar de identidades regionais
e locais, ou seja, de um lado, as experiências do global, de outro, os processos
de afirmação de identidades pontuais e locais frente ao conceito de Nação e da
identidade nacional em crise, como já apontou Boaventura de Souza Santos, em Pelas mãos de Alice (1996), formulação
retomada por Eneida Leal Cunha, no ensaio “Literatura e identidade” (1997/98).
Essas
contradições põem em xeque o compromisso com o espaço cultural e geográfico de
origem – o local, com o processo de desapropriação pelo global, sobretudo se
considerarmos que seja bem provável que estejamos vivendo o final da construção
romântica das literaturas nacionais. Como tais questões deste início de século
permitem rever as tensões entre o nacional e o cosmopolita, entre a cultura
local e a cultura mundial? Cabe então perguntar se, na reflexão sobre o lugar e
a forma de produção do conhecimento contemporâneo, há um sentido único quando se
refere a “cosmopolitismo”. Essa é um tipo de provocação que os textos de
Silviano incitam, e vêm juntar-se a idéias estampadas na introdução assinada por
Carol A. Breckenridge, Sheldon Pollock, Hommi K. Bhabha e Dipesh Chakrabarty da
coletânea Cosmopolitanism por eles editada, que não à toa se intitula
exatamente “Cosmopolitanisms” (no plural). Afirmam eles que “especificar
positivamente e definitivamente cosmopolitismo é uma coisa não cosmopolita”
(2002: 1). É para eles, como para Silviano, uma categoria histórica que deveria
ser considerada inteiramente aberta e não um conceito determinado a priori
pela definição de uma sociedade ou de um discurso particular. Impõe-se,
então, – é a lição da referida coletânea com ensaios de intelectuais de várias
procedências – repensar o conceito dos diversificados cosmopolitismos, num solo
histórico, a partir dos dias atuais, em que novos modos de simbolização e
ritualização dos laços sociais se tecem pela mediação das redes comunicacionais
e dos fluxos informacionais (Martín-Barbero, 2001 e 2004); em que as formas e
forças de identidade são menos sociais e mais culturais (Touraine, 1994). Em tal
contexto a circulação prevalece sobre a produção, que também define o padrão
geográfico, já que é mais densa, mais extensa, e detém o comando das mudanças de
valor do espaço – observa Martín-Barbero (2004, p. 260). E acrescenta, para destacar que a nova
significação do mundo não é derivável do Estado-nação:
as
redes põem em circulação fluxos de informação e movimentos de integração à
globalidade econômica, a produção de um novo tipo de espaço reticulado que
debilita as fronteiras do nacional e do local ao mesmo tempo em que converte
esses territórios em pontos de acesso e transmissão, de ativação e transformação
de comunicar e de poder” (Martín_Barbero, 2004, p. 260).
Tais
questões permitem rever as tensões entre o nacional e o cosmopolita, entre a
cultura local e a cultura mundial. Neste momento pós-moderno, pós-colonial e
pós-nacional, o cosmopolitismo não pode mais ser articulado a partir de um único
ponto de vista, de uma mono-lógica. É necessário levar em consideração a
diversidade e o discurso dos que estão à margem.
Parece
ser sintomático que o ensaio “O cosmopolitismo do pobre” foi publicado
originalmente na revista bilíngüe Margem/Márgenes[1]
(n.2, dez 2002), revista de cultura que fora, antes, Caderno de Cultura, cujo n.
2 (out. 2001) estampou ensaio “Uma propuesta para el nuevo milenio”, de Ricardo
Piglia. Este ensaio elege como idéia central o que ele chama de desplazamiento, distancia, cambio de
lugar, o que significa “sair do centro, deixar a linguagem falar
também das bordas, no que se ouve, no que chega de outro”. Esse núcleo é
retomado e ampliado na conferência apresentada em Cuba, na Casa de las Américas,
em 2000, que constitui o “livrinho” Tres propuestas para el próximo milênio
(y cinco difucultades), publicado em 2001 pela Fondo de Cultura
Económica.
O
ensaio de Silviano que acabou dando título a uma coletânea publicada pela Ed.
UFMG, pode perfeitamente inscrever-se nessa figura de deslocamento para a margem
que caracteriza o cosmopolitismo do pobre, como é “pobre” todo o cosmopolitismo
que se define a partir da margem, fora dos centros hegemônicos, diz o autor em
entrevista recente (a ela voltaremos). Esse deslocamento da voz está atrelado ao
que Mignolo denomina “momento pós-colonial do mundo moderno/colonial”, em que se
dissolvem as fronteiras da nação, abrindo-se para um mundo transnacional. Esse
tipo de cosmopolitismo está menos conjugado ao engrandecimento do Estado ou do
Império do que à representação de comunidades minoritárias. Pode-se dizer que o
projeto cosmopolita atual não se aloca mais no mito da nação e do cidadão do
mundo, nem emerge das idéias de universalidade e progresso, mas representa o
espírito de uma comunidade cosmopolita de refugiados, migrantes,
exilados.
É
nesse sentido que Silviano Santiago, depois de demonstrar, no ensaio “Atração do
mundo”, a partir das idéias de Joaquim Nabuco, o percurso político-cultural de
nossa modernidade tardia, na base das tensões entre as exigências localistas e o
cosmopolitismo identificado com a cultura européia, irá propor um
“cosmopolitismo do pobre”, a que poderíamos opor um “cosmopolitismo do rico” [o
tremo é meu, não de Silviano] (ligado ao “multiculturalismo antigo”, no âmbito
do qual surgiu o termo etnocentrismo, cunhado pelo norte-americano William G.
Summer, em 1906 – informa Silviano), aquele analisado a partir de Minha
formação (1900), de Nabuco, cosmopolitismo que Mário de Andrdae em carta de
1924, ao jovem Drummond, chamou de “moléstia de Nabuco” (suspirar pelo Sena, na
Quinta da Boa Vista).
Elegendo
como ponto de partida o filme Viagem ao começo do mundo (1997), do
português Manuel de Oliveira, Silviano mostra como está surgindo uma nova forma
de “desigualdade social que não pode ser compreendida no âmbito legal de um
Estado-nação, nem pelas relações oficiais entre governos nacionais, já que a
razão econômica que os convoca para a metrópole pós-moderna é transnacional e é
também clandestina” (2002: 7). Se há uma nova forma de multiculturalismo que só
pode ser compreendido num processo de “desnacionalização do espaço urbano” e
“desnacionalização da política” (Saskia Sassen), e se há os trânsitos de
desprivilegiados do mundo, uma nova forma de cosmopolitismo emerge desse influxo
de imigrantes pobres nas metrópoles pós-modernas, da mesma maneira que resgata
grupos étnicos e sociais economicamente desfavorecidos no processo de
multiculturalismo a serviço do Estado-nação. Esse novo cosmopolitismo do pobre
conta com o apoio de movimentos políticos transnacionais, em especial pelas
ONGs, que defendem os direitos das minorias e com dispositivos de comunicação e
das mídias possibilitados pelas novas tecnologias, cujas redes ensejam as
conexões com o sistema mundo. Novas formas de cosmopolitismo permitem, portanto,
expressar novos projetos políticos, éticos e culturais, a partir de perspectivas
marginais, ou seja, do deslocamento de centros hegemônicos que marcaram a
tradição cosmopolita.
Em
entrevista recente (a ser publicada no n. 7 da revista Matamorfose, da
Faculdade de Letras da UFRJ), a uma pergunta formulado por mim, Silviano
responde, ampliando e nuançando a questão. Vale a pena a citação
longa:
1-
Do
urbano ao cosmopolita. Você é um dos editores da revista bilíngüe Margens/ Márgenes e publicou no n.2 um
ensaio “O cosmopolitismo do pobre” (que acabou dando o título da coletânea de
ensaios, publicada pela Ed. UFMG, e que acaba de receber o Prêmio de Ensaio da
Biblioteca Nacional). Há por oposição um cosmopolitismo do rico, como o que você
fala em seu ensaio “Atração do mundo”, centrado na figura de Joaquim Nabuco do
livro de memórias Minha
formação?
Infelizmente,
somos todos, aqueles que o são, – y
inclus Joaquim Nabuco –, cosmopolitas pobres. Esse é um dos lances teóricos
do meu livro de ensaios. Repare que a situação familiar ou financeira, abastada,
deste ou daquele brasileiro, ou latino-americano, a classe social superior a que
pertence, não o diferencia do cosmopolita propriamente pobre, sem recursos
financeiros, que toma o avião da Varig e vai comer o pão que o diabo amassou nos
Estados Unidos. Veja que, se um dos meus artigos começa por Nabuco, o outro
começa pelo notável filme de Manoel de Oliveira, um português que se situava na
União Européia. A condição de pobre é
a de estar na margem e à margem da História, como fica claro em Minha formação, de Joaquim Nabuco. No wired world em que vivemos, a diferença
entre o brasileiro rico e o brasileiro pobre reside no fato de que o primeiro
não precisa viajar e o segundo viaja, mas mesmo assim, em nossos dias, não
precisa tanto viajar para ser cosmopolita. Como escreve Nabuco, no Brasil sente
saudades da Europa, na Europa sente saudades do Brasil. É essa situação entre que nos torna a nós, brasileiros,
cosmopolitas pobres. O brasileiro pode até ser um nacionalista rico, e os há, e
relativamente poucos, mas, se passar à condição de cosmopolita, será sempre um cosmopolita
pobre.
O
nacionalista rico costuma ser contra o cosmopolita pobre, tanto o das classes
superiores quanto o das classes populares. O cosmopolita pobre, qualquer que
seja ele (repito), é sempre uma erva daninha para os interesses financeiros dos
nacionalistas ricos e estreitos. Aliás, é o nacionalismo rico e estreito,
burguês e flor de estufa da colonização européia nos trópicos, que é o principal
responsável (não tenhamos ilusões) pela pobreza do favelado e do homem do campo.
O camponês mexicano, o suburbano carioca ou paulista e o mineiro de Governador
Valadares, que voam para os Estados Unidos em busca de melhor salário,
assinalam, no seu extremo, o fracasso
da colonização européia, ou melhor, o modo como a colonização européia,
incentivando o nacionalismo do rico, acabou por jogar os colonos (ainda)
miseráveis nas mãos de outro colonizador, os Estados Unidos da América, ou, de
maneira geral, os países do Primeiro Mundo. Estamos nos referindo, é claro, à
diáspora dos latino-americanos de que o pachuco (o camponês mexicano pária
O
que estou querendo dizer é que há novas, precárias e fragmentadas utopias no
mundo pós-moderno. Muitos grupos de cidadãos estão “aquém e além do nacional”,
no que me aproximo de filósofos como Jurgen Habermas. Há um componente nacional
que precisa ser (re)trabalhado em conformidade com a situação geográfica e
tecnológica atual, onde a Internet (por exemplo) possibilita o congraçamento de
grupos até então distantes e alheios um ao outro, mas passíveis de serem
reorganizados a partir de uma concepção de identidade mais ampla. Os cidadãos estão
aquém (porque pertencem a grupos
minoritários nacionalmente, desprivilegiados que são pelo poder central) e estão
além (porque fazem aliança com outros
grupos minoritários estrangeiros, desprivilegiados que são pela globalização) do
nacional.
Há
um regionalismo (insisto no conceito) dentro do nacional que, feita a ponte
cosmopolita, se transforma num regionalismo (idem) dentro da globalização. É a combinação
do regionalismo nacional com o regionalismo globalizado que se torna, neste
milênio, o modo mais efetivo de crítica aos desmandos da mundialização econômica
De
repente um grupo de indígenas brasileiros pode querer se inscrever identitariamente aquém do projeto nacional da FUNAI, tal
como o projeto vem sendo sendo desenvolvido pelos sucessivos governos nacionais,
e, ao mesmo tempo, além do projeto
nacional em vigor, buscando articulações (políticas, sociais, econômicas) com
outros grupos indígenas da América Latina. O que estou querendo dizer é que o
indígena, o negro, a mulher negra, os sem-terra, ou qualquer outro grupo pobre,
interiorano ou citadino, todos eles não precisam aceitar as restrições e os
imperativos econômicos históricos e passageiros como restrições culturais. Podem
ser hoje e também cosmopolitas pobres, como, aliás, todo e qualquer brasileiro,
que o seja, o é. Eles não precisam ter necessariamente a mentalidade de
“lavrador”, que lhes foi incutida pelos nacionalistas ricos. Não precisam ficar
eternamente cavoucando a terra (no sentido literal e também no sentido
simbólico). Eles podem ter a mentalidade do “marinheiro”, para ficar com a
clássica oposição de Walter Benjamin.
O
perigo dos ideais cosmopolitas surge no momento em que a perspectiva de
avaliação do estado-nação transforma-se em julgamento de valor, ou seja, quando
tudo o que não era europeu no Brasil, tudo o que não é norte-americano no
Brasil, era/é menor, era/é adjetivo e não substantivo. No extremo oposto, surge
outro grande perigo: julgar que tudo o que é autenticamente brasileiro era/é
superior, era/é substantivo e não adjetivo.
Essas
achegas aos dois ensaios “Atração do mundo” e “O cosmopolitismo do pobre”,
levam, entretanto a certas indagações:
1)
se
todo e qualquer cosmopolitismo da margem é “pobre”, não se corre o risco de
perder as marcas de classe e de poder econômico, que não foram abolidas pela
globalização, pela diáspora?
2)
Nesse
sentido, me parece que a margem que Nabuco ocupava (porque “uma cartola na
Senegâmbia”, como dizia Oswald de Andrade) não seria a mesma do imigrante pobre
de hoje (o pachuco, os brasileiros nos Estados Unidos [cf a telenovela
América, de Gloria Perez]. Os contextos históricos são outros. Se for
verdade que são iguais (somos todos cosmopolitas pobres), estaria Mário de
Andrade equivocado quando classificou a “moléstia de Nabuco”, que Silviano
aborda em “Atração do mundo” e nos comentários da correspondência
Mário&Carlos?
3)
A
situação de Portugal, hoje, tematizada no filme de Manoel de Oliveira, seria
antes uma semiperiferia, como revelou Boaventura de Sousa Santos, poderia ser
lida num mesmo diapasão da América Latina? O Filme falado, do mesmo
cineasta, revela outra dimensão do cosmopolitismo.
4)
A
oposição mais contundente do texto seria cosmopolitismo do pobre X nacionalista
rico (seria interessante um exercício em que se buscaria equacionar as
implicações políticas, sociais e culturais dessa equação).
5)
Nessa
resposta, não estaria Silviano recolocando o cosmopolitismo num centramento, que
o ensaio procura deslocar para pensá-lo a partir da margem, como também revela a
proposta de Piglia?
6)
O
cosmopolitismo do pobre como suplemento da cultura ocidental contemporânea, como
advertiu Wander Melo Miranda; ou de cultura globalizada?
7)
Essa
abordagem de Silviano está estreitamente relacionada com sua obra de ficção e
seus textos de crítica literária e crítica cultural, que como ele revela “busca
fugir das formas regionalistas da cultura brasileira, obras não comprometidas
com o lugar comum regionalista, sertanejo ou nacionalista”, para se atrelar à
viagem ao estrangeiro, para revelar “o complexo processo de interiorização do
que lhe é exterior” (como se lê em “Oswald de Andrade, ou o elogio da tolerância
racial”.
O
pensamento de Silviano certamente pode ser aproximado de certas formulações de
Walter Mignolo que apresenta “The many faces of cosmo-polis: border thinking and
critical cosmopolitanism” (editado no referido livro), em que o autor procura
delinear o projeto de um “cosmopolitismo crítico” e dialógico como alternativa
para atender às questões do momento atual, que ele denomina pós-moderno/
pós-colonial. Para tal, procede a um percurso histórico por diferentes momentos
em que o conceito teve fundamentação teórica que se refletia em práticas
políticas e culturais.
A
proposta do crítico argentino, professor da Duke University, estabelece como
pressuposto a distinção entre globalização e cosmopolitismo, respectivamente, um
conjunto de dispositivos para organizar o mundo com o propósito de controlar e
homogeneizar, e um conjunto de projetos de convivência mundial, complementares
ou dissidentes em relação aos dispositivos globais. Pode haver, então,
cosmopolitismo gerencial (que reitera os dispositivos globais) ou cosmopolitismo
emancipatório (divergentes). Tais considerações levam Mignolo a analisar o
processo histórico dos projetos cosmopolitas a partir do século XVI, ou seja, a
partir da emergência do comércio atlântico, com o advento do projeto de
colonização européia do Novo Mundo, no momento em que se produz o desenho
global/moderno, necessariamente atado ao colonialismo, dado indispensável para
se pensar o cosmopolitismo até nossos dias, pois é nesse imaginário que
continuamos a viver e é em relação a ele que se deve refletir sobre os projetos
cosmopolitas do passado e sobre o futuro cosmopolitismo
crítico.
Assim,
o crítico evoca debates ocorridos na Universidade de Salamanca, com os
descobrimentos e o início do processo de colonização, que possibilitou a
imposição da cultura branca, ocidental e cristã a outras culturas. Neste
contexto, Francisco de Vitória, sob a luz da teologia, pensou uma utopia
humanista e cosmopolita que requeria relações internacionais baseadas no
“direito das gentes”: uma sociedade planetária, uma comunidade mundial de
estados religiosos baseados no princípio de direito natural. Concebia o teólogo
a expansão européia como um desafio ao alargamento da definição de humanidade.
Sua proposta questionava a colonização, enquanto redução de todas as culturas a
uma única, mas, pelo contrário, requeria a inclusão do outro. Pode-se dizer,
assim, que se os projetos de globalização se iniciaram no século XVI, foi também
aí que surgiram os primeiros projetos cosmopolitas – como o de Francisco de
Vitória – germe de um processo que ainda está vigente: o da convivência mundial
de uma diversidade de culturas, sem que uma se imponha a outra.
O
segundo momento estudado por Mignolo são os séculos XVIII e XIX, época da missão
civilizadora do colonialismo francês e inglês e da formação dos estados-nações e
suas leis, cujo surgimento provoca mudanças fundamentais do sistema
moderno/colonial. A questão então se desloca dos direitos do povo para os
direitos dos homens e do cidadão. A centralidade do estado-nação torna elemento
crucial da nova formulação do projeto cosmopolita, em que a categoria de
“infiel” é convertida na de “estrangeiro”, perigo para o
estado-nação.
O
pensador evocado por Mignolo para representar esse momento é Kant em seus
escritos sobre história. O cosmopolitismo para o filósofo era a oportunidade de
levar o mundo inteiro aos termos de um progresso, de uma evolução da natureza
mesma do homem. A idéia de cosmo-polis kantiana funda-se nas possibilidades e
capacidades do povo viver junto, cuja unidade é organizada justamente em torno
do conceito de nação. Kant redefine, assim, as idéias de pessoa e de cidadão na
consolidação das nações européias, aqueles que desenvolviam um processo
civilizatório tendo a Razão por fundamento. Seria, entretanto, impossível para o
filósofo, em seu momento histórico, perceber que esta proposta estava revestida
de violência eurocêntrica, tal era a sua certeza de que a Razão, levada ao ápice
ali na Europa, era a realização da natureza da humanidade do
homem.
Antes
de propor a concepção de cosmopolitismo crítico para pensar o mundo
contemporâneo, Mignolo analisa o terceiro momento histórico, a segunda metade do
século XX, logo após a II Guerra Mundial, em que, motivado pelos traumas desse
conflito, assiste-se à criação da ONU e à Declaração dos Direitos Humanos,
articulada ao colonialismo transnacional liderado pelos Estados Unidos. Durante
a Guerra Fria, os direitos humanos são evocados para controlar o comunismo,
assim como o controle dos pagãos, infiéis e bárbaros no século XVI e dos
estrangeiros nos séculos subseqüentes.
As tensões entre capitalismo e comunismo geram uma série de conflitos
armados e a implantação de ditaduras na América Latina; dá-se o processo de
descolonização na Ásia e na África e redefine-se a diferença colonial no modelo
da interdependência.
Ao
observar a ordem mundial contemporânea, Mignolo constata que quanto mais o
capitalismo avança, mais conflitos raciais e religiosos emergem como empecilho
para a possibilidade de uma sociedade cosmopolita. Por isso, é preciso dissolver
o relativismo cultural e enfocar o poder do colonialismo e a diferença gerada
por ele, por sua vez reproduzida e mantida pelos desenhos globais. O professor da Duke University propõe
então a alternativa de um cosmopolitismo crítico e dialógico como essencial a um
mundo trans e pós-nacional. Enquanto os outros projetos que ele historia foram
pensados de dentro da modernidade, o cosmopolitismo crítico fala de um exterior,
de um mundo não mais regulado por leis nacionais e emerge de diferenças locais,
e não de um único centro controlador. Não se trata de uma vontade de compreensão
e inclusão de culturas diferentes, mas da inserção dessas culturas como
participantes do processo cultural. Desse ponto de vista, ressalta ele o papel
fundamental da margem. A palavra que representa o pensamento marginal é condição
necessária para o cosmopolitismo crítico e dialógico em direção à
“diversalidade” (diversidade como um projeto universal), como denomina Mignolo.
Diversalidade essa que não pode ser reduzida a uma nova forma de relativismo
cultural, pois não se trata de aceitar que há culturas distintas. Ao contrário,
ela expressa novos projetos éticos, políticos e culturais, a partir de
perspectivas marginais.
O
deslocamento da voz está atrelado ao que Mignolo denomina “momento pós-colonial
do mundo moderno/colonial”, em que se dissolvem as fronteiras da nação,
abrindo-se para um mundo transnacional. Esse tipo de cosmopolitismo está menos
conjugado ao engrandecimento do Estado ou do Império do que à representação de
comunidades minoritárias. Pode-se dizer que o projeto cosmopolita atual não se
aloca mais no mito da nação e do cidadão do mundo, nem emerge das idéias de
universalidade e progresso, mas representa o espírito de uma comunidade
cosmopolita de refugiados, migrantes, exilados.
O
deslocamento, que pode ser entendido como espacial-geográfico, ou temporal, ou
discursivo, associa-se à noção de limite de que fala Piglia, passível de ser
conjugada à problemática da fronteira, que por sua vez implica a noção de
transgressão (e vice-versa). Por essa ótica, como postula Hommi Bhabha, as
narrativas legitimadoras da dominação cultural, ainda estruturadas numa lógica
binária de centro e periferia, hierarquizadora e eurocêntrica, podem ser
deslocadas para revelar o que ele chama de terceiro espaço, em que convivem momentos
diferentes do tempo histórico. Ou dito com outras palavras, “a temporalidade
não-sincrônica das culturas nacional e global abre um espaço cultural – um
terceiro espaço – onde a negociação das diferenças incomensuráveis cria uma
tensão peculiar às existências fronteiriças” (Bhabha, 1998: 300). Esta concepção
está bem próxima do conceito de entre-lugar formulado por Silviano Santiago, no
ensaio de 1971 “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1978), quando,
motivado pelas teorias da dependência, procura uma metodologia de leitura para
ler o lugar de transgressão das literaturas produzidas nos trópicos. A astúcia
do olhar periférico, olhar enviesado, que avalia a dependência cultural, para
além do econômico, não para negá-la, mas como atitude afirmativa capaz de
autoconhecer-se como valor diferencial. Um pé lá, outro cá, num entre-lugar,
lugar diferido, pensa-se uma cultura e uma literatura do ponto de vista de uma
província ultramarina ou dos subúrbios da periferia (para usar a imagem de
Piglia), repensando conceitos etnocêntricos, debilitando esquemas cristalizados
de unidade, pureza e autenticidade. Esse descentramento desloca a cultura
européia de seu lugar privilegiado de cultura de referência – postura inspirada
em Derrida – pondo em causa a descolonização do pensamento brasileiro e
latino-americano. Transmutação dos valores, que o contato entre culturas
diferentes provoca. Entre assimilação e agressividade, aprendizagem e reação,
obediência e rebelião, realiza-se “o ritual antropofágico da cultura
latino-americana”, aquele que se faz de temporalidades disjuntivas, múltiplas e
tensas, temporalidade de entre-lugar, que desestabiliza o significado da cultura
nacional como homogênea, pois é uma cultura dividida no interior dela própria,
articulando sua heterogeneidade e seu hibridismo (Bhabha, 1998:
209).
Neste
terceiro espaço, neste entre-lugar, espaço liminar de significação, marcado por
tensões de diferenças culturais, as mais criativas formas de identidade
cultural, para além das noções de pureza e de originalidade, são produzidas nas
“margens entre” (in-between) formas de diferença, nas interseções e
transposições através das esferas de classe, gênero, raça, nação, geração,
localização. Tanto Bhabha quanto Silviano sublinham o processo ambivalente de
cisão e hibridização que, sendo diferente da assimilação, marca a identificação
com a diferença da cultura, que pressupõe o ultrapassamento do local como forma
pura, limitado por fronteiras, ultrapassamento que se projeta em negociações
fronteiriças (Bhabha, 1998: 306). Neste sentido, a ansiedade irresolvível da
cultural, porque fronteiriça, articula seus problemas de identificação e sua
estética diaspórica em uma temporalidade estranha, disjuntiva, que é,
igualmente, tempo do deslocamento cultural e o espaço do intraduzível. Tal
processo faz gerar uma poética do reposicionamento e reinscrição que permite
olhar as coisas a partir da margem que, como não tem a longa tradição cultural
dos centros hegemônicos, pode trabalhar com a noção de anacronismo, em que a
defasagem temporal se torna uma vantagem (Figueiredo, 1994), porque pode
embaralhar, ou transgredir, aquela tradição que não lhe é própria, ou que passa
a sê-lo à medida que é realocada, antropofagizada, ressemantizando-a com dose de
suplementaridade (“os suplementos são sinais de adição que compensam um sinal de
subtração na origem” – ressalta Gasché, citado por Bhabha [1998:
219]).
Notas
[1] Uma revista que falasse a partir das margens, que
procedesse, então, a um deslocamento em relação aos centros hegemônicos. Esta é
a proposta de criação de Margens /
Márgenes, revista cujo projeto partiu da idéia do escritor Ricardo Piglia,
por ocasião de um encontro com as professoras Monica Bueno (Universidad de Mar
del Plata) e Maria Antonieta Pereira (Universidade Federal de Minas Gerais). A
proposta foi concretizada num projeto desenvolvido com o apoio da Fundação
Rockefeller. A revista tem como editor Silviano Santiago e como
editores-assistentes Wander Mello Miranda e Florencia Garramuño. A revista, que pretende, em primeira
instância, ser viabilizada a partir de pesquisas desenvolvidas principalmente
fora das grandes metrópoles da Argentina e do Brasil, propõe-se a formalizar o
intercâmbio entre esses dois países, com o propósito de “discutir as
perspectivas transnacionais contemporâneas relativas a literatura, cultura,
artes e política, a partir das margens e do local, organizando um espaço de
escrita e reflexão que fosse, na sua excentricidade histórica e geográfica,
metonímia da condição sócio-cultural periférica no atual processo de
mundialização da economia”. Depois de ser um Caderno de Cultura, de que foram
publicados dois números, o projeto concretizou a revista propriamente dita, hoje
com dois números publicados.